Cover of Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01

Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01

Portuguese 59,708 words 995h 8m read Jun 22, 2005

Excerpt

The Project Gutenberg EBook of Op·sculos por Alexandre Herculano - Tomo I
by Alexandre Herculano

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

Title: Op·sculos por Alexandre Herculano - Tomo I

Read the Full Text

The Project Gutenberg EBook of Op·sculos por Alexandre Herculano - Tomo I by Alexandre Herculano This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: Op·sculos por Alexandre Herculano - Tomo I Author: Alexandre Herculano Release Date: June 22, 2005 [EBook #16111] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OP┌SCULOS POR ALEXANDRE *** Produced by Biblioteca Nacional Digital (http://bnd.bn.pt), Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team OPUSCULOS POR A. HERCULANO SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA SOCIO CORRESPONDENTE DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID DO INSTITUTO DE FRANŪA (ACADEMIA DAS INSCRIPŪšES) DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC. QUESTšES PUBLICAS TOMO I LISBOA EM CASA DA VIUVA BERTRAND & C.¬--CHIADO, N.║ 73 M DCCC LXXIII IMPRENSA NACIONAL *ADVERTENCIA PR╔VIA* Havia annos que os meus velhos editores e amigos, os fallecidos IrmŃos Bertrands, admiraveis typos dessa modesta austeridade e dessa nobre honradez, em todas as relań§es da vida civil, que eram gloriosa tradińŃo da classe burguesa, e que a burguesia destes nossos tempos, ensanefada jß de ouropeis fidalgos, nŃo parece inclinada a manter com excessivo ciume; havia muito, digo, que os meus editores instavam comigo para que ajunctasse em volumes alguns opusculos, escriptos por mim e publicados por elles em diversas conjuncturas, cujas ediń§es se achavam de todo esgotadas. Na sua opiniŃo, eu devia incluir tambem nessa collecńŃo outros opusculos, que, ou impressos avulsamente por minha conta, ou inseridos em publicań§es periodicas, tinham feito certo ruido, e nŃo se encontravam jß no commercio. Entendiam igualmente que nesta compilańŃo de trabalhos sobre assumptos tŃo variados poderiam introduzir-se quaesquer outros ainda ineditos, que me nŃo parecessem indignos de virem a lume, o que, no seu modo de ver, daria certo realce ß publicańŃo que se propunham, e em cujo exito confiavam. Apesar das ponderań§es que me faziam homens tŃo experimentados nas cousas da imprensa, hesitei muito tempo em acceder aos seus intuitos. Ap¾s largos annos consumidos na vida agitada das letras, em que o meu baixel mais de uma vez fora ańoutado por violentas tempestades, tinha, emfim, ancorado no porto tranquillo e feliz do silencio e da obscuridade. Olhava com uma especie de horror para as vagas revoltas da immensa lucta das intelligencias, contraste profundo da vida rural a que me acolhera. Depois, o espirito sentia bem a propria decadencia, cujos effeitos a interrupńŃo dos habitos litterarios devia aggravar. Reflectia, sobretudo, no tedioso de rever escriptos, parte dos quaes remontavam a tempos assßs distantes. Podia, na verdade, devia talvez, deixß-los passar como estavam, no que respeita ß maior ou menor exacńŃo das doutrinas, porque a pretensŃo ß infallibilidade ķ sempre ridicula no individuo, e eu nunca tive tal pretensŃo; mas era indispensavel castigß-los em relańŃo ß f¾rma. O methodo, o estylo, a linguagem, as condiń§es, em summa, da arte de escrever sŃo, no mundo das letras, o que a boa educańŃo, a cortesia, as attenń§es, o respeito para com os usos recebidos sŃo no tracto civil, o que os ritos sŃo nas sociedades religiosas. No ente que cogita, a idķa p¾de e ha de variar com o decurso do tempo, com a ampliańŃo dos horisontes do pensamento. Sobrep§e-se gradualmente a verdade ao erro, e ainda mal que, outras vezes, ķ o erro que succede ao erro, quando nŃo ß verdade. Aprender quasi sempre ķ esquecer; affirmar quasi sempre ķ negar: esquecer o que aprendemos; negar o que n¾s proprios affirmßmos. ╔ por isso que, no meio de milh§es de duvidas, cada gerańŃo lega ß que lhe succede poucas verdades incontrastaveis, e que a lentidŃo do progresso real ķ um bem triste e desenganador dynamometro da tŃo limitada potencia das faculdades humanas. NŃo assim pelo que toca ßs formulas externas das manifestań§es do espirito. O incompleto, o barbaro, o vicioso, o tolhido, o desordenado, o obscuro nŃo sŃo o revolutear do oceano das idķas: sŃo simplesmente ignorancia ou preguińoso desalinho, mais ou menos indesculpaveis. Ora a revisŃo de escriptos de tŃo diversas epochas, ainda limitando-me ao exame da contextura e execuńŃo, repugnava-me. Era renovar o tracto com as letras no que ha nellas menos attractivo, na questŃo da f¾rma. E todavia, sem esse trabalho preliminar, nŃo podia decentemente satisfazer os desejos dos meus editores, desejos que o ultimo d'elles, pouco antes de fallecer, ainda vivamente manifestava. Mas, o que era na realidade esta repugnancia ao trabalho, embora fosse um trabalho ingrato? Era o egoismo dos annos derradeiros; o amor ß quietańŃo da intelligencia, que, no outono da vida, ķ em n¾s como o prenuncio da completa, da eterna paz. Para vencer esta enfermidade dos espiritos canńados e gastos, cumpre que surja nelles um incitamento poderoso, uma necessidade instante. Foi, porķm, este incitamento ou esta necessidade que, a final, nasceu para mim, justamente das condiń§es da vida rural. Para o velho que vive na granja, na quinta, no casal, como que perdidos por entre as collinas e serras do nosso anfractuoso paiz, ha na existencia uma condińŃo que todos os annos lhe prostra o animo por alguns mezes, doenńa moral, mancha negra da vida rustica, facil de evitar nas cidades. ╔ o tedio das longas noites de inverno; das horas estereis em que o peso do silencio e da soledade cai com duplicada forńa sobre o espirito. Para o velho do ermo, nesses intervallos da vida exterior, a corrente impetuosa do tempo parece chegar de subito a pķgo dormente e espraiar-se pela sua superficie. A leitura raramente o acaricia, porque os livros novos sŃo raros. A decima visŃo da mesma idķa, vestida do seu decimo trajo, repelle-o, nŃo o distrahe. As convicń§es ardentes, as alegrias das illuminań§es subitas, as coleras e indignań§es que inspiram e que, na mocidade e nos annos viris, enchem a cella do estudo de turbulencias interiores, de arrebatamentos indomaveis, de debates inaudiveis, de lagrymas nŃo sentidas, de amargo sorrir, cousas sŃo que se desvaneceram. Matou-as o gear do inverno da existencia. Desfallece-lhe o animo, mal tenta embrenhar-se na selva das cogitań§es, engolfar-se nas ondas dos pensamentos, que, em melhor idade, lhe roubavam ß consciencia os ruidos longinquos e confusos das multid§es, e aquella especie de zumbido obscuro que ha no silencio profundo, e as passadas tenebrosas da noite, e o surgir e o galgar do sol ao zenith, emquanto a penna inspirada arfava, deslisando sobre o papel, semelhante ß vķla branca da bateirinha, que, ao refrescar do vento, vai e vem de margem a margem, atravez da ria. NŃo: para o velho nŃo ha a febre da alma que devora o tempo. Sente-o gotejar no passado, como os suores da terra que cßhem, lagryma ap¾s lagryma, pela claraboia de galeria deserta na mina abandonada. ╔ verdade que a natureza compensa o esmorecer e passar do vigor e da actividade intellectual com a propria somnolencia do espirito, voluptuosidade da velhice, ameno e dourado p¶r-do-sol, que se refrange no espectro da sepultura jß vizinha e o illumina suavemente. Mas o dormitar do entendimento, para ser deleitoso enleio, exige o movimento externo e as singelas occupań§es e cuidados da vida campestre. Sem isso, e ķ isso que falta muitas vezes nas interminaveis noites de inverno, a inercia da intelligencia, que vagueia no indefinito sem o norte da realidade, vai-se convertendo pouco a pouco em intoleravel tormento; tormento no qual ha, por fim, o que quer que seja da cķllula circular e esmeradamente branqueiada, onde o grande criminoso ķ entregue, s¾sinho, ß eumķnide da propria consciencia. N'esta extremidade, por mais somnolenta e obscurecida que esteja a mente, por mais que ella ame o repouso, o trabalho do espirito, ainda o mais arido, ķ preferivel, cem vezes preferivel, ao fluctuar indeciso no vacuo. Foi por isto que comecei a ajunctar os _disjecta membra_ de uma grande parte do meu passado intellectual; a accrescentar, a cortar, a corrigir, a completar. Vencido o primeiro inverno, vi desapparecerem os marcos negros juncto dos quaes cumpria que longamente me assentasse ao cabo de cada um dos poucos estadios que ainda me restam a transitar pela estrada da vida. Que esta confissŃo ingenua sirva para ser absolvido da especie da correria que, apesar dos mais firmes propositos, fańo, ainda uma vez, na republica das letras. Os escriptos aqui reunidos, os quaes, na sua maior parte, foram inspirados por impress§es momentaneas, perderam o interesse que lhes provinha das circumstancias que os provocaram; mas, ainda assim, podem ficar como marcos milliarios que ajudem a assignalar as luctas e o progresso das idķas em Portugal no decurso de mais de trinta annos que as datas d'esses escriptos abrangem. Naquellas luctas o auctor dos seguintes opusculos teve largo quinhŃo, e se, como ķ possivel, nem sempre a razŃo esteve da sua parte, esteve-o sempre a convicńŃo. ╔ do que lhe parece hŃo-de dar testemunho a propria contextura e o proprio estylo dessas composiń§es, que nŃo vinham s¾ da intelligencia, que vinham muitas vezes tambem do corańŃo. A demasiada vivacidade, a talvez exaggerada energia, com que frequentemente ahi sŃo expostas e defendidas taes ou taes ideas e combatidas outras, revelam a indole impetuosa mas sincera de quem escreveu essas paginas. Foi, porventura, este o melhor titulo do auctor ß benevolencia publica largamente manifestada; benevolencia que encontrou ainda em muitos que estavam longe de commungar com elle nas doutrinas para as quaes buscava ou obter o triumpho ou adquirir sectarios. Ordenando esta compilańŃo, nŃo me adstringi nem a conservar rigorosamente a ordem das epochas a que esses varios escriptos pertencem, nem a distribui-los precisamente conforme a sua indole. Adoptei um termo medio, que me facilitasse ao mesmo tempo o trabalho de revisŃo, e me habilitasse para ir successivamente publicando qualquer volume ß medida que o coordenasse. N'uma grande variedade de assumptos, o espirito nŃo se amoldaria a reconsiderß-los nem pela ordem das datas, nem pela identidade da materia. A intelligencia ķ caprichosa, e duplicadamente caprichosa na sua decadencia. Attendendo em geral ß natureza dos diversos opusculos, entendi que podiam dividir-se em tres categorias--Quest§es publicas--Estudos historicos--Litteratura.--Estas tres categorias constituirŃo tres series separadas, servindo-lhes apenas de nexo o serem uma collecńŃo geral das minhas opini§es, quer em quest§es litterarias ou historicas, quer em quest§es sociaes. Assim, um volume seguir-se-ha a outro da mesma ou de diversa serie sem inconveniente para a publicańŃo, e sem se tornar necessario que, n'um trabalho tedioso e frequentemente interrompido, a attenńŃo se dirija por muito tempo e sem desvio para idķas atķ certo ponto congeneres ou pelo menos analogas. Ajunctando aos titulos dos opusculos as datas em que foram escriptos, o auctor teve em mira habilitar o leitor para o julgar com justińa. Sem querer no minimo ponto fugir ß responsabilidade das suas opini§es, entende que a responsabilidade serß ora maior, ora menor, se porventura se attender ß epocha em essas opini§es foram manifestadas. O decurso de trinta a quarenta annos, no turbilhŃo, cada vez mais rapido, em que hoje as idķas passam, modificando-se, transformando-se, ķ um periodo que corresponde a seculos nos tempos em que o progresso humano era sem comparańŃo mais lento. As doutrinas, as apreciań§es criticas, os systemas, os livros quasi que envelhecem tŃo depressa como o homem. O pensamento que ha vinte annos parecia uma verdade nova p¾de hoje parecer apenas um problema nŃo resolvido, e atķ um erro condemnado; a observańŃo profunda de entŃo ser hoje trivialidade; a critica subtil, que levou um raio de luz a certos recessos obscuros dos factos, achar-se incorporada e transfigurada em apreciańŃo mais complexa que illumine dilatados horisontes. Por isso, a data de cada um dos opusculos contidos nos seguintes volumes ķ um dos elementos indispensaveis para estes serem avaliados com justińa e imparcialidade. Nem sempre fugimos ß pressŃo das idķas que se manifestam ao redor de n¾s, e muito faz aquelle que algumas vezes sabe elevar-se acima das preoccupań§es ou dos interesses da epocha em que escreve. NŃo se associarŃo a estas considerań§es, que sollicitam a indulgencia, algumas instigań§es do amor proprio? Suspeito que sim. Nos seguintes escriptos ha, em mais de um logar, idķas, previs§es, affirmativas, negań§es que nŃo raro grangeiaram para o auctor as qualificań§es de temerario, de paradoxal, de visionario. Em certos casos, o decurso do tempo encarregou-se de decidir de que lado estava ou a perspicacia ou a boa razŃo: em alguns, o paradoxo, a visŃo, foram-se lentamente insinuando em outros espiritos, e mais de uma vez o visionario primitivo veio a achar-se como sumido na turba de tardĒgrados visionarios. Que o facto nŃo contribuisse para se datarem estes opusculos ninguem o acreditaria, nem eu pretendo negß-lo. ChamarŃo uns a isso orgulho: chamar-lhe-hŃo outros vaidade. E uns e outros terŃo razŃo. A vaidade e o orgulho que sŃo, senŃo duas especies de um genero unico de fraquezas? O vaidoso ķ o que chama o mundo para espectador do seu orgulho: o orgulhoso ķ o que se colloca a si como unico espectador da propria vaidade. Symptomas varios de enfermidade identica: manifestań§es diversas de uma s¾ miseria do corańŃo humano. A VOZ DO PROPHETA 1837 INTRODUCŪ├O 1867 Depois da epocha em que o seguinte opusculo foi publicado e dos factos que lhe deram origem, tĻem decorrido mais de trinta annos. Os homens que intervieram nesses factos dormem jß, pela maior parte, debaixo da terra. Com raras excepń§es, restam apenas alguns dos que eram mais mońos. O auctor da _Voz do Propheta_ pertence a esse numero. Contava vinte e seis annos naquelle tempo. O homem de hoje p¾de julgar imparcialmente o escripto do homem de entŃo. O animo tranquillo p¾de avaliar a paixŃo que o inspirou. Aquelles a quem esse verbo ardente feria viram no auctor um partidario que friamente calculava os resultados politicos das suas palavras. Injustińa ou erro; o mesmo que havia da parte delle em ver nos homens que forcejavam por dirigir a revolta de 1836, por fazer sair desse facto um governo regular, grandes criminosos. A verdade era que, n'uns davam-se ambiń§es, mas ambiń§es talvez nobres; n'outros houve, de certo, o sacrificio das proprias sympathias, o silencio imposto ßs proprias convicń§es, para que a revolta nŃo degenerasse em anarchia. Em muitos desses individuos, apparentemente revolucionarios, havia o patriotismo reflexivo, e atķ a abnegańŃo, emquanto em n¾s, os que os aggrediamos com a sinceridade da indignańŃo, havia, por amor exagerado aos bons principios, uma colera que em muitas cousas offuscava a razŃo. A _Voz do Propheta_ representa esse estado dos espiritos. Hoje a exagerańŃo sincera do insulto, a invectiva hyperbolica, inspirada, nŃo pelo calculo, mas pelas irritań§es da consciencia, mal se comprehende. Neste crepusculo da vida publica, tŃo favoravel ßs prostituiń§es do cidadŃo, como o crepusculo do dia ßs prostituiń§es da mulher; nesta epocha de extrema agonia, iniciada pela proclamańŃo dos _interesses materiaes_ acima de tudo, f¾rmula decente de sanctificar o egoismo, porque para cada individuo o interesse material alheio ķ apenas um interesse de ordem moral; agora que a boa educańŃo dos homens novos mudou a linguagem politica, e vai arrojando para os archaismos historicos a lucta face a face, a punhalada pelos peitos; agora que a strychnina da allusŃo calumniosa e amena, o enredo tortuoso, a traińŃo ridente vŃo expulsando da arena das facń§es as objurgatorias, rudes na substancia e na f¾rma, a _Voz do Propheta_ ķ, sem duvida, uma composińŃo agreste e brutal. Inutil como exemplo e modelo, servirß todavia como amostra do que eram as malevolencias da gerańŃo cujos raros representantes, hoje quasi estrangeiros no seu paiz, nŃo tardarŃo a ir esconder no tumulo as ultimas grosserias que deturpam a suavidade dos costumes e as tolerancias de toda a especie dos cultos filhos de barbaros. Os homens que em 1837 se aggrediam violentamente na imprensa e no campo tinham, de feito, habitos e sentir diversos dos actuaes. As febres politicas eram entŃo ardentes, indomaveis, porque derivavam de crenńas. Naquella epocha havia, como houve sempre, belforinheiros da politica; mas constituiam a excepńŃo. O geral era gente baptisada com fogo e com sangue nas duas religi§es inimigas do absolutismo e do liberalismo. Chamo-lhes religi§es, porque o eram. A guerra civil, que terminara em 1834, tivera muitos dos caracteres das antigas cruzadas. Sobretudo nos primeiros impetos della, haviam-se practicado actos de abnegańŃo, de constancia, de valor e de soffrimento sobrehumanos, ao passo que se perpetravam outros de bruteza e ferocidade inauditas. A maior parte delles, factos obscuros, individuaes, reiterados cada dia, cada hora daquelle prolongado paroxismo de grandiosa barbaria, nŃo os registou, nŃo os registarß nunca a historia, talvez. E todavia, ķ isso que explica a proceridade da estatura moral dos homens daquelle tempo, estatura a que nŃo chegaram, nem provavelmente chegarŃo as gerań§es subsequentes. Sem paix§es violentas e exclusivas, nŃo ha as energias que assombram. EntŃo a existencia e os commodos e gosos della eram tŃo casuaes e transitorios, as privań§es e dores de tŃo completa vulgaridade, que dar a vida ou tirß-la aos outros pouco mais significavam do que acń§es indifferentes. Diante do fanatismo politico, a reflexŃo que discrimina o bom do mau, o justo do injusto, quasi que era puerilidade. Podia ceder-se, e nŃo raro cedia-se, a instinctos generosos para com o adversario: a justińa em apreciß-lo moralmente, ou em respeitar-lhe os direitos, isso ķ que se tornara difficil. Taes eram os homens que, depois de esmagarem a monarchia absoluta, vinham, emfim, a aggredir-se mutuamente na imprensa e no campo. A revolta, desmembrando o partido liberal, constituia dous partidos violentos, daquella violencia a que estavam affeitos e cujo embate devia produzir males profundos e em parte irremediaveis. Esta scisŃo, logo depois da victoria, era difficil de explicar f¾ra de Portugal. Aqui entendia-se, embora derivasse de um facto injustificavel. A harmonia de opini§es, a unidade de crenńas e intuitos dos vencedores dissipava-se, porque realmente nŃo existia senŃo nas suas relań§es negativas. Negava-se, combatia-se o passado. Era no que havia accordo. As apparencias de uniŃo e conformidade creara-as a grandeza do perigo. A phalange ķ e serß sempre o mais poderoso instrumento de guerra, moral e materialmente. Embora, porķm, houvesse diversidade de doutrinas, o que havia mais era contraposińŃo de interesses. Para as primeiras se manifestarem e tenderem ao predominio bastavam a liberdade da palavra oral e escripta, e a discussŃo parlamentar. Aos segundos, dada a impetuosidade e impaciencia da ambińŃo humana, sobretudo nas rańas latinas, nŃo bastava nenhuma liberdade. Recorreu-se ao illegal, ao tumultuario, e a revolta de septembro de 1836 appareceu. Quem a preparou e fez surgir? NŃo sei. Ostensivamente, os seus auctores foram a plebe de Lisboa e alguns soldados que se negaram a dispersar os amotinados. Os individuos que, depois de consummado o facto, tomaram nas mŃos as redeas do governo, recusaram para si a paternidade daquelle fķto polĒtico. Creio que, affirmando-se innocentes, falavam verdade; senŃo todos, ao menos alguns. Fugir, porķm, ß responsabilidade de uma situańŃo, que alißs se busca fortalecer e constituir, ķ indirectamente condemnß-la; ķ dizer _nŃo_ com a consciencia; _sim_ com os labios. A sentenńa daquelle motim lavravam-na os mesmos que forcejavam por convertĻ-lo n'uma cousa grave. Por outra parte, o que me parece evidente ķ que os governos que cahem como cahiu o que existia, embora simulem de vivos, estŃo jß moralmente mortos. E o governo de entŃo estava-o. Por grandes que os seus servińos ao paiz houvessem sido durante a lucta, o seu proceder depois da victoria nŃo o abonava. Havia quem fizesse sentir isso, quem atķ desmesuradamente o exagerasse. Exageravam-no, sobretudo, os vencidos. Emquanto durou o ruido das armas, os lamentos destes nŃo se ouviam; mas quando o estrondo cessou, e asserenaram os terrores, os queixumes foram-se convertendo em invectivas colericas, e tambem em accusań§es nŃo raro ou justificadas ou plausiveis. A liberdade da palavra falada e escripta tinha-se conquistado nŃo s¾ contra os defensores da censura e do absolutismo, mas tambem para elles. Nas expans§es da sua dor e do seu despeito, no pouco ou muito que essas expans§es contribuiram para o descredito dos homens que mais cordialmente odiavam, tiveram os vencidos occasiŃo de reconhecer que a liberdade humana, ruim em these, sobretudo para a salvańŃo eterna, p¾de, em tal ou tal circumstancia, nŃo ser absolutamente mß. Os depositarios do poder executivo tinham, porķm, adversarios mais perigosos. No gremio liberal houvera homens, alguns de dotes nŃo vulgares, que, ou por despeitos pessoaes, ou por falta de animo para affrontarem os trabalhos e riscos de commettimento desigual, ou finalmente por obstaculos independentes do seu alvedrio, tinham ficado extranhos ß guerra civil, sumidos em escondrijos na propria patria, ou acoutados na terra estrangeira para escaparem aos impetos da tyrannia. Desaccordos nascidos no exilio entre alguns destes ultimos e os homens de valia de quem o Duque de Braganńa se rodeiara quando emprehendia a guerra da restaurańŃo, nŃo tinham feito senŃo medrar e azedar-se progressivamente por diversas causas. Estes desaccordos, que pareciam pouco importantes emquanto durou a contenda, apenas essa epocha tormentosa cessou, tornaram-se mais graves, porque os individuos que se haviam conservado como extranhos ß lucta em que se lhes conquistava uma patria, tinham amigos e parciaes numerosos entre os que pelejavam e venciam. Constituido o regimen parlamentar, as malevolencias, mais ou menos latentes, converteram-se em hostilidade acerba. Esta hostilidade podia ter, e tinha em parte, motivos maus; mas, contida no ambito constitucional, era, atķ certo ponto, bem fundada e util. Os estadistas, que, cercados durante annos de espantosas difĒiculdades, souberam superß-las exercendo o poder, eram indubitavelmente homens de alta esphera. Podia reputar-se problematica a virtude de um ou de outro: a capacidade e a firmeza nŃo podiam disputar-se a nenhum delles. Affeitos a reger o paiz com o vigor de uma dictadura, inevitavel emquanto durara a guerra, e com as formulas militares, custava-lhes esquecerem-se dos habitos dessa epocha, confundindo mais de uma vez, na praxe da administrańŃo, as duas idķas oppostas, de paiz libertado e de paiz conquistado. Por outra parte, os que muito haviam padecido queriam gosar muito, e o reino, devorado por discordias intestinas superiores ßs proprias forńas e exhausto de recursos, via comprometter o futuro da riqueza publica por larguezas, nŃo s¾ desacertadas, mas tambem juridicamente injustificaveis. Homens que teriam legado ß posteridade nomes gloriosos e sem mancha, e que, mais modestos nas suas ambiń§es materiaes, seriam vultos heroicos na historia, pagaram-se como _condottieri_ mercenarios, ao passo que outros, depondo as armas e voltando ß vida civil, exigiam ser revestidos de cargos publicos para exercer os quaes lhes faltavam todos os predicados; homens cujo unico titulo era terem combatido com maior ou menor denodo nas fileiras liberaes ou haverem padecido nas masmorras os tratos da tyrannia. A grande, a sķria, a profunda revoluńŃo que se fizera no meio do estrondo das armas levara de envolta com os dizimos, com os bens da cor¶a, com as capitanias-mores, com toda a farragem do absolutismo, os antigos _officios_, moeda que por seculos servira para pagar algumas vezes meritos reaes, muitas mais vezes, porķm, prostituiń§es e villanias. Mas as funcń§es publicas, os empregos vieram supprir essa moeda, tomando nŃo raramente cunho analogo, e distribuindo-se com a mesma justińa e cordura. Estes e outros erros e abusos que o governo commettera, ora por impulso proprio, ora para satisfazer as influencias preponderantes com que o poder tem de transigir, necessidade fatal do regimen parlamentar, e um dos maiores defeitos da sua indole ainda tŃo imperfeita, engrossaram rapidamente, com os muitos desgostosos e indignados, a parcialidade que na origem representava antes malevolencias pessoaes do que antinomia de doutrinas. Foi por isso que a revolta de septembro, se nŃo achou eccho pelo paiz, tambķm nŃo achou nelle repugnancia manifesta, e p¶de na capital constituir-se e tomar em poucos dias a importancia que nŃo tinha em si. A consciencia da propria impopularidade, o inesperado dos acontecimentos, talvez, atķ o tedio e cansańo de aggress§es continuas, haviam feito titubeiar os membros do governo decahido, tornando-os inhabeis para sķria resistencia, emquanto os seus adversarios aproveitavam o successo com a energia de inimizades encanecidas e de ambiń§es atķ ahi nŃo satisfeitas. Os homens que entenderam ser do seu interesse ou do interesse do paiz fazer surgir daquelle estado anormal uma situańŃo regular viram que a primeira necessidade era elevar o motim ß altura de uma revoluńŃo. Faltava o assumpto. O derribar um ministerio nŃo o subministra. Basta para isso a acńŃo mais ou menos lenta, mas segura e pacifica, da liberdade da palavra, da imprensa e do voto. O povo que com estes recursos nŃo sabe tirar os seus negocios das mŃos de quem lh'os gere mal, ķ um povo ou que ainda nŃo chegou ß maioridade ou que jß se arrasta na senilidade. Urgiam, porķm, as circumstancias. ┴ falta de outra cousa, proclamou-se irreflexivamente a constituińŃo de 1822 com as modificań§es que decretassem as futuras constituintes. Tinha-se, pois, feito uma revoluńŃo para obter um projecto, um texto de discussŃo constitucional? Se o intuito dos amotinados f¶ra s¾ derribar os ministros, o facto era excessivo, injustificavel e portanto illegitimo e criminoso; se porķm o motim, nobilitado em revoluńŃo, tinha por alvo alterar as instituiń§es, nŃo menos digno de reprovańŃo se tornava, porque era um crime inutil. A Carta encerrava em si o processo da propria reforma, processo alißs prudente, regular, exequivel. Partir da constituińŃo de 1822, acervo de theorias irrealisaveis, se theorias se podiam chamar, de instituiń§es talvez impossiveis sempre, mas de certo impossiveis n'uma sociedade como a nossa e na epocha em que taes instituiń§es se iam assim exhumar do cemiterio dos desacertos humanos, era mais que insensato. A revoluńŃo, reconhecendo a necessidade de reformar o codigo que restabelecia, condemnava-o, e condemnava-se. Parece-me que me nŃo engano se disser que, em geral, aos liberaes mais illustrados e sinceros a nova situańŃo politica repugnava altamente. Ponderavam que a mudanńa das instituiń§es politicas de qualquer paiz por via de uma revoluńŃo ķ sempre um abalo profundo cheio de riscos, e que mais de uma vez, longe de produzir o bem, tem conduzido as sociedades ß sua ruina. Sem rejeitar de modo absoluto as revoluń§es como elemento de progresso, ķ certo que ellas sŃo um meio extremo. S¾, talvez, a necessidade de combater o despotismo as justifique, porque s¾ debaixo de tal regimen sŃo impossiveis quaesquer outras manifestań§es da opiniŃo publica, e nŃo existe campo diverso onde a lucta do direito contra a forńa, das idķas novas contra os velhos abusos possa travar-se. Em 1836 essas manifestań§es nŃo tinham porķm obstaculo algum, e o campo onde as doutrinas podiam debater-se, os interesses contrapor-se, os partidos digladiar-se, era amplissimo. Se em taes circumstancias uma revoluńŃo fosse legitima, quaes seriam aquellas em que se lhe negasse a legitimidade? Depois, nas proprias relań§es politicas, o espirito humano nŃo se dirige unicamente pela reflexŃo. As paix§es e affectos modificam e alteram as suggest§es do raciocinio; porque o homem imprime necessariamente em todos os actos da vida as condiń§es do seu ser. A favor da manutenńŃo da Carta nŃo militava s¾ a boa-razŃo; militavam affectos, e affectos profundos. A Carta havia sido o grito de guerra do campo liberal em lide de um contra dez. Havia sido, digamos assim, a traducńŃo moderna do _Sanctiago!_ de Affonso I, do _S. Jorge!_ do Mestre d'Aviz. Nas reminiscencias indeleveis de muitos de entŃo, (bem poucos hoje) estavam ainda os vivas ß Carta proferidos por labios que iam cerrar-se na morte, quando as bayonetas inimigas desciam inexoraveis sobre o peito ou sobre o ventre dos nossos soldados feridos e derribados[1]. Em nome da Carta se tinha desfeito o triangulo fatal do patibulo, e quebrado o ferrolho da masmorra e da enxovia, em nome della se tinham aberto para os foragidos as portas da patria que davam para os desertos do desterro, do desterro que ķ sempre solidŃo e desventura. A Carta fora como a estrella polar da esperanńa nos dias, tŃo longos, da fome, da nudez, das tempestades, do desalento. Vivia depois como envolta na saudade desses dias, acre e quasi dolorosa saudade, que n¾s os velhos ainda sentimos, mas que serß provavelmente uma cousa inintelligivel para as gerań§es novas. A razŃo, pois, e o sentimento falavam a muitos energicamente em favor das instituiń§es annulladas. Falavam tambem a favor dellas a consciencia e a dignidade humanas. Tinham jurado manter essas instituiń§es milhares e milhares de homens; milhares e milhares de homens as tinham nobremente mantido com o sangue, com as privań§es, com a resignańŃo illimitada no sacrificio. Podem valer pouco os juramentos politicos; p¾de, atķ, ser absurdo o juramento em geral. Mas a quebra de promessas solemnes e espontaneas, seja qual for a sua formula, serß sempre uma villania emquanto tiverem culto a honra e a lealdade. Taes eram os principaes incentivos que induziam grande numero de liberaes a constituirem um partido hostil ß nova ordem de cousas. A denominańŃo de cartista, que esse partido adoptou, nŃo correspondia rigorosamente ßs causas da sua existencia, nem aos seus intuitos ou ß sua indole. Mas representava atķ certo ponto isso tudo, ao mesmo tempo que era conciso, e facilmente comprehensivel para o vulgo. O cartista nŃo reputava todas as instituiń§es, todos os preceitos da Carta como a mais alta manifestańŃo da sabedoria humana. Nesta parte os liberaes eram em geral eclecticos. Tanto o partido da revoluńŃo, como o anti-revolucionario nenhum tinha em si unidade completa de principios; nem entre um e outro havia senŃo antinomias parciaes quanto ßs doutrinas de direito politico. No primeiro, que tomava por base das ulteriores reformas uma constituińŃo democratica, exagerada atķ o despotismo das turbas, havia individuos para quem, como o tempo mostrou, as theorias da democracia ainda mais moderada eram altamente odiosas, ao passo que outros forcejavam por chegar, senŃo ß republica, ao menos a instituiń§es republicanas. No partido cartista dava-se o mesmo phenomeno. Todas as modificań§es do governo representativo tinham ahi fautores; tinham-nos, talvez, atķ, as doutrinas do absolutismo illustrado. A meu ver, a distincńŃo profunda e precisa entre o cartismo e o septembrismo consistia em negar o primeiro o principio da revoluńŃo, dentro das instituiń§es representativas livre e solemnemente adoptadas ou acceitas pelo paiz, e em affirmß-lo o segundo. Tudo o mais em ambos os campos era fluctuante e vago. ╔ essa a explicańŃo de um facto que os homens daquelle tempo poderŃo testemunhar recorrendo ßs proprias reminiscencias. Alistaram-se nas fileiras cartistas talvez mais individuos que haviam sido adversos aos ministros derribados, do que amigos e parciaes seus, ao passo que alguns destes abrańavam sem hesitar a revoluńŃo. De uns e de outros se deve crer que preferiam nobremente as suas opini§es aos seus interesses, ßs suas affeiń§es ou inimizades pessoaes. Para muitas dessas opini§es havia logar em ambas as parcialidades. Os que, porķm, s¾ attendiam ß moralidade e cordura dos actos de administrańŃo ordinaria, lanńavam-se, por via de regra, na revoluńŃo; os que, sem desattender taes quest§es, sem approvarem corrupń§es ou iniquidades a que eram extranhos e que tinham condemnado, remontavam a mais elevadas considerań§es de ordem moral e politica, abrańavam o cartismo. NŃo falo dos especuladores que se resolviam conforme as vantagens que se lhes antolhavam n'um ou n'outro campo. O proceder destes taes tinha na consciencia publica entŃo, como depois, como sempre, uma qualificańŃo conhecida. Mas, dir-se-ha, como nessa epocha se disse, que entre o cartismo e o septembrismo se dava uma distincńŃo mais radical e profunda. A Carta, outorgada por D. Pedro IV, representava o direito divino dos reis; era uma concessŃo de senhor, em vez de um pacto social, ao passo que a constituińŃo de 1822, derivada da soberania popular, era a consagrańŃo das doutrinas democraticas. Considerada a esta luz, a revoluńŃo adquiria as proporń§es de um facto gravissimo, porque assentava a liberdade em novos fundamentos, e vinha a ser um passo gigante dado na estrada do progresso politico. Na epocha, quasi exclusivamente liberal, em que se passavam aquelles successos, a resposta do cartismo a estas allegac§es parecia facil. NŃo sei se o seria agora; agora que se tem achado e demonstrado, segundo parece, nŃo prestar para nada o liberalismo. As intelligencias vigorosas da mocidade hodierna tĻem aberto caminho a theorias ou novas ou rejuvenescidas que n¾s os velhos de hoje e mońos de entŃo ou ignoravamos ou suppunhamos estereis, e talvez pueris, e de que sorriamos, quando alguns engenhos que reputavamos tŃo brilhantes como superficiaes, buscavam, evangelisando-as, jungir por meio dellas as turbas, mßs porque ignorantes, odientas porque invejosas, espoliadoras porque miseraveis, ao carro das proprias ambiń§es. A questŃo da soberania popular nŃo era precisamente o que preoccupava mais os entendimentos, cultos, mas tardos, daquelle tempo, e a democracia nŃo apaixonava demasiado os animos, sobretudo os animos dos que haviam pelejado desde os Ańores atķ Evoramonte as batalhas da liberdade, ou padecido na patria durante cinco annos, sem o refrigerio sequer de um gemido tolerado, as orgias do despotismo. Uns tinham visto de perto a face da democracia; tinham-na visto por entre a selva de oitenta mil baionetas que fora preciso quebrar-lhe nas mŃos para a liberdade triumphar; tinham-na visto nas chapadas e pendores das collinas que circumdam o Porto, atķ onde os olhos podem enxergar, alvejando-lhe nos hombros os cem mil embornaes preparados para recolher os despojos da cidade da Virgem, da cidade maldicta, rendida e posta a sacco; outros haviam-na visto de machado e de cutello em punho, mutilando e assassinando prisioneiros inermes e agrilhoados. O liberalismo achara a catadura da democracia pouco sympathica. Restava a soberania popular. Essa funccionara durante cinco annos e dera mostra de si. A soberania do direito divino, repartindo com ella o supremo poder, provava que nŃo era tŃo ignorante como a faziam. Tinha litteratura. Applicava, modificando-o, o verso: Divisum imperium cum _plebe_ Caesar habet. As classes inferiores constituiam entŃo, como hoje, como hŃo de constituir sempre, a maioria do paiz, e foi a esta maioria que ella entregou os direitos que cedia. Era a legitimidade consagrando outra legitimidade. Amavam-se, comprehendiam-se ambas. ╔ que entre as extremidades ha contacto ßs vezes. A democracia americana cuida ter inventado a lei do Linch. Puro plagio. Inventou-a em Portugal a soberania popular. Havia uma differenńa. Na America a plebe prende, julga, condemna ß morte e executa; em Portugal o direito divino reservara para si o tribunal excepcional e o privilegio do cadafalso. Modesta no exercicio do supremo poder, a soberania popular limitou-se ß prisŃo, ao espancamento, ß multa, elevada, quando occorria, atķ o confisco. Se o incendio, o estupro, o assassinio se ingeriam ßs vezes nesses actos judiciaes, era por simples casualidade. Manchas, tem-nas o sol. O mercador, o artista, o industrial, o professor, o proprietario urbano e o rural, o homem de letras, o cultivador, o capitalista, todas as desigualdades sociaes, todos esses attentados vivos contra a perfeita igualdade democratica conservaram por muito tempo dolorosas lembranńas do amplexo das duas soberanias. O liberalismo, que durante a contenda fora um pouco aspero para com a democracia, mais de uma vez tambem, empregara sacrilegamente a prancha do sabre e a coronha da espingarda para cohibir o excesso de zĻlo administrativo e judicial da soberania popular. A brutalidade do liberalismo obrigara esta a abdicar ap¾s a abdicańŃo da soberania de direito divino. Os dogmas, pois, em que se estribava a constituińŃo de 1822, e contra os quaes protestava a historia, ainda palpitante, dos ultimos annos, eram inefficazes, porque os tornava impotentes a heterodoxia das consciencias. Duvido de que nesses rudes tempos de positivismo liberal elles obtivessem uma s¾ conversŃo sincera. O amor do real e do evidente era um dos grandes defeitos dos homens de entŃo. O cartismo argumentava: ½Que nos importa, dizia, d'onde veio a Carta? A questŃo ķ se ella consagra a liberdade humana e a cķrca de garantias. ╔ deficiente? ╔ defeituosa? Esperemos que a razŃo publica, a torrente da opiniŃo force os poderes do estado a completß-la, a corrigi-la. A opiniŃo illustrada largamente preponderante ķ irresistivel nos governos livres. O que nŃo ķ irresistivel ķ a opiniŃo de alguns ou de muitos que benevolamente se encarregam de interpretar pelo proprio voto o voto commum, o voto dos que tĻem capacidade para o dar.--½NŃo se reputaria louco, accrescentava o cartismo, o representante de uma familia outr'ora opulenta, mas reduzida ß miseria por espoliańŃo remota, que, ao vir, por impulso espontaneo, o descendente do espoliador restituir-lhe os bens extorquidos, repellisse aquelle acto de nobreza e virtude, achando desar recuperß-los pacificamente? E se tal desar existiu; se a outorga da Carta e a tacita acceitańŃo do paiz nŃo podiam, aos olhos da metaphysica politica, elevß-la ß altura de um pacto social, os immensos sacrificios que o restaurß-la, depois de abolida, custou ß parte mais illustrada, mais rica, mais activa e laboriosa da nańŃo, ßs forńas vivas da sociedade, e as torrentes de sangue e de lagrymas que serviram de sacro encausto ß assignatura do paiz nŃo valeriam bem o plebiscito da maioria inintelligente, o plebiscito daquellas classes inferiores que pelejaram atķ o ultimo extremo, senŃo com valor, de certo com ferocidade, para conservar essa monstruosa e horrivel soberania que a servidŃo lhes trouxera? Tem passado trinta annos depois daquella epocha; as paix§es tempestuosas de entŃo fizeram silencio, e o cartismo e o septembrismo sŃo dous cadaveres sepultados no cemiterio da historia. O auctor da _Voz do Propheta_ contempla tŃo placidameute o seu opusculo como se mŃo extranha o houvera escripto. A experiencia e os desenganos fazem-no sorrir daquellas coleras, daquellas hyperboles dos vinte e seis annos. Quantos erros, quantas ignorancias em muitas das suas opini§es desse tempo! E todavia, ainda os sentimentos que inspiravam o cartismo no seu berńo lhe parecem nobres e elevados, as doutrinas que constituiam a sua essencia solidas e justas. ╔ innegavel que o credo democratico, em que os adversarios se estribavam, tem desde essa epocha adquirido numerosos sectarios. O velho liberalismo passa de moda. O dogma da soberania popular, proclamado como supremo direito, substitue o unico direito absoluto que elle reconhecia, a liberdade e os f¾ros individuaes. Isso passou: agora a igualdade civil, que era um consectario do dogma liberal, transfere-se para o mundo politico, e um nivel imaginario passa theoricamente por cima de todas as desigualdades humanas, perpetuas, indestructiveis. A paixŃo da liberdade esmorece, porque a absorve e transforma a da igualdade, a mais forte, a quasi unica paixŃo da democracia. E a igualdade democratica, onde chega a predominar, caminha mais ou menos rapida, mas sem desvio, para a sua derradeira consequencia, a annullańŃo do individuo diante do estado, manifestada por uma das duas formulas, o despotismo das multid§es, ou o despotismo dos cesares do plebiscito. O partido cartista tinha por si as grandes e recentes recordań§es, a consistencia politica, os bons principios que representava, e, sobretudo, o sensato e practico das theorias que predominavam entre os seus membros. Mas a eiva moral quasi que lhe comeńou no berńo. O seu primeiro erro foi adoptar por chefes os homens eminentes que, pela gerencia dos negocios em situań§es difficilimas, tinham concitado contra si, como succede quasi sempre e a quasi todos, a animadversŃo publica, talvez a da maioria daquelles mesmos que acceitavam agora a sua direcńŃo politica. Deviam honrar-se taes homens, embora muitos dos actos da sua administrańŃo nŃo podessem defender-se, porque esses actos eram bem pequeno desconto aos immensos servińos que a liberdade lhes devia. Tomß-los, porķm, por guias era acceitar uma parte da sua responsabilidade; era polluir a pureza das doutrinas com as manchas da fraqueza humana; era, sobretudo, arriscar que a irritańŃo das paix§es e os intuitos de desaggravo dirigissem o procedimento de um partido novo e cheio de vida, que s¾ deveriam inspirar a razŃo tranquilla e a applicańŃo logica das proprias doutrinas. Deste primeiro erro nasceram as tentativas infelizes de contra-revoluńŃo. Essas tentativas nŃo podiam reputar-se crime, porque o elemento revolucionario tinha entrado como formula politica no direito publico do paiz, mas eram altamente illogicas em relańŃo ß Ēndole e ao symbolo do cartismo. Por outro lado, o governo da revoluńŃo mostrava-se, ao mesmo tempo, tolerante para com as opini§es e energico em cohibir excessos. Por isso o partido cartista podia contar com a victoria incruenta que na urna lhe havia de dar o paiz; victoria para os principios, e nŃo desaggravo para as paix§es irritadas. Que este resultado era seguro, provaram-no os factos. Vencido na guerra civil, desauctorisado e moralmente enfraquecido, o cartismo viu triumphar em grande parte as suas idķas na contextura da constituińŃo de 1838, votada por umas constituintes onde os vencidos estavam representados por insignificante minoria. Era a condemnańŃo solemne da revoluńŃo, lavrada por um parlamento eleito debaixo da influencia della. O que no novo codigo politico parecia mais opposto ß indole da Carta era a organisańŃo da segunda camara, e todavia o cartismo adquiria por aquelle meio uma arma poderosa para de futuro reformar constitucionalmente o que havia mau na recente organisańŃo de um dos corpos colegislativos, de modo que nem se restaurasse o absurdo pariato hereditario e illimitado, nem a assemblķa conservadora significasse apenas a interposińŃo de uma parede entre duas porń§es de parlamento unico. Uma vez que o senado procedia simplesmente da eleińŃo, logo que o cartismo obtivesse a preponderancia eleitoral, dominaria completamente em ambas as camaras. Dentro em dous annos, de feito, o predominio do cartismo era indubitavel. O ulterior procedimento deste partido estava estrictamente determinado pela sua origem e pelo seu passado. Como vimos, nŃo era tanto a sua indole menos democratica, o seu apego ß liberdade e aos direitos individuaes com preferencia a tudo, que o caracterisavam. Sans opini§es, erradas opini§es, havia-as tanto n'um como n'outro campo. O que constituia a essencia do cartismo era a lealdade ao juramento; a lealdade viril no cumprimento da palavra dada pelo homem honrado quando a dß no pleno uso do seu alvedrio. Os cartistas tinham feito tudo quanto materialmente podiam, mais do que moralmente deviam, para supprimir a revoluńŃo. NŃo o tinham conseguido, e ella fechara o periodo da sua durańŃo, protestando na lei politica decretada pelas constituintes contra a propria origem, contra a sua razŃo de ser. A constituińŃo de 1838 era um campo neutro onde todos se podiam encontrar pacificamente e procurar, sem sair da legalidade, o predominio das respectivas opini§es. E o cartismo entrou naquelle campo. Quando o paiz viu os homens que tŃo tenazmente haviam mantido a fķ que deviam ao seu juramento, jurarem solemnemente o novo pacto, acreditou que falavam verdade, e que o cyclo das revoluń§es terminara. Passados tempos, a urna provava aos cartistas, de modo indubitavel, que nas classes influentes, nas forńas vivas da sociedade, a preponderancia era sua. No fim de tres annos podia-se dizer que o triumpho moral do cartismo estava consummado. O poder e o futuro pertenciam-lhe. Um facto inopinado veio entŃo desbaratar todos os calculos, desmentir todas as previs§es. Uma grande parte, ou antes a maioria desse partido, cuja essencia era a lealdade a solemnes promessas, e a execrańŃo das revoluń§es no seio de um paiz livre, hasteou subitamente a bandeira revolucionaria, substituindo ao motim da plebe o unico motim peior do que elle, o da soldadesca. Quebrando inutilmente o seu ultimo juramento, derribava a constituińŃo do estado e proclamava o restabelecimento da Carta pura, que, sem os acontecimentos de 1836, os mesmos homens que a achavam agora um codigo perfeito teriam constitucionalmente modificado. ╔ que ß victoria dos principios faltava um laurel, o desaggravo do amor proprio offendido. O partido cartista suicidava-se juncto, ao altar da vaidade, e amortalhava-se a si proprio, morrendo, no estandarte da revoluńŃo. Depois houve muitos que continuaram a chamar-se cartistas, porque os vocabulos sŃo propriedade dos homens, e a propriedade, conforme o velho direito, consiste na faculdade de usar e abusar. Era como os graus e veneras das ordens de cavallaria extinctas. Enfeitam, mas correspondem ao nada. Symbolos vŃos sobre um sepulchro. Para a historia, como a historia ha-de ser quando de todo houverem calado as paix§es dos que intervieram nessas tristes luctas, o cartismo tinha expirado com a restaurańŃo da Carta. [Nota de rodapķ 1: Assim vi morrerem alguns soldados do 5.░ de cańadores e voluntarios da Rainha no temerario reconhecimento de Vallongo, que precedeu a batalha de Ponte-Ferreira.] A VOZ DO PROPHETA PRIMEIRA SERIE Et irruet populus, vir ad virum, et unusquisque ad proximum suum: tumultuabitur puer contra senem et ignobilis contra nobilem. ISAIAS, III-5. I O Espirito de Deus passou pelo meu espirito, e disse-me: vai, e faze resoar nos ouvidos das turbas palavras de terror e de verdade. E eu obedecerei ao meu Deus no meio dos punhaes de assassinos. Povo!... breve soarß a tua hora extrema: tu mesmo a assignalaste no decorrer dos tempos. O anjo exterminador vibra sobre ti a espada da assolańŃo, e tu danńas e folgas ebrio das tuas esperanńas. Essa terra que pisas crĻs que ķ um solo remido por tuas mŃos: repara porķm; olha que ķ um sepulchro. Amplo ķ o sepulchro de um povo: dentro em breve tu ahi calarßs para sempre. Creste-te forte, porque sabes rugir como a panthera: mas somente Deus ķ grande. Encheste o vaso das tuas iniquidades; elle trasbordou, e a terra ficou polluida. Maldictos os nomes dos que accenderam o volcŃo popular; nomes abominaveis perante o cķu e a terra. Portugal foi pesado na balanńa da eterna justińa, e a Providencia retirou a mŃo de cima delle. Derribem-se os altares, cerrem-se as portas dos templos: Deus jß nŃo acceita os sacrificios, nem ouve as preces deste povo, senŃo como uma expressŃo de escarneo. E como o aquilŃo varre a folha secca do outono, o sopro do Senhor varrerß da face da terra esta rańa corrompida e immoral. II O que tem ouvidos para ouvir ouńa: o que tem olhos para ver veja: o que tem corańŃo para se contristar, contriste-se. O povo tinha a liberdade e quiz a licenńa; tinha a justińa e quiz a iniquidade: o povo perecerß. Desgrańado daquelle que anda f¾ra dos caminhos do Senhor: correndo despelado por despenhadeiros, sentir-se-ha por fim baqueiar no fundo de um precipicio. Porque a lei e a virtude foram postas no mundo para proveito do homem, nŃo para proveito de Deus. Quando uma nańŃo quebra todos os lańos sociaes, della serß todo o damno. Para as turbas o cheiro do sangue ķ perfume suave; o roubo gloriosa conquista. E ellas se fartarŃo de sangue e de rapinas com a voluptuosidade atroz do anthropophago que se banqueteia com os membros semivivos do seu semelhante. Porque a plebe desenfreiada ķ como o phantasma do crime, como o espectro da morte, como o grito do exterminio. HorrĒvel ķ o aspecto do empestado, que, entreabrindo o lenńol que lhe servirß de mortalha, descobre as pustulas, donde mana a podridŃo e o cheiro da sanie, e que por entre os labios amarellos e os dentes cerrados deixa fugir o som rouco do estertor. Mas para o homem honesto, que contemplar uma scena das raivas da plebe e ouvir as suas blasphemias e vir as faces hediondas dos homens dissolutos, serß como allivio a asquerosidade das chagas, o halito podre e o rouco estertor do empestado. III E o povo contin·a a danńar em roda do seu mesmo sepulchro. E as outras nań§es meneiam a cabeńa em signal de compaixŃo. Os tyrannos sorriem e dizem por escarneo aos homens virtuosos: ide, e dae a liberdade ßs turbas: erguei ß dignidade de homens livres servos devassos e educados no lodo: elles vos pagarŃo com a unica moeda que guardam em seus thesouros. A relķ popular ķ chamada as fezes da sociedade, nŃo porque ķ humilde, nŃo porque ķ pobre, mas porque ķ vil e malvada. O sabio e o virtuoso indigentes sŃo mais nobres do que os grandes da republica, do que os dominadores da terra. O ferrete da abjecńŃo e da infamia estampa-se em qualquer fronte sem excepńŃo de berńo, e aos que trazem este signal de reprovańŃo ķ que a philosophia chama escoria da sociedade. A medida por que Deus conta os graus dos meritos da vida ķ a da pureza de corańŃo; ķ a do aperfeińoamento da intelligencia. Os typos das diversas alturas a que sobe o espirito humano na carreira indefinita da perfeińŃo formam como uma pyramide, cuja base assenta no fundo de um tremedal, cujo ßpice se esconde no interior dos cķus. Muitos nasceram no infimo da pyramide e subiram a grande altura: outros de grande altura desceram a mergulhar-se no lodo. E tanto a uns como a outros julgarß a immutavel justińa de Deus. IV Os soldados da liberdade morreram nos combates da patria e misturaram o seu sangue com o sangue dos satellites da tyrannia: os seus ossos alvejam nas serras e nos valles, como alvejam as ossadas dos servos com quem combateram. Foi sasŃo essa de abundante messe de almas puras para o cķu. Consolem as lagrymas dos justos as cinzas desses valentes. Eram apenas um punhado; a morte ceifou os mais delles; o resto jß nŃo tem forńa senŃo para pranteiar sobre as ruinas da patria. E o vidente pranteiarß com elles, porque o Senhor lhe amostrou o futuro. Se os homens do desterro e das tempestades podessem levantar-se da sua jazida, a terra de antigas glorias ainda seria salva: mas elles dormem o perpetuo somno do repouso. E foi o ultimo leito honrado em que portugueses se reclinaram no seu dia extremo. Felizes os que entŃo se despediram do sol e misturaram com a terra o p¾ que lhes emprestara a terra. Os dias dos que restamos nŃo eram ainda contados; porque nossos erros pediam a punińŃo do opprobrio. O Senhor nosso Deus ķ justo; curvemos a cabeńa diante da sua Providencia. V Formosos eram os tempos em que pelejavamos pela liberdade do povo; tŃo formosos, quŃo negros estes em que a plebe peleja pela licenńa. As nossas armas vomitavam a morte: semeiava-a tambem o inimigo pelas nossas fileiras: e n¾s estavamos firmes nos pincaros das montanhas, ou, descendo, faziamo-las resoar debaixo de nossos pķs. E arrojando-nos aos contrarios, as bayonetas reluziam ß luz do sol; e o tinido dos ferros encontrados, e o clamor dos feridos, e o estampido dos tiros reboavam pelas quebradas dos valles. Quando a victoria, embora sanguinolenta, nos coroava a fronte, o triumpho era para n¾s um delirio; porque o combate fora de homens valentes. Na historia do soffrimento humano a mais bella pagina ķ a historia do nosso soffrimento. Nem a peste, nem a fome, nem a desesperańŃo de todo o humano soccorro dobraram a robustez de corań§es ousados. Porque pelejavamos por uma causa justa, e Deus estava comnosco. Por serranias agrestes e aridas combatemos debaixo de s¾es ardentes, e as entranhas mirravamse-nos de sede: tinhamos os labios resequidos como a urze jß morta, e humedeciamo-los com as lagrymas da dor, e supportavamos a sede. Encostados a mal construĒdos vallos e cercados por quarenta mil soldados, vigiavamos pelas noites longas e tenebrosas do inverno. A chuva cahia-nos em torrentes da atmosphera densa sobre os membros mal-vestidos, e o oeste sibillava em nossas armas. Ou se as cataractas do cķu se vedavam, o frio leste trazia-nos o seu sopro envolvido nas geadas dos montes penhascosos. Cruelissimas eram estas entre as noites crueis desse tempo; porque ao redor de n¾s tudo estava devastado, e nŃo havia um unico tronco para alimentar a fogueira do arraial. E o frio recalcava a vida toda no corańŃo do soldado; e elle sem um lamento soffria o rigor de noite dilatadissima. A fome apresentou-se diante de n¾s: medonho era o seu aspecto: os membros desfalleciam-nos e as armas por vezes nos cahiam das mŃos. Mas o amor da patria estava vivo em todos os corań§es. A Providencia infundia-nos valor, e soffremos sem murmurar a fome. Gloria a Deus!--Os ultimos portugueses saĒram illesos da prova. Os antigos cavalleiros os receberam como irmŃos lß onde sŃo com o Senhor. Bemaventurados os que deixaram esta terra de lagrymas, porque nŃo viram que o seu sangue f¶ra derramado em vŃo. VI E depois dos combates Ēamos sepultar os mortos. No campo da batalha abria-se uma grande cova, e simultaneante se lanńavam nella os cadaveres de amigos e de inimigos. Porque alķm do limiar do outro mundo calam todos os humanos odios. E o tecto de terra estendia-se sobre os muitos que ahi dormiam no mesmo jazigo. E algum pranto derramado sobre o p¾ revolto, e as preces da igreja proferidas pelo sacerdote consolavam os extinctos. Plantava-se a cruz sobre a gleba para consagrar a memoria dos mortos; para pedir a esmola da orańŃo ao que passasse, e para lhe annunciar que todos os que alli repousavam eram irmŃos por Jesu Christo; eram irmŃos pelo sepulchro. Perdoavamos para sermos perdoados: perdoavamos porque eramos fortes. VII Alevantou-se a plebe, e logo commetteu um crime. Agitava-se e ondeiava pelas ruas com clamor inintelligivel; arrastava-a o espirito das turbulencias civis. Um homem inerme passou por entre os amotinados: era um dos votados ao exterminio: muitos tiros e golpes partiram do meio da turba, e o homem cahiu exangue e sem vida. E arrastaram atķ o cemiterio publico, ao som de injurias e risadas, esses restos que a morte sanctificara. As maldicń§es do odio mais profundo param ß beira do tumulo. A maldicńŃo popular, essa ķ que nŃo parou ahi. Soterraram por meio corpo o cadaver e cuspiram naquellas faces lividas aonde jß nŃo podia subir do corańŃo o rubor, e que os olhos cerrados nŃo podiam jß mundificar com lagrymas. E esse homem assassinado e arrastado e cuberto da escuma fetida da gentalha, fora um dos que salvaram o povo do cutello dos tyrannos. Plebe: commetteste um assassinio, e serßs julgada. A ferro morrerß o que ferir com ferro: disse-o o Propheta do Golgotha. Deixaste acaso a face da tua victima descuberta para monumento do crime? Quizeste porventura desafiar a eterna justińa, e convocar a combate o Regedor dos mundos? Se na tua maldade e soberba assim o pensaste, sabe que baldada foi a profanańŃo da sepultura. Se nos confins da terra sumisses o morto; se o escondesses nos abysmos do oceano; se o arrojasses na cratera de um volcŃo encendido, lß Deus o havia de divisar. Porque todo o gemido do moribundo resoa atķ o throno do Eterno. Preparae-vos, vermes, se tanto ousaes: porque o Senhor se erguerß sobre os orbes, e o estridor da setta exterminadora sibillarß atravez do Universo: ella se cravarß na terra que pisaes e passareis como o fumo. Ai daquelle que, impenitente, acordar ao som da ultima trombeta tincto no sangue injustamente derramado de algum de seus irmŃos! Em verdade vos digo que para esse jß nŃo ha perdŃo, mas s¾ o ranger de dentes e o bramir sempiterno. VIII Povo! Onde estŃo os teus sabios, os teus generaes, os teus nobres, os teus abastados, os teus homens virtuosos! Os timidos escondem-se diante da tua sanha: os valentes, nŃo podendo combater com as turbas, erram no oceano ß mercĻ das tempestades. E ķ a segunda vez que se affrontam com ellas por amor da liberdade e da lei. Deus proverß os foragidos, como provĻ de sustento os animaes que vagueiam na terra e as aves que cruzam os ares. E os timidos que, ouvindo o rugido da plebe, se embrenham por antros de serranias, por profundezas de bosques, confiem tambem no Senhor. Porque delle vem a salvańŃo para os bons no dia da c¾lera e do castigo. Que os perseguidos se consolem lembrando-se dos proprios erros, porque ninguem se isenta da culpa, e antes remi-la neste valle do desterro, do que alķm da sepultura. O que padece nŃo deve queixar-se, nem rebellar-se contra a Providencia: porque essa queixa inspira-a a soberba. Que ķ um homem em comparańŃo de uma cidade; uma cidade em comparańŃo de um povo: um povo em comparańŃo do genero humano; o genero humano em comparańŃo do Universo? E que intelligencia ķ capaz de medir a distancia que vai do primeiro ao ultimo? Milh§es de milh§es de vezes menos importa a existencia de um individuo na somma das existencias, do que na pyramide de Cheops o mais miudo grŃo de argamassa importa ß solidez do monumento. Emquanto vive na terra, o homem ķ um atomo na immensidade: grande serß depois da morte no reino do cķu; grande ainda entre os bramidos do inferno. Porque para elle existe a eternidade s¾ entŃo: s¾ entŃo comprehende a omnipotencia de Deus. IX Cinco annos em nome do Evangelho uma parte do povo perseguiu seus irmŃos, e cobriu-os de opprobrio. Em nome do Evangelho pregoou-se o odio, a vinganńa, e o perjurio: em nome do Crucificado pregoou-se o incendio, o roubo, o sangue e o exterminio. Mas o dia da punińŃo chegou, porque as lagrymas da innocencia orvalharam o seio de Deus. Elle estendeu o seu brańo, suscitou os ousados, e conduziu-os de milagre em milagre. EntŃo os impios dobraram a cerviz altiva. As nossas victorias foram de homens fortes; mas a robustez de animo vinha-nos daquelle que ķ fonte e origem de toda a humana virtude. Vestia-se entŃo a maldade dos trajos puros da religiŃo para perpetrar impunemente crimes: hoje abriga-se ß sombra da arvore sancta da liberdade para assolar a terra da nossa infancia. Ai dos maus, porque os olhos do Todo-poderoso lhes vĻem nus os corań§es em toda a hediondez da sua perversidade! A justińa celeste nunca dorme, como na alma do criminoso nunca se cala o remorso. E a hora da tribulańŃo e das angustias chegarß para os malvados; e elles amaldicńoarŃo o ventre materno e os peitos que os amamentaram. X Povo! os que hoje saudas como numes, ßmanhŃ fa-los-has em pedańos, e arrastarßs pelas ruas os seus cadaveres cobertos de feridas e pisaduras. Porque, bem que tarde, conhecerßs que elles te hŃo enganado. Prometteram-te abundancia, e achar-te-has faminto; prometteram-te liberdade, e achar-te-has servo. A licenńa mata a liberdade; porque se livremente opprimes, livremente podes ser oppresso; se o assassinio ķ teu direito, direito serß para os outros assassinar-te. Se a forńa, e nŃo a moral, ķ a lei popular, quando os tyrannos tiverem mais forńa, legitimamente podem p¶r no collo do povo um jugo de ferro. Ministros da tyrannia sŃo os que suscitaram a lucta das facń§es, os que deram o primeiro grito da revolta, os que accenderam a guerra civil; Porque a nańŃo se dilacerarß, e enfraquecida passarß das mŃos da plebe para as mŃos d'algum despota que a devore. Lembrae-vos da Serpente, que enganou nossos primeiros paes: foi com palavras sonoras, com promessas de gloria e de ventura que ella perdeu a ambos. Dado que para v¾s nŃo houvesse liberdade e elles vo-la offerecessem ß custa de perpetuo damno, devieis tĻ-los por vossos destruidores. Porque a liberdade nŃo ķ tanto um fim como um meio: quer-se a liberdade nŃo tanto para as nań§es serem livres, como para serem felizes. Que importa o respeito de propriedade ao que nada possue? Que vale a liberdade da palavra para o que s¾ tem de proferir maldicń§es e queixumes? Que monta que os vossos pares vos julguem, se o odio das facń§es nos fez inimigos uns dos outros? Sem concordia, inevitavel ķ que o edifĒcio social desabe: e porventura nascerß a concordia do meio das sediń§es? XI Se no corańŃo de algum dos concitadores da anarchia existe vislumbre de virtude, ai delle! Ai delle, se a sua alma ķ inteiramente negra! Porque de qualquer dos modos um abysmo estß cavado debaixo de seus pķs: na estrada do arrependimento o da vinganńa popular, no seguimento do crime o da justińa de Deus. Elles revelaram ß multidŃo o segredo da sua forńa, e as turbas os levarŃo diante de si. O leŃo ruge livre na arena, e o conductor que o desatrellou cumpre que mais ligeiro lhe preceda na carreira, alißs serß o primeiro que elle desfańa entre as garras. Aquelles que hoje sŃo o amor das turbas serŃo chamados por ellas para presidirem a conselhos de sangue, a longos dramas de destruińŃo e de angustias. E se a consciencia lhes clamar com a voz do remorso, e se tremulos quizerem retroceder, a plebe lhes dirß--ßvante! E se ousarem implorar piedade para com as victimas do desenfreiamento e da barbaridade, rir-se-ha a plebe, e gritar-lhes-ha--ßvante! E se, aterrados da altura do precipicio, voltarem atrßs um passo, este passo serß o extremo: a plebe os anniquilarß. Elles encheram o calice das amarguras publicas: os justos o beberŃo aos tragos; mas as fezes serŃo para os escanń§es do banquete popular. A salvańŃo unica do instigador de revoltas e uni§es estß em admittir todas as consequencias dellas. E entŃo forńoso lhe ķ tornar-se conspicuo no crime e revolver-se no sangue. Mas qual serß a eternidade de tal homem? Deus nŃo deu palavras ßs lĒnguas da terra para o dizerem. ╔ esse um dos mysterios do inferno. XII Temo as horas caladas da noite, e o corańŃo aperta-se quando o somno me pesa sobre as palpebras amortecidas: Porque para mim o somno nŃo ķ repouso, e os phantasmas das sombras sŃo mais crueis do que as crueis realidades do dia. Deus converteu a sua voz no meu pensamento e collocou nos meus labios o grito da sua colera. O seu verbo desfarß a minha alma, como o ar aquecido dilatando-se dentro do vaso o desfaz em fragmentos. O espanto cerca-me no meio das trevas, e o futuro estß parado diante de mim como um pesadello eterno. Em um momento reune o Senhor na minha alma as dores com que por largos dias gemerß esta desventurada patria. E, em sonhos, oro ao Deus de nossos paes; mas na sua ira o Altissimo repelle as minhas preces; e acordo debulhado em lagrymas. Este acordar arremessa-me ß vida actual, a esta atmosphera de depravańŃo, ao meio do deshonesto tumultuar de um povo corrompido. E a orańŃo, que em sonhos ousara levantar a Deus, cahe gelada na terra ao som das pragas e blasphemias da turba desenfreiada. XIII Eu vi uma visŃo do futuro, e o Senhor me disse: vai e revela-a na terra. Como em panorama immenso, um reino inteiro estava diante dos meus olhos. E nas duas cidades mais populosas delle homens de mß catadura comeńavam de agglomerar-se nas prańas e a trasbordar pelas ruas. E nos campos e nas aldeias outros homens com aspecto de reprobos comeńavam tambem a apinhar-se nos passos das serras, nas assomadas das montanhas e nas clareiras das florestas. E tanto nas faces dos filhos dos campos, como nas dos habitadores das cidades adivinhava-se o grito de exterminio que bramia no fundo dos corań§es. Os magotes de serranos fundiram-se n'uma s¾ turma; e o mesmo succedeu aos das cidades. E cada uma das turmas se converteu em uma besta-fķra, que se assemelhava ao tigre. Agigantada era a sua estatura, e na fronte de uma lia-se--Fanatismo--e na da outra--Desenfreiamento.-- Com os olhos tinctos em fel e sangue, correram entŃo os dous monstros um para o outro, ergueram-se em pķ e estenderam as garras. No mesmo instante abriram-se os cķus: dous grandes cutelos afiados e dous fachos encendidos cahiram juncto das alimarias ferozes. E nas laminas dos cutelos estavam escriptas com letras de fogo as palavras seguintes--MaldicńŃo de Deus. E cada uma das alimarias segurou com a esquerda um dos fachos, e com a direita um dos cutelos. A das cidades arrojou o seu facho sobre os campos, e os campos ficaram em um momento ßridos e ermos. E a outra sacudiu o seu sobre as duas cidades, e subito no logar onde ellas foram estavam dous mont§es de ruĒnas. Depois, combatendo por largo tempo e atassalhadas de golpes, cahiram e renderam os espiritos. EntŃo as lagrymas me offuscaram os olhos; porque bem entendia o que significava a visŃo. Mas enxugando-os, tornei a lanńß-los para o logar da peleja. E vi uma solidŃo safara e negra, sobre a qual a perder de vista para todos os lados alvejavam milhares de ossadas. E em cima dellas estavam assentados dous espectros gigantes. Chamavam-se AssolańŃo e Silencio. XIV Era uma noite serena, e, ao clarŃo da lua, a sombra de templo antigo estirava-se no terreiro contiguo. Os sinos dormiam nos campanarios das torres erguidas, e tudo estava calado no ambito do monumento religioso, herdado aos homens impios deste seculo pelos homens crentes dos tempos que foram. Atravez das esguias e ponte-agudas janellas da igreja transverberava na prańa a luz amortecida das alampadas penduradas ante as capellas desertas. Era a hora em que se passam cousas mysteriosas por adros e cemiterios, e em que vagueiam pela terra os mortos condemnados a assim cumprirem com sua justińa. N'um angulo do terreiro estava eu. NŃo sabĒa que mŃo me tinha para alli arrastado; mas era a mŃo de Deus. Ao longo de uma rua que naquelle logar desembocava vinha ondeiando um turbilhŃo negro, cujo rugido era semelhante ao rugido do pinhal da montanha em noite tempestuosa. E parecia aquelle grande vulto um fragmento do cahos, a quem, de todos os elementos de harmonia e de ordem, s¾ o Creador concedera o movimento. E chegou o tumulto diante da igreja e espraiou-se por toda a prańa, e houve profundo silencio. E um homem alevantou a voz no meio do tropel, que pendia de seus labios, e disse: ½V¾s sacudistes o jugo dos poderosos, e o nome de rei e o titulo de nobre sŃo palavras sem significańŃo na linguagem de nańŃo regenerada. O povo que jazia no lodańal alevantou-se como gigante de prodigiosa altura, e estendendo os brańos, estreitou os palacios dos abastados e dos potentados: os pannos dos muros vacillaram nos seus fundamentos de marmore e de granito, e comeńaram de desmoronar-se e baqueiaram por terra. E o gigante popular riu-se e assentou-se em cima de mont§es de ruinas. Foi este dia dia de sempiterna gloria. Mas os monumentos da credulidade e do fanatismo de nossos paes ainda assoberbam a cidade dos homens livres. A hypocrisia abriga-se ß sombra dos altares e invoca, talvez contra n¾s, um Deus que nŃo existe. O unico Deus de corań§es generosos ķ a liberdade. Quando cumpre, o altar della ķ o cadafalso: o seu sacerdote o algoz: o seu culto verter o sangue dos tyrannos. A religiŃo que tem por fundamento a humildade e a abnegańŃo de si ķ a religiŃo dos servos. ╔ por isso que nossos paes foram servos. Amaldicńoemos, pois, o nome dos que nos geraram e derribemos a obra da superstińŃo. E cada um daquelles precĒtos amaldicńoou seu pae. Os cabellos errińaram-se-me de horror. EntŃo a turba arrojou-se ao portal do templo, e os largos ferros dos machados scintillavam erguidos e faziam estourar as portas. Pelas naves da igreja retumbava um gemido longo e sonoro. E o terreiro ficou esgotado dessas ondas de povo, vertidas pelo ßdito da velha cathedral dentro de seu amplo recincto. Como os vermes se arrastam vagueiando pelos membros do cadaver, assim os homens do sacrilegio se espalharam, arremessando-se aos altares e a todos os logares onde reluzia a prata ou o ouro. E cuspindo sobre a hostia do Cordeiro, pisavam-na aos pķs e motejavam do Crucificado. E despido o templo das riquezas alli depositadas em testemunho da piedade de seculos, os impios saĒram delle carregados de despojos. Depois, accendendo fachos, lanńaram-lhe fogo por todos os angulos, e breve as chammas se ergueram ao cķu com espantoso ruido. O estalido das pedras que se desconjunctavam, e o fragor das abobadas desabando, e o estridor do incendio, que trepava em espiraes pelas columnas e se estendia em lenńoes vermelhos, lambendo a face dos muros, e o ultimo gemido dos orgŃos era a orchestra deste sarau popular. E a plebe folgava de roda, e embriagava-se, passando de mŃo em mŃo as tańas do vinho espumoso, e tecendo danńas com as mais vis prostitutas. Tal foi o sonho do futuro que o Senhor me enviou n'uma noite de agonia. XV O anjo das predicń§es mudou entŃo na minha alma a scena do porvir. ┴ mesma hora, ß mesma luz da lua, estava eu no logar onde vira o povo quebrar as portas do sanctuario; onde vira os homens dissolutos transpor a ultima barreira que os separava dos tigres, e lanńar de si o ultimo signal que os distinguia dos espiritos das trevas. Dos fustes truncados das columnas do templo pendiam hervas bravias, e nos muros semi-rotos enlańava-se a hķra. Nos campanarios afumados pelo incendio haviam as aves nocturnas construĒdo os seus ninhos: ao cahir das trevas, em vez dos sons religiosos dos sinos, despenhavam-se lß dos cimos das torres os pios melancholicos da poupa solitaria. E no meio do terreiro surgia o que quer que era negro e que nŃo se assemelhava a nenhuma obra da natureza, a nenhuma obra das mŃos do homem feita para o uso da vida. Approximei-me. Era o patibulo. Um vulto humano pendia do alto delle e volteiava para um e outro lado ß mercĻ da brisa da noite. E tinha as faces disformes e os olhos espantados, e da b¶ca meia aberta gotejava-lhe a espańos o sangue. Eu estava com os olhos cravados nelle, e nŃo os podia despregar do homem do patibulo. E involuntariamente cahi de joelhos: as preces pelo morto Ēam-me a romper dos labios. Sentia ardente a fronte e batia-me o pulso rapido e com forńa. ┴ primeira palavra de orańŃo que proferi, um estremeńŃo agitou o cadaver do justińado. E sem mecher os beińos murmurou sons inarticulados: depois proferiu algumas palavras: a sua voz era a de um ventriloquo. Cala-te!--disse o cadaver.--A eternidade ķ jß minha. Deus riscou-me do livro da vida: maldicto seja o seu nome! Fartei-me de crimes na terra: por isso fui condemnado. A minha existencia foi como um halito de pulmoens ralados: a minha voz nunca ensinou senŃo a destruińŃo. Hypocrita da liberdade, pregoei a anarchia e a licenńa, como os hypocritas da religiŃo pregoam a intolerancia e o exterminio. Fui eu o que nas trevas preparei a discordia dos homens livres; que suscitei o primeiro dia de furor popular. Colloquei em frente dos amotinados alguns mancebos, em cujo seio havia fragmentos de virtude, mas cuja ambińŃo era cega. Porque bem sabia eu que a plebe immoral anniquilaria todos os que nŃo fossem tŃo dissolutos como ella. Deixei na arena dos bandos civis todos os meus ķmulos, e abandonei o paiz que de futuro devia ser minha prĻa. Quando voltei, o povo tinha feito pedańos os seus idolos de um dia, e havia-os sumido debaixo dos pķs das turbas. Era entŃo que comeńava o meu imperio. Ai dos que eu tinha arrolado no livro da morte! Nenhum ficou sobre a terra. Milhares deixaram a cabeńa debaixo do cutelo do algoz: milhares volteiaram no cadafalso por noites de luar, como agora eu volteio. E este barańo que ora me sobreleva do chŃo ainda o achei aquecido do collo da minha ultima victima. Fartei a sede de vinganńa e de sangue que mirrava o meu corańŃo, e morri seguro de que deixava atraz de mim a campa cerrada em cima de todos os virtuosos. O tyranno do cķu folgue embora em me ver no inferno: ao menos pude apagar o seu nome na terra que me deu o berńo. Um brado meu desmoronou os templos: o sacerdocio desappareceu; a orańŃo calou para todo o sempre. Agora tambem eu passei; porque na senda do crime o povo com uma passada vence o caminho de um seculo, e eu era apenas um homem. Os que empolgaram o poder, que me foi arrancado, nŃo os tinha ainda conhecido, porque se arrastavam hontem em regi§es obscuras; alißs ter-me-hiam precedido em descer aos abysmos. Aqui, dando um longo gemido, o suppliciado calou; os olhos fecharam-se-lhe, e a cabeńa pendeu-lhe para o peito. Emquanto falara, bem conheci quem era; mas o Senhor me ordenou nŃo revelasse o seu nome. XVI O anjo das predicń§es mudou o espirito dos meus sonhos. Era por noite fria de inverno: n'uma quadra desadornada de palacio meio arruinado jazia um homem em pobrissima enxerga. No seu rosto estava pintada a doenńa e a fome, as bagas do suor da morte transudavam-lhe da fronte, e dos olhos fugia-lhe a lagryma extrema do moribundo. Os farrapos que vestia nŃo o resguardavam do frio; e o homem tremia, e os dentes batiam-lhe uns contra os outros. E no seu delirio o misero soltava palavras cortadas.--Agua! agua!--dizia; porque a sede lhe roĒa as entranhas. E nŃo havia quem lhe desse um pucaro de agua. Tribunos da plebe, dae-me um pouco de pŃo. Ah! bem negro que seja! que tambem eu sou do povo.--E lanńava os olhos para os seus farrapos. Fui nobre e rico; mas esquecei-vos disso! Perdoae-me, porque nada me resta: tŃo pobre sou como o mais humilde mendigo, que d'antes estendia a mŃo para o ultimo dos meus servos. E o homem sorria, e o seu riso significava a desesperańŃo da sua alma. Depois olhou para um crucifixo que estava encostado ß parede, e estendeu para lß os brańos. Mas nŃo havia quem lhe unisse ao peito a imagem do Salvador: nŃo havia um sacerdote que lhe desse o extremo _vale_. EntŃo deixou descahir os brańos, fechou os olhos, e morreu. Sobre o cadaver ir-lhe-ha amontoando o tempo as ruinas dos pańos que lhe herdaram seus paes. E serß esta a campa republicana do homem que foi nobre e abastado. XVII O anjo das predicń§es mudou o espirito dos meus sonhos. Era o dia da lucta das facń§es: era um dia de ampla carnificina. E o demonio do meio-dia pairava sobre a cidade do sangue, e blasphemava do Senhor. O povo corria furioso e tumultuava; e os tiros e golpes soavam pelas prańas, pelas ruas e pelas encruzilhadas. O gemer dos feridos, as pragas dos vencidos, e as ameańas dos vencedores conglobavam-se em rumor semelhante ao arquejar de volcŃo. As portas dos edificios estouravam pelos gonzos e fechaduras, e a plebe clamorosa entrava de tropel atķ o mais recondito das habitań§es. E o ulular das mulheres, e o vagido dos infantes e o ch¶ro dos velhos rompiam por entre o clamor da matanńa. Mas a lascivia e o punhal breve punham o sello do silencio nas frontes de inteiras famĒlias. No recontro das diversas parcialidades os irmŃos assassinavam os irmŃos, os filhos assassinavam os paes. Porque ß voz das sediń§es, o povo tinha quebrado, depois dos lańos sociaes, os vinculos da natureza. E o roubo, a dissoluńŃo, a morte e o incendio estavam assentados nos quatro angulos de uma cidade outrora populosa e rica. Estas eram as divindades que adorava a plebe nos dias da licenńa e do furor. XVIII O anjo das predicń§es mudou o espirito dos meus sonhos. Nas abas de uma serra das provincias do norte ainda as casinhas de pequena aldeia alvejavam certa manhŃ ao despontar o sol. E nas assomadas dos montes, e nos comoros dos outeiros ondeiavam os cimos dos pinhaes agitados pela virańŃo matutina. A aldeia e os campos que a rodeiavam eram, no meio deste paiz assolado, como o vulto da esperanńa erguido sobre a lousa do sepulchro. E os habitantes pacificos do valle nŃo sabiam que as tempestades politicas trovejavam alķm das suas montanhas. Mas nesse dia souberam-no para morrerem. O raio da furia popular fulminou-lhes a destruińŃo. Bandos de soldados negrejavam em ondas descendo para a planicie; e os primeiros raios do sol espelhavam-se nas suas armas. E seguiu-se mais uma scena de carnificina, como tantas que eu tinha visto em meus sonhos do futuro. O ultimo abrigo da felicidade neste mal-aventurado paiz foi reduzido a cinzas. Os velhos morriam abrańados aos troncos dos carvalhos e castanheiros, seus veneraveis amigos da infancia, que tinham testemunhado a ventura de seis gerań§es inteiras. Os mońos cahiam combatendo pela salvańŃo dos paes, das esposas e dos filhos; mas, inexpertos nas armas, levemente eram vencidos da soldadesca feroz. Na ermida do presbyterio buscaram as mulheres indefensas guarida contra os assassinos; porque as desgrańadas nŃo sabiam que a religiŃo tinha fugido desta terra dos crimes. Alli, ante o altar do Senhor, foram vilipendiadas e saciaram a bruteza dos filhos da dissoluńŃo. E no dia seguinte, nos soutos e nos pinhaes da encosta ouvia-se tŃo somente o murmurio das ramas; e no meio do valle fumegava um monte de cinzas. XIX O anjo das predicń§es mudou o espirito dos meus sonhos. N'uma vasta sala estavam congregados muitos homens de aspecto feroz e em cujos olhos faiscavam as coleras immensas dos bandos civis. Chamavam-se estes homens os legisladores, os eleitos do povo. Vans denominań§es eram essas: a lei residia na vontade mudavel da plebe; e elles eram em grande parte mandados para aquelle recincto pela parcialidade que entŃo triumphava. De roda, em balcoens erguidos, agitava-se a plebe tumultuosa. Alli se lavravam os decretos de exterminio: e era, ouvindo-os, que as turbas victoriavam os homens do sangue. Mas, se aos labios de algum assomava uma palavra de humanidade, e se ousava proferi-la inteira, os gritos de traińŃo e de morte recalcavam-lhe das faces para o corańŃo esse impensado impeto de piedade. Neste dia pelejavam as parcialidades nas ruas para decidir quem tinha direito de commetter mais crimes: era dia de abundante colheita para o sepulchro e para o inferno. Mas ao recincto, outrora chamado o sanctuario das leis, nŃo chegava o clamor do combate: porque ahi a discordia excitava alaridos e, sacudindo o seu facho, encendia os animos de uns contra outros, Luctavam tambem as parcialidades lß dentro. Na prańa publica a victoria convertia a final o que naquella assemblķa se chamava minoria facciosa em irresistivel maioria. A plebe soberana annunciou-o aos legisladores, fazendo estourar a golpes de machado as portas da immensa quadra, onde o vozeiar nŃo era de ardentes debates, mas sim de pugilato infrene. A turba-rei precipitou-se como torrente: o tumulto ondeiou pela sala espańosa, e houve um momento de ancia e de silencio. EntŃo os punhaes reluziram erguidos e desceram com forńa; e os gritos e as pragas e as blasphemias misturaram-se com o estertor dos moribundos. E a plebe nos balcoens batia as palmas, e dizia entre risadas:--_viva!_ Tal foi a ultima scena de meus sonhos; e nada mais me revelou o Senhor. XX O Filho do Homem comprazia-se em ensinar a sabedoria por meio de parabolas: na parabola estß a philosophia do povo. Um agricultor possuia certo campo que nŃo produzia senŃo fructos enfezados; porque o solo se havia tornado sßfaro por falta de cultura durante largos annos. Porķm ainda, aqui e acolß, pela extensŃo da veiga, vecejavam algumas arvores e cepas de boas castas, e que s¾ de maltractadas pareciam bravias. E este agricultor morreu, deixando o campo de seus paes a tres filhos que tinha; e estes tractaram entre si ßcerca do que deviam fazer da heranńa paterna. E o mais velho disse:--Respeitemos a memoria de nossos antepassados, e deixemos aos que de n¾s vierem o campo que herdßmos do mesmo modo que o recebemos: Porque se nŃo diga que menoscabamos a prudencia dos velhos e que pretendemos ser mais avisados do que foi nosso pae. Elle viveu, posto que pobre, tranquillo: vĒvamos como elle viveu. E disse o segundo-genito:--Veneranda ķ a memoria dos que nos geraram: comtudo tambem se deve acatar a razŃo, que nos foi dada por Deus. Conservemos todas as obras do tempo passado; mas melhoremos tudo o que nellas houver ruim. Ahi estŃo arvores uteis no meio da nossa herdade: nŃo as derribemos, porque o fazĻ-lo, alķm de impiedade, fora rematada loucura. Porķm roteemos os brķjos e sarńaes, adubemos a terra, e procuremos fazer novos plantios adequados ß qualidade do solo. E disse o irmŃo mais novo:--Que nos importa os que passaram, ou que temos n¾s com o que elles fizeram? Nossos paes viveram nas trevas da ignorancia; e por isso todas as suas obras sŃo loucura e vaidade. A luz e a sciencia s¾ veio ao mundo em nossos dias, e s¾ a propria sabedoria p¾de fazer-nos felizes. Comecemos pois por arrancar deste agro todos os vestigios de antiga cultivańŃo: nŃo verdeńa nelle nem uma unica planta. E depois buscaremos arvores extranhas de fructos saborosos e sementes uteis, e a nossa herdade causarß inveja a todos os vizinhos. Cada um dos irmŃos estava firme em seu proposito, e os servos e os familiares bandeiaram-se em tres partidos. E luctaram uns com os outros, e triumphou a opiniŃo do mais velho. E o campo mal cultivado, cada vez produzia menos, e a fome veio assentar-se no limiar da porta dos tres irmŃos. O que vendo o segundo-genito, disse aos do seu bando: Forńa ķ que tiremos o poder das mŃos dos que nos governam, alißs morreremos todos ß pura mingua. E assim o fizeram; e, posto que a lucta fosse longa e encarnińada, venceram; porque a razŃo estava da sua parte, e Deus os abenńoava. EntŃo comeńaram a trabalhar: alimparam as arvores dos ramos seccos e exuberantes; adubaram os campos e prados, e arrancaram as moutas e as plantas nocivas. E lanńaram boas sementes ß terra, e quando a seara foi crescendo, comeńaram de mondar-lhe o joio e as outras hervas damninhas. Promettia naquelle anno ser excellente a colheita, e no corańŃo dos familiares renascia jß a esperanńa. Mas o irmŃo mais novo, possuido do espirito de destruińŃo, colligou-se com os criados devassos e que aborreciam o trabalho continuo a que eram forńados. E fizeram uma uniŃo contra o segundo-genito e tiraram-lhe o mando, valendo-se de muitos clientes do primogenito, os quaes, por via da dissensŃo entre os dous mais novos, esperavam triumphasse o mais velho. Lanńaram-se entŃo ao campo, destruiram a sementeira, cortaram as arvores, e passaram a charrua por cima dos campos arrelvados. E buscaram sementes exquisitas e arvores exoticas, e atiraram ß terra desalinhadamente com tudo isso, e depois adormeceram. As arvores, porķm, seccaram logo, e as sementes, apenas rebentaram, morreram; porque os imprudentes nŃo haviam estudado nem a natureza do clima, nem as propriedades do solo, nem as regras de agricultar. E a familia inteira no fim do anno tinha perecido de fome. XXI Na terra de Cethim houve um rei que era bom e cheio de liberalidade e valor. E canńado de reinar, disse em certo dia a seu filho, que ainda era muito mońo: Pesam-me jß demais a coroa e o sceptro, e os esplendores do throno nŃo me deslumbram. Vem, e assenta-te nelle. E o filho obedeceu, e comeńou de reger os povos por certas leis estabelecidas por seu pae, o qual foi viver em regi§es longĒnquas. Mas um tyranno alevantou-se com o reino, e o mońo principe errou largo tempo por extranhos paizes com os poucos seguidores de sua mß ventura. E o bom rei que descera do throno correu a restituir ao filho a heranńa que lhe legara. E a sua espada foi como a de GedeŃo; o seu brańo come o dos Machabeus. EntŃo o principe desterrado voltou ß patria, reassumiu o sceptro que lhe fora roubado, e a lei e a justińa recobraram o antigo vigor. Depois o rei virtuoso morreu de puras fadigas, e foi dormir com seus paes: sobre a sua memoria desceram nŃo s¾ as benńŃos dos seus soldados, mas tambem as de todos os amigos da justińa e da paz. Nas trevas, porķm, homens corrompidos comeńavam a tramar dissens§es civis; porque pretendiam que os bons soffressem, depois da tyrannia de um unico mau, a tyrannia de muitos homens ruins. E estes mysterios da corrupńŃo vieram a lume, e a plebe disse um dia ao principe e aos cidadŃos pacificos:--A forńa estß em n¾s, e a forńa ķ o direito: obedecei-nos pois, alißs um descerß do throno, outros serŃo reduzidos a p¾. E tudo calou diante da plebe; porque era verdade que ella tinha a forńa. Os nobres, os prudentes, e os homens bons cubriram-se de d¾, e no gesto lia-se-lhes a amargura do corańŃo. Mas o mońo rei a quem os turbulentos fingiam acatar, porque descera atķ elles, mostrou-se contente do seu damno, e engolfou-se nas delicias de que o rodeiaram os algozes da patria. Foi entŃo que se apagou em todos os animos honestos o ultimo raio de esperanńa. XXII Havia naquelle tempo em Cethim um propheta, em cuja boca posera Deus o verbo da eterna verdade. E este propheta entrou um dia nos pańos do principe e disse-lhe: Mancebo inconsiderado, emquanto folgas e ris, vai desconjunctar-se debaixo de teus pķs o throno que te herdaram teus paes. Lembra-te de que subiste a elle por cima das ossadas de vinte mil dos teus amigos, regadas pelas lagrymas de cem mil familias. E nŃo te esqueńas de que entre esses ossos jaziam os de teu pae: nŃo maldigas com tuas obras a sua memoria; porque elle foi justificado diante do Senhor. CrĻs tu que os homens do nada te perdoarŃo o teres nascido do sangue dos reis? Enganas-te! Crime para elles ķ este que nunca te serß relevado. O sorriso que na tua presenńa lhes aclara o torvo das faces, nŃo o creias de amor: repara, e verßs que ķ o riso infernal do desprezo. Os filhos da abjecńŃo queriam igualar-se comtigo; nŃo, sendo elles quem subisse, mas sendo tu quem descesse. As taboas da lei foram feitas pedańos; se o vĻ-las partidas te apraz ou disso nŃo curas, antes de o patenteiar cumpria-te restituir-nos as vidas e o sangue de nossos irmŃos. Este paiz soffreu tudo por guardar o pacto que jurou, e que tambķm tu juraste: que direito ķ o teu para approvares que esse pacto seja rasgado? Porque nŃo padecerias alguma cousa a bem dos que tanto padeceram por ti? CrĻs, porventura, que ķ bello e generoso assentares-te em um throno que a relķ do povo conspurcou de lodo e de infamia? A plebe era forte: embora. Mais forte era o tyranno de outrora, e baqueiou por terra. Devias deixar aos maus a consummańŃo do seu crime e nŃo o sanctificares tu. Devias confiar na Providencia, e arrojar de ti o manto de ignominia que sobre os hombros te lanńavam. Devias conservar sem mancha o teu nome, porque estß ligado ao do que te deu o ser, e este serß glorioso atķ o termo dos sķculos. N¾s iremos ajoelhar juncto ao sepulchro de teu pae, e ßs cinzas do rei virtuoso pediremos a justińa que nŃo encontramos na face da terra. Oh, que se fosse possivel alevantar-se elle em pķ sobre a campa, um seu olhar te encheria de remorsos; um brado seu fulminaria os perversos! Taes foram as palavras que o propheta de Cethim disse ao principe mancebo: o que depois aconteceu nŃo o sei eu narrar. E este ķ um fragmento da historia de eras que passaram ha muito. XXIII A justińa de Deus ķ grande: maior a sua misericordia. Para o que se arrepende mana do seio do Senhor fonte perenne de perdŃo, e as preces do contrito sobem ligeiras atķ os degraus de seu throno. Depois dos dias de afflicńŃo, elle envia o consolo e quebra em pedańos o vaso da sua colera. Povo, que vagueias desenfreiado pelas sendas da morte, converte-te ß vida, converte-te ao Deus de teus paes. Elle nŃo se esquecerß dos netos desses fortes que espalharam a luz do seu Verbo entre os mais remotos barbaros, e os teus erros serŃo esquecidos. Nossos av¾s souberam ser livres sem ser licenciosos; souberam ser grandes sem crimes: eterna ķ a sua gloria. Ousariamos n¾s irmos ajunctar-nos com elles no repouso do tumulo carregados das maldicń§es do Altissimo, e sepultando comnosco a heranńa do nome portuguĻs cuberta da execrańŃo do universo? Lembrae-vos de que as cinzas dos cavalleiros de JoŃo primeiro; dos valentes de Ceuta, de Tangere e de Arzila, dos conquistadores do Oriente, estŃo envoltas na terra que pisaes. E onde quer que ponhaes os pķs levantarß o passado um grito de reprehensŃo contra a depravańŃo do seculo actual. Formosa e pura ķ a luz do sol neste amoroso clima do occidente: nŃo queiraes convertĻ-la no facho avermelhado e sinistro que fulgura por cavernas de salteadores e de assassinos. Unamo-nos, pois, como irmŃos, e abrańando-nos uns com outros, cßiam algumas lagrymas de reconciliańŃo sobre esta terra tŃo regada de lagrymas de amargura; tŃo ensopada no sangue do fratricidio. Refloreńamos entre n¾s a paz e a amizade: tenhamos um nome s¾, o de portugueses, um s¾ bando, o da patria. Ainda algum dia estes rogos do propheta serŃo ouvidos: mas quando, ķ um segredo de Deus. A VOZ DO PROPHETA SEGUNDA SERIE Iniquitas surrexit in virga impietatis; non ex eis, et non ex populo, neque ex sonitu eorum, et non erit requies in eis. EZECHIEL, VII-11. I Lisboa, cidade de marmore, rainha do oceano, tu ķs a mais formosa entre as cidades do mundo. A brisa que varre os teus outeiros ķ pura como o cķu azul, que se espelha no teu amplo porto, semelhante a grande mar. Trinta seculos tem surgido depois que tu surgiste, e sorvendo milhares de existencias cahiram todos no abysmo do passado. E tu os has visto nascer e morrer; e sorriste-te, porque julgavas que a vida te estava travada com a vida do universo. Escondendo nas trevas dos tempos remotissimos a tua origem, dizias ßs demais cidades da Europa:--Sou vossa irmŃ mais velha. Nobre e rica outrora, quando o Oriente e a Africa te mandavam o ouro das suas veias, os extranhos vinham assentar-se-te ao pķ dos muros e abastecer-se com as migalhas cahidas das mesas dos teus banquetes. Cada um dos teus velhos palacios abrigou jß os ultimos dias de um grande capitŃo; em cada pedra dos teus templos ha uma recordańŃo das virtudes passadas; em muitas lousas de sepulturas nomes que nŃo morrerŃo. Nas eras de tua gloria, os monarchas dos ultimos confins da terra se haviam por honrados com chamar irmŃos a teus filhos; e filhos teus davam e tiravam coroas. As tuas armadas aravam as campinas do oceano, e neste nem uma vaga deixou de gemer debaixo das naus do Tejo. Para as frotas da nova Tyro, os golpes de machado resoavam ao mesmo tempo nos bosques da Europa e da Africa, do Oriente e do Novo-Mundo: os lenhos do IndostŃo cosidos com os da Nigricia fluctuavam por mares distantes, e sobre elles se hasteiava um signal de terror para o orbe: era o pendŃo das Quinas. EntŃo, oh cidade do Tejo, reinavas tu e eras forte, mais do que Roma ou Carthago; mas o imperio e a forńa vinham-te das virtudes de teus filhos, dos homens a quem sem pudor chamamos nossos av¾s. Vivificavam-te o seio um sem numero de bem nascidos espiritos, e eras seminario feracissimo de corań§es generosos. Porķm, que te resta hoje do antigo esplendor, da gloria de tantos seculos? Um echo do passado nas paginas da historia, o sol puro da tua primavera, os restos dos pańos e templos que os terremotos te nŃo consumiram, e o grande vulto das aguas do amplo ßdito do Tejo. II Mas este echo da historia, que devia ser para ti como um grito de remorso, nŃo ha ouvidos que o escutem, e soa em vŃo e morre no meio do vozeiar descomposto da plebe: Mas este cķu puro que te cobre, e que testemunharß no grande dia as virtudes de nossos maiores, testificarß tambķm perante o Senhor a tua corrupńŃo actual: Mas este porto, que a liberdade regrada de tres annos comeńava a povoar de entenas, tornß-lo-ha o reinado da licenńa tŃo ermo como os extremos dos mares gelados: Mas pelos palacios de marmore jß nŃo retumba a voz dos heroes, e os templos estŃo desertos: s¾ por lupanares e prańas sussurra o clamor dos populares, ou entoando os canticos das orgias, ou tumultuando em assuadas e preparando o dia em que satisfańam a sede do roubo e do assassinio. Viuva prostituida, os vicios corromperam-te a seiva da vida, e a gangrena e os herpes corroem-te os membros, que ainda vestes de trajos louńŃos, mas onde a morte se encarnou ha muito. Formosa ainda no aspecto, assemelhas-te ao sepulchro do evangelho, alvo e polido no exterior, mas cheio de podridŃo e negrura. Nova Jerusalķm, a dextra do Senhor vergou pesando-te os crimes e, como a antiga, saberßs se por ventura sŃo asperas as angustias que o Omnipotente manda aos povos no dia da sua justińa. Rapida ķ a carreira do malvado pelos atalhos do crime: porque esses atalhos levam, de despenhadeiro em despenhadeiro, ao abysmo da perdińŃo. Breve empallidece o outono as folhas das arvores; breve as desprende dos troncos; breve as espalha e some, arrebatando-as sobre as azas dos ventos. Esse curto praso bastou ao povo para esgotar os thesouros da misericordia divina, que os erros e culpas de seculos nŃo haviam podido empobrecer. Os feitos portentosos de dous annos de combates civis foram amaldicńoados pelo povo em uma noite de sedińŃo, e a arvore da liberdade cerceiada juncto da terra. E as esperanńas de salvańŃo e de felicidade passaram como o sonho matutino que se desvanece ao alteiar do sol. III Como a antiga Jerusalķm se afundou em mar de crimes, assim a moderna SiŃo, a grande cidade do occidente, se mergulhou em torrente de perversidades. E a maldicńŃo celeste que sumiu aquella d'entre as nań§es pesarß ainda mais rijamente sobre a desgrańada Lisboa, sobre esta caverna de vicios e de desenfreiamento. ┴ roda dos muros de Solima apinhavam-se os cavalleiros de Babilonia, e as tendas de Nabuchodonosor estavam assentadas ao pķ da torrente de Cedron. E as catapultas arrojavam pedras sobre os eirados do templo, no cimo do Moria: os arietes batiam os baluartes, que vacillavam atķ os fundamentos, e o granizo das settas sibilava, passando por entre as mal defendidas ameias. E ao longe scintillavam os ferros das lanńas e o bronze dos elmos e dos cossoletes, e ouvia-se o nitrir dos cavallos. Surgira o dia extremo para a cidade das maravilhas, para a reproba Solima. E d'alli a um anno, sobre as ruinas della estava assentado um velho. Era o propheta de Anathot, que, em cima da ossada dos palacios e do templo, entoava uma elegia tremenda, a elegia da sua nańŃo. IV Tambem o dia em que, entre os vestigios da cidade maldicta, algum vate levante um grito de agonia, um grito de desesperanńa, nŃo tardarß a chegar. Porque Deus ergueu-se no seu furor, e mandou descer sobre este paiz o anjo do exterminio. Mais cruel serß o teu castigo, oh terra do meu berńo, do que o de Jerusalķm: porque ella pereceu a mŃos de extranhos, e seus filhos morreram defendendo os lares paternos. Mas a ti ķ um matricidio popular, ķ a febre ardente das sediń§es que te vae arremessar ao sepulchro. Os teus muros converter-se-hŃo em circo: pelas prańas e ruas pelejar-se-hŃo pelejas como de gladiadores, combates como de mastins e feras. Porque o temor de Deus saiu do corańŃo do povo, e entraram nelle todas as raivas do inferno. Aspero ķ para o que morre assassinado nŃo poder clamar ao cķu justińa contra o seu matador. E neste mau caso cahirß o povo; porque serŃo as suas proprias mŃos que lhe rasgarŃo as entranhas: serß elle quem lavre a sua sentenńa de morte. Elle se amaldicńoarß a si, e o remorso e a desesperańŃo de toda a humana piedade lhe dobrarŃo as agonias do passamento. V Os que pelejaram contra os tyrannos purpurados mal sabiam que lhes quebravam o sceptro de ferro, para metter a espada da assolańŃo na dextra de tyrannos cobertos de vermes e farrapos. Mal pensavam que uma rańa corrupta nŃo conhece outra estrada senŃo a da servidŃo ou a da licenciosidade. A nańŃo, esmagada pelos reis, tinha muito tempo gemido debaixo da propria miseria. Mas surgiu um principe que deu a liberdade ao povo e que veio morrer para lh'a restituir, quando elle vilmente a deixou baqueiar por terra. E estes homens, que pouco antes haviam dobrado o joelho perante o despotismo, mostraram-se tŃo orgulhosos e insolentes, quanto, atķ entŃo haviam sido abjectos e timidos. E n'uma orgia popular fizeram resoar gritos insultuosos nos ouvidos daquelle que duas vezes os libertara, e invocaram-lhe a morte. Nesse momento longe estavam os seus soldados, e muitos delles arquejavam moribundos no campo onde se pelejou a ultima batalha da patria. Em verdade vos digo que tal crime ķ dos que Deus nŃo perdoa; porque a ingratidŃo ķ a mais horrenda de todas as pervers§es humanas. Elles apressaram o repouso do tumulo para o salvador da republica: mas o nome de parricidas serß o que sobre a jazida lhes escreverß a historia. VI O sonho da liberdade, o sonho da minha juventude, esta fonte da poesia e de acń§es generosas, converteu-se para mim n'um pesadello cansado. Digno era o povo de compaixŃo quando estava em ferros, e por bom feito se tinha entre as almas puras o affrontar-se o homem com a morte pela salvańŃo dos seus semelhantes: Porque, subindo ao patibulo ou expirando entre o estrondo das armas, a voz da consciencia assegurava ao que fenecia as lagrymas e as benńŃos dos vindouros, e que algum dia cyprestes se plantariam na terra que lhe bebesse o sangue. Mas isto era crer na virtude popular: era apenas um sonho, e a consciencia mentia. A corrupńŃo estava no amago das existencias. A arvore da vida social carcomiu-a a servidŃo. Cumpria que as tempestades politicas a derribassem; que os vermes da sociedade lhe roessem e desfizessem os troncos. E estes vermes sŃo as turmas de uma plebe invejosa, que incessantemente trabalham na grande obra da publica destruińŃo. Almas virtuosas, que nos paizes ainda escravos preparaes no silencio a queda dos tyrannos, nŃo apresseis o grande dia da emancipańŃo popular. Porque nesse mesmo momento sereis amaldicńoados pelos que salvastes, e cubertos de escarneos e de injurias, sabereis que a plebe lanńa em poucos mezes mais crimes na balanńa da eterna justińa do que os tyrannos ahi hŃo lanńado por seculos. VII Certo dia, o conde de Avranches entrava nos pańos de Affonso quinto, e os cortesŃos calumniavam sem pudor o bom duque de Coimbra, o salvador da republica. E o conde disse-lhes:--mentis, como desleaes; e aos melhores tres de v¾s prova-lo-hei ß lanńa e ß espada: innocente e justo ķ o mui nobre filho de meu senhor e rei, Dom JoŃo de excellente memoria. E ninguem ousou responder ao velho cavalleiro da Garrotķa; porque bem sabiam que a sua consciencia era pura e o seu montante pesado. D'ahi a alguns dias elle provou o dicto. Na batalha de Alfarrobeira, sobre um montŃo de cadaveres, cahiu defendendo a innocencia e bom nome do seu desventurado amigo. Onde estavam os do valente capitŃo da nova Diu, do rei soldado da patria, quando o vulgacho no meio da prańa publica, assentado no seu lodańal mandava derrocar as leis, as recordań§es e a gloria d'uma nańŃo inteira? Onde estavam os amigos de D. Pedro, quando a memoria do grande homem era amaldicńoada na condemnańŃo da sua obra; quando sobre as suas cinzas a dissoluńŃo cuspia escarneos; quando a liberdade morria ßs mŃos da licenńa popular? Quem se ergueu, seguro em boa consciencia, para lanńar a luva em defesa da justińa, e dizer ßs turbas:--sois desleaes e mentis? Ninguem! Todas as espadas ficaram embainhadas. Em Portugal jß nŃo ha um cavalleiro. Na batalha de Alfarrobeira morreu o conde de Avranches, e a sua espada foi sepultada com elle. VIII Quando os reis se assentavam em thronos de ferro; quando a lisonja os rodeiava de prestigios, e o terror estava assentado ßs portas dos seus palacios, era bello e generoso affrontar-se o homem com a tyrannia e menoscabar as dores dos supplicios. EntŃo era ousado o propheta, quando, nos pańos de Balthasar, lia nos muros, escriptas pela mŃo de Deus, palavras de condemnańŃo. Eram sublimes os martyres, quando perante os cesares davam testemunho do evangelho, e escarnecendo dos apparelhos de morte, se deitavam tranquillamente sobre a cruz da agonia. Era bello ouvir o poeta de Florenńa trovejar contra a prostituta Roma, denunciar ao mundo a corrupńŃo e os crimes dos pontifices do Tibre, e comer no desterro um pŃo eivado de lagrymas e esmolado por estranhos. Era bello, quando n¾s, assentados sobre os gelos do Norte, saudavamos do desterro a terra que nos deu o berńo, e vinhamos, fracos pelo numero, mas fortes de corańŃo, lanńar as nossas baionetas na balanńa da Providencia, onde a tyrannia tinha tambem lanńado as suas. Tudo isto era bello e generoso; porque entŃo os pequenos gemiam oppressos debaixo dos pķs dos grandes, e ao homem justo incumbia fazer resoar na terra a voz da eterna justińa, o grito da liberdade. Mas hoje que a plebe reina e, como ampla voragem, ameańa tragar a virtude, a liberdade, a justińa e todas as recordań§es sanctas do passado, para o homem de boa consciencia sĻ-lo-ha, tambem, o morrer. SĻ-lo-ha o bradar no meio das turbas, e derramar sobre ellas a condemnańŃo, que Deus confiou em todos os seculos aos labios do innocente e virtuoso. SĻ-lo-ha chegar aos tribunos populares, apontar-lhes para o cķu, e apresentar a cabeńa ao cutello dos lictores. IX Povo, hoje ķs tu quem impera, e absoluto ķ o teu poder; porque te dizes unica fonte delle. Toma, pois, em tuas mŃos a vara do magistrado, e assenta-te uma vez mais no teu throno, amassado com sangue e p¾. Vem assentar-te, e julga-nos, a n¾s, que tu maldizes, e aos tribunos, aos instigadores de tumultos, que cobres de amor e de benńŃos. Porque isto diz o Senhor Deus: se a plebe julgar com justińa, a plebe ainda serß salva. Desńa o terror da tua vinganńa sobre o corańŃo do que te houver offendido; volvam-se no p¾ as frontes onde tu achares estampado o ferrete do crime. Recorre as acń§es da nossa vida, recorre as obras passadas das vidas dos teus tribunos, e por preńo do perdŃo de Deus, julga-nos com justińa. Quando tu jazias na servidŃo, e os grilh§es, encarnando-se-te nos pķs e nos pulsos, te rońavam pelos ossos, peleijavamos n¾s por te salvar; derramavamos o nosso sangue por ti. Por ti viamos o irmŃo e o amigo morder o p¾ dos campos de batalha, e calavamos; sentiamo-nos descahir de fome, e nŃo soltavamos um queixume. Porque guardavamos os ais para o silencio das trevas. Soldados da patria, ousariamos acaso queixar-nos diante da luz do sol? E elles, que faziam, emquanto as nossas noites eram veladas debaixo de um cķu de ferro e de fogo, emquanto os nossos dias se consumiam entre o sibilar dos pelouros? Elles? Nos lupanares e tabernas de paizes extranhos, folgavam nos banquetes da embriaguez; reclinavam-se no leito da prostituińŃo. Elles? Cubriam-nos de insultos, chamavam loucura e vaidade ß nossa nobre ousadia, e riam-se do juramento que faziamos de morrer ou dar a liberdade a nossos irmŃos. Elles? Buscavam por todas as vias semeiar a zizania e os odios, damnar a nossa causa sancta, e fazer-nos perecer debaixo das ruinas de uma cidade illustre. Eis o que elles fizeram em proveito da patria. No meio do foro, diante de teu tribunal terrivel, descubra quem o ousar o peito, e mostre e conte as cicatrizes das feridas que recebeu pela salvańŃo da republica. Um s¾ delles as mostrarß; porque esse foi valente e amigo da virtude. Anjo de luz, porque te despenhaste no abysmo? A historia escrevia o teu nome na pagina das bĻnńŃos: tu mesmo o riscaste e o foste escrever na pagina das maldicń§es................... ....................................................................... ....................................................................... X Porķm, debalde invocariamos justińa perante o tribunal popular; porque o povo ķ abastado de injustińa e ingratidŃo. Os que estŃo cubertos de cicatrizes, os que foram longamente saciados de angustias por salvß-lo seriam condemnados, e os tribunos, os concitadores da anarchia, cujas obras unicas tem sido conduzir a patria ao abysmo da perdińŃo, seriam absolvidos, seriam abenńoados. Embora: a nossa consciencia estß tranquilla, e no grande dia ķ Deus quem a todos nos julgarß. Houve um propheta outrora em Israel, e chamava-se o Filho do Homem. E este propheta amava os humildes e os pobres, e reprehendia os poderosos. E condemnava os hypocritas da religiŃo, e por isso era abominado pelos grandes e pelos sacerdotes. Mas respeitava as leis, e ensinava a obediencia: mandava que se pagasse o tributo das duas drachmas do templo, e o tributo de Cesar. E affeiava aos populares os seus vicios e abominań§es; e por isso era tambem malquisto da gentalha. E, condemnado ß morte pelos poderosos, o povo, a quem tinha trazido a luz e a vida eterna, o povo, que elle tanto amava, cubria-o de opprobrios. E podendo salvß-lo do supplicio, antepunha-lhe um grande criminoso, e clamava aos algozes:--Pregae-o na cruz, e cßia o seu sangue sobre a nossa cabeńa e sobre a cabeńa de nossos filhos. E este propheta era o Messias, era o redemptor do genero humano, era o filho de Deus. Consolem-se, pois, aquelles que sobre os hombros tomaram o odio dos tyrannos por amor do povo, e a quem o povo paga com injurias e pragas. Como Jesu-Christo, os hypocritas e os oppressores das nań§es abominam-nos: como a Jesu-Christo, o vulgacho cobre-nos de affrontas, e pede para n¾s aos seus tribunos a condemnańŃo e o supplicio. E que nos cumpre fazer para seguirmos em tudo o exemplo do Justo assassinado, do Deus que nos deixou na terra o consolo e a esperanńa? Pedir morrendo ao Eterno Pae o perdŃo de nossos perseguidores e, como o divino Mestre, lanńar ß conta da ignorancia as culpas de corań§es corruptos. Imitando o Salvador na cruz, seja um pensamento de benńŃo o nosso pensamento extremo; porque o derradeiro suspiro do christŃo deve ser um murmurio de affecto grande para os que o amaram, mas ainda maior para os que o odeiaram e perseguiram. XI E ainda uma vez, filhos da perdińŃo, ainda uma vez vos falarei em nome do Senhor nosso Deus. Que foi o que fizestes assassinando as esperanńas da salvańŃo publica, derribando a sancta tradińŃo da patria? Atķ no crime fostes apoucados. Porque nŃo se ergue um de v¾s, perverso, mas sublime, como o archanjo das trevas, e diz:--fui eu o concitador do motim popular, fui eu o primeiro que clamei ½quebrem-se as taboas da lei?╗ Louvaes a sedińŃo, chamaes-lhe obra illustre, e nenhum de v¾s acceita a gloria de ser o bem-feitor do seu paiz? Quando combatiamos pela liberdade gravavamos os proprios nomes em nossas armas, e o inimigo que ousasse vĻ-las de perto, ahi os lerĒa inteiros. NŃo combatiamos nas trevas; e os nossos capitŃes diziam ao mundo:--Vede:--e mostravam a face diante da luz do sol. Hypocritas, que enganaes o povo, credes porventura que tambem enganareis o Senhor e que, semelhantes ß prostituta que engeita o fructo de seu crime, engeitareis diante delle a obra da vossa iniquidade? NŃo! Lß se levantarŃo os nossos e os vossos filhos, para quem preparaes berńo de miseria, vida de amargura e morte de desesperańŃo. E elles testemunharŃo contra v¾s na presenńa do Altissimo: e haverß ahi choro e ranger de dentes. XII Ambiciosos, que desvairaes o povo, o Senhor leu no fundo dos vossos corań§es e revelou-me o que ahi estß escripto! A cubińa do mando e do ouro ķ o vosso amor de patria; a vossa ancia de liberdade a sĻde de tyrannia. Merecedores de jazer perpetuamente na escuridade, e ermos de virtude e de sabedoria, nŃo podendo fulgir com luz celestial, tentastes romper as trevas de vossos caminhos com o clarŃo torvo do inferno. E a serpente vos emprestou a sua vŃ sciencia, as suas corruptoras palavras, e alumiados por fulgor de morte, alguns vos creram illustrados pela luz que mana do throno de Deus. Mas os que foram enganados vos amaldicńoarŃo no dia em que patenteardes a hediondez das vossas intenń§es, e o Pae de misericordia lhes perdoarß um erro de intelligencia. Eis o que diz o Senhor:--V¾s sois os assassinos da republica, mas debaixo das suas ruinas ficarŃo tambem esmagadas as vossas frontes, e os vossos membros quebrantados e sumidos. Tambem v¾s tereis quem maldizer na hora do passamento: os dias futuros justificarŃo o Verbo de Deus. XIII Os soldados que arrastavam o Justo ao Golgotha, quando o povo de Jerusalķm pedia o sangue innocente, poseram sobre a cabeńa do Filho do Homem a inscripńŃo--Este ķ Jesus rei dos Judeus. Porque o povo nŃo sabe commetter um crime, sem, afora o crime, blasphemar e escarnecer da virtude. Assim os tribunos da plebe, depois de rasgarem o pacto social, disseram por irrisŃo:--Reuna-se o conselho dos anciŃos, dos sabios e dos prudentes, e fańam-se leis para o regimento da republica. Como se nŃo houvesse ahi lei; como se os eleitos do povo nŃo tivessem sido expulsos pela relķ e separados uns dos outros. EntŃo os malfeitores rodeiaram a urna onde d'antes os cidadŃos podiam livres lanńar o voto da sua consciencia. E todos os bons se afastaram dessa urna; porque a mŃo do crime a tinha collocado no templo, e ß roda della s¾mente sussurravam ameańas de morte. E por isso os nomes que d'alli sairam foram nomes opprobriosos ou desconhecidos, e como extranhos no meio de n¾s. Um erro trouxe outro erro, e o punhal passou da prańa para o templo, e houve ahi mysterios das trevas, mysterios de perversidade. E homens imberbes, ignorantes e ignobeis ir-se-hŃo assentar no conselho dos legisladores, no logar destinado para os velhos, para os sabios e para os homens virtuosos. Mas a plebe ahi estarß tambķm, com seu gesto hediondo, como um espectro de terror, como a imagem do supplicio nos ultimos dias de um criminoso depois da sua condemnańŃo. Ella ahi estarß; e o seu grito serß mais alto que o das consciencias, se ķ que podem consciencias falar no conselho de homens corruptos. Ella ahi estarß; e as leis serŃo feitas por ella; porque errados vŃo os que pensam que o povo larga jßmais o poder que a imprudencia ou a maldade lhe depositaram nas mŃos. Homens a quem a dissoluńŃo social vestiu a toga de senadores, para debaixo da campa levareis nas frontes duplicado o ferrete da infamia e do aviltamento. Nellas vo-lo escreveu uma eleińŃo fraudulenta, em que votou o punhal do assassinio e o obulo da embriaguez, preńo porque a plebe vendeu aos tribunos o exercicio de um direito que nŃo era seu e que ella tinha roubado por noites de sedińŃo. E nellas vo-lo estamparß tambem o grito insultuoso do vulgacho que vos ergueu do p¾ para sanctificardes a sua rebelliŃo, para serdes cumplices nos seus decretos de morte, e para depois vos quebrar em pedańos, como um vaso fragil quando se torna inutil. XIV De fel e de trabalho me cercou o Senhor. Esta ķ uma das suas vis§es, que elle me enviou em espirito. N'um campo extensissimo estava eu, e cerrava-se-me o corańŃo, como traspassado do frio do terror. Era ao cahir das trevas. Havia por ahi sepulchros, mas sepulchros semelhantes a dorsos de montanhas: havia por ahi cyprestes, mas cyprestes seculares como o universo, e cujos cimos avultavam como a espessura de um bosque primitivo. O sitio em que eu estava era o cemiterio das nań§es e dos seculos. Sobre muitos desses tumulos espantosos jß tinha cahido a campa; jß o musgo e as sarńas lhes dissimulavam as juncturas, e o estellio e o ßspide passavam por cima, rangendo como as folhas seccas. Outros havia lß que ainda estavam abertos, e tinham as lousas erguidas sobre uma das bordas, juncto da qual um anjo derramava lagrymas. Jaziam nestes muitos seculos de nań§es modernas. Algumas sepulturas ahi estavam inteiramente descubertas e ainda alvejantes, como collocadas de pouco em meio do campo sancto: nem lousas estavam ao pķ dellas. Mas ao longe ouvia-se como o gemido de eixos que vergavam e de homens que altercavam e que pareciam trabalhar em uma obra de Deus. E este gemido era semelhante ao do oceano revolto, e o borborinho soava como o clamor de milh§es de vozes. Na frente de cada um dos jazigos estava escripta a historia do povo ou do seculo que lß repousava ou que lß devia cahir. E algumas destas inscripń§es eram antigas e meio gastadas, e de roda tinham esculpidos symbolos de gentilidade. Apenas sobre uma dellas estava gravado o nome de Jehovah; mas fechavam a campa sete sellos, cuja lenda era:--atķ a consummańŃo dos seculos. E mais alguns monumentos ahi se erguiam, jß cubertos com a lousa final: e em cima delles estava plantada a cruz, e a inscripńŃo acabada. Juncto destes ajoelhei e derramei lagrymas: eram sepulchros das rańas que educara o evangelho: dormiam lß irmŃos meus. E os reinos e as republicas da idade media eram os que nesse logar estavam sepultados: ßquelles tinham-nos anniquilado loucuras e tyranias de reis; a estas a licenńa e a corrupńŃo popular. XV Lß estava tambem o monumento da nossa patria. E nelle repousavam os cadaveres de muitos seculos. E a historia de cada um destes lia-se na face da pedra, escripta pela mŃo do archanjo que velava o sepulchro e que forcejava por suster a campa, que jß pendia, como para os encubrir ß luz. E esta era a lenda sepulchral: Deus escolheu para si a nańŃo do extremo occidente, e a benńŃo do Altissimo desceu sobre o berńo della. E passou glorioso o primeiro seculo da sua existĻncia, rico de combates e victorias: elle herdou ao seguinte a cruz plantada nos coruchķus dos alcor§es, e uma rańa valente e virtuosa, que defendesse a terra conquistada. ½De incremento e prosperidade foi o segundo seculo; e posto que ahi houvesse dias de turbańŃo, o povo cresceu; porque o Senhor o abenńoava. E na terceira era soou em paiz extranho uma voz que falava de servidŃo. O povo portuguĻs lanńou mŃo da espada e da lanńa, e em vinte combates provou a sua independencia, e que o Deus dos exercitos fora o Deus de seus paes. E na quarta era chegou a idade viril da republica: a sua estatura assemelhava-se ß de um gigante, os seus brańos aos de um athleta. E na quinta ella estendeu a mŃo para o oriente, e aferrando centenares de povos, metteu-os debaixo dos pķs. EntŃo commetteram-se crimes, a corrupńŃo estendeu-se, e a face do Senhor turbou-se. Aqui na inscripńŃo seguia apenas um nome de poeta, o depois uma longa beta negra. Esta significava que de infamia e servidŃo fora a sexta idade da republica. E a lenda tumular proseguia: Surgiu um dia o povo, e quebrando os grilh§es que tyrannos estranhos lhe haviam lanńado, ańacalou de novo a sua espada esquecida, e combateu quasi um seculo. E recobrou a independencia, senŃo a liberdade. D'aqui ßvante, falava o letreiro de existencias e de largos annos; mas de existencias sem gloria, e de annos semelhantes apenas ß decrepitude de homem que foi robusto. E havia ahi guerras e victorias e leis: mas as victorias coroavam o general e nŃo o soldado, porque o soldado era servo: as leis eram talvez justas, mas desciam do throno dos reis sem a sancńŃo popular, e o povo dobrava o joelho. E isto era impio. O servo que acceita sĻ-lo ķ s¾ meio-christŃo. Do evangelho deriva a liberdade, como condińŃo impreterivel do homem, responsavel por seus actos perante Deus. A liberdade p¾de rasgar-se do evangelho; nŃo separar-se delle. Depois lia-se o nome de um rei; e este nome era grande e honrado, como os dos antigos reis portugueses, e a sua historia estava escripta no monumento da eternidade. Ap¾s esta, seguiam-se algumas palavras de esperanńa. E d'alli por diante a pedra estava em branco; porque a oitava era da republica ainda nŃo tinha adormecido juncto do umbral do passado. XVI E eu meditava em silencio, e o meditar era amargo para o meu corańŃo. Subito senti um ruido remoto, semelhante ao ruido de bosque sacudido pelo vento e granizo. E divisei por entre os cyprestes um vulto, que se approximava da clareira onde estava a sepultura, e as suas passadas, posto que apressadas, soavam como se fossem de pķs de bronze. E chegou. Fitando os olhos no vulto, descortinei uma figura humana de desmesurada altura. A sua cabeńa tinha muitas faces e muitos olhos: do tronco saĒa-lhe uma grande multidŃo de brańos. E com todas as suas linguas proferia palavras immundas e blasphemas, e maldizia a religiŃo e a justińa. E vinha salpicado de sangue. E parou diante do monumento. Ficou immovel por algum tempo; depois, como excitado por um accesso de raiva infernal, procurava aluir o sepulchro. Mas a immutabilidade do passado era a immutabilidade delle. Tinha-o posto alli a mŃo de Deus. EntŃo o vulto comeńou a raspar a inscripńŃo, mas as letras cada vez mais se avivavam. Lß do intimo soou um longo gemido. E o vulto soltou uma praga tremenda, e transpoz a borda do sepulchro; e estava em pķ dentro delle. E comeńou a afundar-se nas trevas; e estendendo os brańos, os brańos lhe ficavam hirtos. E nos olhos, que atķ alli chammejavam furor, jß fluctuavam lagrymas de homem que morre. E descia, e descia! E quando a fronte lhe topetava com a borda, a campa escapou das mŃos do anjo, que trabalhava por sustĻ-la, e cahiu dando um som profundo. E a face do sepulchro, abaixo da inscripńŃo, tingiu-se de negro atķ o rez da terra. E as ultimas palavras, palavras de esperanńa, converteram-se em outras tŃo horrĒveis, que a minha lingua nŃo ousa proferi-las. E a visŃo desappareceu. XVII Reprobo serĒa aquelle que, vendendo seu pae por preńo de opprobrio, o entregasse ß servidŃo de extranhos. Reprobo, mil vezes rķprobo, serĒa tal homem; porque este crime f¶ra mil vezes mais negro do que o parricidio. Quem, por noite tempestuosa, o acolheria debaixo de tecto hospitaleiro? Quem, vendo-o mirrado de sĻde, lhe offereceria um pucaro de agua? Ninguem: porque o seu hßlito inficionaria o ar que respirasse: os seus labios empestariam o vaso por onde bebesse. No seu leito de morte, que sacerdote ousaria dizer-lhe:--Eu te absolvo em nome do Deus que perdoa? Nenhum: e o que o dissesse mentir-lhe-hia; porque nos thesouros da piedade divina nŃo ha resgate para semelhante divida. Mas que ķ este crime, comparado ao daquelle que vende a patria? Esse, nŃo vende o progenitor s¾mente: vende a familia, os ossos de av¾s, a fonte do baptismo, a cruz do cemiterio; vende as saudades, os affectos e as esperanńas de todos os seus irmŃos. E todavia, nos conciliabulos dos tribunos proclama-se que no anniquilamento estß o segredo da nossa futura grandeza. Rebeldes de sete seculos, seremos applaudidos e respeitados no mundo, quando, de joelhos perante os nossos orgulhosos senhores, fizermos penitencia do glorioso delicto de mais de vinte gerań§es de antepassados! SŃo homens destes que as turbas insensatas victoreiam! Cegou Deus a intelligencia do povo, porque o quer perder; porque o afastou de sob as azas da sua Providencia amorosa. E por isso a visŃo do sepulchro me foi mandada, e vi cerrar-se a campa da eternidade em cima da derradeira epocha da monarchia de Valdevez, de Aljubarrota, e de Montes-Claros. XVIII Povo desvairado, doe-te de ti proprio. Sabes, acaso, a quem os homens das trevas pretendem submetter-te e a teus filhos e netos? Dir-to-hei, oh povo, para que nos futuros momentos de afflicńŃo nŃo digas ao Eterno:--Senhor, salva-me, porque eu nŃo soube o que fiz! Odio de sete seculos te separa desses futuros senhores: vinte batalhas, em que os teus cavalleiros venceram os seus, jazem nŃo vingadas nas suas recordań§es. Houve tempo em que elles poseram o pķ no collo de nossos maiores, e a vida destes foi durante esse periodo tecida de amargura e de infamia. EntŃo, alķm do oceano, nos campos de tua gloria, sentia-se um ruido incessante. Eram as tuas fortalezas que desabavam; eram as tuas naus que se affundiam; era o teu poder que expirava. Nas veigas, o arado ficava esquecido no meio do sulco, e no prado e no monte os novilhos mugiam debalde pelo seu guardador: Porque os mancebos eram levados a combater em paizes remotos, para sustentar a tyrannia de seus senhores, e, novo genero de ludibrio, tambem oppressos, quinhoavam as maldicń§es lanńadas sobre os oppressores da sua patria. ┴ viuva e ao orphŃo era arrebatado o obolo do tributo, e este ia accumular-se nos cofres dos extranhos e servir, depois, ao luxo e ß devassidŃo. O soldado hespanhol estava em pķ, encostado ß lanńa, juncto ßs ameias de nossos castellos, e o escravo portuguĻs que passava ao sopķ dos muros pregava os olhos no chŃo, e a dor acabrunhava-lhe o espirito. As cidades foram saqueiadas, os patibulos ergueram-se, os homens de valor e virtude derramaram-se pela face da terra. Mas os portugueses lembraram-se um dia de que o eram, e levantando os brańos para o cķu, com os grilh§es que lh'os roxeiavam esmagaram os craneos dos oppressores estrangeiros. E breve os campos da Hespanha talados, as suas aldeias arrasadas, os seus valentes postos ß espada, pagaram injurias de sessenta annos. E na terra adubada com cinzas e sangue se lanńaram sementes de malevolencia perpetua entre as duas nań§es. Ai de n¾s, ai da patria, se o leŃo da Iberia podesse rugir solto pelas nossas montanhas, e vir acoutar-se debaixo de nossos tectos! E isto ķ o que pretendem os destruidores da liberdade, os suscitadores da anarchia. Sa·de pois o povo os tribunos e obedeńa-lhes, emquanto elles nŃo consumam a sua abominavel obra; emquanto o nŃo entregam, como um rebanho de ovelhas, nas mŃos dos seus futuros algozes. N¾s, os que nŃo nascemos para a servidŃo, ergueremos as campas de nossos paes, e ricos com estes restos queridos, iremos depositß-los debaixo do cypreste do desterro. NŃo, o hespanhol orgulhoso nŃo calcarß as cinzas dos nossos valentes, embora possua esta terra corrupta e serva; embora venha riscar da face della todos os monumentos dos seculos da nossa gloria. XIX Tal ķ, oh povo, o futuro que para ti guardam os teus tribunos no thesouro de maldade de que sŃo ricos os seus corań§es. Tu gemerßs captivo e nŃo ousarßs queixar-te; e as orań§es e as lagrymas das tuas noites de tribulańŃo e vigilia nŃo romperŃo os cķus, tornados para ti de bronze. Eis porque os filhos da perdińŃo suscitaram no teu seio o grito da guerra civil: foi para que a espada da fratricidio devorasse os teus fortes, e se fartasse e embriagasse com o sangue delles. Para que, inerme e enfraquecido, estendesses os brańos ßs cadeias e curvasses o joelho ante aquelles de quem receberam o preńo da tua liberdade. Acaso poderŃo negß-lo?--NŃo: porque o mysterio da iniquidade foi revelado, e a voz que o patenteiou era bem alta, e resoava desde o Tejo atķ as alturas dos Pyrenķus. CrĻ, agora, plebe illudida, crĻ que os homens que te vendem a extranhos, melhor te venderiam a um tyranno domestico. CrĻ que se homens taes fossem a unica barreira alevantada entre ti e aquelle que n¾s expulsßmos e tu maldisseste em teus hymnos populares, semelhante dique fora facilmente transposto pela torrente das vinganńas do despotismo. Que um pouco de ouro se espalhasse, e as comportas que rebatem o oceano de sua c¾lera seriam por elles abertas de par em par, para te mergulharem em um pķlago de agonias. Tu os verias atķ combater por soldar o sceptro de ferro que quebrßmos, se nessas almas mesquinhas houvesse valor para escutar o silvo do pelouro, para ver o lampejar da espada erguida. Ouvi-los-hia protestar que as suas mŃos estavam puras do sangue vertido nas luctas da liberdade, nas luctas de um contra dez; que entre si e esse cantinho de Portugal revolvido durante um anno pelas bombas e granadas, varrido pela metralha, fustigado pelo granizo das ballas, visitado longamente pela fome e pela peste, tinham mantido com esmero a moderada distancia que medem as solid§es do oceano. E falariam verdade; e serĒa porventura o unico dia da sua vida hypocrita em que assim o fizessem. XX N'uma visŃo ajuncta Deus o passado e o futuro; porque para elle nŃo existem nem espańo nem tempo. VisŃo, pois, do Senhor foi a que se me representou. Parecia-me ver uma grande cidade: rodeiavam-na antigos muros e baluartes, cruzavam-se ruas estreitas e tortuosas dentro do seu ambito, semelhantes ß rede do pescador, e, por entre uma selva de edificios humildes, surgiam, aqui e acolß, torres ponteagudas subtilmente lavradas, e templos alumiados por frestas esguias ornadas de vidros corados, que reflectiam o sol occidental em espectros de luz variadissima. Grande numero de cavalleiros corriam pelas prańas, e iam armados de elmos e saios de malha e grevas de ańo, que scintillavam, e nos seus olhos e faces assomavam espĒritos valorosos. E os campos circumstantes estavam cultivados, e a cruz plantada em todos os termos dos caminhos e em todas as encruzilhadas. E conhecia-se nos rostos dos homens que passavam pela cidade e pelos campos que em seus corań§es havia virtude e contentamento. E proxima desta povoańŃo estava outra muito mais aprazivel no primeiro aspecto: as suas ruas eram espańosas: aformoseiavam-na os jardins e hortos, e surgiam no meio della nobres e opulentos edificios. Viam-se ainda ahi alguns templos, mas arruinados e solitarios, e como que monumentos da queda de toda a crenńa. E os campos que se dilatavam ao redor della estavam ßridos e ermos. Nem uma s¾ cruz lß se descobria. E os homens passavam silenciosos uns por outros. Das almas, turbadas por paix§es tempestuosas e por crimes, subiam-lhes ßs frontes annuviadas, em ondas de sombras, os escuros pensamentos. E estas duas cidades eram a imagem dos tempos que foram e dos tempos que hŃo de ser. XXI E na cidade do passado os coruchķus e eirados dos seus apinhados edificios eram para os meus olhos, que divisavam tudo quanto se passava no interior dos aposentos, como o crystal translucidos. Em uma das quadras de um desses edificios estava um velho, e derredor delle suas filhas, que o cercavam de amor. E ao canto via-se um arnez, por muitas partes falsado e roto, e um elmo abolado e com as enlańaduras quebradas. S¾ ahi faltava uma espada. E quando eu considerava este velho guerreiro rodeiado dos seus e as alfaias e os adornos desta habitańŃo tranquilla; quando bebia o halito de paz que tudo ahi espirava, um mancebo armado entrou na sala: na cincta trazia mettido um estoque largo e curto, espada do homem valente, cujo punho em cruz lhe assentava sobre o corańŃo. E dos labios das donzellas partiu um grito: este grito dizia que o mancebo era seu irmŃo. Abrańando-o, os olhos se lhes arrasavam de lagrymas. O velho ergueu a cabeńa e olhou com aspecto severo para o soldado, que se aproximou de seu pae, como se estivera perante o seu juiz. Fronteiro d'Africa!--disse o anciŃo--posso acaso abenńoar-te como filho, ou cubriste de infamia o meu nome e a minha espada? Quaes foram teus feitos no servińo da patria, da religiŃo e do rei? E o mońo, calado, desenlańou a courańa e, afastando as roupas que lhe cubriam o peito, mostrou as cicatrizes de golpes da lanńa do arabe e do alfange mourisco. E o velho, alevantando-se tremulo, contava-as, e as lagrymas tambķm lhe banhavam o rosto, e depois apertou o filho entre os brańos por largo tempo. D'ahi a pouco, armas ainda nŃo ferrugentas estavam encostadas ßs do anciŃo no angulo da sala, e af¾ra ellas, via-se lß uma espada. E esta familia era feliz; porque havia ahi virtude, honra e amor filial e fraterno. Mas esta parte da visŃo passou, como um sonho formoso; como os homens virtuosos dessas epochas, sobre os quaes dorme o silencio dos tempos que jß nŃo sŃo. XXII E o espirito de Deus collocou-me sobre a moderna cidade. E aos meus olhos estavam patentes os segredos domesticos e a vida intima da sociedade, e observando-os, o corańŃo me desfallecia ß vista de tantas abominań§es. Via a corrupńŃo em quasi todas as familias; crimes em grande numero dellas; temor de Deus quasi em nenhuma. E clamei ao Senhor na minha afflicńŃo, e disse-lhe:--Oh meu Deus, porque abandonaste este povo? E dos cķus me foi respondido:--O povo ķ que abandonou os caminhos da salvańŃo e se afastou de sob as azas da piedade divina. O perjurio foi sanctificado pelos que se chamaram eleitos do povo, e este os victoriava quando elles assim quebravam o mais forte vinculo social, e preparavam a quķda da republica. A religiŃo avĒta apresentou-se ßs portas do senado, pedindo a esses homens soberbos a deixassem subsistir neste paiz desgrańado, para enxugar lagrymas de desditosos e ser a ultima esperanńa daquelles que perderam todas as outras. Porķm, como prostituta vil, a religiŃo de nossos paes foi coberta de motejos, e, entre risadas, lanńada f¾ra do sanctuario das leis. E houve ahi quem dissesse:--Que temos n¾s com Deus?--E as turbas approvaram o dicto. E o Dominador dos orbes respondeu:--Nada terei comvosco! E o universo tremeu a estas palavras, que logo foram escriptas no livro da morte. Ai daquelles que romperam o pacto do Creador com a creatura: ai daquelles por cuja b¶ca falou o espirito das trevas. A blasphemia cahirß sobre a cabeńa dos blasphemadores; e o sepulchro lhes dirß onde ķ a patria dos que motejam de Deus! E esta voz de cima acabrunhou-me o corańŃo; porque nŃo sabia como desculpasse perante a Providencia os peccados do povo. O anßthema estava lanńado, e a consciencia me dizia que o cķu tinha sido justo: nem ousei implorar outra vez a misericordia divina. EntŃo olhei para a cidade que me ficava debaixo dos pķs, onde sussurrava um ruido de vida, mas ruido semelhante ao de mar procelloso e ameańador de naufragios. E s¾ descobri rixas e bandos civis, e assassinios atraińoados e dissoluń§es, e o roubo e a embriaguez. O filho passava por juncto do feretro materno, que homens pagos levavam com escarneos ao campo do esquecimento, e perguntava o nome desse cadaver. Juncto ao leito de pae moribundo, as filhas entregavam-se ß prostituińŃo, e ao velho, morrendo, era ultimo sentimento o do opprobrio. Longa era esta scena de crimes, e parecia-me que fechava os olhos para nŃo ver tŃo horrivel espectaculo. Neste momento a visŃo desvaneceu-se, e achei-me banhado em suor frio e repassado de amargura. E por impossivel tinha que tŃo negro futuro houvesse nunca de verificar-se: mas subito ouvi muitas vozes que diziam:--Guerra ß religiŃo do Christo! EntŃo cri na visŃo que o Senhor me enviara, e apagou-se-me na alma o ultimo clarŃo de esperanńa. THEATRO-MORAL-CENSURA *1841* Quando, vencidas difficuldades que pareciam insuperaveis, o theatro parece renascer entre n¾s na sua parte litteraria; quando, atķ, se affiguram grandes probabilidades de vermos alevantar um edifĒcio consagrado ß arte dramatica, onde este genero de litteratura possa ficar a salvo daquella especie de ergastulo hediondo e triste a que poseram por irrisŃo a alcunha do Theatro Normal; GeriŃo, cuja ossada se esphacela debaixo da sua triplice face de taberna, de emunctorio das ruas, e de prostibulo; quando todos os homens de letras e todos os que as amam forcejam para que nesta formosa arte vamos algum dia emparelhar com as outras nań§es, nenhuma questŃo que venha a suscitar-se acerca do assumpto serß insignificante ou indifferente, porque nella interessam a vida intellectual do paiz, a sua civilisańŃo e o seu bom nome litterario. Mas se essa questŃo, alķm de importar ß arte dramatica, envolver o interesse da moral publica, considerß-la e dar opiniŃo sobre ella ķ obrigańŃo daquelles a quem Deus deu intelligencia para a comprehender e razŃo para a avaliar. Ora, enquanto se forceja para elevar e restaurar litteraria e atķ materialmente o theatro nacional, vemos o drama decahir, prostituir-se moralmente cada vez mais. Cresce todos os dias a indignańŃo da gente honrada contra os espectaculos que sobem ß scena, orgias da arte, se arte se pode chamar a quadros onde ha, nŃo o sublime de paix§es mais ou menos perversas, o sublime do horrĒvel, mas o torpe, o asqueroso dos vicios mais vis. Cumpre que a imprensa seja orgam desta indignańŃo; que busque a origem e o remedio do mal. A sua mais alta missŃo ķ contribuir para que a sociedade se melhore e civilise, e o theatro pode ser um poderoso instrumento de civilisańŃo. Mas como desempenharß a imprensa este grave dever? Como se opporß a que o theatro seja uma eschola de corrupńŃo, devendo ser um logar de puro e innocente deleite? Como farß rasgar por uma vez esses cartazes, que, affixados nos logares p·blicos, s¾ trazem ß memoria, pelos titulos dos dramas que annunciam, as taboletas dos alcouces romanos desenterrados em Pompeia? Fulminarß os desgrańados histri§es, machinas de aleijar as verdadeiras obras d'arte, e de peiorar semsaborias; tĒteres de carne e osso, incapazes de comprehenderem a sua nobre arte, e de resistirem ao estragado gosto de quem os dirige, e nŃo sei se diga, ao mais estragado da plateia? NŃo: deixae-os; porque sŃo existencias inertes, impalpaveis para a imprensa, trańa do drama, da linguagem, do senso commum; pagos para roer as concepń§es da intelligencia sobre quatro taboas velhas, ao passo que o caruncho os vai imitando na substancia destas. Deixae-os, pelo amor de Deus! Punirß com o ańoute do epigramma os empresarios e directores dos theatros? Ainda menos. Um empresario ķ um individuo inexplicavel e inclassificavel: ķ uma abstracńŃo de todas as idķas, de todas as crenńas, de todos os affectos: a sua ķthica ķ o _livro de razŃo_, o seu evangelho o da _caixa_; o seu culto o da _cruz_, mas da cruz dos cruzados novos; o seu destino, alķm do sepulchro, o _limbo_. NŃo acrediteis na possibilidade de os constranger a despregarem os olhos destes tres objectos, que, junctos aos farrapos dos bastidores e ao oleo fķtido das lanternas do proscenio, constituem o seu universo. Deixae-os tambem; que para elles, que nŃo querem, nem sabem, nem podem ler, a imprensa ķ como se nŃo existisse, e as suas reprehens§es mais amargas, as suas ironias mais pungentes nŃo os distrahirŃo um momento da contemplańŃo beatifica das moedas que rende em cada noite um estabelecimento industrial de prostituińŃo para familias honestas. Seja quem for o empresario de qualquer theatro, nŃo se abalance a imprensa ao louco empenho de convertĻ-lo. Que pessoa tentou jamais educar e instruir um surdo-mudo-cego de nascimento? Contra quem pois alevantarß a imprensa a sua voz solemne? Contra as auctoridades propostas aos espectaculos dramaticos? NŃo; porque posto que revestidas de um poder arbitrario, acima dellas ha tambem o arbitrio, que lhes inutilisa a energia moral, quando tentam usar della a bem da decencia publica; e porque, impossibilitadas de julgar por si essa alluviŃo de asquerosidades que diariamente sobem ß scena, e alķm disso obrigadas por lei a ouvir sobre cada uma dellas o parecer de tres censores, que podem julgar bem ou mal, nŃo se lhes ha de lanńar em conta uma culpa que nŃo ķ sua. Nenhum homem de alguma gravidade se quizera submetter a passar dias, mezes e annos inteiros quasi asphyxiado n'uma atmosphera de sandices, pelos mais avultados proveitos do mundo, e muito menos gratuitamente, como servem os inspectores do theatro. Quem resta por tanto para accusar? Os censores?--Parece-me ouvir a muitos daquelles que acham mais commodo invectivar individuos do que avaliar instituiń§es, dizerem que sim. Eu todavia respondo:--NŃo; mil vezes nŃo! Brevemente se verŃo os fundamentos da minha negativa. NŃo sendo, porķm, culpados nem os histri§es, nem os bufarinheiros de rosalgar moral chamados empresarios, nem os inspectores, nem os censores, onde estarß a causa de um mal de que todos se queixam, e a que ninguem busca o remedio nos thesouros inexgotaveis da reflexŃo e do raciocinio? Essa causa estß n'uma instituińŃo anachronica, absurda, insensata, attentatoria da liberdade intellectual do engenho humano, e alķm disso, perfeitissimamente inutil. O mal nŃo vem dos homens: vem das cousas: vem de uma parvoice legal: vem da _censura prķvia_. O remedio s¾ lh'o p¾de dar um parlamento que queira pensar cinco minutos nesta materia. ┴ luz politica, a censura prķvia applicada ao theatro ķ um attentado tŃo flagrante como applicada ß imprensa. Todas as constituiń§es existentes e possiveis consagram a liberdade do pensamento e a livre communicańŃo das idķas. O theatro ķ, como a imprensa, como as artes plßsticas, um meio de communicańŃo. Uma representańŃo scenica ķ um livro impresso em tantos exemplares quantos sŃo os espectadores, com a unica differenńa de que estes exemplares se apagam acabada a sua leitura. O principio da liberdade do espirito ķ tanto ou mais sancto que o da liberdade da terra: nŃo soffre excepń§es, porque, se as soffresse, desceria da categoria de principio para a classe das regras transitorias da vida civil. Onde quer que appareńa a censura, onde quer que se aninhe esta irmŃ gķmea da inquisińŃo, ha uma quebra nos foros da independencia do homem, ha uma insolencia do passado contra a dignidade social da gerańŃo presente. Seja para o que for, a censura ķ um impossivel politico. Contra o impossivel nŃo ha raz§es de utilidade. As mais evidentes considerań§es de conveniencia deveriam cahir diante da immutabilidade dos principios; porque nŃo ha meio termo entre o renegar do progresso humano, e o respeitar sempre e em toda a parte os elementos fundamentaes das sociedades modernas. Mas existem, porventura, taes conveniencias? A censura do theatro--dizem os defensores dessa c¾pula sacrilega e bestial de uma instituińŃo cadaver com as instituiń§es vivas e actuaes--ķ uma necessidade: melhor ķ prevenir que castigar: o castigo dos que abusarem deste modo de publicańŃo nŃo impedirß que elle tenha jß produzido a corrupńŃo: sem censura p¾de, atķ, attentar-se contra a seguranńa do Estado: no anno de tal em Paris, em Bruxellas, na Haya, emfim nŃo sei onde, um drama recheiado de maximas subversivas produziu tal assuada, tal motim, tal revolta.--Eis as excellentes raz§es, pouco mais ou menos, com que se defende a existencia de um absurdo. Estes argumentos sŃo a apologia, nŃo da censura do theatro, mas de toda a censura; da censura do drama, como do livro ou do jornal; e ainda mais destes; porque o exemplar da publicańŃo scenica deixa de existir apenas cahe o panno; mas do livro ou do jornal impressos, embora sequestreis os volumes ou os numeros nŃo vendidos, os exemplares derramados do primeiro golpe lß ficam no dominio publico; milhares de individuos os lerŃo, e com tanto maior avidez quanto mais severa houver sido contra elles a condemnańŃo dos tribunaes. A desculpa da prevenńŃo nos attentados legaes contra os principios vai mais longe: vai atķ a inquisińŃo, se quizermos ser logicos. Um homem ķ conhecido por suas opini§es anti-religiosas: este homem ķ imprudente, voluntarioso, ousado: nada mais facil, mais provavel que o vermo-lo cahir na culpa de nŃo respeitar a crenńa do Estado, de a insultar publicamente. ┴ cautella, creae-me uma inquisińŃosinha illustrada; uma inquisińŃo progressiva, arejada, sem polķs, nem potros, mas preventiva e paternal, onde o incredulo, entre serm§es, pŃo negro arrańoado e agua benta, seja inhibido de commetter um crime, previsto na lei politica do mesmo modo que o abuso da liberdade de escrever e de falar. Apostolos da censura prķvia, em nome da logica, dae-me a sancta inquisińŃo. Deixemos, todavia, as duas bagatellas dos principios e da logica. Venhamos ao campo da experiencia. A censura ahi estß. Que tem ella feito, nŃo digo jß entre n¾s, que palpamos todos os dias os bellos effeitos da instituińŃo; mas na Franńa, na Belgica, na Hespanha? Onde tem impedido a prevaricańŃo do theatro? Respondei-me. ╔ um dos argumentos mais triviaes e mais lastimosos que se fazem a favor desta monstruosidade inutilissima o exemplo da Franńa. D'antes, em Portugal, para fazer uma lei, o que se indagava era se ella convinha ao paiz. Ha annos a esta parte entendemos que era mais judicioso ver se convinha aos outros povos. Esta abnegańŃo completa da intelligencia nacional poderß conduzir-nos ao cķu pelo caminho da humildade; mas tem-nos arrastado cß na terra a muita vergonha legal. A verdade ķ que em Franńa os homens independentes e illustrados clamam tambem contra a censura prķvia do theatro, porque ķ attentatoria e inutil. Quereis a prova da sua inutilidade no vosso paiz modelo?--Ahi a tendes ß mŃo. D'onde nos vieram as _Torres de Nesle_, as _Proesas de Richelieu_, e todas as mais prostituiń§es litterarias da nossa pocilga dramatica, chamada theatro normal? Vieram-nos dos repertorios dos theatros de Paris: atravessaram pela censura de Mr. Taylor ou dos seus delegados, como em Portugal passaram sans e escorreitas pela censura do Conservatorio. Lß, como cß, a censura ķ um phantasma de que todos se riem, e que s¾ serve para descarregar os hombros dos empresarios, auctores, e traductores dramaticos da responsabilidade moral e legal dos seus envenenamentos litterarios. ╔ realmente uma das pequices mais desmarcadas falarem-nos das commoń§es populares excitadas n'uma plateia. Quando a revoluńŃo vai assentar-se nos bancos do theatro, nŃo busqueis a sua origem nas palavras energicas do poeta: buscae-a na frouxidŃo ou na maldade do poder. Sob um governo forte e justo, uma revoluńŃo no theatro nŃo passaria de comedia representada ßquem do proscenio. Mas, alķm disso, onde achaes os exemplos de semelhantes factos? Justamente em alguns dos paizes onde existe censura prķvia. Como o capitŃo de Luiz de Cam§es, que nŃo cabia em nada, sancta gente, v¾s nŃo cahis em que esse argumento ķ uma punhalada na vossa querida censura? Donde vem a impotencia da censura? De ser uma cousa anachronica, morta, fķtida, inintelligivel. Ao censor que respeita a inviolabilidade dos principios repugna o impedir a representańŃo de um drama; porque nŃo crĻ que o seu arbitrio possa substituir os jurados; que se possa executar uma lei evidentemente contraria ß lei fundamental do estado. Pelo que, porķm, toca ao que nŃo crĻ nessas cousas, o aborrecimento inevitavel que lhe traz o desempenho de um dever tedioso, de que nŃo tira nem honra nem proveito, ou o receio de attrahir odios de homens mais ou menos poderosos, para o que nŃo sŃo triviaes entre n¾s o valor e a consciencia, faz com que ou deixe de ler, ou leia essas miserias e as approve. Se algum ha que nŃo reflectisse no absurdo da instituińŃo, e que tenha energia bastante para lhes p¶r o seu veto censorio, lß ficam os empenhos e os respeitos humanos para fazerem escrever no rotulo do boiŃo immundo de peńonha litteraria: _passe e venda-se por d¾ses de 480 rķis_. ╔ este o fado de todas as leis, de todas as instituiń§es contradictorias com as idķas e principios capitaes de qualquer seculo. SŃo cadaveres, em que a forńa legal opera os phenomenos que produz no corpo morto a pilha voltaica; visagens de terror para os circumstantes, falsos movimentos de vida, mas que todos sabem nŃo passarem de joguetes de physica. Fazei uma lei para o theatro em harmonia com a lei politica da nańŃo, com os principios eternos da liberdade intellectual, e salvareis a moral e a decencia publica, que a vossa ridicula censura deixa todos os dias impunemente affrontar. Constitui um jurado especial composto dos membros das corporań§es litterarias, homens que tem uma intelligencia para pensar, uma reputańŃo de probidade, de litteratura, e de gravidade que perder. Ahi tendes um avultado numero de individuos respeitaveis na Academia das Sciencias, na Eschola Polytechnica, na Eschola Medico-cirurgica, na Eschola do Exercito, no Conservatorio e em todos os mais estabelecimentos litterarios. Confiae-lhes a defensŃo da moralidade. Os espiritos fracos, mas honestos, ahi julgarŃo sem temor; porque a sua sentenńa serß collectivamente sabida, mas individualmente secreta. Ahi, quando a occasiŃo do julgamento legal chegar, a causa jß estarß julgada e sentenciada pela opiniŃo publica, e esta opiniŃo farß tremer os juizes, se porventura entre elles houver algum de mais larga consciencia, ou que seja capaz de esquecer-se, por affeińŃo ou por odio, da sua grave e importante missŃo. Fazei que o processo seja rapido. Haja um procurador especial contra os delictos dramaticos em offensa da moral publica. Seja o inspector dos theatros; seja quem vos parecer. Se faltar ß sua obrigańŃo, puni-o. A penalidade da lei seja severa. Por mais severa que a imaginemos, serß sempre branda em comparańŃo da que cabe ao ladrŃo matador; e eu nŃo sei resolver qual besta-fera ķ mais damninha, se um assassino do corpo, se um envenenador do espirito, que assassina as almas inexpertas das mulheres e da mocidade, surripiando-lhes ainda em cima alguns cruzados novos. Desenganae-vos de que as formulas constitucionaes sŃo mais efficazes que as molas carunchosas do absolutismo. Ficae certos de que os jurados nŃo terŃo de vibrar o golpe da punińŃo mais do que uma vez. O primeiro empresario que, sem remedio, tiver de ir dormir por um anno aos pańos de S. Martinho, e de practicar a generosidade de mandar algumas dezenas de moedas para o Asylo de Mendicidade, ou para a Casa dos Expostos, tirarß a todos os empresarios, presentes e futuros, o fino gosto de offerecerem no theatro ao publico indignado espectaculos que affrontariam um alcouce. Que a censura prķvia ķ inutil, os factos tem-no sobejamente provado. Se-lo-ha uma lei constitucional? NŃo o creio. Se assim acontecesse, a nańŃo portuguesa nŃo fora uma sociedade corrompida; fora uma nańŃo perdida. Nesse caso cumpriria deixar ß Providencia de Deus convertĻ-la ou anniquilß-la. OS EGRESSOS *PETIŪ├O HUMILISSIMA A FAVOR DE UMA CLASSE DESGRAŪADA 1842* NŃo sei se todos aquelles que passam os largos ser§es do inverno, nŃo nos theatros, nem nos banquetes profusos, nem nos bailes esplendidos, mas em aposento de poucas varas em quadro, rodeiados de alguns livros e a s¾s com o seu pensar silencioso; nŃo sei, digo, se a todos esses acontece o mesmo que a mim, quando o som do chuveiro subito, o silvo do vento, e o bramido do mar, quebrando lß ao longe nos rochedos da marinha, lhes vem toldar a serenidade do tŃo suave calar nocturno e as imagens que transitam lentas no kaleidoscopo da imaginańŃo. Aquelles brados da natureza, que parece gemer angustiada, nem uma s¾ vez deixam de despenhar-me do meu tŃo formoso universo das idķas no mundo das realidades. A vida actual obriga-me entŃo a tomar por uma das suas estradas dolorosas, e como ao pobre judeu errante, esse bradar da natureza, envolto no fustigar da chuva, no sibillar da ventania e no rumorejar longinquo das ondas, repete-me de continuo:--┴vante! ßvante!╗ O que nesses caminhos muitas vezes se encontra ķ o clarŃo que illumina e o clarŃo que deslumbra; ķ a sciencia que se entrevĻ, separada de n¾s pela insufficiencia das forńas do espirito; sŃo profundezas ennevoadas em que a razŃo se precipita e vai revoluteando atķ se incrustar n'um macisso de trevas quasi tangiveis; ķ o desconsolo de trocar, de noite a noite, o crer pelo duvidar, o duvidar pelo descrer; ķ aprender laboriosamente pouco, desaprendendo dolorosamente muito; ķ substituir pela observańŃo e pelo raciocinio opprimidos no finito, no existente, a poesia que nos leva mansamente embalados atravez das suas creań§es infinitas; ķ consumir a brevidade da vida em esforńos nŃo raro inefficazes para alcanńar a verdade, que alķm da morte, nos espera tranquilla nas amplid§es do tempo sem fim. Foi n'uma destas noites procellosas, emquanto eu buscava a verdade do passado, que a imaginańŃo insoffrida, como que a furto, me transportou das realidades que foram para uma triste realidade que ķ. Aproximava-se a meia noite. Tinha acabado de ler uma das bullas do violento Innocencio III contra o nŃo menos violento Sancho I de Portugal, inserida nos registos daquelle digno successor de Gregorio VII, volumosos registos, onde ha muito que aprender ßcerca da vida social de nossos maiores e das obscuras luctas da liberdade burguesa, tronco antigo das modernas revoluń§es populares, que tambem tem as suas arvores de costado, como a aristocracia de berńo. Ao anoitecer o cķu estava toldado, a terra humida, e o ar tepido com o bafo vaporoso do sul. Mas era mais tarde que a tempestade, como o ladrŃo nocturno, queria fazer o seu gyro por entre as habitań§es dos homens. Era, pois, jß bem tarde. Subitamente a chuva fustigou as vidrańas: o primeiro bofar do vento fez ramalhar as arvores meias calvas; e senti-o que se abysmava debaixo das arcarias de pedra. Por momentos imaginei que uma especie de demonio familiar me batia ß porta. Dir-se-hia que viera assentado no dorso erińado do tufŃo. Pareceu-me que me affundia diante dos olhos as vis§es do passado, e que, entre risadas, me chirriava aos ouvidos.--┴vante pelos caminhos do presente; ßvante, sonhador de abus§es╗. Obedeci: o meu espirito cahiu no mundo presente, presente na sua mais rigorosa data, uma noite pessima do mez de novembro do anno do Senhor de 1842. Lß f¾ra passava o temporal desfeito. Affigurou-se-me que, levado nas azas delle, corria por agra e longa estrada das nossas provincias do norte. Os robles baixos e reforńados, cuja vida, contrahida ao cĻpo pela mŃo do homem, lhes converte os topos em hydrocephalos monstruosos, assemelhavam-se aos renques de dolmens druĒdicos da Bretanha. Quando as nuvens, no seu curso precipitado, abriam alguma fenda passageira, por onde a lua golfava instantaneo clarŃo na terra, via-os fugir para traz de mim negros, hirtos, nus, como cadaveres tisnados de cousa que jß vivera. Parei. Ao longe, a fita alvacenta da estrada, coleando por entre os linhares e milharaes, refrangia de quando em quando o luar fugitivo da superficie alagada das baixas, e depois, alńando-se, como o collo do cysne, sobre um outeiro, sumia-se no viso delle, ao curvar-se para o pendor opposto. A dilatada fileira dos robles era o que unicamente se alevantava da terra por um e outro lado. Pareceu-me, porķm, que um vulto distante vinha pela estrada do lado do outeiro: era um vulto humano, que ora se encobria na sombra de nuvem negra que passava chuvosa, ora se desenhava na claridade transitoria do cķu. Aproximou-se vagarosamente, e chegou ao pķ de mim: passando, os seus vestidos rońaram-me por uma das mŃos: eram frios e molhados. Seguiu ßvante, sem reparar em mim, que nŃo podia despregar os olhos d'elle. Os seus passos eram arrastados e tremulos, vergado o corpo, a fronte nua e calva. E eu olhava para elle fito. A chuva comeńou de novo a cahir cerrada e escura. O vulto encostou-se entŃo a um dos robles da estrada, como buscando abrigar-se; e na cerrańŃo da saraiva que sobreveio, ouvi-lhe um gemido. Foi um gemido inexplicavel de desalento e agonia. ½╔ mentira:--dizia comigo, tentando quebrar o feitińo daquelle pesadello de homem acordado. E quebrei-o: e era mentira. ½Girei n'um circulo vicioso--pensava eu--. Parti do ideal para chegar ao ideal atravez da realidade.╗ E de feito, como o leitor facilmente acreditarß, estava no meu gabinete, com um tinteiro e algumas folhas de papel diante de mim, tendo do lado esquerdo o segundo tomo das epistolas de Innocencio III, e da direita o terceiro volume da _Monarchia Lusitana_ de Fr. Antonio BrandŃo; isto ķ, da esquerda um papa ao mesmo tempo intractavel e astucioso; da direita um frade modesto e sincero; e como personalisados nelles, o mau e o bom anjo, que nos seguem sempre e por toda a parte. De resto, a chuva cahia, mas era lß f¾ra. Eu estava enxuto e secco, tanto, quasi, como a alma de um politico: estava bem, agasalhado, commodamente. S¾ a luz do candieiro ķ que se tornara escandalosamente mortińa. Ergui o brańo para a espivitar, e a cabeńa para ver se a minha obra era boa. NŃo sei se nestas palavras abuso das reminiscencias biblicas. Os theologos o dirŃo. O meu _fiat lux_ foi cumprido. O candieiro despediu um clarŃo brilhante, que alagou todo o aposento. Nunca eu tivera practicado este acto de omnipotencia! N'uma porta fronteira, que dava para outro aposento desalumiado, estava o vulto que vira no meu desvaneio de homem acordado; estava ahi, immovel, triste, afflictivo, como a imagem do innocente suppliciado que apparecia todas as noites sobre o bofete do celebre auctor da Ulissea. E a figura avultava lß: e eu olhava para ella sem pestanejar. Oh que se v¾s a vĒreis! Era um anciŃo veneravel: tinha a fronte suave e pallida sulcada profundamente dessas rugas horisontaes, que sŃo como as ondas que vem morrer nas margens exteriores do oceano tempestuoso dos pensamentos: o seu olhar era esse olhar manso, agasalhador, indulgente, que em certos velhos nos fascina e subjuga, e que nos faz dizer a n¾s os mońos:--Quem me dera ser teu filho!╗ Nas faces cavadas aninhava-se-lhe a fome ou a penitencia... ½╔ a fome!--bradei eu, pondo-me em pķ; porque, correndo a vista ao longo da barba branca do anciŃo, vi que esta lhe cahia sobre o escapulario negro de monge benedictino. Mas a visŃo desapparecera de novo: e apenas me pareceu ouvir soar ao longe uma voz cava e debil, como a que sße de peito consumido por febre pulmonar, que recitava estas palavras do Psalmista: _Judica me Deus, et discerne causam meam, et a gente non sancta et ab homine iniquo et doloso erue me_. O meu circulo vicioso nŃo existia. Cahira das idealidades do passado no mundo real, e ahi, n'uma das realidades mais torpes, mais ignominiosas, mais brutaes, mais estupida e covardemente crueis do seculo presente, que diante de Deus, que o vĻ e o condemna, ousa gabar-se de grande e generoso e forte; mas em cuja campa o christianismo e a philosophia escreverŃo algum dia unicamente este letreiro: --Aqui jaz a ultima era dos martyres.-- E p¹s-me a scismar. _Erue me! Erue me!_--O Senhor te resgatarß, pobre monge; porque nŃo tarda a bater a hora em que durmas tranquillo na terra fria e humida, fria e humida como a estamenha que te cobre. Queiras tu de lß perdoar-nos! E lanńando os olhos em volta, perguntava a mim mesmo:--Porque possuo eu os commodos da vida, o pŃo do corpo e o pŃo do espirito, e porque perdeu elle tudo isso? Que bem tenho eu feito ao mundo? Que mal lhe havia elle feito? ┴ fķ, que a minha consciencia nŃo achou uma unica resposta cabal a tŃo simplices perguntas. A lembranńa do frade velho atormentou-me toda a noite. A imaginańŃo nŃo m'o pintava jß na passagem escura, onde surgira pela segunda vez: via-o na idķa, e ahi, encostado ao roble, procurando conchegar os membros inteirińados na cogulla encharcada, e resguardar a cabeńa calva ao abrigo do robusto madeiro. Errante e mendigo como o rei Lear, o monge nŃo tinha, como elle, para o guiar na solidŃo e na procella a caridade de um truŃo. ╔ que hoje nŃo ha tru§es. Este seculo ķ um grave, sķrio e cogitador assassino. De quantos anciŃos veneraveis serß a historia a historia do meu benedictino? ½Mas elles tĻem pŃo: os soccorros publicos...╗ Olķ, homens grandes, silencio! Qual ķ o juro legal de cem milh§es? SŃo cinco. Quanto dizeis v¾s que atiraķs dos vossos balc§es dourados aos hķlotas da sciencia e do sacerdocio? Uma quota diminuta dessa quantia. Cahiu tambķm a arithmetica debaixo das ruinas do passado? Se ķ assim, dizei-o. Supprimamos a arithmetica. O que nŃo fica supprimido ķ a palavra--mentira! Mentistes; porque a somma de que falaes existe apenas em palavras mais torpemente hypocritas que as da serpente tentadora de nossa primeira mŃe, as que se escrevem nas paginas de um orńamento. E a realidade? A realidade ķ a minha visŃo; ķ que o monge, o sacerdote, se converteu em mendigo. Silencio, outra vez, homens grandes! Tambem eu nasci nesta terra, e o sangue ainda me nŃo esqueceu o caminho das faces. E se n¾s, gerańŃo do progresso e da philosophia, nos envergonharmos de ser deshonestos, e dissermos:--DĻ-se uma fatia de pŃo ao que morre de fome!╗ Mais; se dissermos:--Pague-se um juro modico dos valores que nos aproprißmos?╗ Se o fizermos, em logar de sermos mil vezes uma cousa, cujo nome nŃo escreverei aqui, sĻ-la-hemos s¾ novecentas e noventa e nove; porque teremos restituido a millesima parte do que loucamente havemos desbaratado. O homem nŃo vive s¾ de pŃo. Di-lo um livro que v¾s nunca lestes, mas que nem por isso tem deixado de ser por dezoito seculos o abrigo, a doutrina, a crenńa e a consolańŃo de innumeraveis milh§es de individuos. Calculastes jßmais quanto ķ insolente, atroz, diabolico, chegar a um velho, tomar-lhe nas mŃos todas as suas affeiń§es, todos os seus habitos de largos annos, todas as suas esperanńas mais queridas, e despedańß-las e calcß-las aos pķs, e dizer-lhe depois:--Dar-te-hei um bocado de pŃo?╗ Prometter pŃo aos setenta annos!... Feita a quem esperava morrer abrańado com o passado; que reportava a elle o presente e o futuro; cujo viver intimo era s¾ de memorias, essa promessa materialista e de escarneo bastaria para deshonrar-vos. Que nome, porķm, se darß aos que nem essa mesma cumpriram? Quaes podiam ser as affeiń§es de antigo monge habitador de um d'esses mosteiros solitarios espalhados pelas provincias, e afastados do tumulto das grandes cidades? As suas affeiń§es existiam todas dentro dos muros do claustro: era a cella caiada e limpa; era a enxerga do seu catre; era a banca de pinho em que meditava e lia; era a poltrona tauxiada em que se assentava; era a estamenha do seu habito; eram as suas sandalias de peregrino; era a arvore da cerca, fronteira da janella, onde o rouxinol cantava na madrugada; era o crucifixo do seu oratorio; era a lagea da crasta, debaixo da qual dormiam seus irmŃos mais velhos, aquelles que antes delle haviam seguido o caminho do Calvario, e donde pareciam chamß-lo para o seio de Deus, quando os seus passos vagarosos soavam por cima da pedra. Nisso, e em mil cousas como estas estavam postos o seu amor, os seus affectos, as suas saudades, os seus desejos. Era o seu mundo esse; e a vida, serena, calada, melancholica, balouńava-se-lhe suavemente nessas affeiń§es do retiro. Porque lhe despedańastes tudo isto? Quanto vos renderam a enxerga, as sandalias, a lagea do sepulchro e o crucifixo? Pobre velho! Pobre velho! ½Mas n¾s, acudireis, nŃo podiamos calcular essas cousas, nem cremos em affectos moraes. Temos cabeńa, mas falta-nos corańŃo, como convķm a homens politicos. Os frades eram um elemento da sociedade antiga que cumpria annullar. Fizemo-lo. E entŃo?╗ EntŃo roubastes Satanaz. Pois Satanaz era um demente, que vos dķsse palacios, carruagens, banquetes, prostituiń§es, embriaguez, poderio, a troco de uma alma inteiramente morta para os affectos; que nŃo comprehendesse nem a dor moral, nem as harmonias suaves que ha entre o universo e o homem? Uma alma sempre em noite, e na qual nunca penetrasse a saudade mysteriosa do cķu? De que lhe serviria para comvosco a sua terribilissima heranńa de uma eternidade de tormentos? Ah... deixae-me dizer tudo isto; porque a imagem do velho benedictino estß gravada na minha alma como um remorso; e sinto lß f¾ra a chuva que lhe ańouta as faces ardentes de febre, o tufŃo que lhe revolve as cŃs venerandas, a torrente que lhe alaga os pķs descalńos. As lagrymas do sacerdote, s¾, mendigo, n·, esfaimado, sŃo uma tremenda maldicńŃo contra n¾s, maldicńŃo que ha de cumprir-se. A arte moderna parece ter achado os mais poderosos meios de excitar a compaixŃo e o terror: tudo quanto a arte antiga tinha pathetico e terrivel sentimo-lo hoje frouxo e pallido. Se hoje, porķm, houvesse engenho capaz de traduzir em palavras humanas o drama horribilissimo das ultimas agonias da vida monastica em Portugal, aquelle que lesse uma s¾ vez esse livro monstruoso e incrivel poderia depois, ao deitar-se, conciliar o somno com o _Leproso de Aosta_, com o _Fausto_, com o _Manfredo_, ou com os _┌ltimos dias de um sentenceado_. Quando em 1834 se extinguiu o antigo e celebre cenobio de Sancta Cruz de Coimbra, aconteceu ahi um facto que p¾de, atķ certo ponto, dar uma idķa das primeiras scenas do negro drama que ha oito annos comeńou a passar ante os olhos daquelles que ainda nŃo abnegaram de todo a humanidade e o pudor. Expulsos os cenobitas, e inventariados os bens do mosteiro pelos commissarios desta obra brutal, quasi por toda a parte brutalmente executada, ainda uma cella daquelle vasto edificio ficava occupada por um dos seus antigos habitadores. Era um velho de oitenta annos, a quem o tropego, o quasi morto dos membros embargavam o caminhar, e que por isso nŃo podia seguir seus irmŃos. Entrando no aposento, encontraram o cenobita deitado no seu catre humilde, em cujo topo pendia o crucifixo que, talvez por sessenta annos, tinha visto a seus pķs consumir-se na meditańŃo, nas preces e na penitencia aquella dilatada vida. Estava s¾ o anciŃo, e o silencio que o rodeiava apenas era interrompido pelos gorgeios de uma avesinha, que pulava contente ao sol n'uma gaiola pendurada da abobada. O velho parecia pensativo, como se adivinhasse que era chegada para elle a hora do martyrio. As passadas dos que entravam moveram-no a volver os olhos: correu-os por aquelles rostos desacostumados: depois tornou-os a abaixar. Que lhe importavam os homens do seculo? Elle nŃo os conhecia. Disseram-lhe entŃo que era necessario sair d'alli. ½Porque?--perguntou o cenobita. ½Porque os frades acabaram:--replicou o mais eloquente e discreto dos verdugos, como se exprimisse a idķa mais simples e trivial deste mundo. ½Porque os frades...: repetiu em voz baixa o velho, sem concluir. Os labios nŃo podiam levantar de cima do corańŃo o resto daquella phrase monstruosa: ella lh'o havia esmagado. Um sorriso estupido passou pelas faces estupidas de alguns dos circumstantes. No gesto espantado do cenobita liam elles a grandeza do esforńo com que associavam o proprio nome ß obra prima do seculo. E com razŃo. O triturar assim um corańŃo de oitenta annos era feito que excedia em heroicidade todos os que haviam practicado dous cavalleiros portugueses, que, lß embaixo na igreja, continuavam a dormir nos seus leitos de pedra um somno de muitos seculos, e que se chamavam Affonso Henriques e Sancho AdefonsĒades. Os olhos do anciŃo ficaram enxutos. S¾ accrescentou:--Mas para onde hei de eu ir?╗ ½Para casa dos vossos parentes:--acudiu o philosopho. O cenobita correu a mŃo pela fronte calva, e respondeu:--Jß nŃo tenho parentes na terra: todos me esperam no cķu╗. ½EntŃo ireis para a de algum amigo.╗ ½O unico amigo meu que ainda vive ķ aquelle!╗ E apontava para a avesinha. ½O frade irß pois morar na gaiola do pintasilgo:--rosnou por entre os dentes um dos algozes, que tinha fama de gracioso. NŃo quiz, porķm, communicar aos outros tal idķa. Tudo estouraria de riso. Alguem, que estudava ahi perto esta scena de progresso moral, nŃo p¶de, todavia, continuar os seus graves e terriveis estudos. Precisava de ar, de luz, de ver o cķu. Atravessou ligeiro o longo dormitorio, e desceu a quatro e quatro os degraus das extensas escadarias. As lagrymas rebentavam-lhe como punhos. ┴ portaria de Santa Cruz as primeiras palavras que ouviu foram, que a municipalidade acabava de fazer um calvario no fundo de uma petińŃo, escripta em vasconńo por certo doutor affamado, na qual pedia ao governo lhe atirasse aquelle osso do mosteiro de sete seculos, para o roer atķ os fundamentos, e construir no sitio d'elle, nŃo me lembra ao certo se um espogeiro, se uma sentina. Era o estudo do progresso artistico ap¾s o estudo do progresso moral. Quantos destes factos dolorosos se passaram naquella epoclha por todos os Ōngulos de Portugal! Poderia contar-vos mil, e cada um delles fora uma nova scena de agonia. Os martyres primitivos morriam nos eculeos, nas garras das feras, nos leitos de fogo; nŃo eram, porķm, condemnados a assentar-se em cima das ruĒnas de todos os seus affectos, clamando ao Senhor durante annos: _Erue me! Erue me!_ Fizestes uma cousa absurda e impossĒvel: deixastes na terra cadaveres vivos, e assassinastes os espiritos. Ao menos que esses cadaveres nŃo sintam traspassß-los o vento que sibilla nas sarńas, a chuva que alaga as campinas, o frio que entorpece as plantas e os membros dos animaes. PŃo para a velhice desgrańada! PŃo para metade dos nossos sabios, dos nossos homens virtuosos, do nosso sacerdocio! PŃo para os que foram victimas das crenńas, minhas, vossas, do seculo, e que morrem de fome e de frio! Cumpri aos menos a vossa brutal promessa. Podem n'essas almas ser profundas as trevas, e todavia respeitardes as regras mais triviaes de uma probidade vulgar. SenŃo, que os pobres monges inclinem resignados a fronte na cruz do seu martyrio, e alevantem uma orańŃo fervorosa ao Senhor para que perdoe aos algozes, que nella os pregaram. ╔ este o exemplo que na terra lhes deixou o Nazareno. Mas que se lembrem os poderosos do mundo de que a orańŃo de Jesus na hora suprema da agonia foi desattendida do Eterno. E comtudo, Jesus era o seu Christo. Que olhem para essa nańŃo que fluctua ha dezoito seculos no pķgo da sua infamia, maldicta de Deus, e apupada pelo genero-humano, sem nunca poder submergir-se nos abysmos do passado e do esquecimento. Que se lembrem do proprio nome, do nome de seus filhos, de que ha justińa no cķu, e na terra a posteridade. Se nos seus corań§es restam vestigios de crenńas humanas, que meditem uma hora, um minuto, um instante nisso tudo. Das profundezas de tal meditar surgirß uma idķa, que lhes farß manar da fronte o suor frio da morte; porque serß uma idķa tenebrosa e terribilissima. *DA INSTITUIŪ├O DAS CAIXAS ECONOMICAS 1844* I A origem das caixas economicas, embora imperfeitamente organisadas, como todas as instituiń§es nos seus comeńos, remonta apenas aos fins do seculo passado, e a Allemanha e a Suissa foram os primeiros paizes que as viram nascer. Hamburgo possuia uma em 1787, e a de Berna, instituida s¾ para os creados de servir, appareceu em 1789. Seguiram-se poucos annos depois a do ducado de Oldemburgo e a de Genebra. Todas as demais, nestes e n'outros paizes, foram fundadas posteriormente, e pertencem ao presente seculo. Em Inglaterra, dizem alguns que a idķa das caixas economicas occorrera primeiramente ao celebre Wilberforce; mas os vestigios dellas que ahi se apontam anteriores a 1810 sŃo de natureza duvidosa ou apenas tentativas obscuras. Data daquella epocha o _banco de poupanńas_ (_saving's bank_) de Ruthwel, fundado por Duncan, e que foi o primeiro que se constituiu naquelle paiz com estatutos publicos e regulares. Os seus prosperos resultados foram poderoso incentivo para a diffusŃo das caixas economicas. Dentro de sete annos contavam-se no Reino-unido perto de oitenta estabelecimentes analogos, e em 1833 quasi quinhentos, onde 470:000 individuos, pouco mais ou menos, tinham depositado a enorme somma de quasi 16 milh§es de libras esterlinas, ou acima de 160 milh§es de cruzados, subindo nos quatro annos immediatos o numero dos depositarios a 636:000 e o valor dos depositos a 20 milh§es de libras ou mais de 200 milh§es de cruzados. Ao passo que estes beneficos institutos cresciam e se multiplicavam na Gran-Bretanha, generalisavam-se e prosperavam tambem no meio das nań§es continentaes. Em 1838 o numero das caixas economicas subia na Allemanha a 257, e na Suissa a 100. A Franńa, onde s¾ foram introduzidas em 1818, conta actualmente (1844) perto de 300, e na Italia quasi nŃo ha cidade que nŃo possua estabelecimentos desta especie. ┴ porfia, os governos e os povos tem concorrido para arraigar uma instituińŃo, cuja idķa fundamental ķ, talvez mais que nenhuma, civilisadora e moral. Como todas as cousas verdadeiramente grandes e uteis, as caixas economicas nŃo tem encontrado uma unica parcialidade politica, uma unica eschola que ouse condemnß-las, uma s¾ crenńa religiosa que as repudie. As monarchias absolutas, os governos parlamentares, as republicas acceitam-nas, promovem-nas. Ao passo que o ministro protestante as aconselha como poderoso instrumento de morigerańŃo e de ventura para o povo, o papa sanctifica esta formosa instituińŃo, abenńoando-a e propagando-a nos estados da igreja. Progresso verdadeiro, nascido no meio da terrivel lucta de idķas, de paix§es e de interesses em que ha meio seculo se debate a Europa, as caixas economicas nŃo tem custado ß humanidade nem lagrymas, nem sangue. Evidentemente uteis por sua natureza; provadas taes pelos principios em que se estribam e pelos seus esplendidos resultados; simples no seu mechanismo, por toda a parte aquelles a quem os seus beneficios sŃo especialmente destinados, os homens do povo, tem-nas comprehendido e abrańado. Simplicidade, clareza, utilidade reconhecida sŃo as principaes condiń§es de todo e qualquer pensamento social que tenda a popularisar-se. As caixas economicas ostentam no mais subido grau estes caracteres de todas as instituiń§es que devem vir a encarnar-se na sociedade e a viver a larga e robusta vida das nań§es, a vida dos muitos seculos. Este consenso unanime, nŃo de paizes ignorantes, mas dos que estŃo na dianteira da civilisańŃo, e ahi, nŃo de uma classe de individuos, mas de homens de todas as jerarchias; tal consenso, dizemos, ķ o julgamento mais completo, o testemunho mais irrefragavel da utilidade nunca desmentida das caixas economicas. Onde quer que ellas appareceram, a moralidade das classes inferiores e pobres melhorou em breve, e a miseria, perspectiva permanente que o jornaleiro e o assalariado tem diante dos olhos para o ultimo quartel da existencia, deixou de ser para elles uma fatalidade ineluctavel. A sobriedade; a poupanńa, as virtudes, em summa, de homem do povo deixaram de ser van precauńŃo contra o seu negro porvir de mendicante velhice. A familia, sobretudo, essa imagem da sociedade e sua origem, que para o obreiro, ßs vezes escańamente retribuido, ķ, nŃo raro, flagello e maldicńŃo, p¾de deixar de ser desgrańa, ao menos para aquelle a quem ou viva crenńa religiosa, ou a natural bondade da indole induzem a preferir ß satisfańŃo de vicios ignobeis o proprio bem estar futuro e o bem estar de seus filhos. Que ķ, pois, a caixa economica, essa arvore que produz taes fructos de benńŃo? ╔ a cousa mais conhecida e trivial. ╔ o mealheiro; ķ esse velho alvitre de poupados que desde pequeninos todos n¾s temos visto usar aos pouco opulentos, e que nossos paes e av¾s jß conheceram; ķ a astucia do pobre para fugir a superfluidades tentadoras (ķ longa a lista das superfluidades do pobre: encerra quasi todo o necessario do rico) e ß custa dellas achar em si proprio soccorro nos dias de inactividade forńada, da carestia ou da enfermidade. ╔ o mealheiro, mas o mealheiro tornado productivo, fecundado pela intelligencia e pelo principio de associańŃo: ķ uma grandiosa, e por isso singela, invenńŃo do senso commum, que durante muitas eras ficou, por assim dizer, no estado de sementinha perdida, atķ que a luz do progresso e da civilisańŃo a fez rebentar, crescer, bracejar, florir e gerar fructos preciosos, que della colhem em abundancia as sociedades modernas. A este baptismo de regenerańŃo, que, bem como ao do evangelho, sŃo principalmente chamados os pequenos e humildes, s¾ tarde n¾s concorremos. NŃo que ignorassemos a sua existencia, mas por essa especie de destino mau que nos arrasta ap¾s novidades de pouca monta ou contrarias ß razŃo, ao passo que desprezamos o que nas instituiń§es estranhas ha conforme com os nossos costumes ou accommodado ßs nossas precis§es reaes. Debalde um dos primeiros economistas portugueses[2] prop¶s ha annos na camara dos deputados a creańŃo das caixas economicas, offerecendo a lei que as devia regular, e mostrando as suas vantagens n'um largo relatorio, onde ß vasta sciencia se ajuncta a eloquencia que vem da convicńŃo profunda. Entretidos com theorias, ou com interesses de partidos ou de pessoas, os homens politicos lanńaram no esquecimento as boas e sinceras diligencias do deputado que desempenhava uma das mais graves obrigań§es do seu mandato. Atķ hoje nada fizeram a semelhante respeito aquelles a quem mais que a ninguem isso incumbia; e se a existencia da primeira caixa economica portuguesa se realisou, deve-se o facto a uma associańŃo particular[3]. ╔ sabido que, por via de regra, as caixas economicas sŃo uma especie de deposito, onde qualquer individuo p¾de ir ajunctando lentamente e em quantias pequenas ou grandes as sobras da sua receita, salvas das despesas necessarias ß vida;--que, em vez de ficarem inertes as sommas alli depositadas, comeńam logo a produzir juro, o qual, passado um anno, se converte em capital e se accumula ao capital primitivo para com elle produzir novos juros;--que esta accumulańŃo, bem como a formańŃo do capital primitivo, ķ perfeitamente indeterminada e sem accepńŃo nem excepńŃo de tempos e de quantias, uma vez que nŃo sejam estas inferiores ao diminuto minimo de cem rķis;--que o depositante p¾de quando lhe aprouver levantar o juro ou o principal no todo ou em parte, ou transmitti-lo por testamento ou por successŃo a seus herdeiros ou legatarios;--que, finalmente, o homem laborioso e poupado tem alli as suas economias seguras pelas garantias positivas que lhe presta uma associańŃo poderosa e respeitavel, em vez de as conservar improductivas e arriscadas no mealheiro domestico, ao qual, suppondo-lhe a indole previdente e poupada que tantas vezes falta ao operario e, em geral, a todos os que vivem de pequenos lucros eventuaes, teria necessariamente de recorrer. ½Com razŃo se tem apontado, diz De Gerando, a utilidade moral que esta instituińŃo produz, favorecendo as inclinań§es para o arranjo e economia. Ella ķ propicia ßs virtudes que se ligam com essas inclinań§es, ou que d'ahi nascem. Excita ao trabalho; habitua o homem laborioso a cogitar; ajuda a desenvolver os affectos domesticos; concorre para multiplicar tanto os estabelecimentos industriaes como as familias, proporcionando meios de formar e conservar o cabedal necessario para abrir uma officina ou ajunctar um dote para casamento; ensina ao pouco abastado como em si proprio p¾de achar recursos e como se p¾de remir na miseria, na doenńa e na velhice. As caixas economicas, ao passo que diminuem o numero dos indigentes, concorrem tambem para nobilitar o caracter do homem pobre e para lhe dar aquella honrada altivez que nasce da maior independencia. Aos que vivem na estreiteza faz-lhes saber quanto ķ grato o sentimento da propriedade, estabelecendo-lhes uma que ķ real e que, apesar de modica, fructifica e se perpetua. Alķm disso, sŃo proveitosas em subido grau ß sociedade, porque sŃo conjunctamente symptoma e instrumento da quietańŃo publica.╗ Veio o successo justificar as previs§es do illustre moralista. Tem-se observado em Franńa e em em Inglaterra, que nŃo ha individuo que tenha feito depositos nas caixas economicas que fosse accusado nunca perante os tribunaes, ao passo que as listas de criminosos feitas em diversas epochas provam que as tres quartas partes dos individuos sentenceados eram pessoas inclinadas ao jogo, ßs loterias, ou a bebidas espirituosas. Os factos citados pelo virtuoso De Gerando sŃo, de feito, as consequencias forńosas da idķa fundamental das caixas economicas. Das classes populares saem, nŃo s¾ absolutamente, mas tambem relativamente, a maior parte dos criminosos. Tem-se attribuido isto ß falta de educańŃo nessas classes: sob certo aspecto e atķ certo ponto a causa ķ verdadeira; nŃo ķ, porķm, a unica, nem a principal. Se indagamos quaes foram os primeiros passos dos mais celebres malvados, achamos que partiram dos simples roubos atķ chegarem ß maxima ferocidade no crime. Poucos entre os assassinos famosos escreveram logo com sangue as paginas maldictas da historia da sua existĻncia. Na estatistica da criminalidade popular predomina o roubo: ķ cousa trivialmente sabida, como o ķ que a miseria das classes laboriosas produz principalmente esse facto. Mas o que a sociedade parece ignorar ou esquecer ķ que ella ķ a culpada de que a pobreza do humilde se converta facilmente em miseria; miseria extrema, desesperada, terrivel; miseria que impelle quasi forńadamente pela estrada da immoralidade o homem do povo, para quem os legisladores ha muito inventaram as masmorras, os desterros, os supplicios, em vez de alevantarem barreiras moraes que lhe obstem a precipitar-se no abysmo. Para o individuo sem propriedade, para o obreiro, o artifice, o creado de servir; para aquelle, emfim, que s¾ tem por capital os proprios brańos, e cuja renda ķ apenas um salario contingente, a imprevidencia e o habito de procurar cada dia os meios de viver esse dia nascem naturalmente da sua situańŃo precaria. Nada espera no futuro, e por isso nada teme delle: probabilidades, contingencias, nŃo as calcula nem previne. Assim, vemo-lo acceitar com facilidade os encargos de pae de familia. Satisfez o appetite momentaneo; que importa o futuro ßquelle para quem isso nŃo existe? Depois vem os filhos, vem a doenńa, vem a falta de trabalho: as affeiń§es domesticas enraizaram-se no corańŃo do desgrańado. A natureza, a religiŃo, os costumes, tudo lhe diz que esses entes que gerou, que essa mulher a quem se prendeu devem achar nelle o seu abrigo, a sua providencia. Ao passo que a mß organisańŃo da sociedade o inhabilita absolutamente para em certos casos poder supprir os seus, a mesma sociedade lhe diz, e diz bem, que nunca os deve abandonar. Desta ordem de cousas, falsa, violenta, contradictoria, resulta que as mais leves tendencias para o crime se excitam e dilatam atķ chegarem a produzir tristes fructos, cujo desenvolvimento a sociedade crĻ impedir com as algemas, carceres, grilhetas, desterros e patibulos, emquanto ella propria, com o seu desprezo pelas classes pobres, com a falta absoluta de instituiń§es verdadeiramente moralisadoras e beneficas, alimenta a arvore mortifera que produz as acń§es criminosas. II As caixas economicas sŃo o primeiro e agigantado passo para a soluńŃo do problema que as leis ainda nŃo tentaram resolver: as caixas economicas sŃo o contraste, a negańŃo do patibulo. Matam a perversŃo popular nas suas causas, em vez de a punir nos seus effeitos. Criam o futuro para milhares de individuos que nunca imaginaram tĻ-lo, creando-lhes o goso da propriedade, e nesta um recurso para a hora da afflicńŃo e escaceza, tŃo proxima, entre as almas vulgares, da hora do crime. O facto de nŃo apparecer o nome de um unico depositante das caixas economicas nas listas dos sentenceados em Franńa e em Inglaterra ķ a consequencia natural dos principios em que esta instituińŃo se estriba. A sua influencia moral vai ainda mais longe. Os vicios sŃo, depois da miseria, a origem de frequentes attentados. O jogo e a embriaguez estŃo por toda a parte mais ou menos nos habitos do povo: a embriaguez, sobretudo, ķ para o maior numero de jornaleiros como refrigerio, como prazer licito nos dias de repouso. Quem, todavia, ignora que estes dous vicios sŃo quasi sempre a causa de rixas entre os operarios, de desordens domesticas, e de se aggravar cada vez mais a miseria das classes laboriosas? As caixas economicas guerreiam, geralmente com vantagem, a propensŃo para as bebidas fermentadas e para o jogo. Inimigas da penalidade feroz e sanguinaria que ainda governa a Europa, nŃo o sŃo menos da taberna, que muitas vezes ķ a porta fatal por onde o homem de trabalho enceta o caminho que tantas vezes o conduz ßs galķs, ao desterro e, atķ, ß morte. Mas, dir-se-ha, como podem as caixas economicas desarreigar os vicios inveterados do povo? Como correrß este a depositar nos escriptorios das caixas a exigua quantia que ia applicar ß embriaguez e ao jogo? A esta pergunta responde a experiencia dos paizes onde esta especie de depositos estŃo instituidos e vulgarisados ha certo numero de annos. A principio a concorrencia era diminuta e lenta; mas cresceu gradualmente, e vai tomando hoje um incremento que passa alķm de todas as previs§es dos amigos da humanidade. Entre n¾s mesmos ha um triste exemplo de como o povo, quando descortina ainda a mais duvidosa perspectiva de melhorar a sua condińŃo, dß de barato o satisfazer os outros appetites para correr ap¾s essa incerta esperanńa. SŃo as loterias o exemplo: ķ exemplo essa deploravel invenńŃo de especular com a cubińa e com o desejo ardente que as classes menos abastadas tem de conquistarem, seja como for, fortuna independente. ╔ de ver a ancia, diriamos quasi o delirio, com que o vulgo concorre a lanńar no sorvedouro das loterias quantos reaes lhe sobram do que lhe cumpre gastar nas mais estrictas precis§es da vida. Muitos ha que atķ cortam pelo necessario a si e ß famĒlia para o irem dar a devorar ß loteria, a essa fatal banca de jogo em que se joga ß luz do dia, no meio da prańa publica, embora haja a certeza de _que a grandissima maioria dos que apontam hŃo de forńosamente perder_; circumstancia que caracterisa esta instituińŃo _publica_ de modo, que, se fosse uma especulańŃo particular, os tribunaes puniriam severamente o especulador. Mas o facto demonstra que, apenas clareia algum tanto o negro horisonte do porvir; apenas lß reluz uma esperanńa tenue, improvavel atķ, a de um premio avultado, o povo corre para essa esperanńa; porque antevĻ as dolorosas consequencias da sua precaria situańŃo e busca esquivar-se a ellas. ╔ para tornar proficua e moral esta previsŃo que se instituiram as caixas economicas. Fazendo convergir para si as sobras escańas dos pouco abastados, as quaes alißs se desbaratariam provavelmente em vergonhosos deleites, ou no que vale quasi o mesmo, na loteria, ellas nŃo apresentam esses engodos fementidos, essas promessas mentirosas com que se desperta a cubińa popular; nŃo promettem mil por dez com a condińŃo de, em cem casos, perderem-se noventa e nove vezes os dez e nŃo se obterem os mil. NŃo! As caixas economicas offerecem unicamente um juro modico, mas constante, e alĶm disso a certeza de rehaver o depositante o seu capital, augmentado com o juro, no momento em que delle careńa: offerecem uma cousa simples, clara, possivel: nŃo promettem milagres, nem sequer maravilhas; porque o maravilhoso muitas vezes, e o milagroso sempre, nas cousas humanas, sŃo a caracteristica do charlatanismo. Como os descobridores de thesouros encantados, como os viciosos de loterias, como os alchimistas, os que desenvolveram e applicaram o pensamento desta instituińŃo calcularam tambem com a insaciabilidade da cubińa humana; com a cubińa que p¾de estar dormente ou subjugada por outros affectos, mas que existe em todos os corań§es. O primeiro sentimento que deve levar o obreiro, o familiar, o caixeiro, o artifice a ir entregar na caixa economica alguns tost§es que forrou do producto do seu trabalho serß a idķa de que virŃo de futuro as occasi§es da enfermidade, da falta de occupańŃo ou de outro qualquer contratempo, e a reflexŃo de que, reservando os sobejos de hoje para as faltas de amanhŃ ķ, sem questŃo, mais judicioso accumulß-los no mealheiro seguro e publico, onde nŃo corre uma hora, um minuto, em que a somma poupada nŃo produza seu lucro, e em que este lucro nŃo se esteja transformando em capital productivo, do que mettĻ-los no mealheiro particular, que p¾de ser roubado, e onde, no momento da precisŃo, nem mais um ceitil se acharß daquillo que ahi se metteu. ╔ este o sentimento que, no povo, suscita desde logo a caixa economica, e conforme a experiencia de todos os paizes, basta elle para angariar extraordinario numero de depositantes. Ha, porķm, um perigo: quando algum destes tiver accumulado certa quantia que repute sufficiente para occorrer a qualquer apuro inesperado, os costumes viciosos e desordenados que o temor do futuro e a esperanńa de remedio domaram, hŃo de provavelmente melhorar-se nessa lucta entre o bem e o mal, e o homem de trabalho voltarß aos habitos de desleixo e dissipańŃo que lhe absorviam as suas sobras, e que lh'as tornarŃo a absorver de novo, e quem sabe se, atķ, as proprias economias que fizera. Obviamente o perigo ķ real e grandissimo: ha, todavia, no corańŃo humano tambem a avareza; ha essa paixŃo, que, ao contrario das outras, augmenta com a posse, radica-se com a idade, arde violenta ainda na penumbra fria do sepulchro. Na instituińŃo das caixas economicas, contou-se com ella. InvenńŃo que toca as raias do sublime ķ o aproveitar uma paixŃo mß e ignobil para fazer o bem; tornar instrumento da moral e da civilisańŃo a mais indomavel, a pessima entre as nossas propens§es. Perigosa, destructiva, anti-social no rico, ella serß ·til ao pobre, que, sem deshonra, a p¾de alimentar onde quer que existirem as caixas economicas. E ķ o que deve succeder e succede. O creado, o jornaleiro, o artifice que insensivelmente se achou transformado em pequeno capitalista e que vĻ, com o decurso do tempo, engrossar os tost§es em cruzados, os cruzados em moedas, comeńa a amar o seu peculio e a fazer sacrificios para o augmentar: esta idķa entranha-se no seu espirito, e nŃo tarda a vir o exame severo das superfluidades e o c¾rte em todas ellas. E fazem-no desafogadamente, porque sabem que no dia ou no instante em que o excesso da poupanńa os conduza a algum apuro, ķ-lhes licito ir levantar no todo ou em parte o juro ou o capital que possuem: e se tal aperto se nŃo der, tem a certeza de que, quanto mais depressa ajunctarem um peculio de certo vulto, mais depressa realisarŃo o sonho constante da maioria dos individuos collocados na precaria situańŃo de assalariados, a existencia independente. Um abrirß a loja de retalho, outro a officina de pequena industria: este irß plantar a vinha no outeiro escalvado; aquelle arrotear o chŃo baldio na planicie. Cada qual seguirß a senda que a sua inclinańŃo lhe indicar, mas todos pensarŃo s¾ n'uma cousa, a independencia; a independencia que nasce da propriedade, e que ķ o mais fertil elemento da moral, da paz e da prosperidade publica. As considerań§es que temos feito sŃo geraes; applĒcam-se a todos os paizes, porque assentam sobre a indole dos affectos humanos, e sobre circumstancias mais ou menos communs nas sociedades modernas. Se, porķm, ha nańŃo cujo estado social, cujas tendencias entre as classes inferiores assegurem ßs caixas economicas, mais que nenhuma outra, uma acńŃo poderosa em melhorar a condińŃo dessas mesmas classes, essa nańŃo ķ a nossa. Em Inglaterra e em Franńa as caixas economicas, apesar das suas grandissimas e innegaveis vantagens, tem apresentado alguns inconvenientes: tal ķ o de servirem para especulań§es de gente rica, que, na falta de applicań§es para os seus cabedaes, alli os vŃo depositar com os juros compostos que delles devem auferir, sem correrem riscos e sem se onerarem com as despesas de administrańŃo. Procurou-se em muitas partes remover este inconveniente, estabelecendo maximos para as entradas e para o total dos depositos de cada individuo; mas esta providencia nem ķ geral, nem impede que a frequencia das entradas supra a modicidade dellas, e que repartindo uma quantia avultada por diversos membros da propria familia, e fazendo todos estes ao mesmo tempo pequenos depositos em diversas caixas, o abastado venha a abusar de uma instituińŃo cujo fim nŃo ķ, de certo, locupletß-lo. Entre n¾s nŃo existe e difficilmente existirß semelhante perigo. Portugal ķ um dos paizes da Europa, onde, grańas ß nossa antiga organisańŃo social e ß natureza e condiń§es das nossas industrias, as fortunas sŃo por via de regra mediocres, a propriedade territorial mui dividida nas provincias mais populosas, e por consequencia os capitaes raros e os grandes capitaes rarissimos. Fallecem elles ßs applicań§es, nŃo as applicań§es a elles. Se a essa limitada forńa de capitaes que possuimos faltasse o minotauro que os devora quasi todos, a agiotagem, quasi sempre infecunda, com o governo e com os particulares, ainda restavam as necessidades das industrias fabril e agricola, ßs quaes por muitos annos nŃo bastarŃo os que existem, sem que receiemos sirvam para perverter uma instituińŃo quasi exclusivamente destinada ßs classes laboriosas e menos abastadas. Tem-se ponderado que a acńŃo benefica das caixas economicas ķ impotente contra a miseria do maximo numero de obreiros, isto ķ, contra a miseria de quasi todos os que pertencem ß industria fabril. Nos paizes onde as grandes fabricas sŃo a principal f¾rma, o mais commum systema da industria, essa observańŃo ķ infelizmente verdadeira. O aperfeińoamento das machinas, a concorrencia dos productos nos mercados, a desproporńŃo entre o fabrico e o consumo tem feito descer os salarios a ponto que toda e qualquer economia ķ impossivel para o operario, que ganha exactamente s¾ o preciso para nŃo morrer de fome. Depois, nos grandes focos de industria fabril, principalmente na Gran-Bretanha, a depravańŃo dos costumes ķ tŃo profunda, que, ainda quando a economia nŃo fora materialmente impossĒvel, sĻ-lo-hia moralmente. Ahi, portanto, as caixas economicas, sŃo, sem duvida, insufficientes para libertar o povo da miseria e da corrupńŃo. III Quando a organisańŃo de um paiz ķ viciosa e contrafeita; quando e onde a propriedade estß mal e, digamos atķ, monstruosamente dividida: onde o capital anda em guerra viva com o trabalho; onde a condińŃo do obreiro ķ relativamente peior que a do servo da idade media, a caixa economica de certo nŃo p¾de remediar os effeitos desta situańŃo absurda. Os districtos ruraes da Inglaterra, nomeiadamente os da Irlanda, sŃo victimas de uma constituińŃo da propriedade territorial em que ainda estß viva a conquista dos normandos, e nas cidades manufactoras o excesso dos aperfeińoamentos mechanicos tem gerado o excesso de miseria dos proletarios. Para estes, que pelas fluctuań§es do commercio externo, tem repetidas vezes largas ferias de trabalho, e se vĻem forńados a ir receber a esmola dos soccorros parochiaes; para estes, a quem frequentemente faltam os objectos de primeira necessidade, a caixa economica ķ como se nŃo existisse. Em tal situańŃo recommendar ao obreiro a economia e a previsŃo fora cruel escarneo. Mas que ha entre n¾s que tenha semelhanńa com tal estado de cousas? As nossas fabricas sŃo poucas e acham-se ainda longe dos grandes aperfeińoamentos. Por outra parte, nŃo havendo superabundancia de brańos, os salarios sŃo razoaveis. N'uma nańŃo essencialmente agricola a industria manufactora difficilmente preponderarß sobre a agricultura. Do modo como a propriedade estß constituida, sendo avultadissimo o numero dos proprietarios ruraes, e predominando a pequena cultura pela grande divisŃo do solo, essa preponderancia ķ e serß por muito tempo impossivel. A supremacia industrial dos ingleses devem-na estes, talvez quasi exclusivamente, a que na Gran-Bretanha a terra, por assim dizer, foge debaixo dos pķs ao homem de trabalho. Paiz classico dos latifundios, os possuidores de vastos predios, ou os seus opulentos rendeiros obtem facilmente simplificar as operań§es da cultura com engenhosos e potentes machinismos, dispensando assim um grandissimo numero de brańos, que vŃo augmentar a offerta dos que a industria fabril utilisa. Essa, forcejando igualmente para os substituir pelas machinas, ao que a obrigam as luctas interminaveis da concorrencia, acceita-os, acceita-os sempre, mas com a condińŃo inevitavel do abaixamento indefinido do salario. Em Inglaterra a agricultura, adiantadissima em extensŃo, em intensidade, em instrumentos, e em copia de capital movel, estß restricta a operar dentro dos limites do solo cultivado. O principal instrumento de producńŃo, a terra aravel, nŃo p¾de multiplicar-se. Quando a machina ou um novo systema agricola expulsa o operario rural, expulsa-o para dentro das barreiras da industria fabril. Para esta, ao contrario, o espańo onde labora ķ um dos menos importantes elementos da sua existencia. Para produzir indefinidamente, s¾ carece de uma condińŃo essencial; ķ a que a faz triumphar da industria das nań§es rivaes, a do preńo inferior ao do producto alheio com igual valor da utilidade. A machina, ou aperfeińoada ou nova, e a reducńŃo dos salarios, ou o augmento de horas de trabalho, o que ķ perfeitamente identico, sŃo os seus meios heroicos. NŃo lhe importa se o instrumento homem se quebra, porque o renovarß sem custo no meio das multid§es famintas. Vive de produzir barato, e os seus obreiros hŃo de viver de se afadigarem em procura da morte. Cumpre que a industria inglesa triumphe na batalha incessante que se peleja entre as nań§es industriaes, batalha onde se nŃo vĻ o fuzilar da espingardaria, nem se ouve o troar dos canh§es, mas descortina-se o revolutear do fumo das chaminķs monstruosas e soa o murmurar confuso da machina e do homem que lidam: terrivel batalha, onde nŃo corre sangue, mas corre o suor do trabalho, e depois o suor da agonia. D'esta situańŃo, exteriormente esplendida e interiormente violenta e dolorosa, estamos n¾s bem longe. NŃo receiamos dizer que em Portugal serß raro o operario vßlido que por meio de severa e intelligente economia nŃo possa depositar annualmente na caixa economica alguns cruzados, ou para occorrer a desgrańa imprevista, ou para crear um meio de subsistencia na velhice, ou finalmente para adquirir a independencia de proprietario. Com o modo de ser da populańŃo portuguesa, p¾de-se prever que, diffundindo-se pelo reino as caixas economicas, a estatistica destas serß bem differente da estatistica das de Inglaterra, e ainda das de Franńa. Nestes dous paizes apenas a quarta parte das quantias depositadas pertence aos operarios, e a classe que predomina como credora dellas ķ a dos creados domesticos. Entre n¾s a proporńŃo tem de vir a ser diversa. Os donos de pequenos predios, os seareiros, os creados de lavoura, os operarios, nŃo s¾ de officinas, mas tambem de fabricas, hŃo de provavelmente predominar. E se assim acontecer, poderemos affirmar que a nańŃo progride largamente no caminho da civilisańŃo material e moral. Alguķm acharß, talvez, que estas sinceras esperanńas na futura regenerańŃo economica do nosso povo sŃo contradictas pelo facto da perfeita analogia que se dß entre a Franńa e a Inglaterra, em serem tanto n'um como n'outro paiz as mesmas classes as dos depositantes nas caixas economicas. Na Franńa, dir-se-ha, a divisŃo da propriedade ķ facilitada atķ o ultimo ponto pelas leis, e o numero dos pequenos proprietarios ķ proporcionalmente maior que em Portugal: a agricultura tambķm lß predomina sobre a industria fabril; finalmente a situańŃo do rendeiro e do trabalhador rural ķ mais semelhante ß dos nossos que ß dos de Inglaterra. Como, pois, nŃo dŃo as caixas economicas na Franca resultados estatisticos diversos dos que subministram os _saving's banks_ ingleses? NŃo se deve concluir d'ahi que nŃo tem a influencia que se lhes attribue, e vice-versa, que no seu progresso ou na sua decadencia nŃo influe nem a situańŃo relativa das classes sociaes, nem o estado da propriedade? NŃo. A analogia dos dous paizes na desproporńŃo, contraria ß ordem natural das cousas, entre os operarios e as outras profiss§es, em relańŃo aos depositos nas caixas economicas, tem causas em parte semelhantes, em parte diversas, mas iguaes nos resultados. As fabricas francesas seguem o rapido progresso das inglesas, e nos grandes centros industriaes da Franńa notam-se jß em larga escala a miseria e a dissoluńŃo das cidades manufactoras da Gran-Bretanha. Lille, Mulhouse, Rheims, RuŃo, reproduzem o triste quadro de perversŃo que apresentam as classes laboriosas em Manchester, Birmingham, Leeds, Glasgow, etc. A pobreza extrema, sem esperanńa e sem limites, jß ahi golfa tambem das caldeiras de vapor. A industria individual tende rapidamente a converter-se na industria, digamos assim, collectiva. A officina desapparece diante da fabrica, o homem diante da machina. A questŃo de saber se isto ķ, em absoluto, um mal ou um bem, relativamente aos interesses geraes de qualquer paiz, nŃo a ventilaremos aqui; mas ķ indubitavel que esse transtorno completo na forma do trabalho torna altamente angustiosa a situańŃo dos operarios, e inhabilita-os para depositarem nas caixas economicas sobras de salarios diminutos e frequentes vezes interrompidos. Por outra parte, o modo de ser dos bens de raiz em Franńa ķ exactamente o contrario da indole da propriedade territorial em Inglaterra. O solo inglĻs ķ, por assim dizer, um grande vinculo aristocratico; a Franńa um vasto allodio popular. A terra neste paiz estß retalhada em cento e vinte e cinco milh§es de chŃos ou courellas e tende a subdivir-se ainda mais. DŃo-se casos jß em que o preńo da venda de uma parcella de terreno pouco excede o total das despesas necessßrias para legalisar a transmissŃo. Muitos homens pensadores comeńam a ter serios receios de que a extrema divisŃo do solo venha a impossibilitar em certas circumstancias uma cultura remuneradora; e ainda os que julgam estes receios infundados confessam a conveniencia de uma lei que, distinguindo na propriedade o seu modo de ser, quando este modo de ser importa ß causa publica, do direito do individuo ß mesma propriedade, consinta em todas as divis§es possiveis deste direito, mas prohiba que se retalhem indefinidamente os pequenos predios. O systema dos _quinh§es_ do Alemtejo, que tem uma razŃo de ser, mas que estß longe de ter a importancia que teria quando applicado ßs glebas de moderada grandeza, prova que a doutrina que distingue o modo de ser da propriedade do direito de propriedade ķ reduzivel ß praxe. Em Franńa, porķm, fora difficil entrar nesta senda que repugna a habitos inveterados da vida civil da nańŃo. No estado actual das cousas alli, o lavrador proprietario ou ainda o simples rendeiro acha facilidade em empregar immediatamente na acquisińŃo de terras as suas economias, sem que lhe seja necessario accumulß-las por largos annos nas caixas economicas. Quatrocentos, duzentos, cem francos que, lhe sobejem, deduzidas as despesas de cultura e domesticas, ķ quanto basta; lß encontra logo um prado, uma courella, um cerradinho, que comprado e cultivado com esmero, lhe produzirß um lucro maior que o limitado juro da caixa economica: prefere, portanto, aquelle expediente. Para elle esta bella instituińŃo torna-se realmente inutil. Eis, quanto a n¾s, a explicańŃo da analogia entre a Franńa e a Inglaterra pelo que respeita ß proporńŃo das diversas classes de contribuintes das caixas economicas. A condińŃo dos operarios fabris ķ semelhante nos dous paizes. Quanto ß populańŃo rural, essa, em Inglaterra nŃo contribue, porque a sua situańŃo pouco melhor ķ que a do obreiro da industria, e o proprietario da pequena gleba ķ uma excepńŃo pouco vulgar; em Franńa, porque ķ facilimo para os pequenos capitaes o transformarem-se em propriedade territorial. Assim naturalmente explicada, essa analogia nŃo invalida as considerań§es anteriormente feitas. Em Portugal o caso ķ diverso. Entre n¾s o modo mais commum de possuir a pequena propriedade ķ a emphyteuse. Para o sabermos nŃo precisamos de estatistica: basta olhar ao redor de n¾s. Nas provincias do norte, pode dizer-se, talvez, que ķ rara outra especie de propriedade. Sommados os prazos, os vinculos, as vias publicas, os terrenos chamados _nullius_, pouco faltaria para ter a medida superficial dessas provincias, e ainda ao sul do reino sŃo por milhares os terrenos emphyteuticos tanto ruraes como urbanos. Os vastos allodios s¾ predominam no Alemtejo, se ķ que os vinculos lhes nŃo levam a palma. Ora a caracteristica da emphyteuse ķ ser um meio termo entre o systema de propriedade em Inglaterra, que nŃo passa, na essencia, de uma odiosa e anti-economica aggregańŃo de morgados, e aquelle systema illimitadamente parcellario da Franńa, que suscita as apprehens§es dos pensadores. A emphyteuse, collocada no meio destes dous extremos, se for simplificada e constituĒda de um modo accorde com as idķas e costumes das sociedades modernas, serß sempre uma das mais sensatas e beneficas instituiń§es civis, e os seus resultados immensos nas crises sociaes que despontam no horisonte. Radicada nos habitos nacionaes, parece-nos que nŃo corre o perigo de ser abolida; mas se alguem o tentasse e o obtivesse, faria um bem mau servińo ao seu paiz. O prazo fateusim hereditario realisa o desejo, por tantos manifestado em Franńa, de que os terrenos que por successivas divis§es desceram a um limitado perimetro, passassem indivisos, sem que por isso deixasse de ser divisivel o direito de propriedade sobre elles. ╔ n'um paiz assim, se nos nŃo enganamos, que a vantagem da existencia de caixas economicas ķ immensa. Em geral os prazos de certa grandeza excedem em valor as economias annuaes que qualquer lavrador mediocre ou seareiro pode realisar; mas estas economias, accumuladas por alguns annos, bastarŃo nŃo raro para a acquisińŃo de um desses prazos, que diversas causas tŃo frequentemente attrahem ao mercado. Quem conhece os habitos do homem do campo sabe que, poupado durante a maior parte do anno, porque os recursos lhe nŃo sobejam, quasi sempre desbarata uma porńŃo do producto do seu suor na occasiŃo das colheitas. Pagos as rendas, f¾ros e impostos, reservadas as sementes, provida a sua parca dispensa, acha-se ainda com sobras mais ou menos avultadas. Illude-se entŃo por alguns dias e supp§e-se rico. Quer gosar; e essas sobras, que poderiam constituir lentamente um peculio consideravel, vŃo-se em luxo e em festas, quando nŃo no jogo, na embriaguez ou na devassidŃo. Se houvesse, porķm, um estimulo de cubińa que lhe excitasse o animo, essas sobras assim malbaratadas converter-se-hiam em capitaes uteis, e tanto mais uteis quanto, pertencendo ao mesmo homem de trabalho, iriam fecundar duplicadamente a terra. Depois, n'um paiz cuberto de baldios, para promover cuja cultura ķ impossivel se nŃo olhe seriamente quando posermos treguas ß furia das nossas paix§es politicas, qual nŃo deve ser o fructo das caixas economicas?! Hoje, se estes baldios se offerecessem gratuitamente, libertando de todos os impostos directos quem os cultivasse, achar-se-hiam, provavelmente, muitos que se aproveitassem do beneficio. Mas, quem seria? Os grandes proprietarios e lavradores e alguns dos raros argentarios que as dońuras do agio nŃo trazem captivos. Os pequenos cultivadores, os rendeiros, os seareiros, aquelles, em summa, que, mais que ninguem, importaria se convertessem em proprietarios do solo, esses justamente ķ que ficariam no maximo numero excluidos, porque, por mais diminuto que supponhamos o cabedal necessario para o arroteamento de poucas geiras quando ķ o pr¾prio dono que o faz, sempre deve ser algum, e as classes trabalhadoras nŃo possuem capitaes nem grandes nem pequenos. ╔ evidente, porķm, que as caixas economicas, estabelecidas, propagadas, favorecidas por todos aquelles que podem e devem fazĻ-lo, preparariam os elementos necessarios para, com verdadeira utilidade social, se poder tomar tŃo importante providencia. Hoje entende-se que o melhor instrumento de moralisańŃo e de ventura social consiste em derramar entre o povo o desejo da independencia e o amor da propriedade, associando por esse modo o capital ao trabalho em vez de os conservar em mutua hostilidade, como infelizmente os vemos. Se os modestos peculios se forem successivamente alistando no campo do trabalho, este ha de frequentes vezes triumphar dos capitaes, embora de maior vulto, mas combatendo isolados. Supponhamos que o rico concorre com o homem do povo para adquirir a courella, o prazo, a pequena vinha, o pequeno olival que se levou ao mercado. O primeiro calcula que somma lhe serß necessaria para instrumentos, para sementes, para pagar aos obreiros que hŃo de amanhar o predio, e ķ por este calculo e pelo lucro comparado com o de outras applicań§es do seu dinheiro, que se regula para determinar o maximo que pode offerecer. O homem de trabalho, porķm, que tiver o sufficiente para viver atķ as primeiras colheitas, e occorrer a poucas despesas prķvias que nŃo pode evitar, nŃo compara lucros com lucros, nŃo conta com os obreiros. Dono e obreiro ķ elle; sŃo-no a mulher e os filhos. O lavor da familia valerß o dobro do trabalho salariado que paga o rico, e o primeiro lucro do trabalhador proprietario serß o seu jornal e o dos seus, ganho no proprio campo. P§e o signal de _mais_, por assim nos exprimirmos, onde o abastado p§e o signal de _menos_. Do operario rural quando trabalha no seu predio costumam dizer os outros: ½_anda comsigo_╗, expressŃo admiravel de exacńŃo economica. ╔ isto que explica o phenomeno geralmente observado, de, no mercado, o valor proporcional da propriedade rustica ser na razŃo inversa da respectiva grandeza. O que nŃo serĒa, se o homem do campo de humilde condińŃo poupasse tudo quanto desbarata! Sinceramente confessamos que o unico meio simples, exequivel, pacifico, nŃo de cohibir os abusos do capital pela negańŃo das suas funcń§es economicas, e pela condemnańŃo da propriedade; mas de o cohibir nos excessos com que muitas vezes opprime o operario, consiste em habilitar este para se transformar de proletario em modesto proprietario. O estabelecimento e o progresso das caixas economicas ķ o instrumento mais poderoso de quantos se poderiam excogitar para obter, sem offensa de nenhuns direitos e sem convuls§es sociaes, tŃo salutar resultado. Que, pois, todos aquelles que se condoem das miserias populares: que desejam ver augmentada a prosperidade publica, reformarem-se os costumes, enraizar-se no animo do povo o aferro ao solo natal, protejam por quantos modos souberem esta bella instituińŃo. Exigem-no o christianismo, a philosophia, a moral e a politica. Que as tres grandes forńas intellectuaes da sociedade, o sacerdocio do altar, o sacerdocio da imprensa e o sacerdocio da eschola se liguem para esta grande obra de civilisańŃo. Serß trahirem a sua missŃo negarem-se a fazĻ-lo; porque a idķa a cuja realisacŃo tendem as caixas economicas ķ, embora ao primeiro aspecto o nŃo pareńa, um consectario do evangelho, da philosophia e da boa politica. Essa idķa ķ a manifestańŃo da caridade judiciosa, porque se encaminha a combater os vicios e a miseria, e a alargar a esphera da liberdade humana, contribuindo para a assegurar ßs classes laboriosas, tantas vezes escravas da necessidade do salario. A liberdade pode facilmente ser theoria, pode ser doutrina proclamada na constituińŃo de qualquer paiz; facto, realidade, s¾ o pode ser onde a maioria dos cidadŃos possuam com que serem independentes. Que a experiencia das nań§es extranhas nos aproveite; que o pudor do patriotismo nos incite. Jß que fomos a ultima nańŃo da rańa latina em plantar entre n¾s esta instituińŃo bemfazeja, nŃo nos deshonremos deixando-a logo definhar. Passariamos aos olhos do mundo attonito por barbaros, e todos os nossos protestos de querermos o melhoramento moral e material do paiz seriam havidos por hypocrisia insigne. Sem civilisar, morigerar e felicitar as classes populares, todo o progresso ķ futil. Dirigimos estas ponderań§es especialmente ß classe media e ao clero. Naquella reside a illustrańŃo, a riqueza e verdadeiramente o poder; nas mŃos deste a preponderancia que dß o predominio sobre as consciencias. Que tanto uma como outro usem da sua influencia para attrahir o povo ao caminho da previsŃo, da economia e das legitimas ambiń§es e esperanńas. NŃo s¾ elle, hoje rude, pobre e inclinado a vicios ignobeis, lucrarß com isso; mas tambem as classes mais elevadas ganharŃo na paz e ordem publicas, que se irŃo firmando ß proporńŃo que as classes inferiores se melhorarem nos costumes e na ventura domestica. Empreguemos o exemplo e a persuasŃo: uns poucos de cruzados postos nas caixas economicas nŃo produzirŃo, de certo, vantagens apreciaveis para o que possue uma fortuna avultada ou ainda mediana; mas fructificarŃo para o povo, gerando a confianńa e despertando nelle o instincto da imitańŃo. Conspiremos todos para esta grande catechese; e que n'um paiz, onde o habito da leitura ainda ķ limitadissimo, a persuasŃo oral, as relań§es de familia ou de dependencia ajudem as diligencias da imprensa nesta obra de alta moralidade. Deus abenńoarß os obreiros que semeiarem e cultivarem essa rica sementeira de regenerańŃo na terra patria; e o povo, com a sua futura gratidŃo, darß testemunho da benńam da Providencia. [Nota de rodapķ 2: O sr. Antonio de Oliveira Marreca.] [Nota de rodapķ 3: A associańŃo do Monte-pio geral.] AS FREIRAS DE LORV├O *1853* A ANTONIO DE SERPA PIMENTEL Meu amigo.--Escrevo-lhe do fundo do estreito valle de LorvŃo, defronte do mosteiro onde repousam as filhas de Sancho I; deste mosteiro melancholico e mal-assombrado como as montanhas abruptas que o rodeiam por todos os lados: escrevo-lhe com o corańŃo apertado de d¾ e repassado de indignańŃo. Descendo a examinar o archivo das pobres cistercienses, penetrei no claustro por ordem da auctoridade ecclesiastica. Lß dentro, nesses corredores humidos e sombrios, vi passar ao pķ de mim muitos vultos, cujas faces eram pallidas, cujos cabellos eram brancos. Esses cabellos nem todos os destingiu o decurso dos annos: a amargura embranqueceu os mais delles. Quasi todas essas faces tem-nas empallidecido a fome. Morrem aqui lentamente umas poucas de mulheres, fechadas n'uma tumba de pedra e ferro. Estas mulheres ouvem de lß, do seu tumulo, o ruido do burgo apinhado na encosta fronteira, e dividido do mosteiro apenas por um riacho. Naquellas casas de telha-van, negras, gretadas, desaprumadas, com o aspecto miseravel da maior parte das aldeias da Beira, vive uma populańŃo laboriosa, que atķ certo ponto se pode chamar abastada, e a que, pelo menos, nŃo falta o pŃo nem a alegria. No mosteiro sumptuoso, vasto, alvejante, com um aspecto exterior quasi indicando opulencia, ķ que nŃo ha pŃo, mas s¾ lagrymas. LorvŃo ķ peior do que um carneiro onde se houvessem mettido vinte esquifes de catalepticos, sellando-se para sempre a lagea da entrada. O cataleptico, fechado no seu caixŃo, ouve, sente, tem a consciencia de que foi sepultado vivo. Nas trevas e na immobilidade, o terror, a desesperańŃo, a falta de ar matam-no em breve: a sua agonia ķ tremenda, mas nŃo ķ longa. Aqui ķ outra cousa: aqui vĻ-se, por entre as grades de ferro, a luz do cķu, a arvore que dß os fructos, a seara que dß o pŃo, e tudo isto vĻ-se para se ter mais fome. Todos os dias uma esperanńa duvidosa e fugitiva atravessa aquellas grades de envolta com os primeiros raios do sol: todos os dias essa esperanńa fica sumida debaixo das trevas que ß tarde se precipitam sobre LorvŃo das ladeiras do poente. Depois as noites de insomnia; depois o choro; depois, sabe Deus se a blasphemia! Dez vezes que tenhamos lido o Dante, ao chegarmos ß descripńŃo da torre de Ugolino errińam-se-nos sempre os cabellos. Mas LorvŃo ķ uma torre de Ugolino. A differenńa estß em que no carcere da _Divina Comedia_ havia um homem forte de alma e de corpo, affeito ß dor e ßs scenas de d¶r: aqui ha dezoito ou vinte mulheres na idade decadente, que se affizeram na juventude aos commodos, aos regalos, e atķ ao luxo compativel com as condiń§es da vida monastica. Lß o _fiero pasto_ acabava, e depois morria-se rapido. Aqui nŃo: aqui ha justamente quanto basta para prolongar por mezes e por annos o martyrio. Dir-se-hia que existe uma providencia infernal para que nŃo falte ßs freiras de LorvŃo o restrictamente indispensavel para, lento e lento, se lhes irem os membros mirrando n'um longo expirar, debeis e senis. Imagine, meu amigo, uma noite de inverno, no fundo desta especie de pońo perdido no meio da turba de montes que o rodeiam: imagine dezoito ou vinte mulheres idosas, mettidas entre quatro paredes humidas e regeladas, sem agasalho, sem lume para se aquecerem, sem pŃo para se alimentarem, sem energia na alma, e sem forńas no corpo, comparando o passado, sentindo o presente e antevendo o futuro. Imagine o vento que ruge, a chuva ou a neve fustigando as poucas vidrańas que ainda restam no edificio; imagine essas orgias tempestuosas da natureza que passam por cima das lagrymas silenciosas das pobres cistercienses, e as horas eternas que batem na torre. Imagine tudo isto, e sentirß accender-se-lhe no animo uma indignańŃo reconcentrada e inflexivel. Ha poucos dias passou-se em LorvŃo uma scena tremenda. N'um accesso de desesperańŃo, parte destas desgrańadas queriam tumultuariamente romper a clausura; queriam ir pedir pŃo pelas cercanias. Custou muito contĻ-las. Tinha-se apoderado dellas uma grande ambińŃo; aspiravam ß felicidade do mendigo, que p¾de appellar para a compaixŃo humana; que p¾de fazer-se escutar de porta em porta. Era uma vantagem enorme que obtinham. A sua voz ķ demasiado fraca, e os muros de LorvŃo demasiado espessos. Gemidos, brados, prantos, tudo ķ devorado por esse tumulo de vivos. Ao menos, surgiam como Lazaro da sua sepultura. Gemidos, brados, prantos, nada disso chega aos ouvidos dos homens que exercem o poder nesta terra; nada disso os incommoda. Entretanto, se eu falasse com elles, dar-lhes-hia um conselho. Talvez o ouvissem, porque a minha voz ķ um pouco mais forte que a das velhas freiras. Era o de enviarem aqui sessenta soldados, formarem as monjas de LorvŃo em linha no adro da igreja e mandarem-lhes dar trĻs descargas cerradas. Desapparecia, a troco de poucos arrateis de polvora, um grande escandalo, e resolvia-se affirmativamente um problema a que nunca achei senŃo soluń§es negativas, o da utilidade da forńa armada neste paiz. Sim, isto era util, porque era atroz; porque era uma festa de cannibaes; porque se gravava na mente dos homens; porque ficava na historia, como um padrŃo maldicto, para instaurar no futuro o processo desta gerańŃo. Mas nŃo era infame, nŃo era covarde; nŃo era o assassinio lento, obscuro, atraińoado, feito com a mordańa na boca das victimas. Corria o sangue durante alguns minutos: nŃo corria o suor da agonia durante annos. Era uma scena de delirio revolucionario; mas nŃo era um capitulo inedito para ajunctar aos annaes tenebrosos do sancto officio. A historia recente de LorvŃo ķ simples. Os bens acumulados naquelle cenobio durante dez seculos tinham-no tornado demasiadamente rico. A sua renda annual dizem que orńava por mais de oitenta mil cruzados. Como mosteiro cisterciense, LorvŃo dependia dos monges brancos. Cem freiras de que se compunha a communidade, e que viviam opulentamente, gastavam muito, mas nŃo gastavam tudo. Cinco frades bernardos, aposentados n'um palacete contiguo ao mosteiro, consumiam o resto. Eram elles que administravam as grossas rendas da casa. Os banquetes e as festas succediam-se alli sem interrupńŃo. Os hospedes eram continuos. O manto da religiŃo cobria todos os excessos da opulencia. A chronica dos bernardos em LorvŃo subministra mais de um capitulo curioso para a historia dos _bons tempos_ que jß lß vŃo. Atķ aqui nada ha extranho. Mas os frades entenderam que deviam comer a renda e o capital das cenobitas laurbanenses. Refere-se que certa vez, nŃo sabendo explicar plausivelmente o dispendio de uma verba de 600$000 rķis, escreveram n'umas contas irrisorias que mostravam annualmente ß abbadessa: _Palitos--600$000 rķis_. Pode ser fabula. O que, porķm, nŃo ķ fabula ķ que durante muitos annos o dinheiro das decimas que o mosteiro devia pagar esqueceu em Alcobańa, dando-se em conta como pago. Por outro lado as _necessidades da casa_ tinham feito com que suas reverencias empenhassem a communidade em 6:000$000 ou 8:000$000 rķis. Os juros desta divida tambķm se nŃo pagaram. Veio o anno de 1833. Desappareceram os dizimos, principal rendimento do mosteiro. Os direitos senhoriaes desappareceram tambem. Os frades, enxotados do seu feudo de LorvŃo, sairam d'alli, mandando primeiramente derribar todas as arvores que povoavam aquellas encostas e vendendo as madeiras. Era o ultimo _vale_ que davam a suas irmŃs. Ainda assim, ficava ßs monjas uma honesta subsistencia. Passado, porķm, apenas um anno, o fisco arrebatou-lhes quasi tudo pela divida de 25 contos de rķis de decimas, e os credores particulares levaram-lhes depois os demais bens. Restavam-lhes apenas alguns pequenos foros espalhados por diversos districtos, os quaes geralmente lhes sŃo recusados, ou cuja difficil cobranńa quasi consome o producto delles. Vacillantes entre a vida e a morte, as freiras de LorvŃo prolongam uma existencia de d¶r e miseria pendente das eventualidades desse tenue rendimento. Ha um ou dous annos, o governo deu-lhes a esmola de um subsidio: este subsidio, porķm, cessou. Ignora-se o motivo. Por ventura alguma secretaria de estado precisava de novos estofos nas suas commodas poltronas, ou os felpudos tapetes das salas ministeriaes tinham perdido o brilho das suas c¶res variegadas, e cumpria renovß-los. SŃo despezas inevitaveis, e ķ necessaria a economia. Se assim foi, respeitemos as exigencias imperiosas da dignidade governativa. Alta noite, durante o inverno, vinte mulheres curvadas pela inedia e pela velhice podem dirigir-se ao coro, calcando quasi descalńas as lageas humidas e frias destes claustros solitarios; mas as botas envernizadas de suas excellencias devem ranger mollemente sobre um pavimento suave, e as suas cabeńas, afogueiadas pelas profundas cogitań§es, reclinarem-se em fofos espaldares. Todavia a magestade das secretarias e os apices da economia nŃo excluem a tolerancia, nem a indulgencia. Fańo essa justińa ao poder. Quando a ultima freira de LorvŃo expirar de miseria, ou debaixo de alguma dessas paredes interiores do mosteiro que ameańam desabar, os ministros soffrerŃo com animo paternal que mŃos piedosas vŃo lanńar o cadaver da pobre monja no ossuario de sete seculos, onde repousam as cinzas de milhares de suas irmŃs. Depois venderŃo o edificio e a cerca a algum destes judeus do seculo XIX, a que chamamos agiotas, se algum houver a quem passe pelo espirito ter uma casa de campo em LorvŃo. Meu amigo: se a indignańŃo consentisse o riso, se nŃo se tractasse de uma questŃo grave e triste, eu riria do afan da imprensa em ventilar os meios de acudir ß desgrańada ilha da Madeira. O remedio ha de ser o abandono. Quando vejo a facilidade com que a sorte das freiras de Portugal se tornaria feliz, e considero o estado de LorvŃo, de Cellas, e de tantos outros mosteiros, como hei de esperar que remedeiem um mal cuja cura ķ mil vezes mais difficil? Na secretaria da justińa encontram-se as provas de que a renda dos bens que ainda possuem os conventos do sexo feminino em Portugal excede a 200:000$000 rķis, e todavia ha centenares de freiras que morrem ß mingua. SŃo dous factos que nŃo carecem de commentario. ╔ a manifestańŃo mais eloquente de que nŃo ha governo nesta terra. Existem mosteiros, cujas habitadoras vivem na opulencia, e onde o superfluo se desbarata de um modo escandaloso. NŃo digo quaes. E para que apontß-los? Aposto meia moeda, uma moeda atķ, contra mil acń§es da companhia Hislop, que se lembravam logo de reduzir esses mosteiros ß mendicidade para fazerem com o rendimento delles sessenta coroneis e duas secretarias de estado novas. Antes assim como estß. Defendiam-nos mais, e administravam-nos mais. Deus nos livre disso! ╔ certo, porķm, que para as freiras de LorvŃo viverem tranquilamente os seus ultimos dias, bastava que nos homens do poder tivesse existido um leve instincto de equidade. Os frades de Alcobańa roubaram 25:000$000 rķis a LorvŃo. Eram responsaveis por elles. A sua responsabilidade passou para o fisco seu herdeiro e successor. As decimas de LorvŃo deviam ir buscar-se aos bens de Alcobańa, logo que se provasse que Alcobańa espoliara fraudulentamente LorvŃo. Averiguou-se o facto? NŃo. O fisco executou as freiras, e recebeu duas vezes a mesma divida. Onde houvesse moralidade na administrańŃo publica practicava-se isto? Mas porque o importuno com esta larga historia? NŃo ķ, meu amigo, s¾ para desabafo: ķ para lhe pedir um favor. Supponha que viu, como eu vi, as faces enrugadas e pallidas das monjas de LorvŃo, por onde as lagrymas se penduravam quatro a quatro, emquanto vozes convulsas descreviam scenas do longo drama de miseria de que este sepulchro de vivos tem sido theatro durante vinte annos: supponha que olhava para estas janellas mal reparadas, para estas paredes verdoengas, cujo aspecto produz um sentimento inexplicavel de frio, apesar do calor da atmosphera n'um dia de julho; para as alfaias rońadas e poĒdas; para os proprios trajos das freiras; que lia em tudo isso, repetida por cem modos, uma palavra s¾: _infortunio, infortunio, infortunio_! Que fazia? Com o seu corańŃo, com os seus principios, e redactor de um jornal que tem largas sympathias, sentia-se grande e forte pondo a sua penna eloquente ao servińo da desgrańa e da fraqueza. Fańa-o, meu amigo; fańa-o! Peńa esmola para as freiras de LorvŃo, que foram ricas e felizes na mocidade, e que na velhice tem fome. A velhice ķ sancta! Ponha esse contraste do passado e do presente perante os olhos dos opulentos e ditosos, para que se lembrem com alguns cruzados das pobres que gemem debaixo destas abobadas escondidas no meio dos montes ladeirentos e agrestes do concelho de Penacova. Ao governo nŃo peńa nem diga nada; deixe esses homens ao seu destino; deixe-os estofar poltronas e dormir nellas. Deus e os vindouros hŃo de julgar-nos a todos. Se entender que esta carta de uma testemunha ocular p¾de servir de thema ßs suas considerań§es, publique-a. O homem que vĻ o que eu vi e abafa no peito o grito da indignańŃo ou ķ um malvado ou um covarde, e eu espero nŃo merecer jßmais nenhum desses titulos. Imprima esta carta no todo ou em parte, se quizer; porque folgarei com isso. O que importa ķ ver se obtemos despertar a compaixŃo publica a favor destas infelizes. Auctorisando-o, porķm, a publicar as idķas que me assaltaram ao presenciar o espectaculo atroz e repugnante que estß diante de mim, advirta que nŃo ha nisso nem virtude, nem audacia. Incommodam-me mediocremente as coleras de certa gente, e a malevolencia ou antes o odio della ķ titulo que aprecio, porque creio que ha de honrar perante a posteridade quem quer que o possuir, se ķ que este paiz nŃo caminha fatal e irremediavelmente ß dissoluńŃo social. DO ESTADO DOS ARCHIVOS ECCLESIASTICOS DO REINO E DO DIREITO DO GOVERNO EM RELAŪ├O AOS DOCUMENTOS AINDA NELLES EXISTENTES PROJECTO DE CONSULTA SUBMETTIDO ┴ SEGUNDA CLASSE DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS *1857* Senhor.--Manda V. M. que a Classe de sciencias moraes, politicas e bellas-letras da Academia Real das Sciencias de Lisboa consulte sobre as representań§es dirigidas a V. M. por diversas corporań§es ecclesiasticas, que recusara obedecer ß portaria de 11 de setembro de 1857 pela qual se ordenou a entrega de certos documentos antigos pertencentes aos cartorios dessas e d'outras corporań§es, para serem depositados no Archivo nacional da Torre de Tombo, onde tem de ser examinados, a fim de se transcreverem aquelles que se reputarem dignos de entrar na collecńŃo dos Monumentos Historicos de Portugal, que esta Classe estß publicando, e que se tornou pela ultima lei do orńamento uma obra verdadeiramente nacional, visto que a sua existencia se estriba hoje n'uma providencia legislativa. Examinando a portaria de 11 de setembro e as representań§es que ella suscitou, a Classe nŃo p¾de deixar de deplorar que um acto do poder executivo em que s¾ transluz o amor das letras e o patriotismo illustrado e circumspecto do Governo de S. M. encontrasse resistencias, ßs quaes se buscaram pretextos, que nem sequer tem o merito de plausiveis, e que ao mesmo tempo envolvem affirmativas erroneas de doutrina e de facto, que esta Classe, pertencendo a um dos primeiros corpos scientificos do paiz, nŃo deve deixar sem correctivo, atķ porque foi ella, nŃo s¾ quem sollicitou a transferencia d'aquelles documentos, mas tambķm quem aconselhou a sua conservańŃo no Archivo geral do reino, circumstancia esta que, diante de inexplicaveis resistencias, a forńam, bem contra sua vontade, a dar as raz§es que a moveram a suggerir esse ultimo arbitrio ao Governo de V. M. Dos papeis transmittidos ß Classe por soberana resoluńŃo de V. M., comparados com as communicań§es dos commissarios encarregados da recepńŃo dos antigos pergaminhos indicados pela Classe, resulta que nenhum prelado diocesano recusou entregar os documentos que foram pedidos dos archivos das respectivas mitras, ou de outros immediatamente dependentes dos mesmos prelados. Provaram assim que comprehendiam, como o Governo e o Parlamento o haviam comprehendido, a magnitude e o valor do trabalho que a Academia emprehendera, provando igualmente que o episcopado portuguĻs nŃo degenerou, e que o baculo pastoral dos Caetanos Brand§es, dos Cenaculos, dos Avellares, dos Lemos, dos S. Luiz nŃo cahiu em mŃos indignas delle. A Classe compraz-se em poder dar um testemunho de agradecimento em nome das letras a quem tŃo nobremente sabe conciliar a dignidade do caracter episcopal com o reconhecimento do direito do Governo, e com o sentimento da gloria litteraria que resulta para o paiz da publicańŃo dos seus monumentos historicos, empreza que jß ķ devidamente apreciada, nŃo s¾ entre n¾s, mas tambem pelos homens competentes de outras nań§es da Europa. Do mesmo modo resulta dos documentos officiaes remettidos pelo Governo ß Academia e das communicań§es dos agentes desta, que umas corporań§es se mostraram promptas a obedecer ao Governo, que outras desobedeceram, limitando-se a declarar oficialmente aos agentes da Academia o motivo do seu proceder, e que outras desobedeceram e representaram a V. M. VĻ-se d'aqui que entre ellas ha desacordo sobre a extensŃo dos respectivos direitos, e que algumas entendem, e bem, como os prelados maiores, que o Governo nŃo ultrapassou os limites das suas attribuiń§es. Para poder apreciar devidamente os fundamentos da resoluńŃo tomada por algumas das corporań§es de mŃo-morta, de que resultaria tornar-se impossivel a continuańŃo de um trabalho que hoje a lei f¾rńa o Governo e a Academia a realisar, cumpre expor o estado da questŃo e reunir as objecń§es ao cumprimento da portaria de 11 de setembro, oferecidas nas diversas representań§es recebidas pelo Governo e communicadas ß Academia, e nas respostas que foram dirigidas officialmente ao agente desta nas provincias do norte. NŃo podendo qualificar-se o acto das corporań§es que recusaram fazer a entrega sem recorrer a V. M., senŃo de pura e simples desobediencia, a Classe abstem-se de indicar qual deva ser em tal caso o procedimento do executivo, encarregado de cumprir as resoluń§es do poder legislativo. O Governo de V. M. sabe perfeitamente qual ķ neste caso, nŃo s¾ o seu direito, mas tambem o seu dever. Todavia a Classe nŃo p¾de deixar de se fazer cargo dos motivos de recusa que directamente lhe foram dados, e conjunctamente d'aquelles sobre que ķ mandada consultar. A Academia pela Classe de sciencias moraes, politicas e bellas letras sollicitou a vinda a Lisboa dos documentos anteriores ao anno de 1280 que existiam, nŃo s¾ nos cartorios dos extinctos mosteiros, mas tambķm nos das corporań§es de mŃo-morta nŃo abolidas, pedindo ao mesmo tempo, para maior seguranńa desses documentos, e para evitar uma responsabilidade que lhe era inutil tomar, que fossem depositados no Archivo geral do reino, aonde os academicos encarregados da publicańŃo dos Monumentos Historicos podiam, sem incommodo grave, ir fazer a escolha e os mais trabalhos necessarios ßcerca dos que se achasse que deviam entrar naquella collecńŃo. A Classe possuia jß a este tempo um inventario succinto de todos os documentos anteriores a essa data, que ainda existem nos archivos dos districtos centraes e septemtrionaes do reino, e que montam a alguns milhares. Este inventario fora feito por um commissario da Academia com auctorisańŃo do Governo, nos annos de 1853 e 1854. A correspondencia deste commissario, no desempenho das funcń§es que lhe tinham sido commettidas, e em conformidade das instrucń§es que lhe haviam sido dadas, fez conhecer ß Classe qual era o deploravel estado da maior parte dos cartorios, nŃo s¾ das corporań§es extinctas, mas tambem das existentes. A perda de antigos documentos, quanto ao passado, era jß immensa, e podia prever-se qual seria quanto ao futuro, conservando-se as cousas no estado em que se acham. Convencida de que fazia um bom servińo ao paiz aconselhando o Governo a que conservasse no Archivo geral do reino os documentos chamados a Lisboa, depois de examinados e utilisados litterariamente, a Academia nŃo hesitou em fazĻ-lo; absteve-se porķm de fundamentar com os factos de que adquirira conhecimento um conselho, na verdade nŃo pedido, mas que o seu caracter de corpo litterario official lhe impunha o dever de dar em materia de sua competencia. Procurava assim evitar ßs corporań§es existentes o desgosto que a narrativa de certos factos, que podiam vir a ser publicos, devia causar-lhes, e ao mesmo tempo precaver a continuańŃo de perdas irreparaveis. Entretanto, como o fim que entŃo se propunha, e que hoje se prop§e, era o estudo e escolha desses documentos para continuar o trabalho que encetara, deixou ao prudente arbitrio do Governo ponderar se conviria mais restituir os documentos enviados ß Torre do Tombo, se conservß-los alli, propondo a V. M. a resoluńŃo mais conveniente. A portaria de 11 de setembro de 1857 nŃo ķ outra cousa senŃo a reproducńŃo deste pensamento da Academia, abrańado pelo Governo de V. M. Expondo summariamente as raz§es que ha para se conservarem de futuro na Torre do Tombo os documentos pedidos, o ministro dos negocios ecclesiasticos e de justińa limitou-se comtudo a ordenar em nome de V. M. a entrega delles, reservando para tempo opportuno resolver se devem ser alli conservados ou restituidos aos cartorios das corporań§es. VĻ-se, pois, que nessa parte as representań§es eram licitas, e ķ atķ possivel que as ponderań§es a favor da restituińŃo fossem de ordem tal que movessem o animo de V. M. a ordenß-la. Isto, porķm, nŃo dispensava as corporań§es de obedecerem quanto ß entrega e ao deposito temporario no Archivo nacional, que era por entŃo o que preceptivamente se estatuia. Quanto a este ponto, nenhuma opposińŃo plausivel se poderia fazer, e as recusas dirigidas officialmente ao commissario da Academia constituem nessa parte, como jß se notou, uma desobediencia formal. E esta desobediencia ķ tanto mais grave quanto ķ certo que se o Governo de V. M. nŃo procurasse reprimi-la, della resultaria, nŃo s¾ a impossibilidade de se cumprirem as resoluń§es do Parlamento, mas tambem grande descredito para qualquer ministro que tolerasse semelhantes obstaculos ß continuańŃo de uma empreza que, por nos servirmos da phrase de um de dos maiores sabios da Franńa, constituirß um dos tĒtulos mais gloriosos do reinado de V. M. A Classe lamenta que taes resistencias venham de corporań§es parte das quaes sŃo compostas de individuos em quem se deve suppor maior ou menor educańŃo litteraria, e que, em relańŃo ß sociedade civil, sŃo verdadeiros funccionarios publicos. NŃo era por certo de esperar que, tanto nas representań§es dirigidas a V. M., como nas respostas dadas ao agente da Academia, se encontrasse tŃo singular esquecimento do direito publico antigo e moderno do paiz, transtorno tŃo completo das boas doutrinas, tŃo inexacta exposińŃo de factos, e atķ accusań§es tŃo offensivas contra a Academia, que V. M. relevarß por certo que esta Classe, repellindo-as, seja talvez sobradamente severa. As ponderań§es feitas e os factos allegados, tanto nas representań§es dirigidas a V. M., como nas respostas officialmente dadas ao commissario da Academia, resumem-se no seguinte: Diz uma das corporań§es que nŃo pode convir na alheańŃo dos antigos documentos do seu cartorio, porque na maxima parte sŃo comprovativos de contractos onerosos, e quando o nŃo sejam, illustram esses contractos, e que a portaria de 11 de setembro alheia a favor do Archivo da Torre do Tombo documentos que sŃo propriedade da mesma corporańŃo. Diz outra: que a portaria encerra uma determinańŃo inteiramente nova e contraria ß practica atķ hoje seguida. Declara ao mesmo tempo, n'um officio ao commissario da Academia, que para o exame de qualquer documento no seu archivo ķ indispensavel licenńa regia e uma ordem do prelado ordinario; mas que para se tirarem documentos seriam necessarias ou uma lei que dispensasse as formalidades do esbulho da propriedade, ou sentenńa do poder judicial. Outras duas corporań§es limitam-se a dizer em officios ao dito commissario que a portaria de 11 de setembro offende o direito de propriedade, e que recusam a entrega por terem representado sobre esse assumpto ao Governo de V. M., representań§es que esta Classe nŃo p¾de apreciar porque nŃo lhe foram communicadas. Duas corporań§es monasticas do sexo feminino declaram, emfim, nŃo poderem entregar os dictos documentos por causa dos inventarios dos seus bens a que se estß procedendo por ordem do Governo, em virtude de resoluńŃo de Cortes. As outras corporań§es mostram-se todas promptas a obedecer ßs ordens de V. M. Senhor, os membros da Classe de sciencias moraes, politicas e bellas letras nŃo podem deixar de dizer a V. M. com o respeito devido ao chefe do estado, mas com a liberdade de homens de letras, que ķ impossivel acumular mais desvarios do que os que se lĻem nos documentos acima substanciados. Elles provam peremptoriamente a necessidade de uma profunda reforma no systema da educańŃo do clero, e de vigilancia da parte do Governo sobre o modo como sŃo providos os beneficios ecclesiasticos. Predomina, em geral, nos documentos que temos presentes uma certa somma de idķas, nŃo sabemos se astutas, mas sem duvida falsas. ╔ uma dellas a confusŃo dos bens administrados pelas corporań§es com os titulos primitivos dos mesmos bens, confundindo-se igualmente esses titulos primitivos com os actuaes; os que podem ter uma utilidade practica na administrańŃo ou no foro com os que s¾ em casos rarissimos servirŃo para fortificar ou esclarecer o testemunbo d'est'outros. Posses immemoriaes, tombos incomparavelmente mais modernos do que os pergaminhos anteriores ao seculo XIV, contractos de epochas posteriores, mais ou menos recentes, eis os verdadeiros documentos de uso practico, que se conservam nos cartorios das corporań§es. E se esses pergaminhos antigos tem a utilidade material que se lhes attribue, as corporań§es devem possuir Ēndices regulares que apontem em substancia o objecto, a indole d'elles e os logares onde se acham nos respectivos cartorios: depois, devem abundar os exemplos de casos nos quaes ellas os hajam utilisado nos ultimos vinte ou trinta annos. Exija o Governo de V. M. aquelles Ēndices; peńa a enumerańŃo especificada destes casos, que por certo nŃo ficarß edificado da verdade das allegań§es nesta parte. Ainda admittindo todas as inexacń§es de direito e de facto apinhadas nas representań§es e officios sobre este assumpto, ha uma circumstancia que torna a denegańŃo absoluta e completa das corporań§es ao cumprimento da portaria de 11 de setembro, nŃo s¾ um acto de vandalismo litterario e de desprezo pela gloria da nańŃo, mas tambem uma verdadeira espoliańŃo feita ao paiz. Na epocha a que pertencem os documentos exigidos, nŃo existia archivo especial do rei ou do estado, o qual s¾ comeńou no tempo de D. Fernando I. Os diplomas de alta importancia, cuja existencia se desejava conservar para a posteridade, manda-vam-se depositar nos cartorios dos cabidos e dos principaes mosteiros, chegando-se aponto de se ordenar esse deposito no proprio corpo do diploma. ╔ um facto este que as corporań§es desobedientes tinham obrigańŃo de nŃo ignorar. Depois, os prelados, os cabidos, as ordens ecclesiasticas e militares exerciam, como donatarios da coroa, actos que importavam manifestań§es de soberania, e contractos em que rigorosamente esses corpos nŃo figuravam senŃo como representantes do poder publico: taes eram os foraes instituindo municipios e comprehendendo provis§es de direito publico local; taes eram os contractos por que se transformavam os terrenos reguengos em jugadeiros, as quotas de fructos em rendas certas, etc. Os documentos desta ordem nŃo respeitam ßs corporań§es; respeitam ao paiz, como aquelles que os antigos monarchas confiaram ß guarda do clero. Suppondo que ellas tivessem direito a negar a entrega dos que exclusivamente lhes dizem respeito, poder-se-hia tolerar que tambem sequestrassem impunemente os documentos da nańŃo por um capricho inexplicavel, ou antes explicavel de mais? Ha, pouco, Senhor, que examinando-se por ordem desta Classe os restos que escaparam do rico archivo do mosteiro de Aguiar, conservados no Thesouro-publico, ahi se foram encontrar no original muitos documentos politicos e economicos da mais alta importancia relativos aos seculos XIII e XIV. Se ainda existissem corporań§es religiosas do sexo masculino, como existem do feminino, ķ natural que, como algumas destas, os monges de Aguiar recusassem obedecer ß portaria de 11 de setembro. Toleraria, porķm, o Governo que esses documentos importantes para a historia, e talvez para quest§es actuaes ou futuras com a Hespanha ßcerca de limites, ficassem sepultados e inuteis nas tristes solid§es do Cima-Coa? E tolerß-lo-hia s¾ porque alguns frades suspicazes e ignorantes receiassem que o conhecimento dos velhos pergaminhos do seu cartorio podesse servir para lhes contrariar interesses materiaes de cuja legitimidade a consciencia os fizesse duvidar? As difficuldades, Senhor, que se oppoem agora ß realisańŃo do empenho da Academia e ao cumprimento da lei jß em parte surgiram quando se ordenou que os cartorios das corporań§es fossem franqueiados ao simples exame de um commissario da mesma Academia. Houve recusas formaes; houve subterfugios dilatorios. Indagou-se o motivo disto, e soube-se que se receiava fosse utilisado o exame a que se procedia em beneficio dos colonos ou proprietarios com quem as corporań§es tem litigios sobre direitos dominicaes; porque a algumas d'ellas, ou a todas, custava a comprehender que se gastasse tempo em decifrar esses pulverulentos e afumados diplomas sem algum interesse material. Note-se agora a infeliz coincidencia entre a resoluńŃo administrativa que chama a Lisboa os documentos de antigos tempos, e a que ordena um inventario dos bens de certas corporań§es de mŃo-morta, e achar-se-ha facilmente, em suspeitas nŃo menos insensatas que as primeiras, a explicańŃo mais plausivel das resistencias que apparecem por esta parte. Os cartorios dos corpos de mŃo-morta tem sido sempre considerados como cousa publica. Uma das corporań§es reconhece-o formalmente no officio que dirige ao commissario da Academia, affirmando a necessidade de licenńa regia, e determinańŃo do prelado, para qualquer extranho examinar os documentos do seu archivo. De certo um particular nŃo precisaria de licenńa regia para facultar a qualquer o uso do seu cartorio ou para deixar sair delle quaesquer titulos. Tanto se consideravam esses archivos como dependentes do Estado, que os seus documentos mereceram sempre uma especie de fķ publica. Em muitos delles, atķ, existiam e existem chartularios, geral e impropriamente denominados Tombos, e feitos em diversas epochas, desde o reinado delrei D. JoŃo II atķ o delrei D. JoŃo V, em que se contķm traslados dos documentos antigos, precedendo provis§es regias, pelas quaes se dß a estas copias o mesmo valor dos originaes, para dellas se passarem certid§es. Esses actos do poder supremo nŃo provam s¾ a consciencia que o Governo tinha da incapacidade ordinaria dos membros das corporań§es, e dos tabelliŃes desses logares para lerem os antigos diplomas: provam tambem o caracter publico de taes archivos; porque nŃo nos consta que provis§es de semelhante natureza se passassem nunca a favor de cartorios particulares. Embora o poder civil dķsse a sua sancńŃo ßs disposiń§es canonicas relativas ß conservańŃo dos documentos dos corpos de mŃo-morta; embora prohibisse, como mais de uma vez prohibiu, a saĒda delles do respectivo archivo, essa prohibińŃo estß justamente demonstrando que elle poderia ordenar o contrario, se entendesse que convinha mais guardß-los n'outra parte. Foi por isto que no reinado de D. JoŃo V se proveu a favor da Academia de Historia, para que se lhe facultasse o conhecimento e copia de todos os documentos das corporań§es de mŃo-morta, que foram obrigadas a transmittir inventarios de todos elles ß mesma Academia. Foi por esse fundamento juridico, que nos estatutos da universidade (L. 2, tit. 6, cap. 3) se determinou que os cartorios dos mosteiros e das cathedraes estivessem patentes aos professores de direito patrio, para lerem, estudarem, extractarem, copiarem, ou fazerem extractar e copiar todos os documentos que entendessem serem uteis ao ensino das leis patrias e da sua historia, disposiń§es que nŃo se estenderam, nem podiam estender, ainda debaixo do absolutismo ferrenho daquella epocha, aos cartorios particulares. ╔, finalmente, ß vista de tal jurisprudencia e de taes exemplos, que na portaria de 11 de setembro o Governo ordena se facilite ß Academia o uso desses diplomas, reservando para si o direito, que indubitavelmente lhe pertence, de resolver sobre o modo mais conveniente da sua futura conservańŃo. Mas, diz uma das corporań§es desobedientes, que foi no proprio archivo della que Brito e BrandŃo tomaram notas dos documentos ahi existentes; que o guarda-m¾r Lousada copiou os mais curiosos e mandou as copias para a Torre do Tombo; que alli se tiraram traslados dos mais importantes para o Archivo de Historia Portuguesa; que a corporańŃo possue no seu seio um paleographo capaz de trasladar tudo, embora nŃo seja tŃo habil como os da capital; que nŃo convem que os documentos andem de mŃo em mŃo; emfim, que a Academia nŃo restituiu integralmente os documentos recebidos por ella, uma unica vez que lhe foram confiados. A Classe desejava, Senhor, nesta consulta nŃo empregar uma unica phrase que nŃo fosse moderada; mas, vendo accusados, se nŃo os membros actuaes da Academia, ao menos os que os precederam, de falta de probidade, e sabendo que essa accusańŃo vai directamente cahir sobre homens tŃo eminentes por sciencia e virtudes como D. Francisco de S. Luiz, Trigoso e outros var§es, cujos nomes sŃo veneraveis para o paiz e para as letras, teme nŃo saber reprimir sempre os impetos de indignańŃo diante das calumnias vertidas sobre as cinzas de individuos que nŃo se podem defender, mas que os academicos de hoje, posto valham menos do que elles, nŃo devem, nem querem deixar sem pleno desaggravo. A corporańŃo que, desobedecendo ao Governo, mostra desconhecer o antigo e o moderno direito publico destes reinos, nŃo foi feliz querendo dar licń§es ß Academia sobre materias de sua competencia, e increpß-la de menos probidade. Se esta virtude tivesse faltado aos seus antigos membros ßcerca de documentos publicos, nŃo seria o melhor meio de preservar os actuaes de semelhantes delictos p¶r-lhes diante os nomes de Brito e Lousada, que passaram a vida, nŃo tanto a distrahi-los, como a forjß-los e a falsificß-los. Curiosas devem ser as memorias por onde consta ß corporańŃo desobediente que o escrivŃo Lousada (despachado por ella guarda-m¾r da Torre do Tombo) mandou para alli copias dos documentos mais curiosos do seu cartorio, do que alißs nenhuns vestigios restam no Archivo geral do reino. Dos que se remetteram para o Archivo de Historia Portuguesa nada tem que dizer a Classe, porque nŃo lhe consta que tal archivo exista ou existisse nunca no mundo. P¾de ser excellente o paleographo que essa corporańŃo inculca ß Academia; mas a Classe emprehendeu um trabalho demasiado serio, para exigir dos membros encarregados da publicańŃo dos Monumentos Historicos a conferencia pessoal das copias destinadas ß publicańŃo com os respectivos originaes, depois de terem apreciado quaes merecem ver a luz publica. Estes trabalhos preliminares, assßs tediosos e longos, nŃo podem os socios effectivos ir fazĻ-los a 50 ou 60 legoas da capital, porque tem aqui outros deveres que cumprir, e por isso nŃo aproveitam o offerecimento. Se o sincero, honesto e judicioso BrandŃo teve a simplicidade de se fiar em copias subministradas pelas corporań§es e nos paleographos habeis dellas, pagou bem caro a sua imprudencia, nŃo havendo, talvez, senŃo um ou dous documentos, dos publicados por integra na 3.¬ e 4.¬ Partes da _Monarchia Lusitana_, que esteja devidamente correcto. Quando, finalmente, esta Classe pede, nŃo que venham para a sua secretaria os documentos que pretende examinar e transcrever, mas que se depositem na Torre do Tombo, para onde os remette directamente a pessoa encarregada de os receber, e onde nŃo ha perigo de se extraviarem, nem de serem presa de algum incendio; quando esta Classe prefere ß propria commodidade ir alli preparar e dirigir os trabalhos de que estß incumbida, temendo os riscos que de outro modo poderiam correr esses restos dos abundantes monumentos historicos que outr'ora possuimos; quando, depois, aconselha ao Governo que os conserve cuidadosamente naquelle archivo, o ponderar-se que nŃo convem que os antigos documentos andem correndo de mŃo em mŃo ķ uma verdadeira inepcia. Desde o comeńo desta consulta e no proseguimento della, a Classe forcejou e forcejarß sempre por nŃo designar nomeiadamente nenhuma das corporań§es a que se refere. Move-a a isso um sentimento de generosidade. ╔ todavia forńada a fazer uma excepńŃo quando se tracta da honra do instituto de que forma parte, e da boa fama dos que precederam os signatarios deste papel nas cadeiras que hoje occupam. Na sua representańŃo dirigida ao digno prelado metropolitano, para ser presente ao Governo, o cabido da sķ de Braga accusa a Academia de nŃo ter integralmente restituido varios documentos que, por ordem do mesmo Governo, lhe haviam sido confiados. Dos registos da Academia consta, com effeito, que para uso da commissŃo de Cortes foram chamados a Lisboa, em 1836, varios monumentos do cartorio daquelle cabido; mas dos actos officiaes, junctos por copia ß presente consulta, se vĻ, 1.░, que a Academia pediu um codice e cinco documentos avulsos do mesmo cartorio, indicando o logar onde estes se achavam, e um volume manuscripto do archivo da mitra; 2.░, que foram remettidos pelo cabido o codice e tres dos cinco documentos pedidos, declarando o presidente da corporańŃo que nŃo fora possivel encontrar os outros dous, nem na gaveta onde deviam estar, nem nas diversas gavetas que diligentemente se examinaram; 3.░, que em 1840 foram devolvidos ß secretaria do reino para voltarem a Braga o manuscripto da mitra, e bem assim o codice e os tres pergaminhos avulsos que tinham vindo do cabido. A restituińŃo foi, portanto, integral. Esses actos officiaes, que a Classe leva ß presenńa de V. M., nŃo sŃo, porķm, s¾ importantes para desfazer uma calumnia: sŃo-no igualmente para provar com quanta razŃo a Classe aconselhou que os antiquissimos documentos chamados agora a Lisboa fossem conservados no Archivo geral do reino. De cinco pedidos pela Academia, indicando ella o logar onde se achavam, apenas tres existiam naquella conjunctura, porque nem alli, nem nas outras gavetas, se acharam. Di-lo o chefe da corporańŃo; e das suas explicań§es se deduz que tambem nŃo havia indice do cartorio, nem registo por onde constasse como haviam sido distrahidos. Se da historia, porķm, dos cinco diplomas, pedidos casualmente, houvessemos de tirar illań§es para o resto do archivo capitular, infeririamos que dous quintos dos seus pergaminhos tĻem sido desencaminhados, apesar das constituiń§es synodaes e das excommunh§es fulminadas contra os dissipadores dos titulos da cathedral, excomunh§es que poderiam gerar nos animos sķrias apprehens§es sobre o destino alķm da campa dos conegos atķ entŃo fallecidos, mas que teriam sido impotentes para salvar da rapina ou do desleixo os primitivos e veneraveis monumentos da antiga metropole da Galliza. Ainda, em relańŃo ßquella remessa de documentos, faz o reverendo cabido bracharense uma severa increpańŃo ß Academia, de que esta Classe nŃo sabe, Senhor, defendĻ-la, mas para esquivar a responsabilidade da qual se offerece em holocausto. O codice e os tres pergaminhos voltaram a Braga ß custa do cabido! ╔ um successo que talvez perturbasse gravemente a economia da fazenda capitular. Liquide-se aquella divida, e a Classe restituirß integralmente o frete dos dous codices e dos tres pergaminhos, como fica provado que se restituiram essas preciosidades. Se nas suas representań§es ao Governo, por intervenńŃo do prelado, o reverendo cabido de Braga calumniou a Academia, no officio ao agente desta calumniou todos os poderes publicos. Diz ahi o reverendo cabido que, para se lhe tirarem os documentos de que se tracta, precisa-se de lei precedente que dispense as formalidades do esbulho da sua propriedade, ou sentenńa do poder judicial que o convenńa de que a deve largar. Estas poucas phrases, senŃo sŃo filhas da hallucinańŃo ou de incrivel ignorancia, sŃo um grave insulto a todos os corpos do Estado. O cabido offende o Governo, porque lhe attribue um acto de espoliańŃo, quando a portaria de 11 de setembro nŃo ķ senŃo uma providencia administrativa ordinaria, e que honra por mais de um modo o mesmo Governo. Offende o poder legislativo, porque o supp§e capaz de fazer leis inconstitucionaes e absurdas. O legislador nem mantem, nem dispensa formalidades no esbulho, porque nunca p¾de determinar o esbulho. Quando estatue a expropriańŃo por utilidade publica, estatue sempre a compensańŃo. Offende o poder judicial, porque presupp§e que elle p¾de ordenar a alguem por sentenńa que largue a propriedade que ķ sua. Quando o magistrado julga que o individuo deve perder o que possue, ķ justamente pelo motivo contrario; ķ porque se convence de que o individuo retem o que nŃo ķ seu; e nesse caso, nŃo tira, mas defende a propriedade. Somos chegados, Senhor, a um ponto, ßcerca do qual a Classe de sciencias moraes, politicas e bellas letras tem, por mais de um modo, o dever de lanńar neste papel algumas considerań§es; porque se tracta de um assumpto que ķ da sua competencia, como corpo official scientifico. O pensamento de qualificar a portaria de 11 de setembro como um acto exorbitante do Governo contra a propriedade nŃo se manifesta s¾ nas phrases acima citadas: revela-se tambem, mais ou menos expressamente, na linguagem de outras corporań§es desobedientes. Na opiniŃo dellas, os antigos pergaminhos dos respectivos cartorios sŃo uma cousa em que o Governo nŃo p¾de tocar, sem quebra do direito constitucional que garante a propriedade dos cidadŃos; porque esses pergaminhos sŃo os titulos dos bens que possuem, os quaes as dictas corporań§es de mŃo-morta supp§e gratuitamente que sŃo uma propriedade sua, analoga ß de qualquer individuo ou associańŃo civil. A Classe disse jß e mostrou como muitos dos documentos de que se tracta, pela sua natureza, pelo sua origem, e por factos historicos sabidos e certos, pertencem pura e simplesmente ao Estado; disse e mostrou jß como os cartorios das corporań§es de mŃo-morta se consideraram sempre archivos publicos; disse e mostrou como os pergaminhos anteriores a 1280 nŃo sŃo nunca, ou quasi nunca, documentos de uso practico nos litigios ou nas duvidas administrativas que podem suscitar-se ßcerca de alguns desses bens; e quando o fossem, nem a portaria de 11 de setembro ordena definitivamente a sua retenńŃo na Torre de Tombo, nem o Governo, supposto que de futuro assim o ordenasse, deixaria de prover do modo que estabelece naquella portaria. As corporań§es obteriam gratuitamente, quando necessarios, transumptos authenticos, f¾rma unica em que elles costumam figurar na tela judicial. Uma ou outra corporańŃo p¾de achar no seu seio ou na localidade onde reside um paleographo legalmente habilitado para authenticar os traslados de antigos documentos; mas, na maior parte dos casos, dada a necessidade de taes copias, elles teriam de vir a Lisboa para serem decifrados e reduzidos os seus transumptos a f¾rma authentica. Qual seria, porķm, mais seguro para os velhos pergaminhos, e atķ mais barato para as corporań§es; isto, ou as providencias a que se refere a portaria de 11 de setembro? As corporań§es falam da propriedade dos pergaminhos, confundindo-a com a de quaesquer outros bens moveis ou de raiz. Os antigos documentos sŃo ou foram titulos de propriedade, o que ķ diverso. Para qualquer cousa ser materia de propriedade precisa de ter um valor de utilidade; servir aos fins e necessidades do homem. NŃo sendo como prova de dominio, elles de nada servem ßs corporań§es; e a nŃo ser como monumentos litterarios ou historicos, nŃo tem nenhum valor real. Por este lado as corporań§es estŃo bem longe de poderem utilisß-los. Como prova do dominio, nem o Governo quer destrui-los, nem guardados no Archivo nacional ficam menos seguros do que no seio das corporań§es, antes incomparavelmente mais. Depois, nŃo ķ o Estado padroeiro de todas essas cathedraes, collegiadas e mosteiros desobedientes? NŃo teve elle sempre o direito de suprema inspecńŃo sobre o cumprimento dos deveres que resultam para esses corpos das condiń§es da sua fundańŃo e instituińŃo? NŃo lhe incumbiu sempre vigiar sobre a conservańŃo e uso dos bens unidos aos mesmos corpos? NŃo deriva immediatamente desse direito o de providenciar do modo mais conveniente sobre a fiscalisańŃo daquelles bens, e de chamar a si os titulos delles quando entender, e sobretudo quando se provar, que esses titulos sŃo tractados com desleixo, ou que podem ser conservados em melhor ordem ou com maior seguranńa, ou finalmente quando precisar delles para verificar se se tem dado abusos que o mesmo Governo possa e deva corrigir? Se as corporań§es crĻem que os documentos que lhes pedem ainda tem o valor de titulos, em virtude de que direito recusam obedecer ß portaria de 11 de setembro? E preciso, Senhor, dizer por uma vez a verdade inteira. As corporań§es recalcitrantes, por um capricho insensato, talvez por insinuań§es perfidas, e provavelmente por apprehens§es infundadas de que o conhecimento dos diplomas e chartularios que se lhes pedem possa ser nocivo aos seus interesses como administradoras de rendas e direitos dominicaes, aparentam por esses velhos pergaminhos, inintelligiveis e indifferentes para ellas, um zĻlo, um affecto que realmente nŃo sentem. Foi isto que as arrastou a invocarem o direito de propriedade, a falarem de tal direito em relańŃo aos bens que desfructam. P¾de o Governo tolerar, toleram os bons principios que as corporań§es se digam proprietarias dos bens que usufruem? Atķ aqui a Classe provou por diversos modos o desarrazoado e illegal das resistencias que suscitaram esta consulta, ainda dada a situańŃo de proprietarias, em que as corporań§es pretendem collocar-se. No caso presente, o antigo direito publico derivado dos antigos principios, das prerogativas do poder supremo como entŃo se concebia, e atķ o direito canonico relativo ao padroado, bastariam para legitimar o acto practicado pelo Governo e justificar as intenń§es manifestadas na portaria de 11 de setembro. Mas esta Classe tem de ir mais longe. Desde que se querem estender as actuaes garantias politicas dos cidadŃos a corporań§es de mŃo-morta, por um sophisma grosseiro; desde que se proclamam doutrinas subversivas que mutilam a acńŃo do poder publico, a Classe tem, pela sua indole, pelos fins da sua instituińŃo, o dever restricto de protestar contra erro tŃo perigoso. SŃo as corporań§es que a f¾rńam ao cumprimento de uma obrigańŃo desagradavel. A propriedade, Senhor, ķ um direito preexistente ßs sociedades, visto derivar da necessidade que tem o individuo de satisfazer aos fins racionaes para que foi creado. O direito de propriedade estriba-se na lei natural, porque ķ inherente ß natureza do homem. Desde que este direito se nŃo collocar acima das leis positivas, quer constitucionaes quer civis, e anteriormente a ellas, a sociedade acceitarß um elemento de dissoluńŃo e de morte. Se ķ o legislador que cria esse direito; se este nŃo o precedeu no mundo, elle p¾de tambķm crear o direito contrario. Reduz-se tudo a uma questŃo de conveniencias moraes e materiaes e de opportunidade, e tanto ķ possivel existir s¾ a propriedade commum, como existir a individual, ou, para exprimir a mesma idķa com diversa formula, tanto ķ possĒvel a nŃo propriedade, como a propriedade. D'aqui nasce que esta ķ primordial e principalmente individual. A idķa de propriedade collectiva, como regra, como principio, depois de andar por seculos ao servińo de um despotismo espoliador; depois de attribuir ao chefe do Estado o dominio imminente e aos subditos uma posse e um dominio incompletos, quando o sentimento da liberdade e a razŃo esclarecida por tal sentimento collocaram os direitos dos cidadŃos ß sua verdadeira luz, veio, apesar de velha e gasta, p¶r-se ß mercĻ das escholas socialistas e communistas. Como em mechanica dizia Archimedes, dĻem a estas esse ponto nas regi§es do direito, e ellas revolverŃo o mundo. A propriedade commum nas associań§es civis voluntarias nŃo ķ senŃo uma forma especial de manifestańŃo da propriedade individual, que lhe muda os accidentes sem lhe alterar a essencia. Dissolvida a associańŃo, a propriedade toma immediatamente os caracteres da individualidade. NŃo assim nas corporań§es de mŃo-morta, cuja existencia depende do poder publico. Ha, por certo, propriedades collectivas; taes sŃo os bens nacionaes de uso commum dos cidadŃos; mas esta especie de propriedade, estribando-se puramente na lei, supprime-se, desapparece, transforma-se, accumula-se, tambem ß mercĻ da lei, e ķ por isso que se denomina propriedade legal. As instituiń§es garantem a propriedade individual, a do cidadŃo, aquella que se funda n'um direito acima das leis e anterior a ellas. NŃo podem ir alķm sem serem antinomicas comsigo mesmas; sem darem ao legislador a funcńŃo de crear e nŃo a de extinguir; sem confundirem o absoluto com o condicional. Os membros das corporań§es de mŃo-morta nŃo gosam menos que outros quaesquer cidadŃos da garantia constitucional pelo que respeita ß sua propriedade particular. NŃo lhes ķ applicavel, porķm, a mesma garantia quanto ß propriedade collectiva que desfructam, porque essa propriedade ķ apenas legal. SŃo proprietarios, como membros d'uma associańŃo? N'esse caso, porque nŃo podem alienar; porque nŃo podem testar; porque nŃo se resolverß em propriedade individual esse cumulo de bens, na hypothese de deixar de existir a corporańŃo? ╔ que a sua existencia nŃo deriva da natureza; deriva do direito positivo. Assim, era com sobrada razŃo que um publicista dizia: ½Do mesmo modo que a suppressŃo de uma corporańŃo nŃo ķ um homicidio, a revogańŃo da faculdade que lhe foi concedida de possuir bens de raiz nŃo ķ uma espoliańŃo╗. Pessoas facticias, a lei p¾de destrui-las, como as creou; e se a sua existencia ķ precaria, como ķ que possuem por um direito absoluto? Comprehende-se que o clero hierarchico desfructe uma porńŃo de bens que o Estado nŃo revocou a si. Como classe de funccionarios, de ministros de uma religiŃo dominante, e por consequencia official, podem ser retribuidos, no todo ou em parte, por este modo: ķ um systema bom ou mau; mas ķ um systema que presupp§e a doutrina de que os bens que administram nŃo sŃo propriedade sua e de que nem sequer usu-fructuarios sŃo por direito proprio. Porque recebem corporań§es e individuos pertencentes ß jerarchia da igreja, e cujas congruas estŃo fixadas, apenas complementos d'essas congruas pelo Thesouro, quando os redditos dos chamados bens ecclesiasticos subministram parte d'ellas? Tractando-se de materias temporaes, se a propriedade ecclesiastica ķ o mesmo que a propriedade individual, donde provĻm a desigualdade que resulta de uma retribuińŃo desigual, que o clero acceita sem murmurar? Se ķ por se attender s¾ a que tenham a _congrua sustentańŃo_, porque nŃo serß esta calculada tambem em relańŃo aos bens patrimoniaes do sacerdote funccionario? Aquelles que hoje invocam o seu direito de propriedade como sendo analogo aos dos cidadŃos tĻem jß reconhecido, pelo facto proprio, que entre as duas cousas nŃo existe paridade. Mas se nos lembrarmos, Senhor, da origem e historia dos bens ecclesiasticos em Portugal, quanto mais deploraveis e imprudentes nŃo acharemos as doutrinas invocadas pelas corporań§es desobedientes, em damno da gloria e das letras patrias! Verdadeiramente, entre n¾s, aos bens d'esses gremios s¾ quadraria uma qualificańŃo repugnante comsigo mesma, a de _propriedade anti-legal_. Comeńaram cedo neste paiz, nos principios do seculo XIII, as leis de amortisańŃo, e jß antes el-rei D. Sancho I, escrevendo a Innocencio III, affirmava o seu direito de privar o clero dos bens que possuia para lhes dar uma applicańŃo em seu entender mais util. Renovadas successivamente as leis de amortisańŃo, foram tantas vezes vilipendiadas e infringidas pela prepotencia do clero quantas de novo promulgadas. As corporań§es julgavam-se entŃo tanto acima do legislador quanto parece julgarem-se hoje acima do Governo. Sem recorrer a outros monumentos das varias phases d'essa permanente revolta de um dos corpos do Estado contra o direito publico do reino, basta abrir successivamente os tres codigos que, um ap¾s outro, regeram este paiz desde o seculo xv atķ os nossos tempos, para vermos que os verdadeiros titulos dos bens usufruidos pelas corporań§es nŃo sŃo tanto os antigos pergaminhos que ellas recusam largar da mŃo para utilidade commum, como o desprezo insolente de leis que os nossos monarchas nunca tiveram forńa para tornar effectivas. As Ordenań§es affonsinas, as manuelinas e as philippinas reproduzem sempre o direito antigo, que prohibia ßs corporań§es de mŃo-morta possuir bens de raiz, mas a clausula pela qual se perdoava a desobediencia passada perdia tudo; porque provava a impotencia da lei, e abria campo a novos abusos, que se tornavam a perdoar para se tornarem a repetir. O melhor titulo de propriedade que as corporań§es podem invocar ßcerca dos bens que desfructam ķ este. V. M. apreciarß a sua legitimidade. Resta unicamente, Senhor, ß Classe de sciencias moraes, politicas, e bellas letras desempenhar um dever que desde o principio d'esta consulta reconheceu incumbir-lhe. ╔ o de dar a razŃo por que aconselhou ao Governo que conservasse no Archivo da Torre do Tombo os documentos mais antigos e preciosos das corporań§es tanto extinctas como existentes, depois de utilisados pela Academia. NŃo foi, Senhor, um conselho dado de leve: foi a triste convicńŃo de que, sem isso, os vestigios e as memorias authenticas das gerań§es que passaram irŃo gradualmente desapparecendo, como atķ aqui tem desapparecido. Nos logares onde se acham, os antigos pergaminhos e chartularios nŃo sŃo entendidos nem apreciados, nem resguardados de um modo conveniente contra os accidentes que possam sobrevir-lhes: nŃo ha ordem racional na sua arrumańŃo, nos raros casos em que estŃo n'alguma ordem: nŃo ha indices aos quaes se possa recorrer quando ķ necessario consultß-los. Por quasi todos os archivos se encontram pergaminhos nas costas dos quaes se escreveu a palavra fatal _inutil_. Inutil quer dizer que nŃo serve a algum interesse material da corporańŃo. Em regra, ķ no meio d'estas inutilidades que se vŃo achar os documentos historicos mais importantes. Quaes tem sido, porķm, os effeitos d'aquella qualificańŃo, quaes continuarŃo a ser, facil ķ adivinhß-lo. N'alguns cartorios a phrase _ķ latim_, tambem escripta nas costas do diploma, soa igualmente como sentenńa de condemnańŃo. Acham-se frequentemente pergaminhos (e destes muitos n'um cartorio onde tal barbaridade nŃo era de esperar), cuja leitura quiz fazer algum curioso inhabil, cubertos de aguadas de galha, que avivaram momentaneamente as letras sumidas, mas que depois formaram uma s¾ mancha negra, onde nŃo tornarß a ser possivel decifrar uma unica palavra. Grande parte dos cartorios dŃo, ao simples aspecto dos seus documentos, as provas de que durante annos estiveram, e de que estŃo ainda expostos ß chuva, ao passo que nŃo ha um s¾ que se possa dizer ao abrigo dos incendios. As abobadas arejadas e enxutas, debaixo das quaes se guardam a parte antiga e ainda uma grande porńŃo das addiń§es modernas do Archivo Nacional, uso adoptado tambem por alguns mosteiros da congregańŃo benedictina, que sabia tractar objectos destes, porque sabia entendĻ-los e apreciß-los, nŃo existem em nenhuma parte. ╔ esse um dos factos que mais instantemente exigem a conservańŃo na Torre do Tombo dos jß tŃo rareiados documentos dos primeiros dous seculos da monarchia e dos que a precederam. A imprevidencia de collocar cartorios em logares nŃo convenientemente isolados fez com que n'uma noite perecessem inteiros os quatro archivos mais ricos de monumentos da Beira Alta, os de Salzedas, Tarouca, S. Pedro das Aguias e S. Christovam de Laf§es, bem como o incendio da Casa-pia, do Porto deu aso a perderem-se (dado que perecessem nas chammas, o que ķ controvertido) quasi todos os cartorios monasticos do Minho, que constituiam a parte mais importante das riquezas do paiz n'este genero. O celebre incendio do Thesouro, que tambem foi fatal a esta especie de documentos, ķ outro grande exemplo da imprudencia que ha em nŃo conservar archivos cuja perda ķ irreparavel em edificios isolados ou pelo menos abobadados. Expostos aos lentos effeitos da humidade e a serem devorados pelas chammas, os antigos documentos das corporań§es nas provincias estŃo, alķm d'isso, sujeitos ßs devastań§es das guerras civis e estrangeiras. Explicam estas em grande parte o nŃo se acharem em quasi nenhumas camaras do reino documentos originaes anteriores ao reinado de D. Diniz. Nas tres provincias do norte, esta Classe apenas p¶de descubrir a existencia de um no cartorio da camara de Braganńa. Sabemos, todavia, que ainda certo numero d'elles existia nos fins do seculo passado. NŃo teria sido mais util para o paiz, e atķ para as proprias municipalidades, que o Governo tivesse feito recolher esses antiquissimos pergaminhos no Archivo geral do reino? Quando el-rei D. Manuel mandou expedir os foraes novos, recolheram-se alli as cartas constitutivas e os privilegios annexos a ellas, respectivos aos concelhos a quem se concediam aquelles foraes novos. ╔ por isso que, em parte, os seus primitivos titulos de liberdade ainda hoje existem. E que ķ feito de tudo o mais que lß ficou? Desappareceu completamente. A estes accidentes accresce a deteriorańŃo permanente que o desleixo e a ignorancia produzem. No cartorio de certa corporańŃo, lanńado pela janella f¾ra durante a guerra peninsular por alguns soldados franceses, e de que s¾ uma pequena parte foi recolhida, achou-se ainda em 1853 incrustado nos pergaminhos o lodo em que estiveram mergulhados durante alguns dias; tal tinha sido o desvelo da corporańŃo ßcerca dos monumentos que salvara. NŃo sabemos se ķ das que bradam contra a offensa feita ao seu direito de propriedade. Em outro archivo de um corpo de mŃo-morta, os documentos antigos tinham sido lanńados em monte na divisŃo inferior de um armario humido, cujo pavimento era de tijolo. Alli haviam apodrecido atķ a altura de duas ou tres pollegadas, constituindo, quando se examinaram em 1853, uma massa negra e compacta. Salvaram-se apenas os que tinham cahido na parte superior d'aquelle acervo, aonde a podridŃo ainda nŃo chegava. Outra corporańŃo pediu tempo ao commissario da Academia para lhe tornar accessivel o cartorio. Estava este n'um aposento sem vidrańas, e pelas roturas das janellas os passaros tinham estabelecido alli a sua residencia habitual. Era preciso desimpedir aquella nova especie de estabulo de Augias. A maior parte das corporań§es, cujos archivos se examinaram n'esse e no seguinte anno, nŃo poseram obstaculo algum a que os documentos de que se tomava nota fossem separados e emmassados ß parte, como se fez. A razŃo era simples. Tanto importava aquella disposińŃo como outra qualquer, visto nŃo existir ahi ordem nem indices. Cartorios ha, e dos mais notaveis, onde se adoptou a distribuińŃo corographica, mas esta distribuińŃo era e ķ apenas parcial, e necessariamente incompleta. Os documentos que por algum resumo ou declarańŃo externa, postos no verso do pergaminho, ou que por serem modernos podiam facilmente classificar-se como relativos a tal ou tal propriedade, collocaram-se nos massos respectivos. Todos aquelles, porķm, cujo conte·do se ignorava, ou que refugiam a este systema imperfeitissimo, assignalados ou nŃo com o ferrete de _inuteis_, foram amarrados em feixes e atirados para o fundo de armarios, onde ficaram jazendo por dezenas e dezenas de annos, cubertos de p¾ e condemnados ao esquecimento e a lenta ruĒna. Em um d'estes cartorios, depois de se ter concluido o seu exame, achou-se uma gaveta, em logar pouco apparente, na qual, debaixo de um monte de caruncho, se encontraram 40 a 50 bullas originaes expedidas pela maior parte do decurso dos seculos XII e XIII. Talvez durante 50 ou 60 annos ninguem tivera noticia da existencia d'aquelles diplomas. Certa corporańŃo clerical teve a singular idķa de enquadernar os seus pergaminhos avulsos. Era um arbitrio devido, segundo parece, ß fecunda imaginańŃo de uma communidade franciscana, cujos documentos primitivos se acham n'uma repartińŃo de fazenda da provincia cosidos n'um volume, podendo ler-se apenas parte de cada um d'elles. A corporańŃo, porķm, encontrara uma difficuldade imprevista em aproveitar o alvitre dos frades. Os sellos pendentes eram um obstaculo a essa obra meritoria. Cortaram-nos, ensacaram-nos, e hoje mostram innocentemente aquelle monumento de sabedoria. Os sellos, sobretudo os dos diplomas pontificios, esperam pela trombeta final do archanjo para se unirem aos respectivos corpos, porque s¾ a trombeta final poderß operar tal maravilha. Esta mesma corporańŃo possuia um chartulario dos mais conhecidos na nossa litteratura historica. Esse chartulario tinha saĒdo do archivo, por ordem do prelado maior, havia quasi vinte annos, para se tirarem delle copias de varios documentos, de que se carecia para objecto litterario. Quando em 1854 a Academia mandou examinar os cartorios provinciaes, o seu commissario perguntou pelo celebre codice. F¶ra elle que tirara aquellas copias quasi vinte annos antes. Disseram-lhe que existia bem guardado. Pediu-o: apresentaram-lhe uma copia moderna. Observou que esse volume nŃo passava de um bom ou mau transumpto do manuscripto de que se tractava. NŃo se conhecia outro! O commissario da Academia recordou-se, porķm, de uma circumstancia: as copias tiradas por elle tinham sido feitas em certa livraria vizinha. Teria esquecido alli o codice? Era um desleixo de vinte annos, absurdo, vergonhoso, incrivel, mas por isso mesmo, probabilissimo. Prop¶s que se buscasse, ou antes, offereceu-se elle proprio a procurß-lo. Acceitou-se a offerta. NŃo se enganava. O precioso chartulario vivera desterrado vinte annos, emquanto o seu pouco leal Sosia lhe usurpava as homenagens daquella corporańŃo erudita. No fasciculo jß impresso dos _Monumenta_ pertencente ß serie intitulada _Scriptores_ foi inserido um chronicon, cujo original existe no archivo de uma das corporań§es ecclesiasticas que representam a V. M. contra a portaria de 11 de setembro. Havia duas ediń§es discordes entre si, e ambas inexactas, como depois se viu. Quando se colligiam os monumentos destinados a entrar naquelle fasciculo, buscou-se obter o codice original para restabelecer a verdadeira licńŃo. Era impossivel. As excommunh§es contra a extracńŃo dos documentos do cartorio onde elle existia obstavam a isso. O anjo percuciente velava ß porta do cartorio com a espada de fogo na mŃo. ┴ Academia, porķm, repugnava manter n'um trabalho serio, e feito com consciencia, o texto incorrecto. Favoreceu-a uma circumstancia imprevista. A vigilancia do anjo percuciente fora entretanto illudida. Pessoa particular obtivera por esse tempo que o codice viesse a Lisboa. Empregaram-se entŃo meios indirectos para alcanńar copia exacta do chronicon. Mas voltou o codice ao logar d'onde saĒra? Esta Classe ignora qual foi o seu ulterior destino. ╔ tempo, Senhor, de colher as vellas ao discurso. Parece-nos que o Governo de V. M. fica habilitado para despachar as supplicas das corporań§es conforme a justińa e as conveniencias publicas. A Classe tem a consciencia de que, tanto nas suas sollicitań§es como nos seus conselhos, procurou sempre conciliar o zelo com a circumspecńŃo, e que nŃo deu neste negocio um ·nico passo que nŃo signifique o cumprimento de um dever. Resta ao Governo cumprir o seu. Se no assumpto que se debate ha lucta entre o amor das cousas patrias e um egoismo pueril, entre a sciencia e a ignorancia, entre a luz e as trevas, nŃo julga esta Classe que o reinado de V. M. seja a epocha mais propicia para a victoria da barbaria contra a civilisańŃo. Deus guarde a vida de V. M. como o paiz e as letras hŃo mister. A SUPPRESS├O DAS CONFERENCIAS DO CASINO 1871 A J.F. Teve v. s.¬ a bondade de me remetter o discurso que o sr. Anthero do Quental proferiu ou devia proferir no Casino (da sua carta nŃo infiro claramente se o facto chegou a verificar-se) o que, com os discursos dos oradores que o precederam, deu aso a serem tolhidas pelo governo aquellas conferencias. Pede-me v. s.¬ que leia o discurso e lhe dĻ a minha opiniŃo sobre o seu conte·do e sobre o procedimento da auctoridade. Nesta vida positiva que hoje vivo, pouco ķ o tempo que me sobeja para a leitura, nem, a falar verdade, o espirito se inclina muito para esse lado. Depois, as suas perguntas referem-se a assumptos graves, e atķ abstrusos, que, porventura, nŃo cabem na capacidade da minha intelligencia. Accresce que geram em mim tristeza as nossas quest§es publicas, e com o egoismo de velho fujo de pensar nellas. Apesar, porķm, de tudo isso, forcejarei por fazer uma excepńŃo a favor deste discurso, por certa sympathia que sinto pelo auctor, nŃo obstante a profunda divergencia que ha entre as nossas opini§es. ╔, talvez, porque no seu caracter me parece descobrir uma destas indoles nobremente austeras que cada vez se vŃo tornando mais raras. Revela o trabalho que me remette as precipitań§es e os impetos proprios da idade de quem o delineou. S¾ os annos nos curam desse defeito. Quizera eu que o sr. Anthero do Quental conhecesse melhor a doutrina e a tradińŃo verdadeiramente catholicas, porque havia de ser menos injusto com o catholicismo, embora nŃo fosse menos severo, ou talvez o fosse ainda mais, com os padres. Quanto ß prohibińŃo das conferencias, que quer que lhe diga? ╔ peior que uma illegalidade, porque ķ um desproposito; e na arte de governar, os despropositos sŃo ßs vezes peiores que os attentados. O que serĒa escutado e em grande parte esquecido por cem ou duzentos ouvintes serß agora lido e meditado por milhares, talvez, de leitores. Diz-me que se tomou por pretexto da suppressŃo das conferencias o desaggravo da religiŃo offendida. Erro deploravel. Idķa perseguida, idķa propagada: lei perpetua do mundo moral, perpetuamente esquecida pelo poder. Por certo, o governo tem obrigańŃo de manter a religiŃo do Estado, como tem obrigańŃo de manter todas as instituiń§es do paiz. Mas o respeito pela inviolabilidade do pensamento entra tambem no numero das suas obrigań§es. E quando a religiŃo do Estado e a liberdade do pensamento collidem, ķ aos tribunaes judiciaes que cumpre dirimir a contenda. O discurso oral ķ manifestańŃo da idķa, como o ķ o discurso escripto. NŃo se p¾de supprimir o orador, como se nŃo p¾de supprimir o escriptor. Para um, como para outro, ha a responsabilidade e a punińŃo. Depois, creio pouco que o sr. Anthero do Quental, apesar da sua clara intelligencia, e da auctoridade moral que lhe dß a integridade do seu caracter, seja assßs poderoso para derribar o catholicismo, a religiŃo de S. Paulo e de S. Agostinho, de S. Bernardo e de S. Thomßs, de Bossuet e de Pascal. O perigo, nŃo absoluto, mas relativo, estß n'outra parte. Aggredido pela frente, o catholicismo p¾de applicar a si, melhor que o protestantismo, o verso do bello hymnario de Luthero. Ein feste Burg ist unser Gott. NŃo se toma a fortaleza divina; mas p¾de ser minada e alluida por uma guarnińŃo desleal. ╔ este actualmente o grande perigo que a ameańa: nŃo sŃo os discursos do Casino. A situańŃo da igreja assemelha-se hoje ßquella em que se achava no IV seculo, quando o arianismo, no dizer de S. Jeronymo, triumphava por toda a parte, e atķ o papa Liberio adheria ß formula ariana do conciliabulo de Sirmio e acceitava como orthodoxa a heresia. Esta situańŃo tristissima da igreja ķ cousa um pouco mais grave para a religiŃo do Estado do que todas as hostilidades imaginaveis dos seus adversarios leaes. Que me seja licito fazer uma pergunta, que vai maravilhß-lo. Existe ainda entre n¾s o catholicismo proclamado instituińŃo social pela Carta? A resposta que eu proprio darei a esta pergunta ainda, porventura, o maravilharß mais. Existe apenas na fķ perseverante, mas silenciosa e triste, de alguns fieis, que deploram os destinos preparados ß igreja por um clero geralmente faccioso e sem convicń§es. Hoje a igreja, se podesse perecer, correria grande risco de nŃo completar o vigesimo seculo da sua existencia. Dar-lhe-hei nesta carta a razŃo do meu dicto, embora isso a torne, talvez, demasiado longa; mais longa, por certo do que eu desejaria. Caracter fundamental do catholicismo verdadeiro, do catholicismo que nos inculcaram na infancia, era a immutabilidade, a perpetuidade e a universalidade dos seus dogmas e das suas doutrinas na successŃo dos tempos, caracter precisamente descripto no celebre _Commonitorium_ de Vicente de Lerins. Nessa crenńa, tŃo incomprehensivel seria a suppressŃo de um dogma antigo, como a addińŃo de um dogma novo, ou (para me servir de phrase de um theologo eminente do seculo XV) nessa crenńa nŃo se tinha por menor heresia affirmar ser de fķ o que nŃo o era, do que negar que o fosse o que era [4]. Nisto consistia practicamente a immensa vantagem do catholicismo sobre as seitas dissidentes, indefinitamente variaveis, fluctuantes, subdivididas de dia para dia, gerando as mais desvairadas aberrań§es religiosas. Alķm disso, a igreja tinha leis que a regiam desde os seculos primitivos e que s¾ os parlamentos christŃos, os concilios, podiam alterar, quando essas alterań§es nŃo fossem de encontro ßs tradiń§es apostolicas, e a que todos os membros da sociedade catholica, desde o papa atķ o mais obscuro entre os fieis, eram obrigados a obedecer. Depois, na economia da sua administrańŃo interna, nos ritos, e em outras manifestań§es accidentaes do culto, cada igreja nacional, e atķ cada provincia ecclesiastica, tinha os seus usos e liberdades especiaes, que a igreja universal consentia, porque o que constitue verdadeiramente a unidade ķ a unidade da fķ. Governo parlamentar, maximas fundamentaes dominando atravez dos seculos a legislańŃo canonica, direito commum conciliando-se com o respeito ßs autonomias, ninguem superior ß lei, a fraternidade humana, a tolerancia material ao lado da intolerancia doutrinal; em summa, uma grande parte das conquistas da civilisańŃo moderna sŃo apenas velhas conquistas do christianismo transferidas para a sociedade temporal. Cuidando aportarem a praias ignotas, os publicistas mais de uma vez tem plantado padr§es de descobrimento em regi§es onde, embora occultos pelos musgos e sarńas, os padr§es da cruz estŃo plantados ha mais de mil e oitocentos annos. Sem duvida, durante a idade media, grande numero de abusos se tinham introduzido na disciplina, no mechanismo da sociedade catholica. Houve sempre homens grandes e virtuosos que luctassem contra esses abusos, mas nem sempre alcanńavam moderß-los e mormente vencĻ-los. Na epocha dos concilios de Constanńa e de Basilea,[5] os dous ultimos concilios sinceros e livres que a historia ecclesiastica memora, sorriu para a igreja uma esperanńa de reforma; mas essa esperanńa desvaneceu-se em breve. Os abusos adquiriram novo vigor quando o renascimento veio substituir as tendencias christans pelas tendencias pagans, e se tornaram possiveis papas como Alexandre VI e LeŃo X, mais devotos da trindade de Momo, Venus e Baccho do que da trindade evangelica. EntŃo, em logar da reforma, veio a revoluńŃo: veio Luthero. O catholicismo, mutilado, tornou-se fragmento, embora grandioso fragmento. A resistencia ß revoluńŃo gerou, porķm, a assemblķa de Trento. Trento exprime um facto notavel. A igreja servira, seculos antes, como de typo ß sociedade temporal: a sociedade temporal, onde as liberdades da idade media tinham cedido jß o campo ao absolutismo victorioso, reflectiu na reorganisańŃo da igreja. Como o absolutismo trouxera vantagens na vida civil, trouxe-as tambem na vida espiritual; mas, tanto aqui como alli, essas vantagens foram bem modestas comparadas com os males que derivavam da nova contextura da sociedade religiosa e da sociedade temporal; tanto aqui como alli, um abuso derribado era o prenuncio de muitos que Ēam pullular. Esses abusos, quer antigos quer modernos, ingeridos na sociedade christan, invadiam sempre mais ou menos as igrejas nacionaes. Mas, no meio da decadencia exterior, a essencia do catholicismo--o dogma--mantinha-se intacta. O symbolo salvo pelo concilio de Nicķa e pelos esforńos de S. Athanasio continuou atķ n¾s immutavel. Na propria disciplina, o poder temporal, quando nisso interessava, reprimia as tendencias abusivas de Roma, e atķ, nŃo raramente, o episcopado, momentaneamente desperto, recordava-se da sua instituińŃo divina. Novo Encelado, revolvia-se debaixo da enorme pressŃo do papado e, batendo com as algemas nos degraus do throno pontificio, fazia-o estremecer. Travavam-se ßs vezes luctas sķrias entre os dous absolutismos. Ambos tinham por alliado o cķu. _Tu es Petrus_, allegava o papa: _Per me reges regnant_, redarguia o rei. _Pasce oves meas_: acudia o papado. _Omnis potestas a Deo_: repunha o absolutismo. Roma, por via de regra, nŃo levava a melhor, sobretudo quando os bispos, ou por conveniencia ou por convicńŃo, se associavam ao poder temporal, o que era frequente. Ao promulgar-se a Carta, Portugal achava-se nesta situańŃo religiosa. A Carta, convertendo o catholicismo em instituińŃo politica, adoptava-o como elle existia no paiz--essencia e f¾rma; dogma e disciplina. Disse o legislador que a religiŃo catholica apostolica romana _continuaria_ a ser a religiŃo do reino: nŃo disse que essa instituińŃo seria uma cousa nova, fluctuante, mudavel, conforme approuvesse aos jesuitas ir supprimindo ou annexando dogmas ß doutrina catholica, mediante o assenso ou inconsciente ou incredulo do papa e do episcopado. O que contin·a nŃo ķ o que vem de novo; ķ o que existe no acto de continuar. Ora os factos estŃo desmentindo esta doutrina irrefragavel. Desde a promulgańŃo da Carta tem-se realisado gradualmente uma revoluńŃo na igreja catholica. Com assombro da gente illustrada e sincera, vimos transformar em dogma uma superstińŃo dos seculos de trevas, rendoso mealheiro de franciscanos, tinctura de pelagianismo, aproveitada hoje para aviar receitas na botica de S. Ignacio, a immaculada conceińŃo de Maria, dogma que forńadamente conduz ou ß ruina do christianismo pela base, tornando inconcebivel a RedempńŃo, ou ß deificańŃo da mulher, ß mulher-deus, ß mulher redemptora, recurso tremendo nas mŃos do jesuitismo, que, lisonjeiando a paixŃo mais energica do sexo fragil, a vaidade, o converte em instrumento seu para dilacerar e corromper a familia, e pela familia a sociedade. Depois, ludibrio desses homens de trevas, vemos o papa, celebrando uma especie de concilio disperso, mandar perguntar pelas portas dos bispos que tal acham aquelle appendiculo ß fķ catholica. Os bispos, pela maior parte, encolhem os hombros ou riem-se, dizem-lhe que estß vistoso, e vŃo jantar. Depois, os que falam em nome do pontifice, tendo tornado virtualmente absurdo, por inutil, o sacrifĒcio do Golgotha para a redempńŃo da humanidade, ou dando ao Christo um adjuncto na sua obra divina, divertem-se em negar no _Syllabus_ os dogmas, um pouco mais verdadeiros, da civilisańŃo moderna, e tendo elevado o erro, apenas tolerado, e ainda mal que tolerado, nos dominios do opinativo, a dogma indisputavel, e sanctificado assim uma opiniŃo peior que ridicula, convidam a sociedade temporal ß guerra civil. ╔ a Companhia de Jesus na sua manifestańŃo mais caracteristica. Os principios da Carta, como os de todas as constituiń§es analogas, sŃo condemnados, anathematisados, exterminados _in petto_. ╔ a communa de Paris, prefigurada em Roma, a arrasar e queimar, em vez de edificios, todas as conquistas do progresso social, todas as verdades fundamentaes da philosophia politica. Ao concilio vagabundo segue-se entŃo o concilio parado. ╔ que falta ao _Syllabus_ a sancńŃo divina. Dar-lha-ha a infallibidade indossada pelo episcopado ao papa ou ß sua ordem. Ajunctam-se nŃo sei quantos bispos, muitos bispos; uns reaes, outros pintados: agremiam-se; e o papa pergunta ao gremio, em vez de o perguntar a si mesmo, se ķ infallivel. Os bispos tornam a encolher os hombros ou a rir-se, dizem-lhe que sim, e vŃo ceiar. O papa infallivel, que nŃo sabĒa se era fallivel, fica emfim descanńado, e os bispos ceiados, dormidos e desappressados do _visum est Spiritui Sancto et nobis_ do concilio apostolico de Jerusalem, transferido definitivamente para a Casa-professa, voltam a annunciar aos respectivos rebanhos essa nova correcńŃo das erroneas doutrinas da primitiva igreja. Taes sŃo os deploraveis e incriveis successos que temos presenciado. O jesuitismo converte o infeliz Pio IX n'um Liberio ou n'um Honorio, induzindo-o a subscrever heresias, e a grande maioria dos bispos, creando na igreja uma situańŃo analoga ß dos tempos em que o arianismo dominava por toda a parte, e abandonando a maxima sacrosancta da immutabilidade da fķ, tornam-se em arautos e pregoeiros dos desvarios de Roma. As novidades religiosas vem perturbar as consciencias, e o marianismo e o infallibilismo quasi levam o christianismo de vencida na igreja catholica. Ninguem vĻ isto; ninguem sabe disto. ╔ que, em Portugal, os que ainda crĻem em Deus e na divina missŃo de Jesus, sem crerem na conceińŃo immaculada nem na infallibilidade do summo pontifice, pelo seu diminuto numero e pela tibieza que ķ geral em todas as crenńas, nŃo tem nem forńa, nem resoluńŃo para arrostar com as iras do beaterio neo-catholico. O governo, esse vĻ s¾ o Casino, ouve s¾ os discursos do Casino. Aquillo ķ que ameańa subverter a religiŃo, a monarchia e a liberdade. _Dedit abyssus vocem suam_. A voz do abysmo sŃo aquelles quatro ou cinco mancebos que vŃo falar de cinco ou seis quest§es desconnexas a cem ouvintes, metade dos quaes provavelmente nŃo entendem a maior parte do que elles dizem, o que tambem ķ muito possivel me succedesse a mim. Isto ķ simplesmente, macissamente, indisputavelmente ridiculo. O que ķ grave em si, e como tendencia, e como symptoma, ķ a intervenńŃo da policia preventiva nessa questŃo: ķ a policia violando um direito anterior ß lei positiva, o direito da livre manifestańŃo das ideas, direito exercido por individuos que se apresentam franca e lealmente adversarios do catholicismo e acceitam sem tergiversar a responsabilidade e a penalidade que possam corresponder ao seu acto. O governo parece ignorar que o bom ou mau uso dos direitos absolutos estß acima e alķm das prevenń§es da policia. Dizer-se que se respeita a liberdade do pensamento, sob a condińŃo de nŃo se manifestar, ķ pueril. Na manifestańŃo ķ que reside a liberdade, porque s¾ os actos externos sŃo objecto do direito, e a liberdade de pensar em voz alta ķ um direito originario, contra o abuso do qual nŃo p¾de haver prevenńŃo, mas unicamente castigo. Menos essencial ķ o direito eleitoral ou a garantia do jury. Traz aquelle nŃo raro violencias, corrupń§es, tumultos: traz esta pela indulgencia, ßs vezes pela venalidade, frequentemente pelo temor, audacia nos maus, frequencia nos crimes. A propria religiŃo dß pretextos ao fanatismo, e o fanatismo tem escripto a sua historia com lagrymas e sangue na face dos seculos. Pois bem: supprimi o eleitor; supprimi o jurado; supprimi a religiŃo; supprimi tudo, pelos perigos que de tudo podem advir. Fique s¾ a prevenńŃo e a policia. O seu amigo Anthero do Quental podia fazer dez, vinte, cem conferencias contra o catholicismo, comtanto que nŃo perturbasse a paz publica, e o governo podia querelar d'elle dez, vinte, cem vezes. Di-lo o artigo 363.░ do codigo civil. NŃo assim a respeito das novidades que tem alterado a indole da igreja catholica. Aqui nŃo se tracta do modo como um cidadŃo exerce um direito inauferivel: tracta-se do modo como funccionarios publicos, segundo a jurisprudencia recebida, exercem as suas funcń§es. Visto que assim se entende a Carta, os prelados diocesanos e o seu clero sŃo funccionarios, nŃo s¾ porque o poder temporal lhes dß uma intervenńŃo maior ou menor em assumptos de competencia civil: sŃo funccionarios publicos no proprio ministerio sacerdotal; porque, convertida a religiŃo em instituińŃo politica, os ministros d'ella sŃo agentes e executores da lei constitucional, justamente na esphera espiritual; absurdo, na verdade, grande, mas corollario ineluctavel de outro absurdo maior, a interpretańŃo que os reaccionarios e ainda alguns liberaes dŃo ao artigo 6.░ da Carta. Eram acaso dogmas em 1826 o immaculatismo e o infallibilismo? Quem ousaria affirmß-lo? Era em 1826 um dos caracteres essenciaes do catholicismo a perpetuidade da fķ e a sua identidade atravez dos seculos? Ninguem se atreveria a negß-lo. Os proprios restauradores de velhos erros, agora convertidos em dogmas, fazem esforńos desesperados para os filiarem nas tradiń§es da igreja. SŃo esplendores do cķu que andavam nublados. Acceitavam-se, porventura, antes dessa epocha as maximas do _Syllabus_ contradictorias com as leis do reino, com o seu direito publico? Jß notei que nem o proprio absolutismo acceitava aquellas que o contrariavam quando, dispersas, nŃo se pensava ainda em compaginar essa especie de mappa estrategico da campanha contra a civilisańŃo. O absolutismo tinha o _placet_ regio para repellir as invas§es de Roma e os proprios erros de doutrina em que Roma, ou antes os successores de Pedro, podiam, como elle, nŃo perpetuamente, mas temporariamente, cahir; e o absolutismo usava amplamente desse recurso. Era uma praxe sanctificada pelo simples senso commum, pelo direito que tem todo o dono de casa de examinar as doutrinas que os vizinhos lhe inculcam ß familia. D'ahi derivou a legitimidade da convocańŃo dos primeiros concilios ecumenicos pelos imperadores romanos. A historia do _placet_ ou _exequatur_ ķ por toda a parte rica de peripecias. Nos ultimos seculos, o rei e o papa eram dons duellistas de supremo cavalheirismo e esmerada educańŃo. Das mutuas delicadezas, dos apices de benevolencia nŃo omittiam um s¾ ao encetarem qualquer lucta. Quasi que sentiam um pelo outro mutua ternura. O rei beijava, cß de longe, o pķ do papa: lß de longe, o papa estendia para o seu filho predilecto a benńŃo apostolica. A questŃo, que se iniciava pela recusa do _placet_, terminava, de ordinario, por ser intimado o nuncio para sair da corte em vinte e quatro horas, e por ser o paiz posto em interdicto. Chamava-se entŃo a isto, na phrase dos homens de estado e dos jurisconsultos, concordia do sacerdocio e do imperio. A Carta, transformando a religiŃo em instituińŃo politica, manteve felizmente o beneplacito a que estavam sujeitas sem excepńŃo todas as letras apostolicas de caracter generico. Digo, felizmente, porque, em vez de se dar ao artigo 6.░ da Carta uma interpretańŃo racional, e que nŃo esteja em antimonia com as garantias dos cidadŃos e com as maximas mais indubitaveis das sociedades livres, dß-se-lhe, com acceitańŃo commum, um valor monstruoso e illiberal. Racionalmente, a instituińŃo de uma religiŃo do Estado n'um paiz livre nŃo p¾de significar senŃo uma homenagem ß crenńa da grande maioria dos cidadŃos, homenagem representada pela manutenńŃo do sacerdocio e do culto a expensas do Estado, pelo singular privilegio de ser este culto o unico publico, e pelas demonstrań§es de respeito para com a religiŃo da sociedade que se exigem de todos os cidadŃos. Ao lado disto, n'um paiz livre, nŃo p¾de deixar de ser escrupulosamente mantida a plena liberdade da consciencia, e removida completamente a mistura dos actos e formulas religiosas com as phases e com os actos da vida civil em que tal mistura produza annullańŃo de direitos ou da igualdade de direitos. Com semelhante garantia, e nesta situańŃo transitoria entre o antigo predominio de uma crenńa exclusiva e tyrannica e a distincńŃo precisa entre o estado e a igreja, que tem de vir a formular-se definitivamente nas sociedades futuras, as prevenń§es do ¦ 14.░ do artigo 75.░ da Carta seriam excessivas, e atķ, porventura, desnecessarias. Mas, quando se quer que a existencia de uma religiŃo do Estado importe para a universalidade dos cidadŃos o dever de se conformarem com os preceitos della em todos aquelles actos da vida exterior que taes preceitos possam abranger, e se dß a uma crenńa religiosa, isto ķ, a certa norma das relań§es entre o homem e Deus, os caracteres e a natureza de uma norma das relań§es entre o homem e a sociedade, ķ obvio que se attribue ß religiŃo uma indole mundana, temporal, derivando unicamente a sua auctoridade e a sua forńa coactiva de ser instituińŃo politica, e essa forńa e auctoridade hŃo de manter-se, interpretar-se, applicar-se, circumscrever-se, pelos mesmos meios e pelo mesmo modo por que se mantem, interpretam, applicam e circumscrevem as das outras instituiń§es analogas. Supposta a theoria da coacńŃo religiosa, supprimir na constituińŃo a doutrina do beneplacito seria absurdo, porque seria impossivel sem ella impor aos ministros a responsabilidade por tolerarem qualquer infracńŃo do artigo 6.░ da Carta, quando a infracńŃo procedesse de abusos da curia romana, de excessos do poder espiritual, do mesmo modo que seria impossivel impor-lha recusando-lhes a inspecńŃo dos actos do clero official, ainda relativos ßs suas funcń§es puramente sacerdotaes. ╔ certo que o direito de beneplacito ķ um dos erros feios anathematisados no _Syllabus_; mas tambem ķ certo que no _Syllabus_ estß anathematisado um bom terńo dos artigos constitucionaes da Carta. Tendo, pois, os ministros por dever a manutenńŃo da crenńa official na sua integridade, nem mais nem menos, e possuindo os meios que lhes faculta a constituińŃo para desempenharem esse dever, como ķ que os governos d'esta terra tem defendido, em relańŃo ßs aggress§es do poder espiritual, a instituińŃo politica da religiŃo do Estado? De um modo, que, se a responsabilidade ministerial fosse entre n¾s cousa sķria, e nŃo uma phrase inventada para os ambiciosos em disponibilidade darem vaias aos ambiciosos em exercicio, receio muito que a maioria dos nossos ministros, ha vinte e cinco ou trinta annos a esta parte, tivessem corrido grande risco de severo castigo. Essas loucuras practicadas no centro da unidade catholica, a que jß me referi, reproduzem-se entre n¾s. A historia da igreja portuguesa nos ultimos annos ķ uma contradicńŃo permanente com a Carta. Altera-se o dogma e busca-se alterar a disciplina. Nas pastoraes, nos pulpitos, na imprensa infallibilista inculcam-se novidades no regimen da igreja e novidades de crenńa. Os missionarios e uma parte do clero curado repetem ao povo quantas semsaborias se espriguińam por essas vastas charnecas das allocuń§es que os jesuitas assignam com o pseudonymo de _Pio Nono_. Os principios que sŃo hoje condiń§es essenciaes da existencia politica da nańŃo portuguesa apontam-se ao povo ignorante como invenń§es do diabo. Miss§es dos agentes do jesuitismo, umas ineptas, outras astutas, instillam por toda a parte o veneno do ultra-montanismo extremo, e corrompem o elemento social, a familia, sobretudo pela fraqueza mulheril. Vemos bispos que protegem esses agentes, e que os applaudem; parochos que os acceitam para que elles fańam o que, em diverso sentido, fora dever seu fazer. ╔ uma conspirańŃo permanente, implacavel contra a sociedade. As resistencias nascidas no seio do proprio clero sŃo difficilimas, senŃo impossiveis. O que tentasse levantß-las seria esmagado. Os antigos institutos monasticos, que pela emulańŃo, e pela seriedade e profundeza dos seus estudos, se contrapunham ao jesuitismo e ß sua sciencia facciosa e dolosa, desappareceram, e se hoje se restaurassem entre n¾s, succederia o que succede quasi por toda a parte: ir-se-lhes-hia encontrar a roupeta de S. Ignacio debaixo da cogulla benedictina ou augustiniana. O presbyterado, que ķ como a burguesia da igreja, e no seio do qual se encontram jß muitos sacerdotes mońos, ao mesmo tempo crentes e illustrados, nŃo tem forńa para readquirir nos negocios da sociedade christan o quinhŃo de influencia que a disciplina primitiva lhe dava. E, todavia, s¾ uma especie de presbyterianismo orthodoxo e simplesmente disciplinar tornaria agora possivel dar-se algum remedio ß ruina da igreja; porque talvez esses homens novos quizessem e soubessem congrańß-la com a sociedade moderna. Infelizmente, porķm, ß abdicańŃo dos bispos nas mŃos do papa, comeńada ha seculos e consummada no nosso tempo, tem correspondido a servidŃo cada vez mais profunda dos presbyteros. Ao procedimento do episcopado p¾de applicar-se a phrase de Tacito ½_omnia serviliter pro dominatione_╗. Tudo o que tende a dar a menor sombra de independencia ao clero inferior irrita o ciume dos prelados. Sirva em Portugal de exemplo a pertinaz resistencia que se tem feito ßs transferencias de parochos sem a intervenńŃo episcopal. De certo as tradiń§es disciplinares do velho catholicismo nŃo favorecem essas mudanńas; nŃo ķ, porķm, a quebra dos canones que incommoda os prelados; e, senŃo, digam se viram jß algum delles indignado de o transferirem para sķ mais importante ou mais pingue sem a intervenńŃo do concilio provincial, embora o consorcio entre o bispo e a sua igreja nŃo seja menos sķrio do que o ķ entre o presbytero e a sua parochia. O que os mag¶a ķ que o simples clerigo possa obter a minima vantagem sem que propriamente lh'a deva; que nŃo dependa delles sempre e em tudo. As aspirań§es desta succursal da Casa-professa a que ainda hoje se chama igreja docente resumem-se n'uma formula breve: perfeito absolutismo na jerarchia sacerdotal, tendo por cuspide um summo sacerdote, como Deus infallivel. Roma homologou, substituindo-o ß constituińŃo da igreja, o instituto da Companhia, porque assim sŃo mais precisos e pontuaes os movimentos estrategicos do exercito ultramontano sob o commando do geral dos jesuitas, e o pensamento da assemblķa celebrada em Trento ha trezentos annos tende sempre, com mais ou menos fortuna, ß sua completa realisańŃo. O absolutismo na igreja ķ como o prodromo do absolutismo na sociedade civil, sanctificado pelo _Syllabus_ com os anathemas ß liberdade. Depois, fundindo-se ambos n'uma ultima evoluńŃo, a sua synthese definitiva seria o poder illimitado e omnimodo do papa, do pontifice-deus, sobre a existencia interior e exterior, espiritual e temporal dos povos; seria a monarchia universal, o despotismo theocratico sonhado pela ambińŃo de Gregorio VII. Fora necessario estar inteiramente obcecado para nŃo ver que a revoluńŃo que de ha muito se Ēa preparando no seio do catholicismo, que hoje se realisa, e cujo termo tem necessariamente de ser fatal para a igreja ou para a liberdade, se espraia jß, onda ap¾s onda, entre n¾s, sem encontrar resistencia da parte dos poderes publicos, e nem sequer a resistencia collectiva do partido liberal, que faz travesseiro para dormir do destino das gerań§es futuras. Na Allemanha, no paiz da forńa e da vida moral, da sciencia e da consciencia, as audacias de Roma perturbam e concitam os animos, e o velho catholicismo arma-se para o combate. N¾s nŃo pensamos nessas insignificancias: n¾s elegemos e somos eleitos. Que importa o resto? _Loco libertatis esse coepit quod eligi possumus_, dizia Tacito dos romanos corrompidos. Os povos, como os individuos, assentam-se indifferentes e serenos no atrio da morte quando lhes chega a quadra fatal do idiotismo senil. E todavia, a questŃo ķ ao mesmo tempo simples e grave. Tem o governo negado o _exequatur_ aos documentos emanados, a bem dizer, diariamente da chancellaria apostolica, donde resultam alterań§es no dogma e na disciplina da religiŃo official, ou em que sŃo aggredidos os princĒpios do actual direito publico portuguĻs? Tem o governo imposto aos prelados a obrigańŃo de lhe submetterem as suas pastoraes antes de serem publicadas, de modo que quaesquer novidades religiosas ou politicas nŃo sejam propagadas pela auctoridade do alto clero? Tem o governo advertido este de que os pulpitos dos templos fundados pela nańŃo, em eras mais ou menos remotas, protegidos pelas leis, e mantidos ß custa do Estado, nŃo podem servir de instrumento para a ruina do mesmo Estado? Se tem feito isto e nŃo tem sido obedecido, o governo ķ responsavel por nŃo haver coagido os seus funccionarios ecclesiasticos a respeitarem as instituiń§es e as leis do paiz. Se nŃo o tem feito, ķ rķu de traińŃo contra a Carta. Nenhum parlamento imp¶s essa responsabilidade, ķ certo; nenhum, provavelmente, a imporß. Sei isso, e sei porquĻ. NŃo ķ, todavia, menos verdade que ha vinte e cinco ou trinta annos o clero estß infringindo a Carta, se o artigo 6.░ della significa o que o mesmo clero e tanta outra gente pretende que signifique. O bispo, o parocho, o missionario, que propalam doutrinas tendentes a alterar a religiŃo do paiz, ou que offendam o pacto social, tumultuam. Esses homens estŃo em manifesta rebelliŃo, rebelliŃo, nŃo porque condemnem as instituiń§es em linguagem mais ou menos violenta, o que, se fossem simples cidadŃos, constituiria apenas um delicto commum sujeito ß apreciańŃo dos tribunaes, mas porque aproveitam a forńa moral que lhes dß o seu caracter sagrado e a sua condińŃo de funccionarios do Estado para, ao mesmo tempo, inficionarem com extranhos erros a religiŃo de nossos paes, que, immutavel, deve _continuar_ a ser a religiŃo official, e para alluirem pelos fundamentos a monarchia representativa. ╔ racionalmente possivel semelhante situańŃo? Ha de soffrer-se a anarchia, porque se agita, nŃo nas ruas e campos, mas sob os doceis episcopaes, no pulpito e no confessionario? Fizeram-se os governos para proverem nos grandes perigos sociaes como este, ou para estarem espreitando ßs fisgas das portas se algum mancebo mais ou menos imprudente, mas sem pensamento reservado, sem compromissos occultos com conspiradores estrangeiros, expoem as suas opini§es, embora erradas, a uma assemblķa pacifica, pouco numerosa, e pouco attenta, provavelmente, ß substancia do discurso, mas curiosa da belleza da f¾rma? Pois a consciencia timorata da policia a escrupulisar de ouvir impiedades e a p¶r, para as cohibir, o bengalŃo do quadrilheiro no logar das f¾rmulas judiciaes ķ cousa que se tolere? Quando taes enormidades fossem licitas, nŃo se deveria dar ßs exuberancias sinceras da mocidade mais importancia do que tem realmente. Ha verduras da intelligencia, como ha verduras de corańŃo. Nas indoles energicas, nos cerebros vastos ķ que ellas sŃo maiores. Ha a esperar nessas intelligencias os effeitos do tempo e das cogitań§es. Da inepcia ou da hypocrisia ķ que nada ha a esperar. Quando as tempestades moraes, as longas e acres tristezas da existencia e os profundos desenganos do mundo tiverem devastado aquellas almas, nŃo serß raro que se vß encontrar o impio dos vinte cinco annos, lß pela tarde da vida, assentado ao pķ da cruz, a scismar no futuro e em Deus. NŃo quer dizer isto que os devotos fervorosos de vinte annos sejam provadamente hypocritas. A convicńŃo religiosa p¾de ser mais precoce e mais viva neste ou naquelle espirito. Todavia, sempre serß bom verem se lhes descobrem debaixo da burjaca piedosamente mal talhada o cabeńŃo de jesuita. Mas que ha de fazer o governo? Cumprir o seu dever. Compellir o clero official a respeitar as doutrinas da Carta, recusar o beneplacito a tudo que venha de f¾ra alterar a religiŃo do paiz, a religiŃo como ella era em 1826, e obstar a que os prelados acceitem e promulguem como dogmas erros de fķ, como direito a quebra dos canones, como doutrina catholica as blasphemias contra as maximas fundamentaes da sociedade civil. O governo tem arbitrio para conceder ou negar o _exequatur_ ßs decis§es conciliares ou ßs letras apostolicas quando nŃo collidirem com a constituińŃo do reino. As que forem hostis a esta, ķ obvio que ha de rejeitß-las, combatĻ-las, annullß-las. Podem em Roma inventar o que quizerem, proclamar o que lhes convier, anathematisar o que lhes parecer. Em Portugal ķ que nada disso p¾de ser admittido, se repugnar ßs instituiń§es politicas de que forma parte a religiŃo do Estado. Nas proprias resoluń§es synodaes ou pontificias que nŃo se contraponham ß Carta, mas de applicańŃo geral, e que, portanto, hŃo-de obrigar a generalidade dos cidadŃos nas suas relań§es religiosas, a simples acceitańŃo do governo nŃo basta: ķ necessaria, para terem vigor e obrigarem, a acceitańŃo do parlamento. Mas, dir-se-ha, os ministros nŃo sŃo theologos nem canonistas para aquilatar os actos e doutrinas recentes da igreja ou do seu chefe, afferindo-os pelas tradiń§es religiosas do paiz. Oh sancta simplicidade! Os ministros sŃo tudo o que ķ preciso que sejam para serem ministros. Ninguem os recruta para isso. Mas ainda ao mais insciente ministro, dado que as facń§es nŃo possam dispensß-los de serem profundamente ignorantes n'estas materias, uma experiencia facil ensinarß se o neo-catholicismo ķ ou nŃo o mesmo que o catholicismo de nossos paes. Se nŃo ķ, cumpre extirpß-lo das regi§es officiaes, porque a manutenńŃo do pacto social o exige. Os reaccionarios que, em nome da Carta, nŃo admittem a minima tolerancia para as divergencias religiosas que por qualquer modo se manifestem, devem, por maioria de razŃo, ser os primeiros a applaudir a severidade do governo. E a experiencia ķ simples. Em encyclicas, em livros, em publicań§es periodicas, em pareneses de missionarios sŃo apodadas de erros, de blasphemias e de heresias grande parte das doutrinas contidas na Carta. Diante destas aggress§es contra os principios liberaes, os ministros podem talvez esquecer que ha tribunaes e juizes. Se faltam ao que, em rigor, ķ dever seu, eu, pelo menos no foro intimo, estou quasi tentado a perdoar-lhes. A laxidŃo neste caso confunde-se um tanto com a tolerancia, e a tolerancia nunca se me affigura demasiada. Bom fora que ella dķsse tambem uma volta pelo Casino. O que me parece de mais ķ que o governo abandone a defesa moral, alißs tŃo facil, dos principios que sŃo hoje o fundamento da sociedade civil. O clero official nŃo p¾de recusar, sem previamente resignar as suas funcń§es, o ser instrumento do governo nessa modesta e legitima defesa. ╔ obvio que a antiga religiŃo que, pela Carta, _continuou_ a ser a religiŃo do reino era e ķ perfeitamente accorde com aquelles principios. Sem isso, a Carta nŃo seria s¾ absurda; seria practicamente impossivel. Ou o artigo 6.░, como na praxe se interpreta, matava o resto, ou o resto matava o artigo 6.░ As liberdades patrias, os direitos e garantias dos cidadŃos, o mechanismo do governo representativo conciliam-se, portanto, com a nossa crenńa. O pacto social ķ a consagrańŃo de todo esse conjuncto de instituiń§es. A sua coexistencia, a sua harmonia sŃo indispensaveis sob o regimen da Carta. Quando pois, neste paiz, a malevolencia reaccionaria declara a religiŃo inimiga da sociedade moderna, nŃo se refere ß religiŃo de Portugal, e se o seu intuito ķ referir-se a ella, calumnĒa e insulta a crenńa nacional. Nesse caso, cumpre que os bispos, os parochos, em summa, todos os funccionarios ecclesiasticos desaggravem a fķ offendida e esclareńam o povo para que o erro nŃo possa transviß-lo. ╔ para servirem a religiŃo que a sociedade lhes confere honras, proventos, exempń§es, auctoridade; e a unica religiŃo que elles tem de ensinar, servir e defender ķ a que coexiste e se harmonisa ha perto de meio seculo com as instituiń§es da Carta. ╔ o direito e ķ o dever do governo compelli-los a que o fańam. ╔ necessario exigir delles manifestań§es positivas, e que os bispos, parochos e professores publicos de theologia declarem falsas e subversivas todas as doutrinas, sejam de quem forem, venham donde vierem, que tenderem a tornar contradictoria a religiŃo do reino com as condiń§es impreteriveis da sociedade actual estatuidas na Carta. Que o governo exija isto, e espere o resultado. Outra experiencia. Em 1826 a theologia, a historia ecclesiastica, os ritos, os canones ensinavam-se na universidade, nos seminarios, nos cursos de estudos das congregań§es e das ordens monasticas. As dioceses tinham os seus catecismos, pelos quaes os parochos e mestres educavam a infancia na doutrina catholica. Os prelados de entŃo acceitavam esses compendios, expositores e catecismos; ordenavam-nos, atķ. O ensino, portanto, das sciencias ecclesiasticas e a doutrinańŃo dos fieis eram necessariamente conformes com a religiŃo catholica seguida pelo paiz. Atenhamo-nos, pois, aos catecismos, aos compendios, aos expositores, aos livros, em summa, por onde se ensinaram as sciencia ecclesiasticas e se educou o clero e o povo desde o principio deste seculo atķ a promulgańŃo da Carta. Declare-se que todas as doutrinas, ou desconhecidas nesses livros, ou contrarias ßs que elles encerram, ou a que se dĻ uma interpretańao ou um valor differentes dos que se lhes davam entŃo, ou sŃo heterodoxas ou erroneas, quer se refiram ao dogma, quer ß moral religiosa, quer ß disciplina. Teremos assim a certeza: primeiro, de que _contin·a_ a ser religiŃo do reino a que d'antes era; em segundo logar, de que essa ķ a crenńa catholica apostolica romana de que fala a Carta. Os bispos eram entŃo, como o foram sempre, os principaes juizes da fķ, e os papas os chefes visiveis da igreja pela sua primazia. Pio VI ou Pio VII valiam bem Pio IX. Nunca, porķm, nessa epocha Roma lanńou sobre n¾s sequer uma suspeińŃo de heterodoxia, e fossem quaes fossem as divergencias entre a curia romana e a igreja portuguesa ou o governo portuguĻs em assumptos disciplinares, nunca se proferiu contra n¾s a accusańŃo de scisma. Estavamos, pois, pelas nossas tradiń§es e doutrinas perfeitamente no seio da igreja. Mantendo exclusivamente o dogma catholico, nem mais, nem menos, como a igreja no-lo ensinou a n¾s os velhos, e conservando-nos, em relańŃo ß disciplina, onde estavamos, estamos indubitavelmente no gremio dessa igreja; porque a religiŃo ķ immutaveĒ, a religiŃo nŃo se aperfeińoa. O criterio supremo do catholicismo estß resumido na celebre maxima: _Quod ubique, quod semper, quod ab omnibus creditum est_. Diga o governo isto aos bispos, aos cabidos, ßs escholas de theologia e de canones, aos parochos, aos commissarios de estudos, aos mestres primarios. Envolva-se no manto da sua ignorancia. O seu criterio ķ apenas o do senso-commum. Mantem a religiŃo da Carta, porque lhe nŃo ķ licito manter outra sem crime, e conscio da propria incompetencia, recorre a um meio seguro de nŃo errar. Imponha o ensino de ha cincoenta ou sessenta annos em materia religiosa, e vigie pelos seus agentes se alguem exorbita das doutrinas de entŃo e se atraińoa com o ensino oral o ensino escripto. O imperante farß nisto nŃo s¾ o papel de mantenedor da Carta, mas tambem o de bispo externo; farß o mesmo que nos seculos aureos do christianismo faziam os imperadores romanos com applauso dos Padres da primitiva igreja. O tumulto que ha-de alevantar este procedimento, alißs tŃo simples e razoavel, sei eu. Verß, meu amigo, o que vai. Verß a reacńŃo a inquietar na jazida com seus furiosos clamores as cinzas dos nossos mais veneraveis prelados dos fins do seculo XVIII e dos principios deste seculo, dos magistrados mais integros, dos professores mais sabios, dos mais abalisados jurisconsultos e theologos, e atķ a memoria de algumas das congregań§es religiosas que desappareceram, para os accusar de jansenismo, de gallicanismo, de philosophismo. Verß o que succede ao clero regular que foi, aos benedictinos, aos augustinianos, aos oratorianos. Referindo-me ß congregańŃo do Oratorio, nŃo falo do pequeno hereje ruivo, o terrivel padre Pereira de Figueiredo. Esse tem de ha muito recebido o seu quinhŃo de anathemas maranathas. Tudo pedreiros-livres. Os reaccionarios hŃo-de provar atķ a evidencia que o artigo 6.║ da Carta nŃo diz o que diz. _Quidquid dixeris, argumentabo_. HŃo-de provar que o verbo _continuar_ significa em rigor _ser substituido_, substituido o catholicismo da biblia e da tradińŃo, o catholicismo de nossos maiores, pelo neo-catholicismo, com os seus dogmas de nova fabrica e materia velha, com as suas maximas anti-sociaes, com as suas pretens§es ß restaurańŃo do papado como o concebiam Gregorio VII ou Bonifacio VIII, e com a moral asquerosa dos casuistas do padre Lainez substituida ß do evangelho de Jesu-Christo. ╔ uma lucta, pois, que eu aconselho ao poder civil? De certo. Os governos fizeram-se para luctar quando ķ necessario manter as instituiń§es do paĒz. O direito estß da sua parte. Se o artigo 6.░ da Carta tem a significańŃo e a latitude que se lhe dß, ķ indispensavel que se dĻ igual valor e extensŃo ao ¦ 14.░ do artigo 75.░ Cumpre que o clero official venha a uma situańŃo definida e precisa. Ou o _Syllabus_ ou a Carta. A questŃo reduz-se a isto. Mas a acceitańŃo prestada pela maioria dos bispos ßs definiń§es _ex cathedra_ do pontifice? Mas a adopńŃo do _Syllabus_ pelos prelados como norma de doutrina? Mas as decis§es do concilio ecumenico do Vaticano? Sem debater as condiń§es que a tradińŃo exige para terem valor as definiń§es pontificias, e se ķ ou nŃo pueril a moderna distincńŃo _ex cathedra_ e _non ex cathedra_, inventada para salvar as contradicń§es dos papas em materias de fķ e de costumes: sem indagar se a adhesŃo dos bispos representa sempre a adhesŃo das respectivas igrejas; sem finalmente individuar os caracteres que assignalam a ecumenicidade de um concilio, e atķ onde obrigam as suas resoluń§es, quando Ócerca destas nŃo houve, ao menos, a unanimidade moral; evitando, em summa, quest§es abstrusas, origem de interminaveis debates, limite-se o governo a exigir o cumprimento rigoroso do respectivo artigo da Carta interpretado pela reacńŃo. Que mais querem? Os neo-catholicos constituidos em dignidade, exercendo funcń§es publicas, ficam na plena liberdade interior de crerem o que lhes aprouver: nos actos exteriores hŃo-de ser catholicos de 1826. Supponho que a theoria ķ esta. Collidem as infallibilidades papaes? Deixß-las collidir. Admittamos que a boa, a de lei, ķ a de hoje. Os neo-catholicos estŃo salvos. Vai para o inferno o Estado quando morrer. Manda-o para alli a Carta. Cumprir e fazer respeitar as instituiń§es e as leis ķ a missŃo dos ministros; nŃo o ķ a salvańŃo das almas. Isso pertencia d'antes ß igreja, e pertence hoje, por transacńŃo particular, ß Companhia de Jesus. Que ninguem se assuste com a immensa e omnipotente auctoridade de um concilio ecumenico. A primeira condińŃo da sua forńa ķ a certeza de sua ecumenicidade e da liberdade das suas decis§es; alißs nŃo passaria de um conciliabulo; de um _latrocinio d'Epheso_, conforme a phrase dos Padres de Calcedonia. Ainda, porķm, que se dĻ tal certeza, nem por isso o poder temporal fica inhibido de negar o seu assenso ßs resoluń§es synodaes. Figurava de ecumenico o concilio de Trento, e todavia a Franńa recusou constantemente acceitß-lo, sem distincńŃo de dogma ou de disciplina. Havia, atķ, certa affectańŃo nos actos officiaes em chamar _assemblķa de Trento_ ao concilio. Foi infructuoso todo o empenho do clero francez em fazer admitti-lo, porque as barreiras que lhe oppunham ora os reis, ora os tribunaes, eram insuperaveis. E nunca a Franńa foi por isso reputada scismatica, nem os reis _christianissimos_ deixaram de ser os _filhos primogenitos da igreja_. Era simples a explicańŃo da repulsa. Muitas das resoluń§es disciplinares do concilio repugnavam aos principios e ßs leis que a sociedade temporal reputava uteis ou necessarias ß sua existencia. Acceitando o concilio, a sociedade feria-se ou suicidava-se. Era contra o direito natural. ┴ cautela, repellia tudo, porque nas deliberań§es do concilio nem sempre era facil discriminar o doutrinal do disciplinar. Nenhum perigo havia naquella rejeińŃo absoluta. Se o concilio nŃo fizera senŃo confirmar a doutrina catholica derivada das suas duas unicas fontes, a Escriptura e a tradińŃo constante e universal da igreja, a Franńa lß seguia essa doutrina desde remotissimos tempos. Se, porķm, o concilio inventara novos dogmas, ou alterara em qualquer cousa a antiga crenńa, deixava de ser concilio, e rejeitando-o _in totum_, a Franńa separava-se tanto da igreja universal, como se, por um acto solemne, rejeitasse a ConfissŃo de Augsburgo. Mas--perguntar-me-ha--p¾de razoavelmente esperar-se que haja um desses governos a que estamos habituados, com energia e vontade sufficientes para emprehender commettimento de tal ordem? Deve fazer-se neste ponto uma distincńŃo essencial. Hoje, sem duvida, do gremio de qualquer das facń§es que disputam entre si a ponta da corda que vai arrastando para futuro incerto o corpo enfermo do Estado, nŃo devemos esperar que sßia um governo capaz de reduzir o debate entre o liberalismo e a reacńŃo a estes simples termos. Todas ellas dependem, atķ certo ponto, do cura na questŃo eleitoral, questŃo suprema e talvez unica das facń§es, instincto de vida que ķ desculpavel. Ora o cura ķ o _servus a mandatis_ do bispo, como o bispo ķ o _servus a mandatis_ do papa, ou para falar com mais exacńŃo, do geral da Companhia. Depois, ha aqui, alli, nŃo se sabe bem onde, o jesuita; o jesuita, que se encontra e sente, sem se ver, em toda a parte, desde os pańos atķ a taberna; o jesuita, que veste gentilmente a farda bordada ou a farda lisa, a casaca ou o paletot, a bķca, a loba, preta, roxa, encarnada, ou a grosseira jaqueta do operario; o jesuita, que, se cumpre, ķ mais impio que Voltaire, ou mais fanatico do que Pedro de Arbuķs e Torquemada; que ķ absolutista, democrata, socialista, communista, se a ordem de S. Ignacio interessa com isso; que seria, atķ, liberal, daquelles celebres liberaes do _Syllabus_, se hypothese tŃo abominavel fosse admissivel. Ora o jesuita p¾de vigiar a urna, morigerar a urna, penitenciar a urna. ╔ pois necessario ao homem d'estado (talvez conheńa o typo nacional da especie) manter-se em certa altura de tacto politico para nŃo adivinhar o jesuita, para nŃo crer na existencia do jesuita, dessa singular invenńŃo de certos visionarios. Precisa a patria de que a jerarchia ecclesiastica e a congregańŃo nŃo venham, irritadas, oppor o seu voto, a sua preponderancia, ßs benevolencias da urna. Eis porque ķ impossivel, por emquanto, travar sķriamente a lucta em chŃo firme. Deixe gritar contra a reacńŃo. Puro formulario. Bem como a responsabilidade ministerial, o epitheto de reaccionario nŃo significa nada, na linguagem dos homens d'estado. ╔ um extracto do vocabulario politico, que a facńŃo decahida mette impreterivelmente na algibeira, quando desce das regi§es do poder, para apupar e injuriar cß da rua os de outra facńŃo que para lß subiram. De resto, amor e respeito omnimodo e universal ß congregańŃo. Se algum dia, porķm, a gymnastica das ambiń§es deixar de ser o espectaculo mais divertido destes reinos e passar de moda, ha uma reflexŃo gravissima a que antes de tudo tem de attender-se. N'um paiz, onde, por ignorancia do clero inferior e mß-fķ ou desleixo dos prelados, as maiorias incultas crĻem nas bruxas, nos feitińos, nas mulheres de virtude, nas almas penadas, na permutańŃo de milagres por ex-votos de cera, e onde, falando geralmente, as minorias intelligentes e instruidas buscam estonteiar-se, supprimir uma voz interior que fala de Deus, com a indifferenńa ou com o scepticismo, o clero, jesuita ou nŃo-jesuita, ha-de forńosamente exercer certa influencia, que, por mais que elle se desconsidere ou o desconsiderem, nŃo serß facil destruir. Para combater essa influencia, quando nociva, a incredulidade superciliosa nŃo ķ a melhor das armas, porque a incredulidade ķ a negańŃo de uma tendencia natural do homem, a religiosidade; ķ o espirito violando-se a si proprio. As multid§es nŃo podem ser, nŃo serŃo nunca incredulas. Onde e quando lhes faltar a boa doutrina, seguirŃo a mß. Nas almas incultas a precisŃo da crenńa ha-de sempre satisfazer-se. Por uma lei psychologica, o crer tenaz suppre nellas o crer reflexivo das intelligencias privilegiadas. NŃo tem arte, nem sciencia para oblitterar em si uma condińŃo humana, o aspirar, com maior ou menor ardor, ao infinito, ao immortal. Se deixardes sair de todo pela porta o catholicismo christŃo, entrar-vos-ha pela janella o que ainda cß falta do moderno catholicismo do beaterio, com os seus intuitos dissolventes, com as suas extravagancias dogmaticas da immaculidade e da infallibilidade, e com as blasphemias sociaes do _Syllabus_. Mas, radicalmente, a questŃo nŃo ķ nem com os governos de hoje, nem com os homens de hoje. Na escripturańŃo da primeira entre as companhias commerciaes do mundo, a Companhia de Jesus, n¾s os velhos, e ainda uma ou duas gerań§es dos que tem nascido depois de n¾s, fomos jß levados, como perda redonda, como valores incobraveis, ao livro de conta de ganhos e perdas. Do que se tracta sķriamente nas especulań§es da Casa-professa ķ da infancia; daquelles que hŃo-de receber as primeiras impress§es moraes e religiosas de mŃes filiadas nas associań§es de diversos feitios e nomes, sob qualquer das epigraphes da mulher-deus, da mulher redemptora. Decorridos mais alguns annos, os symptomas do mal serŃo cada vez mais visiveis. EntŃo a imminencia do perigo ha-de coagir os homens novos a tractarem de p¶r sķrias barreiras a esse immenso lavor subterraneo que tende a converter a Europa, sobretudo a Europa latina, n'uma como vasta copia das Miss§es do Paraguay. Se, pois, esta carta sair das suas mŃos, ķ aos homens de quinze atķ vinte e cinco annos, cuja educańŃo o jesuitismo, aninhado entre os affagos maternos, nŃo tenha jß viciado, que as precedentes idķas poderŃo, porventura, aproveitar. Deixo por isso ß apreciańŃo de v. s.¬ a conveniencia ou inconveniencia absolutas de as tornar conhecidas, bem como a opportunidade ou inopportunidade dellas. Nem ambiciono, nem temo que as minhas opini§es, neste como em qualquer outro assumpto, sejam sabidas. Ao cabo da existencia, os applausos ou as censuras do mundo fazem mediocre impressŃo em quem estß costumado a reflectir. Ou a nossa memoria se desvanece nos longes indecisos do progressivo esquecimento, ou sŃo outros os juizes que hŃo-de definitivamente sentencear-nos; juizes suspeitos quando julgarem as quest§es de opiniŃo ou de interesse da sua epocha, imparciaes e incorruptiveis quando julgarem as cousas e os homens do nosso tempo. [Nota de rodapķ 4: Joan. Major, In 3.um Sent. Dist. 37, Quest. 16, apud Launoium, Oper. vol. I, p. 78. ╔, expressa por outra f¾rma, a doutrina constante da igreja, tŃo admiravelmente resumida por Vicente de Lerins: ½Christi ecclesia, sedula et cauta depositorum apud se *dogmatum* custos, nihil in iis unquam permutat, nihil *minuit*, nihil *addit*. _Commonitorium_ c. 32.] [Nota de rodapķ 5: Emquanto ecumenico.] INDICE PAG. Advertencia prķvia I a XV A Voz do Propheta, precedida de uma IntroducńŃo 1 a 118 Theatro, Moral, Censura 119 a 134 Os Egressos 135 a 154 Da InstituińŃo das Caixas Economicas 155 a 192 As Freiras de LorvŃo 193 a 206 Do estado dos Archivos Ecclesiasticos do Reino 207 a 251 A SuppressŃo das Conferencias do Casino 253 a 297 CATALOGO DE ALGUNS LIVROS QUE SE VENDEM NA LOJA DA VIUVA BERTRAND & C.a AO CHIADO N.░ 73 Affonso Africano, poema heroico da presa de Arzilla e Tanger, por Vasco Mousinho de Quebedo; nova edińŃo; 8.║, 1844--480 rķis. Os amores de Dido com Enķas, traducńŃo da 4.¬ Eneida de Virgilio (com o texto latino ao lado), por JoŃo Nunes de Andrade; 8.░, 1847--240 rķis, br. Bellezas de Coimbra, por Antonio Moniz Barreto C¶rte Real; 12.║ grande, 1831--480 rķis, br. Cantatas de JoŃo Baptista Rousseau, traduzidas em verso portuguez por Antonio Josķ de Lima LeitŃo; 4.░, 1816--240 rķis, br. Caramur·, poema epico do descobrimento da Bahia, composto por fr. Josķ de Santa Rita DurŃo; 2.¬ edińŃo; 8.░, 1836--360 rķis. Carta de guia de casados, para que pelo caminho da prudencia se acerte com a casa do descanso, por D. Francisco Manuel; nova edińŃo; 8.░, 1853--200 rķis, br. Chronica de Palmeirim de Inglaterra, por Francisco de Moraes, a que se ajuntam as mais obras do mesmo auctor; 4.░, 3 vol., 1786--2$4OO rķis. Cinco annos de emigrańŃo na Inglaterra, na Belgica e na Franńa, do brigadeiro Antonio Bernardino Pereira do Lago; 8.░, 2 vol., 1834--400 rķis, br. Comedias (as primeiras quatro) de Terencio, traduzidas em verso solto portuguez por Leonel da Costa, com o texto latino em frente; 8.░, 2 vol., 1788--1$200 rķis. Ordem, ou construińŃo litteral, palavra por palavra, das primeiras quatro comedias de Terencio, pelo mesmo Leonel da Costa; 8.░, 2 vol, 1790--960 rķis. Eclogas de Virgilio, traduzidas em portuguez em verso rimado, com as notas, explicańŃo da fabula e de alguns logares escuros, por Josķ Pedro Soares; 8.░, 1800--160 rķis, br. Elegiada, poema da jornada de Africa, por Luiz Pereira; fielmente copiado da edińŃo de Manuel de Lyra, anno de 1588, por Bento Josķ de Sousa Farinha; 8.░. 1785--480 rķis. Erasto, pastoral de Gessner, traduzida do allemŃo; 8.║, 1817--120 rķis, br. Escolha de poesias orientaes, traduzidas da versŃo ingleza de Guilherme Jones, e seguidas de outras varias rimas, por Francisco Manuel de Oliveira; 8.░, 2 vol., 1793-94--400 rķis, br. Eufrosina, comedia de Jorge Ferreira de Vasconcellos; 3.¬ edińŃo, fielmente copiada por Bento Josķ de Sousa Farinha; 8.░, 1786--480 rķis. Henriada, poema epico de Voltaire, traduzido em verso, e illustrado com varias notas, por Thomßs de Aquino Bello e Freitas; nova edińŃo; 16.░, 2 vol., 1812--480 rķis, br. Henrique IV, poema epico, traduzido do original francez, por ***; 4.░, 1807--480 rķis, br. Historia de Cromwell, conforme com as memorias escriptas d'aquella epocha, e as collecń§es das notas parlamentares; escripta em francez por mr. Villemain, e traduzida por M. S. da C. Courańa; 8.║ grande, 1842--600 rķis, br. Historia dos descobrimentos e conquistas dos portuguezes nas Indias orientaes e occidentaes: traducńŃo do francez pelo capitŃo Manuel de Sousa; 8.░, 4 vol., 1786--1$920 rķis. Historia de NapoleŃo, por mr. Norvins; traduzida do francez sobre a ultima edińŃo; 8.░, 4 vol., 1846--1$200 rķis. Historia critica do theatro, e causas da decadencia do seu verdadeiro gosto, traduzida do francez por Luiz Antonio de Araujo; 8.░, 1779--320 rķis, br. O Hyssope, poema heroi-comico, por Ant¾nio Diniz da Cruz e Silva; nova edińŃo, revista, correcta e ampliada de notas; 12.║ grande, Paris, 1821--600 rķis. Idyllios, e poesias pastoris de SalomŃo Gessner: traduzidos em verso portuguez por Joaquim Franco de Araujo Freire Barbosa; 8.░, 1784--200 rķis. Itinerario da India por terra atķ Aleppo e d'ali Ó ilha de Chipre, por frei Gaspar de S. Bernardino; conforme a edińŃo de 1611; 8.░ grande, 1842--360 rķis, br. Lisboa reedificada, poema epico de Miguel Mauricio Ramalho; 8.░, 1780--300 rķis. Marilia de Dirceo, por T. A. G.; nova edińŃo; 16.░, 3 partes, 1 vol., 1840--120 rķis, br. A Natureza, poema, por Josķ Agostinho de Macedo; 8.║, 1846--320 rķis, br. Newton, poema, por Josķ Agostinho de Macedo; 2.¬ edińŃo, correcta e augmentada; 8.░, 1815--300 rķis, br. Noites clementinas, poema em quatro cantos ß morte de Clemente XIV (Ganganelli), trasladado em vulgar por um anonymo; nova edińŃo; 8.░, 1816--320 rķis. Obras de Francisco de Borja GarńŃo Stokler, tomo 1.║ (contendo elogios de homens illustres--memoria sobre a originalidade dos descobrimentos maritimos dos portuguezes no seculo xv, etc.); 8.░, 1805--400 rķis, br. Obras ineditas de Duarte Ribeiro de Macedo, publicadas por Antonio Lourenńo Caminha; 8.░, 1817--400 rķis. Obras poeticas de Bartholomeu Soares de Lima BrandŃo, abbade de Coronado; 12.║ grande, 1794--240 rķis, br. Obras poeticas de Francisco Dias Gomes, mandadas publicar por ordem da academia real das sciencias de Lisboa, a beneficio da viuva e orphŃos do auctor; 4.║ 1799--800 rķis, br. Obras poeticas de Nicolau Tolentino de Almeida; nova edińŃo, augmentada com as suas obras posthumas; 16.║, 3 vol., 1828--300 rķis, br. Obras poeticas de Pedro Antonio Correia GarńŃo; nova edińŃo; 8.░, 2 vol. 1826--600 rķis, br. Obras de Virgilio, traduzidas em verso portuguez, e annotadas por Antonio Josķ de Lima LeitŃo; tomo 1.░, contendo as Bucolicas e as Georgicas; 8.░ grande, 1818--5OO rķis, br. O Paraiso perdido, epopķa de JoŃo Milton, vertida do original inglez para verso portuguez por Antonio Josķ de Lima LeitŃo; 8.░ grande, 2 vol., 1840--1$200 rķis, br. Poemas lusitanos do dr. Antonio Ferreira; 3.¬ impressŃo; 16.░, 2 vol., 1829--320 rķis, br. O porque de todas as cousas, ou endelechia da philosophia natural e moral, problemas de Aristoteles; escriptos no idioma castelhano por frei Andrķ Ferrer de Valdecebro e expostos na linguagem portugueza pelo padre Manuel Coelho Rabello; 8.░, 1818--300 rķis. Rimas de JoŃo Xavier de Matos; nova edińŃo; 8.░, 3 vol., 1827--1$440 rķis. Rimas varias, Flores do Lima, etc., por Diogo Bernardes e seu irmŃo Fr. Agostinho da Cruz; 12.░, 3 vol. 1770--600 rķis, br. Do sitio de Lisboa, sua grandeza, povoańŃo e commercio, etc., dialogo de Luiz Mendes de Vasconcellos; nova edińŃo conforme ß de 1608; 8.░, 1786--240 rķis, br. As Solid§es, poema de Cronegk, extrahido e traduzido da escolha de poesias allemŃs de Huber; e algumas poesias portuguezas feitas em 1833 ao Bussaco; 8.░, 1835--160 rķis, br. Successo do segundo cerco de Diu, estando D. Joham Mascarenhas por capitŃo da fortaleza, em 1546; poema de Jeronymo C¶rte Real, fielmente copiado da edińŃo de 1574 por Bento Josķ de Sousa Farinha; 8.░, 1784--480 rķis. Tratados de amisade, Paradoxos, e Sonho de ScipiŃo, compostos por M. T. Cicero, e traduzidos do latim em linguagem portugueza por Duarte de Rezende, no anno de 1531; agora reimpressos por Luiz Antonio de Azevedo; 8.░, 1790--300 rķis. Ulysippo, comedia de Jorge Ferreira de Vasconcellos 3.¬ edińŃo, fielmente copiada por Bento Josķ de Sousa Farinha; 8.░, 1787--480 rķis. A verdade, ou pensamentos philosophicos sobre os objectos mais importantes ß religiŃo e ao estado, por Josķ Agostinho de Macedo; 16.░, 1837--200 rķis, br. Viagem extatica ao templo da sabedoria, poema em quatro cantos, por Josķ Agostinho de Macedo; 4.║, 1830--600 rķis, br. Viagens de Cyro, historia moral e politica, pelo cavalheiro de Ramsay, traduzida em portuguez; nova edińŃo; 12.░, 2 vol., 1817--600 rķis. End of the Project Gutenberg EBook of Op·sculos por Alexandre Herculano - Tomo I, by Alexandre Herculano *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OP┌SCULOS POR ALEXANDRE *** ***** This file should be named 16111-8.txt or 16111-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: https://www.gutenberg.org/1/6/1/1/16111/ Produced by Biblioteca Nacional Digital (http://bnd.bn.pt), Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. They may be modified and printed and given away--you may do practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at https://gutenberg.org/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is in the public domain in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country outside the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org 1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived from the public domain (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg-tm License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than "Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided that - You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, "Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." - You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg-tm works. - You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. - You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg-tm works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread public domain works in creating the Project Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at https://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email [email protected]. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at https://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director [email protected] Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit https://pglaf.org While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: https://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.

59,708 words • 995h 8m read

— End of Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 —

Book Information

Title
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01
Author(s)
Herculano, Alexandre
Language
Portuguese
Type
Text
Release Date
June 22, 2005
Word Count
59,708 words
Library of Congress Classification
PQ
Bookshelves
Browsing: History - European, Browsing: Literature
Rights
Public domain in the USA.