The Project Gutenberg EBook of Op·sculos por Alexandre Herculano - Tomo I
by Alexandre Herculano
This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org
Title: Op·sculos por Alexandre Herculano - Tomo I
Author: Alexandre Herculano
Release Date: June 22, 2005 [EBook #16111]
Language: Portuguese
Character set encoding: ISO-8859-1
*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OP┌SCULOS POR ALEXANDRE ***
Produced by Biblioteca Nacional Digital (http://bnd.bn.pt),
Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team
OPUSCULOS
POR
A. HERCULANO
SOCIO DE MERITO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE LISBOA
SOCIO ESTRANGEIRO DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE BAVIERA
SOCIO CORRESPONDENTE
DA R. ACADEMIA DA HISTORIA DE MADRID
DO INSTITUTO DE FRANŪA (ACADEMIA DAS INSCRIPŪšES)
DA ACADEMIA R. DAS SCIENCIAS DE TURIM
DA SOCIEDADE HISTORICA DE NOVA YORK, ETC.
QUESTšES PUBLICAS
TOMO I
LISBOA
EM CASA DA VIUVA BERTRAND & C.¬--CHIADO, N.║ 73
M DCCC LXXIII
IMPRENSA NACIONAL
*ADVERTENCIA PR╔VIA*
Havia annos que os meus velhos editores e amigos, os fallecidos IrmŃos
Bertrands, admiraveis typos dessa modesta austeridade e dessa nobre
honradez, em todas as relań§es da vida civil, que eram gloriosa tradińŃo
da classe burguesa, e que a burguesia destes nossos tempos, ensanefada
jß de ouropeis fidalgos, nŃo parece inclinada a manter com excessivo
ciume; havia muito, digo, que os meus editores instavam comigo para que
ajunctasse em volumes alguns opusculos, escriptos por mim e publicados
por elles em diversas conjuncturas, cujas ediń§es se achavam de todo
esgotadas. Na sua opiniŃo, eu devia incluir tambem nessa collecńŃo
outros opusculos, que, ou impressos avulsamente por minha conta, ou
inseridos em publicań§es periodicas, tinham feito certo ruido, e nŃo se
encontravam jß no commercio. Entendiam igualmente que nesta compilańŃo
de trabalhos sobre assumptos tŃo variados poderiam introduzir-se
quaesquer outros ainda ineditos, que me nŃo parecessem indignos de virem
a lume, o que, no seu modo de ver, daria certo realce ß publicańŃo que
se propunham, e em cujo exito confiavam.
Apesar das ponderań§es que me faziam homens tŃo experimentados nas
cousas da imprensa, hesitei muito tempo em acceder aos seus intuitos.
Ap¾s largos annos consumidos na vida agitada das letras, em que o meu
baixel mais de uma vez fora ańoutado por violentas tempestades, tinha,
emfim, ancorado no porto tranquillo e feliz do silencio e da
obscuridade. Olhava com uma especie de horror para as vagas revoltas da
immensa lucta das intelligencias, contraste profundo da vida rural a que
me acolhera. Depois, o espirito sentia bem a propria decadencia, cujos
effeitos a interrupńŃo dos habitos litterarios devia aggravar.
Reflectia, sobretudo, no tedioso de rever escriptos, parte dos quaes
remontavam a tempos assßs distantes. Podia, na verdade, devia talvez,
deixß-los passar como estavam, no que respeita ß maior ou menor exacńŃo
das doutrinas, porque a pretensŃo ß infallibilidade ķ sempre ridicula no
individuo, e eu nunca tive tal pretensŃo; mas era indispensavel
castigß-los em relańŃo ß f¾rma. O methodo, o estylo, a linguagem, as
condiń§es, em summa, da arte de escrever sŃo, no mundo das letras, o que
a boa educańŃo, a cortesia, as attenń§es, o respeito para com os usos
recebidos sŃo no tracto civil, o que os ritos sŃo nas sociedades
religiosas. No ente que cogita, a idķa p¾de e ha de variar com o decurso
do tempo, com a ampliańŃo dos horisontes do pensamento. Sobrep§e-se
gradualmente a verdade ao erro, e ainda mal que, outras vezes, ķ o erro
que succede ao erro, quando nŃo ß verdade. Aprender quasi sempre ķ
esquecer; affirmar quasi sempre ķ negar: esquecer o que aprendemos;
negar o que n¾s proprios affirmßmos. ╔ por isso que, no meio de milh§es
de duvidas, cada gerańŃo lega ß que lhe succede poucas verdades
incontrastaveis, e que a lentidŃo do progresso real ķ um bem triste e
desenganador dynamometro da tŃo limitada potencia das faculdades
humanas. NŃo assim pelo que toca ßs formulas externas das manifestań§es
do espirito. O incompleto, o barbaro, o vicioso, o tolhido, o
desordenado, o obscuro nŃo sŃo o revolutear do oceano das idķas: sŃo
simplesmente ignorancia ou preguińoso desalinho, mais ou menos
indesculpaveis.
Ora a revisŃo de escriptos de tŃo diversas epochas, ainda limitando-me
ao exame da contextura e execuńŃo, repugnava-me. Era renovar o tracto
com as letras no que ha nellas menos attractivo, na questŃo da f¾rma. E
todavia, sem esse trabalho preliminar, nŃo podia decentemente satisfazer
os desejos dos meus editores, desejos que o ultimo d'elles, pouco antes
de fallecer, ainda vivamente manifestava.
Mas, o que era na realidade esta repugnancia ao trabalho, embora fosse
um trabalho ingrato? Era o egoismo dos annos derradeiros; o amor ß
quietańŃo da intelligencia, que, no outono da vida, ķ em n¾s como o
prenuncio da completa, da eterna paz. Para vencer esta enfermidade dos
espiritos canńados e gastos, cumpre que surja nelles um incitamento
poderoso, uma necessidade instante. Foi, porķm, este incitamento ou esta
necessidade que, a final, nasceu para mim, justamente das condiń§es da
vida rural.
Para o velho que vive na granja, na quinta, no casal, como que perdidos
por entre as collinas e serras do nosso anfractuoso paiz, ha na
existencia uma condińŃo que todos os annos lhe prostra o animo por
alguns mezes, doenńa moral, mancha negra da vida rustica, facil de
evitar nas cidades. ╔ o tedio das longas noites de inverno; das horas
estereis em que o peso do silencio e da soledade cai com duplicada forńa
sobre o espirito. Para o velho do ermo, nesses intervallos da vida
exterior, a corrente impetuosa do tempo parece chegar de subito a pķgo
dormente e espraiar-se pela sua superficie. A leitura raramente o
acaricia, porque os livros novos sŃo raros. A decima visŃo da mesma
idķa, vestida do seu decimo trajo, repelle-o, nŃo o distrahe. As
convicń§es ardentes, as alegrias das illuminań§es subitas, as coleras e
indignań§es que inspiram e que, na mocidade e nos annos viris, enchem a
cella do estudo de turbulencias interiores, de arrebatamentos
indomaveis, de debates inaudiveis, de lagrymas nŃo sentidas, de amargo
sorrir, cousas sŃo que se desvaneceram. Matou-as o gear do inverno da
existencia. Desfallece-lhe o animo, mal tenta embrenhar-se na selva das
cogitań§es, engolfar-se nas ondas dos pensamentos, que, em melhor idade,
lhe roubavam ß consciencia os ruidos longinquos e confusos das
multid§es, e aquella especie de zumbido obscuro que ha no silencio
profundo, e as passadas tenebrosas da noite, e o surgir e o galgar do
sol ao zenith, emquanto a penna inspirada arfava, deslisando sobre o
papel, semelhante ß vķla branca da bateirinha, que, ao refrescar do
vento, vai e vem de margem a margem, atravez da ria. NŃo: para o velho
nŃo ha a febre da alma que devora o tempo. Sente-o gotejar no passado,
como os suores da terra que cßhem, lagryma ap¾s lagryma, pela claraboia
de galeria deserta na mina abandonada. ╔ verdade que a natureza compensa
o esmorecer e passar do vigor e da actividade intellectual com a propria
somnolencia do espirito, voluptuosidade da velhice, ameno e dourado
p¶r-do-sol, que se refrange no espectro da sepultura jß vizinha e o
illumina suavemente. Mas o dormitar do entendimento, para ser deleitoso
enleio, exige o movimento externo e as singelas occupań§es e cuidados da
vida campestre. Sem isso, e ķ isso que falta muitas vezes nas
interminaveis noites de inverno, a inercia da intelligencia, que vagueia
no indefinito sem o norte da realidade, vai-se convertendo pouco a pouco
em intoleravel tormento; tormento no qual ha, por fim, o que quer que
seja da cķllula circular e esmeradamente branqueiada, onde o grande
criminoso ķ entregue, s¾sinho, ß eumķnide da propria consciencia. N'esta
extremidade, por mais somnolenta e obscurecida que esteja a mente, por
mais que ella ame o repouso, o trabalho do espirito, ainda o mais arido,
ķ preferivel, cem vezes preferivel, ao fluctuar indeciso no vacuo.
Foi por isto que comecei a ajunctar os _disjecta membra_ de uma grande
parte do meu passado intellectual; a accrescentar, a cortar, a corrigir,
a completar. Vencido o primeiro inverno, vi desapparecerem os marcos
negros juncto dos quaes cumpria que longamente me assentasse ao cabo de
cada um dos poucos estadios que ainda me restam a transitar pela estrada
da vida. Que esta confissŃo ingenua sirva para ser absolvido da especie
da correria que, apesar dos mais firmes propositos, fańo, ainda uma vez,
na republica das letras.
Os escriptos aqui reunidos, os quaes, na sua maior parte, foram
inspirados por impress§es momentaneas, perderam o interesse que lhes
provinha das circumstancias que os provocaram; mas, ainda assim, podem
ficar como marcos milliarios que ajudem a assignalar as luctas e o
progresso das idķas em Portugal no decurso de mais de trinta annos que
as datas d'esses escriptos abrangem. Naquellas luctas o auctor dos
seguintes opusculos teve largo quinhŃo, e se, como ķ possivel, nem
sempre a razŃo esteve da sua parte, esteve-o sempre a convicńŃo. ╔ do
que lhe parece hŃo-de dar testemunho a propria contextura e o proprio
estylo dessas composiń§es, que nŃo vinham s¾ da intelligencia, que
vinham muitas vezes tambem do corańŃo. A demasiada vivacidade, a talvez
exaggerada energia, com que frequentemente ahi sŃo expostas e defendidas
taes ou taes ideas e combatidas outras, revelam a indole impetuosa mas
sincera de quem escreveu essas paginas. Foi, porventura, este o melhor
titulo do auctor ß benevolencia publica largamente manifestada;
benevolencia que encontrou ainda em muitos que estavam longe de
commungar com elle nas doutrinas para as quaes buscava ou obter o
triumpho ou adquirir sectarios.
Ordenando esta compilańŃo, nŃo me adstringi nem a conservar
rigorosamente a ordem das epochas a que esses varios escriptos
pertencem, nem a distribui-los precisamente conforme a sua indole.
Adoptei um termo medio, que me facilitasse ao mesmo tempo o trabalho de
revisŃo, e me habilitasse para ir successivamente publicando qualquer
volume ß medida que o coordenasse. N'uma grande variedade de assumptos,
o espirito nŃo se amoldaria a reconsiderß-los nem pela ordem das datas,
nem pela identidade da materia. A intelligencia ķ caprichosa, e
duplicadamente caprichosa na sua decadencia. Attendendo em geral ß
natureza dos diversos opusculos, entendi que podiam dividir-se em tres
categorias--Quest§es publicas--Estudos historicos--Litteratura.--Estas
tres categorias constituirŃo tres series separadas, servindo-lhes apenas
de nexo o serem uma collecńŃo geral das minhas opini§es, quer em
quest§es litterarias ou historicas, quer em quest§es sociaes. Assim, um
volume seguir-se-ha a outro da mesma ou de diversa serie sem
inconveniente para a publicańŃo, e sem se tornar necessario que, n'um
trabalho tedioso e frequentemente interrompido, a attenńŃo se dirija por
muito tempo e sem desvio para idķas atķ certo ponto congeneres ou pelo
menos analogas.
Ajunctando aos titulos dos opusculos as datas em que foram escriptos, o
auctor teve em mira habilitar o leitor para o julgar com justińa. Sem
querer no minimo ponto fugir ß responsabilidade das suas opini§es,
entende que a responsabilidade serß ora maior, ora menor, se porventura
se attender ß epocha em essas opini§es foram manifestadas. O decurso de
trinta a quarenta annos, no turbilhŃo, cada vez mais rapido, em que hoje
as idķas passam, modificando-se, transformando-se, ķ um periodo que
corresponde a seculos nos tempos em que o progresso humano era sem
comparańŃo mais lento. As doutrinas, as apreciań§es criticas, os
systemas, os livros quasi que envelhecem tŃo depressa como o homem. O
pensamento que ha vinte annos parecia uma verdade nova p¾de hoje parecer
apenas um problema nŃo resolvido, e atķ um erro condemnado; a observańŃo
profunda de entŃo ser hoje trivialidade; a critica subtil, que levou um
raio de luz a certos recessos obscuros dos factos, achar-se incorporada
e transfigurada em apreciańŃo mais complexa que illumine dilatados
horisontes. Por isso, a data de cada um dos opusculos contidos nos
seguintes volumes ķ um dos elementos indispensaveis para estes serem
avaliados com justińa e imparcialidade. Nem sempre fugimos ß pressŃo das
idķas que se manifestam ao redor de n¾s, e muito faz aquelle que algumas
vezes sabe elevar-se acima das preoccupań§es ou dos interesses da epocha
em que escreve.
NŃo se associarŃo a estas considerań§es, que sollicitam a indulgencia,
algumas instigań§es do amor proprio? Suspeito que sim. Nos seguintes
escriptos ha, em mais de um logar, idķas, previs§es, affirmativas,
negań§es que nŃo raro grangeiaram para o auctor as qualificań§es de
temerario, de paradoxal, de visionario. Em certos casos, o decurso do
tempo encarregou-se de decidir de que lado estava ou a perspicacia ou a
boa razŃo: em alguns, o paradoxo, a visŃo, foram-se lentamente
insinuando em outros espiritos, e mais de uma vez o visionario primitivo
veio a achar-se como sumido na turba de tardĒgrados visionarios. Que o
facto nŃo contribuisse para se datarem estes opusculos ninguem o
acreditaria, nem eu pretendo negß-lo. ChamarŃo uns a isso orgulho:
chamar-lhe-hŃo outros vaidade. E uns e outros terŃo razŃo. A vaidade e o
orgulho que sŃo, senŃo duas especies de um genero unico de fraquezas? O
vaidoso ķ o que chama o mundo para espectador do seu orgulho: o
orgulhoso ķ o que se colloca a si como unico espectador da propria
vaidade. Symptomas varios de enfermidade identica: manifestań§es
diversas de uma s¾ miseria do corańŃo humano.
A VOZ DO PROPHETA
1837
INTRODUCŪ├O
1867
Depois da epocha em que o seguinte opusculo foi publicado e dos factos
que lhe deram origem, tĻem decorrido mais de trinta annos. Os homens que
intervieram nesses factos dormem jß, pela maior parte, debaixo da terra.
Com raras excepń§es, restam apenas alguns dos que eram mais mońos. O
auctor da _Voz do Propheta_ pertence a esse numero. Contava vinte e seis
annos naquelle tempo.
O homem de hoje p¾de julgar imparcialmente o escripto do homem de entŃo.
O animo tranquillo p¾de avaliar a paixŃo que o inspirou. Aquelles a quem
esse verbo ardente feria viram no auctor um partidario que friamente
calculava os resultados politicos das suas palavras. Injustińa ou erro;
o mesmo que havia da parte delle em ver nos homens que forcejavam por
dirigir a revolta de 1836, por fazer sair desse facto um governo
regular, grandes criminosos. A verdade era que, n'uns davam-se ambiń§es,
mas ambiń§es talvez nobres; n'outros houve, de certo, o sacrificio das
proprias sympathias, o silencio imposto ßs proprias convicń§es, para que
a revolta nŃo degenerasse em anarchia. Em muitos desses individuos,
apparentemente revolucionarios, havia o patriotismo reflexivo, e atķ a
abnegańŃo, emquanto em n¾s, os que os aggrediamos com a sinceridade da
indignańŃo, havia, por amor exagerado aos bons principios, uma colera
que em muitas cousas offuscava a razŃo. A _Voz do Propheta_ representa
esse estado dos espiritos.
Hoje a exagerańŃo sincera do insulto, a invectiva hyperbolica,
inspirada, nŃo pelo calculo, mas pelas irritań§es da consciencia, mal se
comprehende. Neste crepusculo da vida publica, tŃo favoravel ßs
prostituiń§es do cidadŃo, como o crepusculo do dia ßs prostituiń§es da
mulher; nesta epocha de extrema agonia, iniciada pela proclamańŃo dos
_interesses materiaes_ acima de tudo, f¾rmula decente de sanctificar o
egoismo, porque para cada individuo o interesse material alheio ķ apenas
um interesse de ordem moral; agora que a boa educańŃo dos homens novos
mudou a linguagem politica, e vai arrojando para os archaismos
historicos a lucta face a face, a punhalada pelos peitos; agora que a
strychnina da allusŃo calumniosa e amena, o enredo tortuoso, a traińŃo
ridente vŃo expulsando da arena das facń§es as objurgatorias, rudes na
substancia e na f¾rma, a _Voz do Propheta_ ķ, sem duvida, uma composińŃo
agreste e brutal. Inutil como exemplo e modelo, servirß todavia como
amostra do que eram as malevolencias da gerańŃo cujos raros
representantes, hoje quasi estrangeiros no seu paiz, nŃo tardarŃo a ir
esconder no tumulo as ultimas grosserias que deturpam a suavidade dos
costumes e as tolerancias de toda a especie dos cultos filhos de
barbaros.
Os homens que em 1837 se aggrediam violentamente na imprensa e no campo
tinham, de feito, habitos e sentir diversos dos actuaes. As febres
politicas eram entŃo ardentes, indomaveis, porque derivavam de crenńas.
Naquella epocha havia, como houve sempre, belforinheiros da politica;
mas constituiam a excepńŃo. O geral era gente baptisada com fogo e com
sangue nas duas religi§es inimigas do absolutismo e do liberalismo.
Chamo-lhes religi§es, porque o eram. A guerra civil, que terminara em
1834, tivera muitos dos caracteres das antigas cruzadas. Sobretudo nos
primeiros impetos della, haviam-se practicado actos de abnegańŃo, de
constancia, de valor e de soffrimento sobrehumanos, ao passo que se
perpetravam outros de bruteza e ferocidade inauditas. A maior parte
delles, factos obscuros, individuaes, reiterados cada dia, cada hora
daquelle prolongado paroxismo de grandiosa barbaria, nŃo os registou,
nŃo os registarß nunca a historia, talvez. E todavia, ķ isso que explica
a proceridade da estatura moral dos homens daquelle tempo, estatura a
que nŃo chegaram, nem provavelmente chegarŃo as gerań§es subsequentes.
Sem paix§es violentas e exclusivas, nŃo ha as energias que assombram.
EntŃo a existencia e os commodos e gosos della eram tŃo casuaes e
transitorios, as privań§es e dores de tŃo completa vulgaridade, que dar
a vida ou tirß-la aos outros pouco mais significavam do que acń§es
indifferentes. Diante do fanatismo politico, a reflexŃo que discrimina o
bom do mau, o justo do injusto, quasi que era puerilidade. Podia
ceder-se, e nŃo raro cedia-se, a instinctos generosos para com o
adversario: a justińa em apreciß-lo moralmente, ou em respeitar-lhe os
direitos, isso ķ que se tornara difficil.
Taes eram os homens que, depois de esmagarem a monarchia absoluta,
vinham, emfim, a aggredir-se mutuamente na imprensa e no campo. A
revolta, desmembrando o partido liberal, constituia dous partidos
violentos, daquella violencia a que estavam affeitos e cujo embate devia
produzir males profundos e em parte irremediaveis.
Esta scisŃo, logo depois da victoria, era difficil de explicar f¾ra de
Portugal. Aqui entendia-se, embora derivasse de um facto injustificavel.
A harmonia de opini§es, a unidade de crenńas e intuitos dos vencedores
dissipava-se, porque realmente nŃo existia senŃo nas suas relań§es
negativas. Negava-se, combatia-se o passado. Era no que havia accordo.
As apparencias de uniŃo e conformidade creara-as a grandeza do perigo. A
phalange ķ e serß sempre o mais poderoso instrumento de guerra, moral e
materialmente. Embora, porķm, houvesse diversidade de doutrinas, o que
havia mais era contraposińŃo de interesses. Para as primeiras se
manifestarem e tenderem ao predominio bastavam a liberdade da palavra
oral e escripta, e a discussŃo parlamentar. Aos segundos, dada a
impetuosidade e impaciencia da ambińŃo humana, sobretudo nas rańas
latinas, nŃo bastava nenhuma liberdade. Recorreu-se ao illegal, ao
tumultuario, e a revolta de septembro de 1836 appareceu.
Quem a preparou e fez surgir? NŃo sei. Ostensivamente, os seus auctores
foram a plebe de Lisboa e alguns soldados que se negaram a dispersar os
amotinados. Os individuos que, depois de consummado o facto, tomaram nas
mŃos as redeas do governo, recusaram para si a paternidade daquelle fķto
polĒtico. Creio que, affirmando-se innocentes, falavam verdade; senŃo
todos, ao menos alguns. Fugir, porķm, ß responsabilidade de uma
situańŃo, que alißs se busca fortalecer e constituir, ķ indirectamente
condemnß-la; ķ dizer _nŃo_ com a consciencia; _sim_ com os labios. A
sentenńa daquelle motim lavravam-na os mesmos que forcejavam por
convertĻ-lo n'uma cousa grave. Por outra parte, o que me parece evidente
ķ que os governos que cahem como cahiu o que existia, embora simulem de
vivos, estŃo jß moralmente mortos.
E o governo de entŃo estava-o. Por grandes que os seus servińos ao paiz
houvessem sido durante a lucta, o seu proceder depois da victoria nŃo o
abonava. Havia quem fizesse sentir isso, quem atķ desmesuradamente o
exagerasse. Exageravam-no, sobretudo, os vencidos. Emquanto durou o
ruido das armas, os lamentos destes nŃo se ouviam; mas quando o estrondo
cessou, e asserenaram os terrores, os queixumes foram-se convertendo em
invectivas colericas, e tambem em accusań§es nŃo raro ou justificadas ou
plausiveis. A liberdade da palavra falada e escripta tinha-se
conquistado nŃo s¾ contra os defensores da censura e do absolutismo, mas
tambem para elles. Nas expans§es da sua dor e do seu despeito, no pouco
ou muito que essas expans§es contribuiram para o descredito dos homens
que mais cordialmente odiavam, tiveram os vencidos occasiŃo de
reconhecer que a liberdade humana, ruim em these, sobretudo para a
salvańŃo eterna, p¾de, em tal ou tal circumstancia, nŃo ser
absolutamente mß.
Os depositarios do poder executivo tinham, porķm, adversarios mais
perigosos. No gremio liberal houvera homens, alguns de dotes nŃo
vulgares, que, ou por despeitos pessoaes, ou por falta de animo para
affrontarem os trabalhos e riscos de commettimento desigual, ou
finalmente por obstaculos independentes do seu alvedrio, tinham ficado
extranhos ß guerra civil, sumidos em escondrijos na propria patria, ou
acoutados na terra estrangeira para escaparem aos impetos da tyrannia.
Desaccordos nascidos no exilio entre alguns destes ultimos e os homens
de valia de quem o Duque de Braganńa se rodeiara quando emprehendia a
guerra da restaurańŃo, nŃo tinham feito senŃo medrar e azedar-se
progressivamente por diversas causas. Estes desaccordos, que pareciam
pouco importantes emquanto durou a contenda, apenas essa epocha
tormentosa cessou, tornaram-se mais graves, porque os individuos que se
haviam conservado como extranhos ß lucta em que se lhes conquistava uma
patria, tinham amigos e parciaes numerosos entre os que pelejavam e
venciam. Constituido o regimen parlamentar, as malevolencias, mais ou
menos latentes, converteram-se em hostilidade acerba. Esta hostilidade
podia ter, e tinha em parte, motivos maus; mas, contida no ambito
constitucional, era, atķ certo ponto, bem fundada e util.
Os estadistas, que, cercados durante annos de espantosas difĒiculdades,
souberam superß-las exercendo o poder, eram indubitavelmente homens de
alta esphera. Podia reputar-se problematica a virtude de um ou de outro:
a capacidade e a firmeza nŃo podiam disputar-se a nenhum delles.
Affeitos a reger o paiz com o vigor de uma dictadura, inevitavel
emquanto durara a guerra, e com as formulas militares, custava-lhes
esquecerem-se dos habitos dessa epocha, confundindo mais de uma vez, na
praxe da administrańŃo, as duas idķas oppostas, de paiz libertado e de
paiz conquistado. Por outra parte, os que muito haviam padecido queriam
gosar muito, e o reino, devorado por discordias intestinas superiores ßs
proprias forńas e exhausto de recursos, via comprometter o futuro da
riqueza publica por larguezas, nŃo s¾ desacertadas, mas tambem
juridicamente injustificaveis. Homens que teriam legado ß posteridade
nomes gloriosos e sem mancha, e que, mais modestos nas suas ambiń§es
materiaes, seriam vultos heroicos na historia, pagaram-se como
_condottieri_ mercenarios, ao passo que outros, depondo as armas e
voltando ß vida civil, exigiam ser revestidos de cargos publicos para
exercer os quaes lhes faltavam todos os predicados; homens cujo unico
titulo era terem combatido com maior ou menor denodo nas fileiras
liberaes ou haverem padecido nas masmorras os tratos da tyrannia. A
grande, a sķria, a profunda revoluńŃo que se fizera no meio do estrondo
das armas levara de envolta com os dizimos, com os bens da cor¶a, com as
capitanias-mores, com toda a farragem do absolutismo, os antigos
_officios_, moeda que por seculos servira para pagar algumas vezes
meritos reaes, muitas mais vezes, porķm, prostituiń§es e villanias. Mas
as funcń§es publicas, os empregos vieram supprir essa moeda, tomando nŃo
raramente cunho analogo, e distribuindo-se com a mesma justińa e
cordura. Estes e outros erros e abusos que o governo commettera, ora por
impulso proprio, ora para satisfazer as influencias preponderantes com
que o poder tem de transigir, necessidade fatal do regimen parlamentar,
e um dos maiores defeitos da sua indole ainda tŃo imperfeita,
engrossaram rapidamente, com os muitos desgostosos e indignados, a
parcialidade que na origem representava antes malevolencias pessoaes do
que antinomia de doutrinas.
Foi por isso que a revolta de septembro, se nŃo achou eccho pelo paiz,
tambķm nŃo achou nelle repugnancia manifesta, e p¶de na capital
constituir-se e tomar em poucos dias a importancia que nŃo tinha em si.
A consciencia da propria impopularidade, o inesperado dos
acontecimentos, talvez, atķ o tedio e cansańo de aggress§es continuas,
haviam feito titubeiar os membros do governo decahido, tornando-os
inhabeis para sķria resistencia, emquanto os seus adversarios
aproveitavam o successo com a energia de inimizades encanecidas e de
ambiń§es atķ ahi nŃo satisfeitas.
Os homens que entenderam ser do seu interesse ou do interesse do paiz
fazer surgir daquelle estado anormal uma situańŃo regular viram que a
primeira necessidade era elevar o motim ß altura de uma revoluńŃo.
Faltava o assumpto. O derribar um ministerio nŃo o subministra. Basta
para isso a acńŃo mais ou menos lenta, mas segura e pacifica, da
liberdade da palavra, da imprensa e do voto. O povo que com estes
recursos nŃo sabe tirar os seus negocios das mŃos de quem lh'os gere
mal, ķ um povo ou que ainda nŃo chegou ß maioridade ou que jß se arrasta
na senilidade. Urgiam, porķm, as circumstancias. ┴ falta de outra cousa,
proclamou-se irreflexivamente a constituińŃo de 1822 com as modificań§es
que decretassem as futuras constituintes.
Tinha-se, pois, feito uma revoluńŃo para obter um projecto, um texto de
discussŃo constitucional? Se o intuito dos amotinados f¶ra s¾ derribar
os ministros, o facto era excessivo, injustificavel e portanto
illegitimo e criminoso; se porķm o motim, nobilitado em revoluńŃo, tinha
por alvo alterar as instituiń§es, nŃo menos digno de reprovańŃo se
tornava, porque era um crime inutil. A Carta encerrava em si o processo
da propria reforma, processo alißs prudente, regular, exequivel. Partir
da constituińŃo de 1822, acervo de theorias irrealisaveis, se theorias
se podiam chamar, de instituiń§es talvez impossiveis sempre, mas de
certo impossiveis n'uma sociedade como a nossa e na epocha em que taes
instituiń§es se iam assim exhumar do cemiterio dos desacertos humanos,
era mais que insensato. A revoluńŃo, reconhecendo a necessidade de
reformar o codigo que restabelecia, condemnava-o, e condemnava-se.
Parece-me que me nŃo engano se disser que, em geral, aos liberaes mais
illustrados e sinceros a nova situańŃo politica repugnava altamente.
Ponderavam que a mudanńa das instituiń§es politicas de qualquer paiz por
via de uma revoluńŃo ķ sempre um abalo profundo cheio de riscos, e que
mais de uma vez, longe de produzir o bem, tem conduzido as sociedades ß
sua ruina. Sem rejeitar de modo absoluto as revoluń§es como elemento de
progresso, ķ certo que ellas sŃo um meio extremo. S¾, talvez, a
necessidade de combater o despotismo as justifique, porque s¾ debaixo de
tal regimen sŃo impossiveis quaesquer outras manifestań§es da opiniŃo
publica, e nŃo existe campo diverso onde a lucta do direito contra a
forńa, das idķas novas contra os velhos abusos possa travar-se. Em 1836
essas manifestań§es nŃo tinham porķm obstaculo algum, e o campo onde as
doutrinas podiam debater-se, os interesses contrapor-se, os partidos
digladiar-se, era amplissimo. Se em taes circumstancias uma revoluńŃo
fosse legitima, quaes seriam aquellas em que se lhe negasse a
legitimidade?
Depois, nas proprias relań§es politicas, o espirito humano nŃo se dirige
unicamente pela reflexŃo. As paix§es e affectos modificam e alteram as
suggest§es do raciocinio; porque o homem imprime necessariamente em
todos os actos da vida as condiń§es do seu ser. A favor da manutenńŃo da
Carta nŃo militava s¾ a boa-razŃo; militavam affectos, e affectos
profundos. A Carta havia sido o grito de guerra do campo liberal em lide
de um contra dez. Havia sido, digamos assim, a traducńŃo moderna do
_Sanctiago!_ de Affonso I, do _S. Jorge!_ do Mestre d'Aviz. Nas
reminiscencias indeleveis de muitos de entŃo, (bem poucos hoje) estavam
ainda os vivas ß Carta proferidos por labios que iam cerrar-se na morte,
quando as bayonetas inimigas desciam inexoraveis sobre o peito ou sobre
o ventre dos nossos soldados feridos e derribados[1]. Em nome da Carta
se tinha desfeito o triangulo fatal do patibulo, e quebrado o ferrolho
da masmorra e da enxovia, em nome della se tinham aberto para os
foragidos as portas da patria que davam para os desertos do desterro, do
desterro que ķ sempre solidŃo e desventura. A Carta fora como a estrella
polar da esperanńa nos dias, tŃo longos, da fome, da nudez, das
tempestades, do desalento. Vivia depois como envolta na saudade desses
dias, acre e quasi dolorosa saudade, que n¾s os velhos ainda sentimos,
mas que serß provavelmente uma cousa inintelligivel para as gerań§es
novas.
A razŃo, pois, e o sentimento falavam a muitos energicamente em favor
das instituiń§es annulladas. Falavam tambem a favor dellas a consciencia
e a dignidade humanas. Tinham jurado manter essas instituiń§es milhares
e milhares de homens; milhares e milhares de homens as tinham nobremente
mantido com o sangue, com as privań§es, com a resignańŃo illimitada no
sacrificio. Podem valer pouco os juramentos politicos; p¾de, atķ, ser
absurdo o juramento em geral. Mas a quebra de promessas solemnes e
espontaneas, seja qual for a sua formula, serß sempre uma villania
emquanto tiverem culto a honra e a lealdade.
Taes eram os principaes incentivos que induziam grande numero de
liberaes a constituirem um partido hostil ß nova ordem de cousas. A
denominańŃo de cartista, que esse partido adoptou, nŃo correspondia
rigorosamente ßs causas da sua existencia, nem aos seus intuitos ou ß
sua indole. Mas representava atķ certo ponto isso tudo, ao mesmo tempo
que era conciso, e facilmente comprehensivel para o vulgo. O cartista
nŃo reputava todas as instituiń§es, todos os preceitos da Carta como a
mais alta manifestańŃo da sabedoria humana. Nesta parte os liberaes eram
em geral eclecticos. Tanto o partido da revoluńŃo, como o
anti-revolucionario nenhum tinha em si unidade completa de principios;
nem entre um e outro havia senŃo antinomias parciaes quanto ßs doutrinas
de direito politico. No primeiro, que tomava por base das ulteriores
reformas uma constituińŃo democratica, exagerada atķ o despotismo das
turbas, havia individuos para quem, como o tempo mostrou, as theorias da
democracia ainda mais moderada eram altamente odiosas, ao passo que
outros forcejavam por chegar, senŃo ß republica, ao menos a instituiń§es
republicanas. No partido cartista dava-se o mesmo phenomeno. Todas as
modificań§es do governo representativo tinham ahi fautores; tinham-nos,
talvez, atķ, as doutrinas do absolutismo illustrado. A meu ver, a
distincńŃo profunda e precisa entre o cartismo e o septembrismo
consistia em negar o primeiro o principio da revoluńŃo, dentro das
instituiń§es representativas livre e solemnemente adoptadas ou acceitas
pelo paiz, e em affirmß-lo o segundo. Tudo o mais em ambos os campos era
fluctuante e vago.
╔ essa a explicańŃo de um facto que os homens daquelle tempo poderŃo
testemunhar recorrendo ßs proprias reminiscencias. Alistaram-se nas
fileiras cartistas talvez mais individuos que haviam sido adversos aos
ministros derribados, do que amigos e parciaes seus, ao passo que alguns
destes abrańavam sem hesitar a revoluńŃo. De uns e de outros se deve
crer que preferiam nobremente as suas opini§es aos seus interesses, ßs
suas affeiń§es ou inimizades pessoaes. Para muitas dessas opini§es havia
logar em ambas as parcialidades. Os que, porķm, s¾ attendiam ß
moralidade e cordura dos actos de administrańŃo ordinaria, lanńavam-se,
por via de regra, na revoluńŃo; os que, sem desattender taes quest§es,
sem approvarem corrupń§es ou iniquidades a que eram extranhos e que
tinham condemnado, remontavam a mais elevadas considerań§es de ordem
moral e politica, abrańavam o cartismo. NŃo falo dos especuladores que
se resolviam conforme as vantagens que se lhes antolhavam n'um ou
n'outro campo. O proceder destes taes tinha na consciencia publica
entŃo, como depois, como sempre, uma qualificańŃo conhecida.
Mas, dir-se-ha, como nessa epocha se disse, que entre o cartismo e o
septembrismo se dava uma distincńŃo mais radical e profunda. A Carta,
outorgada por D. Pedro IV, representava o direito divino dos reis; era
uma concessŃo de senhor, em vez de um pacto social, ao passo que a
constituińŃo de 1822, derivada da soberania popular, era a consagrańŃo
das doutrinas democraticas. Considerada a esta luz, a revoluńŃo adquiria
as proporń§es de um facto gravissimo, porque assentava a liberdade em
novos fundamentos, e vinha a ser um passo gigante dado na estrada do
progresso politico.
Na epocha, quasi exclusivamente liberal, em que se passavam aquelles
successos, a resposta do cartismo a estas allegac§es parecia facil. NŃo
sei se o seria agora; agora que se tem achado e demonstrado, segundo
parece, nŃo prestar para nada o liberalismo. As intelligencias vigorosas
da mocidade hodierna tĻem aberto caminho a theorias ou novas ou
rejuvenescidas que n¾s os velhos de hoje e mońos de entŃo ou ignoravamos
ou suppunhamos estereis, e talvez pueris, e de que sorriamos, quando
alguns engenhos que reputavamos tŃo brilhantes como superficiaes,
buscavam, evangelisando-as, jungir por meio dellas as turbas, mßs porque
ignorantes, odientas porque invejosas, espoliadoras porque miseraveis,
ao carro das proprias ambiń§es. A questŃo da soberania popular nŃo era
precisamente o que preoccupava mais os entendimentos, cultos, mas
tardos, daquelle tempo, e a democracia nŃo apaixonava demasiado os
animos, sobretudo os animos dos que haviam pelejado desde os Ańores atķ
Evoramonte as batalhas da liberdade, ou padecido na patria durante cinco
annos, sem o refrigerio sequer de um gemido tolerado, as orgias do
despotismo. Uns tinham visto de perto a face da democracia; tinham-na
visto por entre a selva de oitenta mil baionetas que fora preciso
quebrar-lhe nas mŃos para a liberdade triumphar; tinham-na visto nas
chapadas e pendores das collinas que circumdam o Porto, atķ onde os
olhos podem enxergar, alvejando-lhe nos hombros os cem mil embornaes
preparados para recolher os despojos da cidade da Virgem, da cidade
maldicta, rendida e posta a sacco; outros haviam-na visto de machado e
de cutello em punho, mutilando e assassinando prisioneiros inermes e
agrilhoados. O liberalismo achara a catadura da democracia pouco
sympathica. Restava a soberania popular. Essa funccionara durante cinco
annos e dera mostra de si. A soberania do direito divino, repartindo com
ella o supremo poder, provava que nŃo era tŃo ignorante como a faziam.
Tinha litteratura. Applicava, modificando-o, o verso:
Divisum imperium cum _plebe_ Caesar habet.
As classes inferiores constituiam entŃo, como hoje, como hŃo de
constituir sempre, a maioria do paiz, e foi a esta maioria que ella
entregou os direitos que cedia. Era a legitimidade consagrando outra
legitimidade. Amavam-se, comprehendiam-se ambas. ╔ que entre as
extremidades ha contacto ßs vezes. A democracia americana cuida ter
inventado a lei do Linch. Puro plagio. Inventou-a em Portugal a
soberania popular. Havia uma differenńa. Na America a plebe prende,
julga, condemna ß morte e executa; em Portugal o direito divino
reservara para si o tribunal excepcional e o privilegio do cadafalso.
Modesta no exercicio do supremo poder, a soberania popular limitou-se ß
prisŃo, ao espancamento, ß multa, elevada, quando occorria, atķ o
confisco. Se o incendio, o estupro, o assassinio se ingeriam ßs vezes
nesses actos judiciaes, era por simples casualidade. Manchas, tem-nas o
sol. O mercador, o artista, o industrial, o professor, o proprietario
urbano e o rural, o homem de letras, o cultivador, o capitalista, todas
as desigualdades sociaes, todos esses attentados vivos contra a perfeita
igualdade democratica conservaram por muito tempo dolorosas lembranńas
do amplexo das duas soberanias.
O liberalismo, que durante a contenda fora um pouco aspero para com a
democracia, mais de uma vez tambem, empregara sacrilegamente a prancha
do sabre e a coronha da espingarda para cohibir o excesso de zĻlo
administrativo e judicial da soberania popular. A brutalidade do
liberalismo obrigara esta a abdicar ap¾s a abdicańŃo da soberania de
direito divino. Os dogmas, pois, em que se estribava a constituińŃo de
1822, e contra os quaes protestava a historia, ainda palpitante, dos
ultimos annos, eram inefficazes, porque os tornava impotentes a
heterodoxia das consciencias. Duvido de que nesses rudes tempos de
positivismo liberal elles obtivessem uma s¾ conversŃo sincera.
O amor do real e do evidente era um dos grandes defeitos dos homens de
entŃo. O cartismo argumentava: ½Que nos importa, dizia, d'onde veio a
Carta? A questŃo ķ se ella consagra a liberdade humana e a cķrca de
garantias. ╔ deficiente? ╔ defeituosa? Esperemos que a razŃo publica, a
torrente da opiniŃo force os poderes do estado a completß-la, a
corrigi-la. A opiniŃo illustrada largamente preponderante ķ irresistivel
nos governos livres. O que nŃo ķ irresistivel ķ a opiniŃo de alguns ou
de muitos que benevolamente se encarregam de interpretar pelo proprio
voto o voto commum, o voto dos que tĻem capacidade para o dar.--½NŃo se
reputaria louco, accrescentava o cartismo, o representante de uma
familia outr'ora opulenta, mas reduzida ß miseria por espoliańŃo remota,
que, ao vir, por impulso espontaneo, o descendente do espoliador
restituir-lhe os bens extorquidos, repellisse aquelle acto de nobreza e
virtude, achando desar recuperß-los pacificamente? E se tal desar
existiu; se a outorga da Carta e a tacita acceitańŃo do paiz nŃo podiam,
aos olhos da metaphysica politica, elevß-la ß altura de um pacto social,
os immensos sacrificios que o restaurß-la, depois de abolida, custou ß
parte mais illustrada, mais rica, mais activa e laboriosa da nańŃo, ßs
forńas vivas da sociedade, e as torrentes de sangue e de lagrymas que
serviram de sacro encausto ß assignatura do paiz nŃo valeriam bem o
plebiscito da maioria inintelligente, o plebiscito daquellas classes
inferiores que pelejaram atķ o ultimo extremo, senŃo com valor, de certo
com ferocidade, para conservar essa monstruosa e horrivel soberania que
a servidŃo lhes trouxera?
Tem passado trinta annos depois daquella epocha; as paix§es tempestuosas
de entŃo fizeram silencio, e o cartismo e o septembrismo sŃo dous
cadaveres sepultados no cemiterio da historia. O auctor da _Voz do
Propheta_ contempla tŃo placidameute o seu opusculo como se mŃo extranha
o houvera escripto. A experiencia e os desenganos fazem-no sorrir
daquellas coleras, daquellas hyperboles dos vinte e seis annos. Quantos
erros, quantas ignorancias em muitas das suas opini§es desse tempo! E
todavia, ainda os sentimentos que inspiravam o cartismo no seu berńo lhe
parecem nobres e elevados, as doutrinas que constituiam a sua essencia
solidas e justas. ╔ innegavel que o credo democratico, em que os
adversarios se estribavam, tem desde essa epocha adquirido numerosos
sectarios. O velho liberalismo passa de moda. O dogma da soberania
popular, proclamado como supremo direito, substitue o unico direito
absoluto que elle reconhecia, a liberdade e os f¾ros individuaes. Isso
passou: agora a igualdade civil, que era um consectario do dogma
liberal, transfere-se para o mundo politico, e um nivel imaginario passa
theoricamente por cima de todas as desigualdades humanas, perpetuas,
indestructiveis. A paixŃo da liberdade esmorece, porque a absorve e
transforma a da igualdade, a mais forte, a quasi unica paixŃo da
democracia. E a igualdade democratica, onde chega a predominar, caminha
mais ou menos rapida, mas sem desvio, para a sua derradeira
consequencia, a annullańŃo do individuo diante do estado, manifestada
por uma das duas formulas, o despotismo das multid§es, ou o despotismo
dos cesares do plebiscito.
O partido cartista tinha por si as grandes e recentes recordań§es, a
consistencia politica, os bons principios que representava, e,
sobretudo, o sensato e practico das theorias que predominavam entre os
seus membros. Mas a eiva moral quasi que lhe comeńou no berńo. O seu
primeiro erro foi adoptar por chefes os homens eminentes que, pela
gerencia dos negocios em situań§es difficilimas, tinham concitado contra
si, como succede quasi sempre e a quasi todos, a animadversŃo publica,
talvez a da maioria daquelles mesmos que acceitavam agora a sua direcńŃo
politica. Deviam honrar-se taes homens, embora muitos dos actos da sua
administrańŃo nŃo podessem defender-se, porque esses actos eram bem
pequeno desconto aos immensos servińos que a liberdade lhes devia.
Tomß-los, porķm, por guias era acceitar uma parte da sua
responsabilidade; era polluir a pureza das doutrinas com as manchas da
fraqueza humana; era, sobretudo, arriscar que a irritańŃo das paix§es e
os intuitos de desaggravo dirigissem o procedimento de um partido novo e
cheio de vida, que s¾ deveriam inspirar a razŃo tranquilla e a
applicańŃo logica das proprias doutrinas. Deste primeiro erro nasceram
as tentativas infelizes de contra-revoluńŃo. Essas tentativas nŃo podiam
reputar-se crime, porque o elemento revolucionario tinha entrado como
formula politica no direito publico do paiz, mas eram altamente
illogicas em relańŃo ß Ēndole e ao symbolo do cartismo. Por outro lado,
o governo da revoluńŃo mostrava-se, ao mesmo tempo, tolerante para com
as opini§es e energico em cohibir excessos. Por isso o partido cartista
podia contar com a victoria incruenta que na urna lhe havia de dar o
paiz; victoria para os principios, e nŃo desaggravo para as paix§es
irritadas. Que este resultado era seguro, provaram-no os factos. Vencido
na guerra civil, desauctorisado e moralmente enfraquecido, o cartismo
viu triumphar em grande parte as suas idķas na contextura da
constituińŃo de 1838, votada por umas constituintes onde os vencidos
estavam representados por insignificante minoria. Era a condemnańŃo
solemne da revoluńŃo, lavrada por um parlamento eleito debaixo da
influencia della. O que no novo codigo politico parecia mais opposto ß
indole da Carta era a organisańŃo da segunda camara, e todavia o
cartismo adquiria por aquelle meio uma arma poderosa para de futuro
reformar constitucionalmente o que havia mau na recente organisańŃo de
um dos corpos colegislativos, de modo que nem se restaurasse o absurdo
pariato hereditario e illimitado, nem a assemblķa conservadora
significasse apenas a interposińŃo de uma parede entre duas porń§es de
parlamento unico. Uma vez que o senado procedia simplesmente da eleińŃo,
logo que o cartismo obtivesse a preponderancia eleitoral, dominaria
completamente em ambas as camaras. Dentro em dous annos, de feito, o
predominio do cartismo era indubitavel.
O ulterior procedimento deste partido estava estrictamente determinado
pela sua origem e pelo seu passado. Como vimos, nŃo era tanto a sua
indole menos democratica, o seu apego ß liberdade e aos direitos
individuaes com preferencia a tudo, que o caracterisavam. Sans opini§es,
erradas opini§es, havia-as tanto n'um como n'outro campo. O que
constituia a essencia do cartismo era a lealdade ao juramento; a
lealdade viril no cumprimento da palavra dada pelo homem honrado quando
a dß no pleno uso do seu alvedrio. Os cartistas tinham feito tudo quanto
materialmente podiam, mais do que moralmente deviam, para supprimir a
revoluńŃo. NŃo o tinham conseguido, e ella fechara o periodo da sua
durańŃo, protestando na lei politica decretada pelas constituintes
contra a propria origem, contra a sua razŃo de ser. A constituińŃo de
1838 era um campo neutro onde todos se podiam encontrar pacificamente e
procurar, sem sair da legalidade, o predominio das respectivas opini§es.
E o cartismo entrou naquelle campo. Quando o paiz viu os homens que tŃo
tenazmente haviam mantido a fķ que deviam ao seu juramento, jurarem
solemnemente o novo pacto, acreditou que falavam verdade, e que o cyclo
das revoluń§es terminara. Passados tempos, a urna provava aos cartistas,
de modo indubitavel, que nas classes influentes, nas forńas vivas da
sociedade, a preponderancia era sua. No fim de tres annos podia-se dizer
que o triumpho moral do cartismo estava consummado. O poder e o futuro
pertenciam-lhe.
Um facto inopinado veio entŃo desbaratar todos os calculos, desmentir
todas as previs§es. Uma grande parte, ou antes a maioria desse partido,
cuja essencia era a lealdade a solemnes promessas, e a execrańŃo das
revoluń§es no seio de um paiz livre, hasteou subitamente a bandeira
revolucionaria, substituindo ao motim da plebe o unico motim peior do
que elle, o da soldadesca. Quebrando inutilmente o seu ultimo juramento,
derribava a constituińŃo do estado e proclamava o restabelecimento da
Carta pura, que, sem os acontecimentos de 1836, os mesmos homens que a
achavam agora um codigo perfeito teriam constitucionalmente modificado.
╔ que ß victoria dos principios faltava um laurel, o desaggravo do amor
proprio offendido. O partido cartista suicidava-se juncto, ao altar da
vaidade, e amortalhava-se a si proprio, morrendo, no estandarte da
revoluńŃo.
Depois houve muitos que continuaram a chamar-se cartistas, porque os
vocabulos sŃo propriedade dos homens, e a propriedade, conforme o velho
direito, consiste na faculdade de usar e abusar. Era como os graus e
veneras das ordens de cavallaria extinctas. Enfeitam, mas correspondem
ao nada. Symbolos vŃos sobre um sepulchro. Para a historia, como a
historia ha-de ser quando de todo houverem calado as paix§es dos que
intervieram nessas tristes luctas, o cartismo tinha expirado com a
restaurańŃo da Carta.
[Nota de rodapķ 1: Assim vi morrerem alguns soldados do 5.░ de cańadores
e voluntarios da Rainha no temerario reconhecimento de Vallongo, que
precedeu a batalha de Ponte-Ferreira.]
A VOZ DO PROPHETA
PRIMEIRA SERIE
Et irruet populus, vir ad virum, et
unusquisque ad proximum suum:
tumultuabitur puer contra senem et
ignobilis contra nobilem.
ISAIAS, III-5.
I
O Espirito de Deus passou pelo meu espirito, e disse-me: vai, e faze
resoar nos ouvidos das turbas palavras de terror e de verdade.
E eu obedecerei ao meu Deus no meio dos punhaes de assassinos.
Povo!... breve soarß a tua hora extrema: tu mesmo a assignalaste no
decorrer dos tempos.
O anjo exterminador vibra sobre ti a espada da assolańŃo, e tu danńas e
folgas ebrio das tuas esperanńas.
Essa terra que pisas crĻs que ķ um solo remido por tuas mŃos: repara
porķm; olha que ķ um sepulchro.
Amplo ķ o sepulchro de um povo: dentro em breve tu ahi calarßs para
sempre.
Creste-te forte, porque sabes rugir como a panthera: mas somente Deus ķ
grande.
Encheste o vaso das tuas iniquidades; elle trasbordou, e a terra ficou
polluida.
Maldictos os nomes dos que accenderam o volcŃo popular; nomes
abominaveis perante o cķu e a terra.
Portugal foi pesado na balanńa da eterna justińa, e a Providencia
retirou a mŃo de cima delle.
Derribem-se os altares, cerrem-se as portas dos templos: Deus jß nŃo
acceita os sacrificios, nem ouve as preces deste povo, senŃo como uma
expressŃo de escarneo.
E como o aquilŃo varre a folha secca do outono, o sopro do Senhor
varrerß da face da terra esta rańa corrompida e immoral.
II
O que tem ouvidos para ouvir ouńa: o que tem olhos para ver veja: o que
tem corańŃo para se contristar, contriste-se.
O povo tinha a liberdade e quiz a licenńa; tinha a justińa e quiz a
iniquidade: o povo perecerß.
Desgrańado daquelle que anda f¾ra dos caminhos do Senhor: correndo
despelado por despenhadeiros, sentir-se-ha por fim baqueiar no fundo de
um precipicio.
Porque a lei e a virtude foram postas no mundo para proveito do homem,
nŃo para proveito de Deus.
Quando uma nańŃo quebra todos os lańos sociaes, della serß todo o damno.
Para as turbas o cheiro do sangue ķ perfume suave; o roubo gloriosa
conquista.
E ellas se fartarŃo de sangue e de rapinas com a voluptuosidade atroz do
anthropophago que se banqueteia com os membros semivivos do seu
semelhante.
Porque a plebe desenfreiada ķ como o phantasma do crime, como o espectro
da morte, como o grito do exterminio.
HorrĒvel ķ o aspecto do empestado, que, entreabrindo o lenńol que lhe
servirß de mortalha, descobre as pustulas, donde mana a podridŃo e o
cheiro da sanie, e que por entre os labios amarellos e os dentes
cerrados deixa fugir o som rouco do estertor.
Mas para o homem honesto, que contemplar uma scena das raivas da plebe e
ouvir as suas blasphemias e vir as faces hediondas dos homens
dissolutos, serß como allivio a asquerosidade das chagas, o halito podre
e o rouco estertor do empestado.
III
E o povo contin·a a danńar em roda do seu mesmo sepulchro.
E as outras nań§es meneiam a cabeńa em signal de compaixŃo.
Os tyrannos sorriem e dizem por escarneo aos homens virtuosos: ide, e
dae a liberdade ßs turbas: erguei ß dignidade de homens livres servos
devassos e educados no lodo: elles vos pagarŃo com a unica moeda que
guardam em seus thesouros.
A relķ popular ķ chamada as fezes da sociedade, nŃo porque ķ humilde,
nŃo porque ķ pobre, mas porque ķ vil e malvada.
O sabio e o virtuoso indigentes sŃo mais nobres do que os grandes da
republica, do que os dominadores da terra.
O ferrete da abjecńŃo e da infamia estampa-se em qualquer fronte sem
excepńŃo de berńo, e aos que trazem este signal de reprovańŃo ķ que a
philosophia chama escoria da sociedade.
A medida por que Deus conta os graus dos meritos da vida ķ a da pureza
de corańŃo; ķ a do aperfeińoamento da intelligencia.
Os typos das diversas alturas a que sobe o espirito humano na carreira
indefinita da perfeińŃo formam como uma pyramide, cuja base assenta no
fundo de um tremedal, cujo ßpice se esconde no interior dos cķus.
Muitos nasceram no infimo da pyramide e subiram a grande altura: outros
de grande altura desceram a mergulhar-se no lodo.
E tanto a uns como a outros julgarß a immutavel justińa de Deus.
IV
Os soldados da liberdade morreram nos combates da patria e misturaram o
seu sangue com o sangue dos satellites da tyrannia: os seus ossos
alvejam nas serras e nos valles, como alvejam as ossadas dos servos com
quem combateram.
Foi sasŃo essa de abundante messe de almas puras para o cķu. Consolem as
lagrymas dos justos as cinzas desses valentes.
Eram apenas um punhado; a morte ceifou os mais delles; o resto jß nŃo
tem forńa senŃo para pranteiar sobre as ruinas da patria.
E o vidente pranteiarß com elles, porque o Senhor lhe amostrou o futuro.
Se os homens do desterro e das tempestades podessem levantar-se da sua
jazida, a terra de antigas glorias ainda seria salva: mas elles dormem o
perpetuo somno do repouso.
E foi o ultimo leito honrado em que portugueses se reclinaram no seu dia
extremo.
Felizes os que entŃo se despediram do sol e misturaram com a terra o p¾
que lhes emprestara a terra.
Os dias dos que restamos nŃo eram ainda contados; porque nossos erros
pediam a punińŃo do opprobrio.
O Senhor nosso Deus ķ justo; curvemos a cabeńa diante da sua
Providencia.
V
Formosos eram os tempos em que pelejavamos pela liberdade do povo; tŃo
formosos, quŃo negros estes em que a plebe peleja pela licenńa.
As nossas armas vomitavam a morte: semeiava-a tambem o inimigo pelas
nossas fileiras: e n¾s estavamos firmes nos pincaros das montanhas, ou,
descendo, faziamo-las resoar debaixo de nossos pķs.
E arrojando-nos aos contrarios, as bayonetas reluziam ß luz do sol; e o
tinido dos ferros encontrados, e o clamor dos feridos, e o estampido dos
tiros reboavam pelas quebradas dos valles.
Quando a victoria, embora sanguinolenta, nos coroava a fronte, o
triumpho era para n¾s um delirio; porque o combate fora de homens
valentes.
Na historia do soffrimento humano a mais bella pagina ķ a historia do
nosso soffrimento. Nem a peste, nem a fome, nem a desesperańŃo de todo o
humano soccorro dobraram a robustez de corań§es ousados.
Porque pelejavamos por uma causa justa, e Deus estava comnosco.
Por serranias agrestes e aridas combatemos debaixo de s¾es ardentes, e
as entranhas mirravamse-nos de sede: tinhamos os labios resequidos como
a urze jß morta, e humedeciamo-los com as lagrymas da dor, e
supportavamos a sede.
Encostados a mal construĒdos vallos e cercados por quarenta mil
soldados, vigiavamos pelas noites longas e tenebrosas do inverno. A
chuva cahia-nos em torrentes da atmosphera densa sobre os membros
mal-vestidos, e o oeste sibillava em nossas armas.
Ou se as cataractas do cķu se vedavam, o frio leste trazia-nos o seu
sopro envolvido nas geadas dos montes penhascosos.
Cruelissimas eram estas entre as noites crueis desse tempo; porque ao
redor de n¾s tudo estava devastado, e nŃo havia um unico tronco para
alimentar a fogueira do arraial.
E o frio recalcava a vida toda no corańŃo do soldado; e elle sem um
lamento soffria o rigor de noite dilatadissima.
A fome apresentou-se diante de n¾s: medonho era o seu aspecto: os
membros desfalleciam-nos e as armas por vezes nos cahiam das mŃos.
Mas o amor da patria estava vivo em todos os corań§es. A Providencia
infundia-nos valor, e soffremos sem murmurar a fome.
Gloria a Deus!--Os ultimos portugueses saĒram illesos da prova. Os
antigos cavalleiros os receberam como irmŃos lß onde sŃo com o Senhor.
Bemaventurados os que deixaram esta terra de lagrymas, porque nŃo viram
que o seu sangue f¶ra derramado em vŃo.
VI
E depois dos combates Ēamos sepultar os mortos.
No campo da batalha abria-se uma grande cova, e simultaneante se
lanńavam nella os cadaveres de amigos e de inimigos.
Porque alķm do limiar do outro mundo calam todos os humanos odios.
E o tecto de terra estendia-se sobre os muitos que ahi dormiam no mesmo
jazigo.
E algum pranto derramado sobre o p¾ revolto, e as preces da igreja
proferidas pelo sacerdote consolavam os extinctos.
Plantava-se a cruz sobre a gleba para consagrar a memoria dos mortos;
para pedir a esmola da orańŃo ao que passasse, e para lhe annunciar que
todos os que alli repousavam eram irmŃos por Jesu Christo; eram irmŃos
pelo sepulchro.
Perdoavamos para sermos perdoados: perdoavamos porque eramos fortes.
VII
Alevantou-se a plebe, e logo commetteu um crime.
Agitava-se e ondeiava pelas ruas com clamor inintelligivel; arrastava-a
o espirito das turbulencias civis.
Um homem inerme passou por entre os amotinados: era um dos votados ao
exterminio: muitos tiros e golpes partiram do meio da turba, e o homem
cahiu exangue e sem vida.
E arrastaram atķ o cemiterio publico, ao som de injurias e risadas,
esses restos que a morte sanctificara. As maldicń§es do odio mais
profundo param ß beira do tumulo. A maldicńŃo popular, essa ķ que nŃo
parou ahi.
Soterraram por meio corpo o cadaver e cuspiram naquellas faces lividas
aonde jß nŃo podia subir do corańŃo o rubor, e que os olhos cerrados nŃo
podiam jß mundificar com lagrymas.
E esse homem assassinado e arrastado e cuberto da escuma fetida da
gentalha, fora um dos que salvaram o povo do cutello dos tyrannos.
Plebe: commetteste um assassinio, e serßs julgada. A ferro morrerß o que
ferir com ferro: disse-o o Propheta do Golgotha.
Deixaste acaso a face da tua victima descuberta para monumento do crime?
Quizeste porventura desafiar a eterna justińa, e convocar a combate o
Regedor dos mundos?
Se na tua maldade e soberba assim o pensaste, sabe que baldada foi a
profanańŃo da sepultura.
Se nos confins da terra sumisses o morto; se o escondesses nos abysmos
do oceano; se o arrojasses na cratera de um volcŃo encendido, lß Deus o
havia de divisar.
Porque todo o gemido do moribundo resoa atķ o throno do Eterno.
Preparae-vos, vermes, se tanto ousaes: porque o Senhor se erguerß sobre
os orbes, e o estridor da setta exterminadora sibillarß atravez do
Universo: ella se cravarß na terra que pisaes e passareis como o fumo.
Ai daquelle que, impenitente, acordar ao som da ultima trombeta tincto
no sangue injustamente derramado de algum de seus irmŃos!
Em verdade vos digo que para esse jß nŃo ha perdŃo, mas s¾ o ranger de
dentes e o bramir sempiterno.
VIII
Povo! Onde estŃo os teus sabios, os teus generaes, os teus nobres, os
teus abastados, os teus homens virtuosos!
Os timidos escondem-se diante da tua sanha: os valentes, nŃo podendo
combater com as turbas, erram no oceano ß mercĻ das tempestades.
E ķ a segunda vez que se affrontam com ellas por amor da liberdade e da
lei.
Deus proverß os foragidos, como provĻ de sustento os animaes que
vagueiam na terra e as aves que cruzam os ares.
E os timidos que, ouvindo o rugido da plebe, se embrenham por antros de
serranias, por profundezas de bosques, confiem tambem no Senhor.
Porque delle vem a salvańŃo para os bons no dia da c¾lera e do castigo.
Que os perseguidos se consolem lembrando-se dos proprios erros, porque
ninguem se isenta da culpa, e antes remi-la neste valle do desterro, do
que alķm da sepultura.
O que padece nŃo deve queixar-se, nem rebellar-se contra a Providencia:
porque essa queixa inspira-a a soberba.
Que ķ um homem em comparańŃo de uma cidade; uma cidade em comparańŃo de
um povo: um povo em comparańŃo do genero humano; o genero humano em
comparańŃo do Universo?
E que intelligencia ķ capaz de medir a distancia que vai do primeiro ao
ultimo?
Milh§es de milh§es de vezes menos importa a existencia de um individuo
na somma das existencias, do que na pyramide de Cheops o mais miudo grŃo
de argamassa importa ß solidez do monumento.
Emquanto vive na terra, o homem ķ um atomo na immensidade: grande serß
depois da morte no reino do cķu; grande ainda entre os bramidos do
inferno.
Porque para elle existe a eternidade s¾ entŃo: s¾ entŃo comprehende a
omnipotencia de Deus.
IX
Cinco annos em nome do Evangelho uma parte do povo perseguiu seus
irmŃos, e cobriu-os de opprobrio.
Em nome do Evangelho pregoou-se o odio, a vinganńa, e o perjurio: em
nome do Crucificado pregoou-se o incendio, o roubo, o sangue e o
exterminio.
Mas o dia da punińŃo chegou, porque as lagrymas da innocencia orvalharam
o seio de Deus.
Elle estendeu o seu brańo, suscitou os ousados, e conduziu-os de milagre
em milagre. EntŃo os impios dobraram a cerviz altiva.
As nossas victorias foram de homens fortes; mas a robustez de animo
vinha-nos daquelle que ķ fonte e origem de toda a humana virtude.
Vestia-se entŃo a maldade dos trajos puros da religiŃo para perpetrar
impunemente crimes: hoje abriga-se ß sombra da arvore sancta da
liberdade para assolar a terra da nossa infancia.
Ai dos maus, porque os olhos do Todo-poderoso lhes vĻem nus os corań§es
em toda a hediondez da sua perversidade!
A justińa celeste nunca dorme, como na alma do criminoso nunca se cala o
remorso.
E a hora da tribulańŃo e das angustias chegarß para os malvados; e elles
amaldicńoarŃo o ventre materno e os peitos que os amamentaram.
X
Povo! os que hoje saudas como numes, ßmanhŃ fa-los-has em pedańos, e
arrastarßs pelas ruas os seus cadaveres cobertos de feridas e pisaduras.
Porque, bem que tarde, conhecerßs que elles te hŃo enganado.
Prometteram-te abundancia, e achar-te-has faminto; prometteram-te
liberdade, e achar-te-has servo.
A licenńa mata a liberdade; porque se livremente opprimes, livremente
podes ser oppresso; se o assassinio ķ teu direito, direito serß para os
outros assassinar-te.
Se a forńa, e nŃo a moral, ķ a lei popular, quando os tyrannos tiverem
mais forńa, legitimamente podem p¶r no collo do povo um jugo de ferro.
Ministros da tyrannia sŃo os que suscitaram a lucta das facń§es, os que
deram o primeiro grito da revolta, os que accenderam a guerra civil;
Porque a nańŃo se dilacerarß, e enfraquecida passarß das mŃos da plebe
para as mŃos d'algum despota que a devore.
Lembrae-vos da Serpente, que enganou nossos primeiros paes: foi com
palavras sonoras, com promessas de gloria e de ventura que ella perdeu a
ambos.
Dado que para v¾s nŃo houvesse liberdade e elles vo-la offerecessem ß
custa de perpetuo damno, devieis tĻ-los por vossos destruidores.
Porque a liberdade nŃo ķ tanto um fim como um meio: quer-se a liberdade
nŃo tanto para as nań§es serem livres, como para serem felizes.
Que importa o respeito de propriedade ao que nada possue? Que vale a
liberdade da palavra para o que s¾ tem de proferir maldicń§es e
queixumes? Que monta que os vossos pares vos julguem, se o odio das
facń§es nos fez inimigos uns dos outros?
Sem concordia, inevitavel ķ que o edifĒcio social desabe: e porventura
nascerß a concordia do meio das sediń§es?
XI
Se no corańŃo de algum dos concitadores da anarchia existe vislumbre de
virtude, ai delle! Ai delle, se a sua alma ķ inteiramente negra!
Porque de qualquer dos modos um abysmo estß cavado debaixo de seus pķs:
na estrada do arrependimento o da vinganńa popular, no seguimento do
crime o da justińa de Deus.
Elles revelaram ß multidŃo o segredo da sua forńa, e as turbas os
levarŃo diante de si.
O leŃo ruge livre na arena, e o conductor que o desatrellou cumpre que
mais ligeiro lhe preceda na carreira, alißs serß o primeiro que elle
desfańa entre as garras.
Aquelles que hoje sŃo o amor das turbas serŃo chamados por ellas para
presidirem a conselhos de sangue, a longos dramas de destruińŃo e de
angustias.
E se a consciencia lhes clamar com a voz do remorso, e se tremulos
quizerem retroceder, a plebe lhes dirß--ßvante!
E se ousarem implorar piedade para com as victimas do desenfreiamento e
da barbaridade, rir-se-ha a plebe, e gritar-lhes-ha--ßvante!
E se, aterrados da altura do precipicio, voltarem atrßs um passo, este
passo serß o extremo: a plebe os anniquilarß.
Elles encheram o calice das amarguras publicas: os justos o beberŃo aos
tragos; mas as fezes serŃo para os escanń§es do banquete popular.
A salvańŃo unica do instigador de revoltas e uni§es estß em admittir
todas as consequencias dellas.
E entŃo forńoso lhe ķ tornar-se conspicuo no crime e revolver-se no
sangue.
Mas qual serß a eternidade de tal homem?
Deus nŃo deu palavras ßs lĒnguas da terra para o dizerem. ╔ esse um dos
mysterios do inferno.
XII
Temo as horas caladas da noite, e o corańŃo aperta-se quando o somno me
pesa sobre as palpebras amortecidas:
Porque para mim o somno nŃo ķ repouso, e os phantasmas das sombras sŃo
mais crueis do que as crueis realidades do dia.
Deus converteu a sua voz no meu pensamento e collocou nos meus labios o
grito da sua colera.
O seu verbo desfarß a minha alma, como o ar aquecido dilatando-se dentro
do vaso o desfaz em fragmentos.
O espanto cerca-me no meio das trevas, e o futuro estß parado diante de
mim como um pesadello eterno.
Em um momento reune o Senhor na minha alma as dores com que por largos
dias gemerß esta desventurada patria.
E, em sonhos, oro ao Deus de nossos paes; mas na sua ira o Altissimo
repelle as minhas preces; e acordo debulhado em lagrymas.
Este acordar arremessa-me ß vida actual, a esta atmosphera de
depravańŃo, ao meio do deshonesto tumultuar de um povo corrompido.
E a orańŃo, que em sonhos ousara levantar a Deus, cahe gelada na terra
ao som das pragas e blasphemias da turba desenfreiada.
XIII
Eu vi uma visŃo do futuro, e o Senhor me disse: vai e revela-a na terra.
Como em panorama immenso, um reino inteiro estava diante dos meus olhos.
E nas duas cidades mais populosas delle homens de mß catadura comeńavam
de agglomerar-se nas prańas e a trasbordar pelas ruas.
E nos campos e nas aldeias outros homens com aspecto de reprobos
comeńavam tambem a apinhar-se nos passos das serras, nas assomadas das
montanhas e nas clareiras das florestas.
E tanto nas faces dos filhos dos campos, como nas dos habitadores das
cidades adivinhava-se o grito de exterminio que bramia no fundo dos
corań§es.
Os magotes de serranos fundiram-se n'uma s¾ turma; e o mesmo succedeu
aos das cidades.
E cada uma das turmas se converteu em uma besta-fķra, que se assemelhava
ao tigre.
Agigantada era a sua estatura, e na fronte de uma lia-se--Fanatismo--e
na da outra--Desenfreiamento.--
Com os olhos tinctos em fel e sangue, correram entŃo os dous monstros um
para o outro, ergueram-se em pķ e estenderam as garras.
No mesmo instante abriram-se os cķus: dous grandes cutelos afiados e
dous fachos encendidos cahiram juncto das alimarias ferozes.
E nas laminas dos cutelos estavam escriptas com letras de fogo as
palavras seguintes--MaldicńŃo de Deus.
E cada uma das alimarias segurou com a esquerda um dos fachos, e com a
direita um dos cutelos.
A das cidades arrojou o seu facho sobre os campos, e os campos ficaram
em um momento ßridos e ermos.
E a outra sacudiu o seu sobre as duas cidades, e subito no logar onde
ellas foram estavam dous mont§es de ruĒnas.
Depois, combatendo por largo tempo e atassalhadas de golpes, cahiram e
renderam os espiritos.
EntŃo as lagrymas me offuscaram os olhos; porque bem entendia o que
significava a visŃo.
Mas enxugando-os, tornei a lanńß-los para o logar da peleja.
E vi uma solidŃo safara e negra, sobre a qual a perder de vista para
todos os lados alvejavam milhares de ossadas.
E em cima dellas estavam assentados dous espectros gigantes. Chamavam-se
AssolańŃo e Silencio.
XIV
Era uma noite serena, e, ao clarŃo da lua, a sombra de templo antigo
estirava-se no terreiro contiguo.
Os sinos dormiam nos campanarios das torres erguidas, e tudo estava
calado no ambito do monumento religioso, herdado aos homens impios deste
seculo pelos homens crentes dos tempos que foram.
Atravez das esguias e ponte-agudas janellas da igreja transverberava na
prańa a luz amortecida das alampadas penduradas ante as capellas
desertas.
Era a hora em que se passam cousas mysteriosas por adros e cemiterios, e
em que vagueiam pela terra os mortos condemnados a assim cumprirem com
sua justińa.
N'um angulo do terreiro estava eu. NŃo sabĒa que mŃo me tinha para alli
arrastado; mas era a mŃo de Deus.
Ao longo de uma rua que naquelle logar desembocava vinha ondeiando um
turbilhŃo negro, cujo rugido era semelhante ao rugido do pinhal da
montanha em noite tempestuosa.
E parecia aquelle grande vulto um fragmento do cahos, a quem, de todos
os elementos de harmonia e de ordem, s¾ o Creador concedera o movimento.
E chegou o tumulto diante da igreja e espraiou-se por toda a prańa, e
houve profundo silencio.
E um homem alevantou a voz no meio do tropel, que pendia de seus labios,
e disse:
½V¾s sacudistes o jugo dos poderosos, e o nome de rei e o titulo de
nobre sŃo palavras sem significańŃo na linguagem de nańŃo regenerada.
O povo que jazia no lodańal alevantou-se como gigante de prodigiosa
altura, e estendendo os brańos, estreitou os palacios dos abastados e
dos potentados: os pannos dos muros vacillaram nos seus fundamentos de
marmore e de granito, e comeńaram de desmoronar-se e baqueiaram por
terra.
E o gigante popular riu-se e assentou-se em cima de mont§es de ruinas.
Foi este dia dia de sempiterna gloria.
Mas os monumentos da credulidade e do fanatismo de nossos paes ainda
assoberbam a cidade dos homens livres. A hypocrisia abriga-se ß sombra
dos altares e invoca, talvez contra n¾s, um Deus que nŃo existe.
O unico Deus de corań§es generosos ķ a liberdade. Quando cumpre, o altar
della ķ o cadafalso: o seu sacerdote o algoz: o seu culto verter o
sangue dos tyrannos.
A religiŃo que tem por fundamento a humildade e a abnegańŃo de si ķ a
religiŃo dos servos.
╔ por isso que nossos paes foram servos.
Amaldicńoemos, pois, o nome dos que nos geraram e derribemos a obra da
superstińŃo.
E cada um daquelles precĒtos amaldicńoou seu pae. Os cabellos
errińaram-se-me de horror.
EntŃo a turba arrojou-se ao portal do templo, e os largos ferros dos
machados scintillavam erguidos e faziam estourar as portas. Pelas naves
da igreja retumbava um gemido longo e sonoro.
E o terreiro ficou esgotado dessas ondas de povo, vertidas pelo ßdito da
velha cathedral dentro de seu amplo recincto.
Como os vermes se arrastam vagueiando pelos membros do cadaver, assim os
homens do sacrilegio se espalharam, arremessando-se aos altares e a
todos os logares onde reluzia a prata ou o ouro.
E cuspindo sobre a hostia do Cordeiro, pisavam-na aos pķs e motejavam do
Crucificado.
E despido o templo das riquezas alli depositadas em testemunho da
piedade de seculos, os impios saĒram delle carregados de despojos.
Depois, accendendo fachos, lanńaram-lhe fogo por todos os angulos, e
breve as chammas se ergueram ao cķu com espantoso ruido.
O estalido das pedras que se desconjunctavam, e o fragor das abobadas
desabando, e o estridor do incendio, que trepava em espiraes pelas
columnas e se estendia em lenńoes vermelhos, lambendo a face dos muros,
e o ultimo gemido dos orgŃos era a orchestra deste sarau popular.
E a plebe folgava de roda, e embriagava-se, passando de mŃo em mŃo as
tańas do vinho espumoso, e tecendo danńas com as mais vis prostitutas.
Tal foi o sonho do futuro que o Senhor me enviou n'uma noite de agonia.
XV
O anjo das predicń§es mudou entŃo na minha alma a scena do porvir.
┴ mesma hora, ß mesma luz da lua, estava eu no logar onde vira o povo
quebrar as portas do sanctuario; onde vira os homens dissolutos transpor
a ultima barreira que os separava dos tigres, e lanńar de si o ultimo
signal que os distinguia dos espiritos das trevas.
Dos fustes truncados das columnas do templo pendiam hervas bravias, e
nos muros semi-rotos enlańava-se a hķra.
Nos campanarios afumados pelo incendio haviam as aves nocturnas
construĒdo os seus ninhos: ao cahir das trevas, em vez dos sons
religiosos dos sinos, despenhavam-se lß dos cimos das torres os pios
melancholicos da poupa solitaria.
E no meio do terreiro surgia o que quer que era negro e que nŃo se
assemelhava a nenhuma obra da natureza, a nenhuma obra das mŃos do homem
feita para o uso da vida.
Approximei-me. Era o patibulo.
Um vulto humano pendia do alto delle e volteiava para um e outro lado ß
mercĻ da brisa da noite.
E tinha as faces disformes e os olhos espantados, e da b¶ca meia aberta
gotejava-lhe a espańos o sangue.
Eu estava com os olhos cravados nelle, e nŃo os podia despregar do homem
do patibulo.
E involuntariamente cahi de joelhos: as preces pelo morto Ēam-me a
romper dos labios. Sentia ardente a fronte e batia-me o pulso rapido e
com forńa.
┴ primeira palavra de orańŃo que proferi, um estremeńŃo agitou o cadaver
do justińado.
E sem mecher os beińos murmurou sons inarticulados: depois proferiu
algumas palavras: a sua voz era a de um ventriloquo.
Cala-te!--disse o cadaver.--A eternidade ķ jß minha. Deus riscou-me do
livro da vida: maldicto seja o seu nome!
Fartei-me de crimes na terra: por isso fui condemnado.
A minha existencia foi como um halito de pulmoens ralados: a minha voz
nunca ensinou senŃo a destruińŃo.
Hypocrita da liberdade, pregoei a anarchia e a licenńa, como os
hypocritas da religiŃo pregoam a intolerancia e o exterminio.
Fui eu o que nas trevas preparei a discordia dos homens livres; que
suscitei o primeiro dia de furor popular.
Colloquei em frente dos amotinados alguns mancebos, em cujo seio havia
fragmentos de virtude, mas cuja ambińŃo era cega.
Porque bem sabia eu que a plebe immoral anniquilaria todos os que nŃo
fossem tŃo dissolutos como ella.
Deixei na arena dos bandos civis todos os meus ķmulos, e abandonei o
paiz que de futuro devia ser minha prĻa.
Quando voltei, o povo tinha feito pedańos os seus idolos de um dia, e
havia-os sumido debaixo dos pķs das turbas.
Era entŃo que comeńava o meu imperio. Ai dos que eu tinha arrolado no
livro da morte! Nenhum ficou sobre a terra.
Milhares deixaram a cabeńa debaixo do cutelo do algoz: milhares
volteiaram no cadafalso por noites de luar, como agora eu volteio.
E este barańo que ora me sobreleva do chŃo ainda o achei aquecido do
collo da minha ultima victima.
Fartei a sede de vinganńa e de sangue que mirrava o meu corańŃo, e morri
seguro de que deixava atraz de mim a campa cerrada em cima de todos os
virtuosos.
O tyranno do cķu folgue embora em me ver no inferno: ao menos pude
apagar o seu nome na terra que me deu o berńo.
Um brado meu desmoronou os templos: o sacerdocio desappareceu; a orańŃo
calou para todo o sempre.
Agora tambem eu passei; porque na senda do crime o povo com uma passada
vence o caminho de um seculo, e eu era apenas um homem.
Os que empolgaram o poder, que me foi arrancado, nŃo os tinha ainda
conhecido, porque se arrastavam hontem em regi§es obscuras; alißs
ter-me-hiam precedido em descer aos abysmos.
Aqui, dando um longo gemido, o suppliciado calou; os olhos
fecharam-se-lhe, e a cabeńa pendeu-lhe para o peito.
Emquanto falara, bem conheci quem era; mas o Senhor me ordenou nŃo
revelasse o seu nome.
XVI
O anjo das predicń§es mudou o espirito dos meus sonhos.
Era por noite fria de inverno: n'uma quadra desadornada de palacio meio
arruinado jazia um homem em pobrissima enxerga.
No seu rosto estava pintada a doenńa e a fome, as bagas do suor da morte
transudavam-lhe da fronte, e dos olhos fugia-lhe a lagryma extrema do
moribundo.
Os farrapos que vestia nŃo o resguardavam do frio; e o homem tremia, e
os dentes batiam-lhe uns contra os outros.
E no seu delirio o misero soltava palavras cortadas.--Agua!
agua!--dizia; porque a sede lhe roĒa as entranhas. E nŃo havia quem lhe
desse um pucaro de agua.
Tribunos da plebe, dae-me um pouco de pŃo. Ah! bem negro que seja! que
tambem eu sou do povo.--E lanńava os olhos para os seus farrapos.
Fui nobre e rico; mas esquecei-vos disso! Perdoae-me, porque nada me
resta: tŃo pobre sou como o mais humilde mendigo, que d'antes estendia a
mŃo para o ultimo dos meus servos.
E o homem sorria, e o seu riso significava a desesperańŃo da sua alma.
Depois olhou para um crucifixo que estava encostado ß parede, e estendeu
para lß os brańos.
Mas nŃo havia quem lhe unisse ao peito a imagem do Salvador: nŃo havia
um sacerdote que lhe desse o extremo _vale_.
EntŃo deixou descahir os brańos, fechou os olhos, e morreu. Sobre o
cadaver ir-lhe-ha amontoando o tempo as ruinas dos pańos que lhe
herdaram seus paes.
E serß esta a campa republicana do homem que foi nobre e abastado.
XVII
O anjo das predicń§es mudou o espirito dos meus sonhos.
Era o dia da lucta das facń§es: era um dia de ampla carnificina.
E o demonio do meio-dia pairava sobre a cidade do sangue, e blasphemava
do Senhor.
O povo corria furioso e tumultuava; e os tiros e golpes soavam pelas
prańas, pelas ruas e pelas encruzilhadas.
O gemer dos feridos, as pragas dos vencidos, e as ameańas dos vencedores
conglobavam-se em rumor semelhante ao arquejar de volcŃo.
As portas dos edificios estouravam pelos gonzos e fechaduras, e a plebe
clamorosa entrava de tropel atķ o mais recondito das habitań§es.
E o ulular das mulheres, e o vagido dos infantes e o ch¶ro dos velhos
rompiam por entre o clamor da matanńa.
Mas a lascivia e o punhal breve punham o sello do silencio nas frontes
de inteiras famĒlias.
No recontro das diversas parcialidades os irmŃos assassinavam os irmŃos,
os filhos assassinavam os paes.
Porque ß voz das sediń§es, o povo tinha quebrado, depois dos lańos
sociaes, os vinculos da natureza.
E o roubo, a dissoluńŃo, a morte e o incendio estavam assentados nos
quatro angulos de uma cidade outrora populosa e rica.
Estas eram as divindades que adorava a plebe nos dias da licenńa e do
furor.
XVIII
O anjo das predicń§es mudou o espirito dos meus sonhos.
Nas abas de uma serra das provincias do norte ainda as casinhas de
pequena aldeia alvejavam certa manhŃ ao despontar o sol.
E nas assomadas dos montes, e nos comoros dos outeiros ondeiavam os
cimos dos pinhaes agitados pela virańŃo matutina.
A aldeia e os campos que a rodeiavam eram, no meio deste paiz assolado,
como o vulto da esperanńa erguido sobre a lousa do sepulchro.
E os habitantes pacificos do valle nŃo sabiam que as tempestades
politicas trovejavam alķm das suas montanhas.
Mas nesse dia souberam-no para morrerem. O raio da furia popular
fulminou-lhes a destruińŃo.
Bandos de soldados negrejavam em ondas descendo para a planicie; e os
primeiros raios do sol espelhavam-se nas suas armas.
E seguiu-se mais uma scena de carnificina, como tantas que eu tinha
visto em meus sonhos do futuro. O ultimo abrigo da felicidade neste
mal-aventurado paiz foi reduzido a cinzas.
Os velhos morriam abrańados aos troncos dos carvalhos e castanheiros,
seus veneraveis amigos da infancia, que tinham testemunhado a ventura de
seis gerań§es inteiras.
Os mońos cahiam combatendo pela salvańŃo dos paes, das esposas e dos
filhos; mas, inexpertos nas armas, levemente eram vencidos da soldadesca
feroz.
Na ermida do presbyterio buscaram as mulheres indefensas guarida contra
os assassinos; porque as desgrańadas nŃo sabiam que a religiŃo tinha
fugido desta terra dos crimes.
Alli, ante o altar do Senhor, foram vilipendiadas e saciaram a bruteza
dos filhos da dissoluńŃo.
E no dia seguinte, nos soutos e nos pinhaes da encosta ouvia-se tŃo
somente o murmurio das ramas; e no meio do valle fumegava um monte de
cinzas.
XIX
O anjo das predicń§es mudou o espirito dos meus sonhos.
N'uma vasta sala estavam congregados muitos homens de aspecto feroz e em
cujos olhos faiscavam as coleras immensas dos bandos civis.
Chamavam-se estes homens os legisladores, os eleitos do povo.
Vans denominań§es eram essas: a lei residia na vontade mudavel da plebe;
e elles eram em grande parte mandados para aquelle recincto pela
parcialidade que entŃo triumphava.
De roda, em balcoens erguidos, agitava-se a plebe tumultuosa.
Alli se lavravam os decretos de exterminio: e era, ouvindo-os, que as
turbas victoriavam os homens do sangue.
Mas, se aos labios de algum assomava uma palavra de humanidade, e se
ousava proferi-la inteira, os gritos de traińŃo e de morte
recalcavam-lhe das faces para o corańŃo esse impensado impeto de
piedade.
Neste dia pelejavam as parcialidades nas ruas para decidir quem tinha
direito de commetter mais crimes: era dia de abundante colheita para o
sepulchro e para o inferno.
Mas ao recincto, outrora chamado o sanctuario das leis, nŃo chegava o
clamor do combate: porque ahi a discordia excitava alaridos e, sacudindo
o seu facho, encendia os animos de uns contra outros, Luctavam tambem as
parcialidades lß dentro.
Na prańa publica a victoria convertia a final o que naquella assemblķa
se chamava minoria facciosa em irresistivel maioria. A plebe soberana
annunciou-o aos legisladores, fazendo estourar a golpes de machado as
portas da immensa quadra, onde o vozeiar nŃo era de ardentes debates,
mas sim de pugilato infrene. A turba-rei precipitou-se como torrente: o
tumulto ondeiou pela sala espańosa, e houve um momento de ancia e de
silencio.
EntŃo os punhaes reluziram erguidos e desceram com forńa; e os gritos e
as pragas e as blasphemias misturaram-se com o estertor dos moribundos.
E a plebe nos balcoens batia as palmas, e dizia entre risadas:--_viva!_
Tal foi a ultima scena de meus sonhos; e nada mais me revelou o Senhor.
XX
O Filho do Homem comprazia-se em ensinar a sabedoria por meio de
parabolas: na parabola estß a philosophia do povo.
Um agricultor possuia certo campo que nŃo produzia senŃo fructos
enfezados; porque o solo se havia tornado sßfaro por falta de cultura
durante largos annos.
Porķm ainda, aqui e acolß, pela extensŃo da veiga, vecejavam algumas
arvores e cepas de boas castas, e que s¾ de maltractadas pareciam
bravias.
E este agricultor morreu, deixando o campo de seus paes a tres filhos
que tinha; e estes tractaram entre si ßcerca do que deviam fazer da
heranńa paterna.
E o mais velho disse:--Respeitemos a memoria de nossos antepassados, e
deixemos aos que de n¾s vierem o campo que herdßmos do mesmo modo que o
recebemos:
Porque se nŃo diga que menoscabamos a prudencia dos velhos e que
pretendemos ser mais avisados do que foi nosso pae.
Elle viveu, posto que pobre, tranquillo: vĒvamos como elle viveu.
E disse o segundo-genito:--Veneranda ķ a memoria dos que nos geraram:
comtudo tambem se deve acatar a razŃo, que nos foi dada por Deus.
Conservemos todas as obras do tempo passado; mas melhoremos tudo o que
nellas houver ruim.
Ahi estŃo arvores uteis no meio da nossa herdade: nŃo as derribemos,
porque o fazĻ-lo, alķm de impiedade, fora rematada loucura.
Porķm roteemos os brķjos e sarńaes, adubemos a terra, e procuremos fazer
novos plantios adequados ß qualidade do solo.
E disse o irmŃo mais novo:--Que nos importa os que passaram, ou que
temos n¾s com o que elles fizeram?
Nossos paes viveram nas trevas da ignorancia; e por isso todas as suas
obras sŃo loucura e vaidade.
A luz e a sciencia s¾ veio ao mundo em nossos dias, e s¾ a propria
sabedoria p¾de fazer-nos felizes.
Comecemos pois por arrancar deste agro todos os vestigios de antiga
cultivańŃo: nŃo verdeńa nelle nem uma unica planta.
E depois buscaremos arvores extranhas de fructos saborosos e sementes
uteis, e a nossa herdade causarß inveja a todos os vizinhos.
Cada um dos irmŃos estava firme em seu proposito, e os servos e os
familiares bandeiaram-se em tres partidos.
E luctaram uns com os outros, e triumphou a opiniŃo do mais velho.
E o campo mal cultivado, cada vez produzia menos, e a fome veio
assentar-se no limiar da porta dos tres irmŃos.
O que vendo o segundo-genito, disse aos do seu bando:
Forńa ķ que tiremos o poder das mŃos dos que nos governam, alißs
morreremos todos ß pura mingua.
E assim o fizeram; e, posto que a lucta fosse longa e encarnińada,
venceram; porque a razŃo estava da sua parte, e Deus os abenńoava.
EntŃo comeńaram a trabalhar: alimparam as arvores dos ramos seccos e
exuberantes; adubaram os campos e prados, e arrancaram as moutas e as
plantas nocivas.
E lanńaram boas sementes ß terra, e quando a seara foi crescendo,
comeńaram de mondar-lhe o joio e as outras hervas damninhas.
Promettia naquelle anno ser excellente a colheita, e no corańŃo dos
familiares renascia jß a esperanńa.
Mas o irmŃo mais novo, possuido do espirito de destruińŃo, colligou-se
com os criados devassos e que aborreciam o trabalho continuo a que eram
forńados.
E fizeram uma uniŃo contra o segundo-genito e tiraram-lhe o mando,
valendo-se de muitos clientes do primogenito, os quaes, por via da
dissensŃo entre os dous mais novos, esperavam triumphasse o mais velho.
Lanńaram-se entŃo ao campo, destruiram a sementeira, cortaram as
arvores, e passaram a charrua por cima dos campos arrelvados.
E buscaram sementes exquisitas e arvores exoticas, e atiraram ß terra
desalinhadamente com tudo isso, e depois adormeceram.
As arvores, porķm, seccaram logo, e as sementes, apenas rebentaram,
morreram; porque os imprudentes nŃo haviam estudado nem a natureza do
clima, nem as propriedades do solo, nem as regras de agricultar.
E a familia inteira no fim do anno tinha perecido de fome.
XXI
Na terra de Cethim houve um rei que era bom e cheio de liberalidade e
valor.
E canńado de reinar, disse em certo dia a seu filho, que ainda era muito
mońo:
Pesam-me jß demais a coroa e o sceptro, e os esplendores do throno nŃo
me deslumbram. Vem, e assenta-te nelle.
E o filho obedeceu, e comeńou de reger os povos por certas leis
estabelecidas por seu pae, o qual foi viver em regi§es longĒnquas.
Mas um tyranno alevantou-se com o reino, e o mońo principe errou largo
tempo por extranhos paizes com os poucos seguidores de sua mß ventura.
E o bom rei que descera do throno correu a restituir ao filho a heranńa
que lhe legara.
E a sua espada foi como a de GedeŃo; o seu brańo come o dos Machabeus.
EntŃo o principe desterrado voltou ß patria, reassumiu o sceptro que lhe
fora roubado, e a lei e a justińa recobraram o antigo vigor.
Depois o rei virtuoso morreu de puras fadigas, e foi dormir com seus
paes: sobre a sua memoria desceram nŃo s¾ as benńŃos dos seus soldados,
mas tambem as de todos os amigos da justińa e da paz.
Nas trevas, porķm, homens corrompidos comeńavam a tramar dissens§es
civis; porque pretendiam que os bons soffressem, depois da tyrannia de
um unico mau, a tyrannia de muitos homens ruins.
E estes mysterios da corrupńŃo vieram a lume, e a plebe disse um dia ao
principe e aos cidadŃos pacificos:--A forńa estß em n¾s, e a forńa ķ o
direito: obedecei-nos pois, alißs um descerß do throno, outros serŃo
reduzidos a p¾.
E tudo calou diante da plebe; porque era verdade que ella tinha a forńa.
Os nobres, os prudentes, e os homens bons cubriram-se de d¾, e no gesto
lia-se-lhes a amargura do corańŃo.
Mas o mońo rei a quem os turbulentos fingiam acatar, porque descera atķ
elles, mostrou-se contente do seu damno, e engolfou-se nas delicias de
que o rodeiaram os algozes da patria.
Foi entŃo que se apagou em todos os animos honestos o ultimo raio de
esperanńa.
XXII
Havia naquelle tempo em Cethim um propheta, em cuja boca posera Deus o
verbo da eterna verdade.
E este propheta entrou um dia nos pańos do principe e disse-lhe:
Mancebo inconsiderado, emquanto folgas e ris, vai desconjunctar-se
debaixo de teus pķs o throno que te herdaram teus paes.
Lembra-te de que subiste a elle por cima das ossadas de vinte mil dos
teus amigos, regadas pelas lagrymas de cem mil familias.
E nŃo te esqueńas de que entre esses ossos jaziam os de teu pae: nŃo
maldigas com tuas obras a sua memoria; porque elle foi justificado
diante do Senhor.
CrĻs tu que os homens do nada te perdoarŃo o teres nascido do sangue dos
reis? Enganas-te! Crime para elles ķ este que nunca te serß relevado.
O sorriso que na tua presenńa lhes aclara o torvo das faces, nŃo o
creias de amor: repara, e verßs que ķ o riso infernal do desprezo.
Os filhos da abjecńŃo queriam igualar-se comtigo; nŃo, sendo elles quem
subisse, mas sendo tu quem descesse.
As taboas da lei foram feitas pedańos; se o vĻ-las partidas te apraz ou
disso nŃo curas, antes de o patenteiar cumpria-te restituir-nos as vidas
e o sangue de nossos irmŃos.
Este paiz soffreu tudo por guardar o pacto que jurou, e que tambķm tu
juraste: que direito ķ o teu para approvares que esse pacto seja
rasgado? Porque nŃo padecerias alguma cousa a bem dos que tanto
padeceram por ti?
CrĻs, porventura, que ķ bello e generoso assentares-te em um throno que
a relķ do povo conspurcou de lodo e de infamia?
A plebe era forte: embora. Mais forte era o tyranno de outrora, e
baqueiou por terra.
Devias deixar aos maus a consummańŃo do seu crime e nŃo o sanctificares
tu.
Devias confiar na Providencia, e arrojar de ti o manto de ignominia que
sobre os hombros te lanńavam.
Devias conservar sem mancha o teu nome, porque estß ligado ao do que te
deu o ser, e este serß glorioso atķ o termo dos sķculos.
N¾s iremos ajoelhar juncto ao sepulchro de teu pae, e ßs cinzas do rei
virtuoso pediremos a justińa que nŃo encontramos na face da terra.
Oh, que se fosse possivel alevantar-se elle em pķ sobre a campa, um seu
olhar te encheria de remorsos; um brado seu fulminaria os perversos!
Taes foram as palavras que o propheta de Cethim disse ao principe
mancebo: o que depois aconteceu nŃo o sei eu narrar.
E este ķ um fragmento da historia de eras que passaram ha muito.
XXIII
A justińa de Deus ķ grande: maior a sua misericordia.
Para o que se arrepende mana do seio do Senhor fonte perenne de perdŃo,
e as preces do contrito sobem ligeiras atķ os degraus de seu throno.
Depois dos dias de afflicńŃo, elle envia o consolo e quebra em pedańos o
vaso da sua colera.
Povo, que vagueias desenfreiado pelas sendas da morte, converte-te ß
vida, converte-te ao Deus de teus paes.
Elle nŃo se esquecerß dos netos desses fortes que espalharam a luz do
seu Verbo entre os mais remotos barbaros, e os teus erros serŃo
esquecidos.
Nossos av¾s souberam ser livres sem ser licenciosos; souberam ser
grandes sem crimes: eterna ķ a sua gloria.
Ousariamos n¾s irmos ajunctar-nos com elles no repouso do tumulo
carregados das maldicń§es do Altissimo, e sepultando comnosco a heranńa
do nome portuguĻs cuberta da execrańŃo do universo?
Lembrae-vos de que as cinzas dos cavalleiros de JoŃo primeiro; dos
valentes de Ceuta, de Tangere e de Arzila, dos conquistadores do
Oriente, estŃo envoltas na terra que pisaes.
E onde quer que ponhaes os pķs levantarß o passado um grito de
reprehensŃo contra a depravańŃo do seculo actual.
Formosa e pura ķ a luz do sol neste amoroso clima do occidente: nŃo
queiraes convertĻ-la no facho avermelhado e sinistro que fulgura por
cavernas de salteadores e de assassinos.
Unamo-nos, pois, como irmŃos, e abrańando-nos uns com outros, cßiam
algumas lagrymas de reconciliańŃo sobre esta terra tŃo regada de
lagrymas de amargura; tŃo ensopada no sangue do fratricidio.
Refloreńamos entre n¾s a paz e a amizade: tenhamos um nome s¾, o de
portugueses, um s¾ bando, o da patria.
Ainda algum dia estes rogos do propheta serŃo ouvidos: mas quando, ķ um
segredo de Deus.
A VOZ DO PROPHETA
SEGUNDA SERIE
Iniquitas surrexit in virga impietatis;
non ex eis, et non ex populo, neque
ex sonitu eorum, et non erit requies
in eis.
EZECHIEL, VII-11.
I
Lisboa, cidade de marmore, rainha do oceano, tu ķs a mais formosa entre
as cidades do mundo.
A brisa que varre os teus outeiros ķ pura como o cķu azul, que se
espelha no teu amplo porto, semelhante a grande mar.
Trinta seculos tem surgido depois que tu surgiste, e sorvendo milhares
de existencias cahiram todos no abysmo do passado.
E tu os has visto nascer e morrer; e sorriste-te, porque julgavas que a
vida te estava travada com a vida do universo.
Escondendo nas trevas dos tempos remotissimos a tua origem, dizias ßs
demais cidades da Europa:--Sou vossa irmŃ mais velha.
Nobre e rica outrora, quando o Oriente e a Africa te mandavam o ouro das
suas veias, os extranhos vinham assentar-se-te ao pķ dos muros e
abastecer-se com as migalhas cahidas das mesas dos teus banquetes.
Cada um dos teus velhos palacios abrigou jß os ultimos dias de um grande
capitŃo; em cada pedra dos teus templos ha uma recordańŃo das virtudes
passadas; em muitas lousas de sepulturas nomes que nŃo morrerŃo.
Nas eras de tua gloria, os monarchas dos ultimos confins da terra se
haviam por honrados com chamar irmŃos a teus filhos; e filhos teus davam
e tiravam coroas.
As tuas armadas aravam as campinas do oceano, e neste nem uma vaga
deixou de gemer debaixo das naus do Tejo.
Para as frotas da nova Tyro, os golpes de machado resoavam ao mesmo
tempo nos bosques da Europa e da Africa, do Oriente e do Novo-Mundo: os
lenhos do IndostŃo cosidos com os da Nigricia fluctuavam por mares
distantes, e sobre elles se hasteiava um signal de terror para o orbe:
era o pendŃo das Quinas.
EntŃo, oh cidade do Tejo, reinavas tu e eras forte, mais do que Roma ou
Carthago; mas o imperio e a forńa vinham-te das virtudes de teus filhos,
dos homens a quem sem pudor chamamos nossos av¾s.
Vivificavam-te o seio um sem numero de bem nascidos espiritos, e eras
seminario feracissimo de corań§es generosos.
Porķm, que te resta hoje do antigo esplendor, da gloria de tantos
seculos? Um echo do passado nas paginas da historia, o sol puro da tua
primavera, os restos dos pańos e templos que os terremotos te nŃo
consumiram, e o grande vulto das aguas do amplo ßdito do Tejo.
II
Mas este echo da historia, que devia ser para ti como um grito de
remorso, nŃo ha ouvidos que o escutem, e soa em vŃo e morre no meio do
vozeiar descomposto da plebe:
Mas este cķu puro que te cobre, e que testemunharß no grande dia as
virtudes de nossos maiores, testificarß tambķm perante o Senhor a tua
corrupńŃo actual:
Mas este porto, que a liberdade regrada de tres annos comeńava a povoar
de entenas, tornß-lo-ha o reinado da licenńa tŃo ermo como os extremos
dos mares gelados:
Mas pelos palacios de marmore jß nŃo retumba a voz dos heroes, e os
templos estŃo desertos: s¾ por lupanares e prańas sussurra o clamor dos
populares, ou entoando os canticos das orgias, ou tumultuando em
assuadas e preparando o dia em que satisfańam a sede do roubo e do
assassinio.
Viuva prostituida, os vicios corromperam-te a seiva da vida, e a
gangrena e os herpes corroem-te os membros, que ainda vestes de trajos
louńŃos, mas onde a morte se encarnou ha muito.
Formosa ainda no aspecto, assemelhas-te ao sepulchro do evangelho, alvo
e polido no exterior, mas cheio de podridŃo e negrura.
Nova Jerusalķm, a dextra do Senhor vergou pesando-te os crimes e, como a
antiga, saberßs se por ventura sŃo asperas as angustias que o
Omnipotente manda aos povos no dia da sua justińa.
Rapida ķ a carreira do malvado pelos atalhos do crime: porque esses
atalhos levam, de despenhadeiro em despenhadeiro, ao abysmo da perdińŃo.
Breve empallidece o outono as folhas das arvores; breve as desprende dos
troncos; breve as espalha e some, arrebatando-as sobre as azas dos
ventos.
Esse curto praso bastou ao povo para esgotar os thesouros da
misericordia divina, que os erros e culpas de seculos nŃo haviam podido
empobrecer.
Os feitos portentosos de dous annos de combates civis foram
amaldicńoados pelo povo em uma noite de sedińŃo, e a arvore da liberdade
cerceiada juncto da terra.
E as esperanńas de salvańŃo e de felicidade passaram como o sonho
matutino que se desvanece ao alteiar do sol.
III
Como a antiga Jerusalķm se afundou em mar de crimes, assim a moderna
SiŃo, a grande cidade do occidente, se mergulhou em torrente de
perversidades.
E a maldicńŃo celeste que sumiu aquella d'entre as nań§es pesarß ainda
mais rijamente sobre a desgrańada Lisboa, sobre esta caverna de vicios e
de desenfreiamento.
┴ roda dos muros de Solima apinhavam-se os cavalleiros de Babilonia, e
as tendas de Nabuchodonosor estavam assentadas ao pķ da torrente de
Cedron.
E as catapultas arrojavam pedras sobre os eirados do templo, no cimo do
Moria: os arietes batiam os baluartes, que vacillavam atķ os
fundamentos, e o granizo das settas sibilava, passando por entre as mal
defendidas ameias.
E ao longe scintillavam os ferros das lanńas e o bronze dos elmos e dos
cossoletes, e ouvia-se o nitrir dos cavallos.
Surgira o dia extremo para a cidade das maravilhas, para a reproba
Solima. E d'alli a um anno, sobre as ruinas della estava assentado um
velho.
Era o propheta de Anathot, que, em cima da ossada dos palacios e do
templo, entoava uma elegia tremenda, a elegia da sua nańŃo.
IV
Tambem o dia em que, entre os vestigios da cidade maldicta, algum vate
levante um grito de agonia, um grito de desesperanńa, nŃo tardarß a
chegar.
Porque Deus ergueu-se no seu furor, e mandou descer sobre este paiz o
anjo do exterminio.
Mais cruel serß o teu castigo, oh terra do meu berńo, do que o de
Jerusalķm: porque ella pereceu a mŃos de extranhos, e seus filhos
morreram defendendo os lares paternos.
Mas a ti ķ um matricidio popular, ķ a febre ardente das sediń§es que te
vae arremessar ao sepulchro.
Os teus muros converter-se-hŃo em circo: pelas prańas e ruas
pelejar-se-hŃo pelejas como de gladiadores, combates como de mastins e
feras.
Porque o temor de Deus saiu do corańŃo do povo, e entraram nelle todas
as raivas do inferno.
Aspero ķ para o que morre assassinado nŃo poder clamar ao cķu justińa
contra o seu matador.
E neste mau caso cahirß o povo; porque serŃo as suas proprias mŃos que
lhe rasgarŃo as entranhas: serß elle quem lavre a sua sentenńa de morte.
Elle se amaldicńoarß a si, e o remorso e a desesperańŃo de toda a humana
piedade lhe dobrarŃo as agonias do passamento.
V
Os que pelejaram contra os tyrannos purpurados mal sabiam que lhes
quebravam o sceptro de ferro, para metter a espada da assolańŃo na
dextra de tyrannos cobertos de vermes e farrapos.
Mal pensavam que uma rańa corrupta nŃo conhece outra estrada senŃo a da
servidŃo ou a da licenciosidade.
A nańŃo, esmagada pelos reis, tinha muito tempo gemido debaixo da
propria miseria.
Mas surgiu um principe que deu a liberdade ao povo e que veio morrer
para lh'a restituir, quando elle vilmente a deixou baqueiar por terra.
E estes homens, que pouco antes haviam dobrado o joelho perante o
despotismo, mostraram-se tŃo orgulhosos e insolentes, quanto, atķ entŃo
haviam sido abjectos e timidos.
E n'uma orgia popular fizeram resoar gritos insultuosos nos ouvidos
daquelle que duas vezes os libertara, e invocaram-lhe a morte. Nesse
momento longe estavam os seus soldados, e muitos delles arquejavam
moribundos no campo onde se pelejou a ultima batalha da patria.
Em verdade vos digo que tal crime ķ dos que Deus nŃo perdoa; porque a
ingratidŃo ķ a mais horrenda de todas as pervers§es humanas.
Elles apressaram o repouso do tumulo para o salvador da republica: mas o
nome de parricidas serß o que sobre a jazida lhes escreverß a historia.
VI
O sonho da liberdade, o sonho da minha juventude, esta fonte da poesia e
de acń§es generosas, converteu-se para mim n'um pesadello cansado.
Digno era o povo de compaixŃo quando estava em ferros, e por bom feito
se tinha entre as almas puras o affrontar-se o homem com a morte pela
salvańŃo dos seus semelhantes:
Porque, subindo ao patibulo ou expirando entre o estrondo das armas, a
voz da consciencia assegurava ao que fenecia as lagrymas e as benńŃos
dos vindouros, e que algum dia cyprestes se plantariam na terra que lhe
bebesse o sangue.
Mas isto era crer na virtude popular: era apenas um sonho, e a
consciencia mentia.
A corrupńŃo estava no amago das existencias. A arvore da vida social
carcomiu-a a servidŃo. Cumpria que as tempestades politicas a
derribassem; que os vermes da sociedade lhe roessem e desfizessem os
troncos.
E estes vermes sŃo as turmas de uma plebe invejosa, que incessantemente
trabalham na grande obra da publica destruińŃo.
Almas virtuosas, que nos paizes ainda escravos preparaes no silencio a
queda dos tyrannos, nŃo apresseis o grande dia da emancipańŃo popular.
Porque nesse mesmo momento sereis amaldicńoados pelos que salvastes, e
cubertos de escarneos e de injurias, sabereis que a plebe lanńa em
poucos mezes mais crimes na balanńa da eterna justińa do que os tyrannos
ahi hŃo lanńado por seculos.
VII
Certo dia, o conde de Avranches entrava nos pańos de Affonso quinto, e
os cortesŃos calumniavam sem pudor o bom duque de Coimbra, o salvador da
republica.
E o conde disse-lhes:--mentis, como desleaes; e aos melhores tres de v¾s
prova-lo-hei ß lanńa e ß espada: innocente e justo ķ o mui nobre filho
de meu senhor e rei, Dom JoŃo de excellente memoria.
E ninguem ousou responder ao velho cavalleiro da Garrotķa; porque bem
sabiam que a sua consciencia era pura e o seu montante pesado.
D'ahi a alguns dias elle provou o dicto. Na batalha de Alfarrobeira,
sobre um montŃo de cadaveres, cahiu defendendo a innocencia e bom nome
do seu desventurado amigo.
Onde estavam os do valente capitŃo da nova Diu, do rei soldado da
patria, quando o vulgacho no meio da prańa publica, assentado no seu
lodańal mandava derrocar as leis, as recordań§es e a gloria d'uma nańŃo
inteira?
Onde estavam os amigos de D. Pedro, quando a memoria do grande homem era
amaldicńoada na condemnańŃo da sua obra; quando sobre as suas cinzas a
dissoluńŃo cuspia escarneos; quando a liberdade morria ßs mŃos da
licenńa popular?
Quem se ergueu, seguro em boa consciencia, para lanńar a luva em defesa
da justińa, e dizer ßs turbas:--sois desleaes e mentis?
Ninguem! Todas as espadas ficaram embainhadas. Em Portugal jß nŃo ha um
cavalleiro. Na batalha de Alfarrobeira morreu o conde de Avranches, e a
sua espada foi sepultada com elle.
VIII
Quando os reis se assentavam em thronos de ferro; quando a lisonja os
rodeiava de prestigios, e o terror estava assentado ßs portas dos seus
palacios, era bello e generoso affrontar-se o homem com a tyrannia e
menoscabar as dores dos supplicios.
EntŃo era ousado o propheta, quando, nos pańos de Balthasar, lia nos
muros, escriptas pela mŃo de Deus, palavras de condemnańŃo.
Eram sublimes os martyres, quando perante os cesares davam testemunho do
evangelho, e escarnecendo dos apparelhos de morte, se deitavam
tranquillamente sobre a cruz da agonia.
Era bello ouvir o poeta de Florenńa trovejar contra a prostituta Roma,
denunciar ao mundo a corrupńŃo e os crimes dos pontifices do Tibre, e
comer no desterro um pŃo eivado de lagrymas e esmolado por estranhos.
Era bello, quando n¾s, assentados sobre os gelos do Norte, saudavamos do
desterro a terra que nos deu o berńo, e vinhamos, fracos pelo numero,
mas fortes de corańŃo, lanńar as nossas baionetas na balanńa da
Providencia, onde a tyrannia tinha tambem lanńado as suas.
Tudo isto era bello e generoso; porque entŃo os pequenos gemiam
oppressos debaixo dos pķs dos grandes, e ao homem justo incumbia fazer
resoar na terra a voz da eterna justińa, o grito da liberdade.
Mas hoje que a plebe reina e, como ampla voragem, ameańa tragar a
virtude, a liberdade, a justińa e todas as recordań§es sanctas do
passado, para o homem de boa consciencia sĻ-lo-ha, tambem, o morrer.
SĻ-lo-ha o bradar no meio das turbas, e derramar sobre ellas a
condemnańŃo, que Deus confiou em todos os seculos aos labios do
innocente e virtuoso.
SĻ-lo-ha chegar aos tribunos populares, apontar-lhes para o cķu, e
apresentar a cabeńa ao cutello dos lictores.
IX
Povo, hoje ķs tu quem impera, e absoluto ķ o teu poder; porque te dizes
unica fonte delle.
Toma, pois, em tuas mŃos a vara do magistrado, e assenta-te uma vez mais
no teu throno, amassado com sangue e p¾.
Vem assentar-te, e julga-nos, a n¾s, que tu maldizes, e aos tribunos,
aos instigadores de tumultos, que cobres de amor e de benńŃos.
Porque isto diz o Senhor Deus: se a plebe julgar com justińa, a plebe
ainda serß salva.
Desńa o terror da tua vinganńa sobre o corańŃo do que te houver
offendido; volvam-se no p¾ as frontes onde tu achares estampado o
ferrete do crime.
Recorre as acń§es da nossa vida, recorre as obras passadas das vidas dos
teus tribunos, e por preńo do perdŃo de Deus, julga-nos com justińa.
Quando tu jazias na servidŃo, e os grilh§es, encarnando-se-te nos pķs e
nos pulsos, te rońavam pelos ossos, peleijavamos n¾s por te salvar;
derramavamos o nosso sangue por ti.
Por ti viamos o irmŃo e o amigo morder o p¾ dos campos de batalha, e
calavamos; sentiamo-nos descahir de fome, e nŃo soltavamos um queixume.
Porque guardavamos os ais para o silencio das trevas. Soldados da
patria, ousariamos acaso queixar-nos diante da luz do sol?
E elles, que faziam, emquanto as nossas noites eram veladas debaixo de
um cķu de ferro e de fogo, emquanto os nossos dias se consumiam entre o
sibilar dos pelouros?
Elles? Nos lupanares e tabernas de paizes extranhos, folgavam nos
banquetes da embriaguez; reclinavam-se no leito da prostituińŃo.
Elles? Cubriam-nos de insultos, chamavam loucura e vaidade ß nossa nobre
ousadia, e riam-se do juramento que faziamos de morrer ou dar a
liberdade a nossos irmŃos.
Elles? Buscavam por todas as vias semeiar a zizania e os odios, damnar a
nossa causa sancta, e fazer-nos perecer debaixo das ruinas de uma cidade
illustre.
Eis o que elles fizeram em proveito da patria. No meio do foro, diante
de teu tribunal terrivel, descubra quem o ousar o peito, e mostre e
conte as cicatrizes das feridas que recebeu pela salvańŃo da republica.
Um s¾ delles as mostrarß; porque esse foi valente e amigo da virtude.
Anjo de luz, porque te despenhaste no abysmo?
A historia escrevia o teu nome na pagina das bĻnńŃos: tu mesmo o
riscaste e o foste escrever na pagina das maldicń§es...................
.......................................................................
.......................................................................
X
Porķm, debalde invocariamos justińa perante o tribunal popular; porque o
povo ķ abastado de injustińa e ingratidŃo.
Os que estŃo cubertos de cicatrizes, os que foram longamente saciados de
angustias por salvß-lo seriam condemnados, e os tribunos, os
concitadores da anarchia, cujas obras unicas tem sido conduzir a patria
ao abysmo da perdińŃo, seriam absolvidos, seriam abenńoados.
Embora: a nossa consciencia estß tranquilla, e no grande dia ķ Deus quem
a todos nos julgarß.
Houve um propheta outrora em Israel, e chamava-se o Filho do Homem.
E este propheta amava os humildes e os pobres, e reprehendia os
poderosos.
E condemnava os hypocritas da religiŃo, e por isso era abominado pelos
grandes e pelos sacerdotes.
Mas respeitava as leis, e ensinava a obediencia: mandava que se pagasse
o tributo das duas drachmas do templo, e o tributo de Cesar.
E affeiava aos populares os seus vicios e abominań§es; e por isso era
tambem malquisto da gentalha.
E, condemnado ß morte pelos poderosos, o povo, a quem tinha trazido a
luz e a vida eterna, o povo, que elle tanto amava, cubria-o de
opprobrios.
E podendo salvß-lo do supplicio, antepunha-lhe um grande criminoso, e
clamava aos algozes:--Pregae-o na cruz, e cßia o seu sangue sobre a
nossa cabeńa e sobre a cabeńa de nossos filhos.
E este propheta era o Messias, era o redemptor do genero humano, era o
filho de Deus.
Consolem-se, pois, aquelles que sobre os hombros tomaram o odio dos
tyrannos por amor do povo, e a quem o povo paga com injurias e pragas.
Como Jesu-Christo, os hypocritas e os oppressores das nań§es
abominam-nos: como a Jesu-Christo, o vulgacho cobre-nos de affrontas, e
pede para n¾s aos seus tribunos a condemnańŃo e o supplicio.
E que nos cumpre fazer para seguirmos em tudo o exemplo do Justo
assassinado, do Deus que nos deixou na terra o consolo e a esperanńa?
Pedir morrendo ao Eterno Pae o perdŃo de nossos perseguidores e, como o
divino Mestre, lanńar ß conta da ignorancia as culpas de corań§es
corruptos.
Imitando o Salvador na cruz, seja um pensamento de benńŃo o nosso
pensamento extremo; porque o derradeiro suspiro do christŃo deve ser um
murmurio de affecto grande para os que o amaram, mas ainda maior para os
que o odeiaram e perseguiram.
XI
E ainda uma vez, filhos da perdińŃo, ainda uma vez vos falarei em nome
do Senhor nosso Deus.
Que foi o que fizestes assassinando as esperanńas da salvańŃo publica,
derribando a sancta tradińŃo da patria?
Atķ no crime fostes apoucados. Porque nŃo se ergue um de v¾s, perverso,
mas sublime, como o archanjo das trevas, e diz:--fui eu o concitador do
motim popular, fui eu o primeiro que clamei ½quebrem-se as taboas da
lei?╗
Louvaes a sedińŃo, chamaes-lhe obra illustre, e nenhum de v¾s acceita a
gloria de ser o bem-feitor do seu paiz?
Quando combatiamos pela liberdade gravavamos os proprios nomes em nossas
armas, e o inimigo que ousasse vĻ-las de perto, ahi os lerĒa inteiros.
NŃo combatiamos nas trevas; e os nossos capitŃes diziam ao
mundo:--Vede:--e mostravam a face diante da luz do sol.
Hypocritas, que enganaes o povo, credes porventura que tambem enganareis
o Senhor e que, semelhantes ß prostituta que engeita o fructo de seu
crime, engeitareis diante delle a obra da vossa iniquidade?
NŃo! Lß se levantarŃo os nossos e os vossos filhos, para quem preparaes
berńo de miseria, vida de amargura e morte de desesperańŃo.
E elles testemunharŃo contra v¾s na presenńa do Altissimo: e haverß ahi
choro e ranger de dentes.
XII
Ambiciosos, que desvairaes o povo, o Senhor leu no fundo dos vossos
corań§es e revelou-me o que ahi estß escripto!
A cubińa do mando e do ouro ķ o vosso amor de patria; a vossa ancia de
liberdade a sĻde de tyrannia.
Merecedores de jazer perpetuamente na escuridade, e ermos de virtude e
de sabedoria, nŃo podendo fulgir com luz celestial, tentastes romper as
trevas de vossos caminhos com o clarŃo torvo do inferno.
E a serpente vos emprestou a sua vŃ sciencia, as suas corruptoras
palavras, e alumiados por fulgor de morte, alguns vos creram illustrados
pela luz que mana do throno de Deus.
Mas os que foram enganados vos amaldicńoarŃo no dia em que patenteardes
a hediondez das vossas intenń§es, e o Pae de misericordia lhes perdoarß
um erro de intelligencia.
Eis o que diz o Senhor:--V¾s sois os assassinos da republica, mas
debaixo das suas ruinas ficarŃo tambem esmagadas as vossas frontes, e os
vossos membros quebrantados e sumidos.
Tambem v¾s tereis quem maldizer na hora do passamento: os dias futuros
justificarŃo o Verbo de Deus.
XIII
Os soldados que arrastavam o Justo ao Golgotha, quando o povo de
Jerusalķm pedia o sangue innocente, poseram sobre a cabeńa do Filho do
Homem a inscripńŃo--Este ķ Jesus rei dos Judeus.
Porque o povo nŃo sabe commetter um crime, sem, afora o crime,
blasphemar e escarnecer da virtude.
Assim os tribunos da plebe, depois de rasgarem o pacto social, disseram
por irrisŃo:--Reuna-se o conselho dos anciŃos, dos sabios e dos
prudentes, e fańam-se leis para o regimento da republica.
Como se nŃo houvesse ahi lei; como se os eleitos do povo nŃo tivessem
sido expulsos pela relķ e separados uns dos outros.
EntŃo os malfeitores rodeiaram a urna onde d'antes os cidadŃos podiam
livres lanńar o voto da sua consciencia.
E todos os bons se afastaram dessa urna; porque a mŃo do crime a tinha
collocado no templo, e ß roda della s¾mente sussurravam ameańas de
morte.
E por isso os nomes que d'alli sairam foram nomes opprobriosos ou
desconhecidos, e como extranhos no meio de n¾s.
Um erro trouxe outro erro, e o punhal passou da prańa para o templo, e
houve ahi mysterios das trevas, mysterios de perversidade.
E homens imberbes, ignorantes e ignobeis ir-se-hŃo assentar no conselho
dos legisladores, no logar destinado para os velhos, para os sabios e
para os homens virtuosos.
Mas a plebe ahi estarß tambķm, com seu gesto hediondo, como um espectro
de terror, como a imagem do supplicio nos ultimos dias de um criminoso
depois da sua condemnańŃo.
Ella ahi estarß; e o seu grito serß mais alto que o das consciencias, se
ķ que podem consciencias falar no conselho de homens corruptos.
Ella ahi estarß; e as leis serŃo feitas por ella; porque errados vŃo os
que pensam que o povo larga jßmais o poder que a imprudencia ou a
maldade lhe depositaram nas mŃos.
Homens a quem a dissoluńŃo social vestiu a toga de senadores, para
debaixo da campa levareis nas frontes duplicado o ferrete da infamia e
do aviltamento.
Nellas vo-lo escreveu uma eleińŃo fraudulenta, em que votou o punhal do
assassinio e o obulo da embriaguez, preńo porque a plebe vendeu aos
tribunos o exercicio de um direito que nŃo era seu e que ella tinha
roubado por noites de sedińŃo.
E nellas vo-lo estamparß tambem o grito insultuoso do vulgacho que vos
ergueu do p¾ para sanctificardes a sua rebelliŃo, para serdes cumplices
nos seus decretos de morte, e para depois vos quebrar em pedańos, como
um vaso fragil quando se torna inutil.
XIV
De fel e de trabalho me cercou o Senhor. Esta ķ uma das suas vis§es, que
elle me enviou em espirito.
N'um campo extensissimo estava eu, e cerrava-se-me o corańŃo, como
traspassado do frio do terror. Era ao cahir das trevas.
Havia por ahi sepulchros, mas sepulchros semelhantes a dorsos de
montanhas: havia por ahi cyprestes, mas cyprestes seculares como o
universo, e cujos cimos avultavam como a espessura de um bosque
primitivo.
O sitio em que eu estava era o cemiterio das nań§es e dos seculos.
Sobre muitos desses tumulos espantosos jß tinha cahido a campa; jß o
musgo e as sarńas lhes dissimulavam as juncturas, e o estellio e o
ßspide passavam por cima, rangendo como as folhas seccas.
Outros havia lß que ainda estavam abertos, e tinham as lousas erguidas
sobre uma das bordas, juncto da qual um anjo derramava lagrymas. Jaziam
nestes muitos seculos de nań§es modernas.
Algumas sepulturas ahi estavam inteiramente descubertas e ainda
alvejantes, como collocadas de pouco em meio do campo sancto: nem lousas
estavam ao pķ dellas.
Mas ao longe ouvia-se como o gemido de eixos que vergavam e de homens
que altercavam e que pareciam trabalhar em uma obra de Deus.
E este gemido era semelhante ao do oceano revolto, e o borborinho soava
como o clamor de milh§es de vozes.
Na frente de cada um dos jazigos estava escripta a historia do povo ou
do seculo que lß repousava ou que lß devia cahir.
E algumas destas inscripń§es eram antigas e meio gastadas, e de roda
tinham esculpidos symbolos de gentilidade.
Apenas sobre uma dellas estava gravado o nome de Jehovah; mas fechavam a
campa sete sellos, cuja lenda era:--atķ a consummańŃo dos seculos.
E mais alguns monumentos ahi se erguiam, jß cubertos com a lousa final:
e em cima delles estava plantada a cruz, e a inscripńŃo acabada.
Juncto destes ajoelhei e derramei lagrymas: eram sepulchros das rańas
que educara o evangelho: dormiam lß irmŃos meus.
E os reinos e as republicas da idade media eram os que nesse logar
estavam sepultados: ßquelles tinham-nos anniquilado loucuras e tyranias
de reis; a estas a licenńa e a corrupńŃo popular.
XV
Lß estava tambem o monumento da nossa patria.
E nelle repousavam os cadaveres de muitos seculos.
E a historia de cada um destes lia-se na face da pedra, escripta pela
mŃo do archanjo que velava o sepulchro e que forcejava por suster a
campa, que jß pendia, como para os encubrir ß luz.
E esta era a lenda sepulchral:
Deus escolheu para si a nańŃo do extremo occidente, e a benńŃo do
Altissimo desceu sobre o berńo della.
E passou glorioso o primeiro seculo da sua existĻncia, rico de combates
e victorias: elle herdou ao seguinte a cruz plantada nos coruchķus dos
alcor§es, e uma rańa valente e virtuosa, que defendesse a terra
conquistada.
½De incremento e prosperidade foi o segundo seculo; e posto que ahi
houvesse dias de turbańŃo, o povo cresceu; porque o Senhor o abenńoava.
E na terceira era soou em paiz extranho uma voz que falava de servidŃo.
O povo portuguĻs lanńou mŃo da espada e da lanńa, e em vinte combates
provou a sua independencia, e que o Deus dos exercitos fora o Deus de
seus paes.
E na quarta era chegou a idade viril da republica: a sua estatura
assemelhava-se ß de um gigante, os seus brańos aos de um athleta.
E na quinta ella estendeu a mŃo para o oriente, e aferrando centenares
de povos, metteu-os debaixo dos pķs.
EntŃo commetteram-se crimes, a corrupńŃo estendeu-se, e a face do Senhor
turbou-se.
Aqui na inscripńŃo seguia apenas um nome de poeta, o depois uma longa
beta negra. Esta significava que de infamia e servidŃo fora a sexta
idade da republica.
E a lenda tumular proseguia:
Surgiu um dia o povo, e quebrando os grilh§es que tyrannos estranhos lhe
haviam lanńado, ańacalou de novo a sua espada esquecida, e combateu
quasi um seculo.
E recobrou a independencia, senŃo a liberdade.
D'aqui ßvante, falava o letreiro de existencias e de largos annos; mas
de existencias sem gloria, e de annos semelhantes apenas ß decrepitude
de homem que foi robusto.
E havia ahi guerras e victorias e leis: mas as victorias coroavam o
general e nŃo o soldado, porque o soldado era servo: as leis eram talvez
justas, mas desciam do throno dos reis sem a sancńŃo popular, e o povo
dobrava o joelho.
E isto era impio. O servo que acceita sĻ-lo ķ s¾ meio-christŃo. Do
evangelho deriva a liberdade, como condińŃo impreterivel do homem,
responsavel por seus actos perante Deus. A liberdade p¾de rasgar-se do
evangelho; nŃo separar-se delle.
Depois lia-se o nome de um rei; e este nome era grande e honrado, como
os dos antigos reis portugueses, e a sua historia estava escripta no
monumento da eternidade. Ap¾s esta, seguiam-se algumas palavras de
esperanńa.
E d'alli por diante a pedra estava em branco; porque a oitava era da
republica ainda nŃo tinha adormecido juncto do umbral do passado.
XVI
E eu meditava em silencio, e o meditar era amargo para o meu corańŃo.
Subito senti um ruido remoto, semelhante ao ruido de bosque sacudido
pelo vento e granizo.
E divisei por entre os cyprestes um vulto, que se approximava da
clareira onde estava a sepultura, e as suas passadas, posto que
apressadas, soavam como se fossem de pķs de bronze.
E chegou. Fitando os olhos no vulto, descortinei uma figura humana de
desmesurada altura.
A sua cabeńa tinha muitas faces e muitos olhos: do tronco saĒa-lhe uma
grande multidŃo de brańos.
E com todas as suas linguas proferia palavras immundas e blasphemas, e
maldizia a religiŃo e a justińa.
E vinha salpicado de sangue.
E parou diante do monumento.
Ficou immovel por algum tempo; depois, como excitado por um accesso de
raiva infernal, procurava aluir o sepulchro.
Mas a immutabilidade do passado era a immutabilidade delle. Tinha-o
posto alli a mŃo de Deus.
EntŃo o vulto comeńou a raspar a inscripńŃo, mas as letras cada vez mais
se avivavam. Lß do intimo soou um longo gemido.
E o vulto soltou uma praga tremenda, e transpoz a borda do sepulchro; e
estava em pķ dentro delle.
E comeńou a afundar-se nas trevas; e estendendo os brańos, os brańos lhe
ficavam hirtos.
E nos olhos, que atķ alli chammejavam furor, jß fluctuavam lagrymas de
homem que morre.
E descia, e descia!
E quando a fronte lhe topetava com a borda, a campa escapou das mŃos do
anjo, que trabalhava por sustĻ-la, e cahiu dando um som profundo.
E a face do sepulchro, abaixo da inscripńŃo, tingiu-se de negro atķ o
rez da terra.
E as ultimas palavras, palavras de esperanńa, converteram-se em outras
tŃo horrĒveis, que a minha lingua nŃo ousa proferi-las.
E a visŃo desappareceu.
XVII
Reprobo serĒa aquelle que, vendendo seu pae por preńo de opprobrio, o
entregasse ß servidŃo de extranhos.
Reprobo, mil vezes rķprobo, serĒa tal homem; porque este crime f¶ra mil
vezes mais negro do que o parricidio.
Quem, por noite tempestuosa, o acolheria debaixo de tecto hospitaleiro?
Quem, vendo-o mirrado de sĻde, lhe offereceria um pucaro de agua?
Ninguem: porque o seu hßlito inficionaria o ar que respirasse: os seus
labios empestariam o vaso por onde bebesse.
No seu leito de morte, que sacerdote ousaria dizer-lhe:--Eu te absolvo
em nome do Deus que perdoa? Nenhum: e o que o dissesse mentir-lhe-hia;
porque nos thesouros da piedade divina nŃo ha resgate para semelhante
divida.
Mas que ķ este crime, comparado ao daquelle que vende a patria? Esse,
nŃo vende o progenitor s¾mente: vende a familia, os ossos de av¾s, a
fonte do baptismo, a cruz do cemiterio; vende as saudades, os affectos e
as esperanńas de todos os seus irmŃos.
E todavia, nos conciliabulos dos tribunos proclama-se que no
anniquilamento estß o segredo da nossa futura grandeza. Rebeldes de sete
seculos, seremos applaudidos e respeitados no mundo, quando, de joelhos
perante os nossos orgulhosos senhores, fizermos penitencia do glorioso
delicto de mais de vinte gerań§es de antepassados!
SŃo homens destes que as turbas insensatas victoreiam!
Cegou Deus a intelligencia do povo, porque o quer perder; porque o
afastou de sob as azas da sua Providencia amorosa.
E por isso a visŃo do sepulchro me foi mandada, e vi cerrar-se a campa
da eternidade em cima da derradeira epocha da monarchia de Valdevez, de
Aljubarrota, e de Montes-Claros.
XVIII
Povo desvairado, doe-te de ti proprio. Sabes, acaso, a quem os homens
das trevas pretendem submetter-te e a teus filhos e netos?
Dir-to-hei, oh povo, para que nos futuros momentos de afflicńŃo nŃo
digas ao Eterno:--Senhor, salva-me, porque eu nŃo soube o que fiz!
Odio de sete seculos te separa desses futuros senhores: vinte batalhas,
em que os teus cavalleiros venceram os seus, jazem nŃo vingadas nas suas
recordań§es.
Houve tempo em que elles poseram o pķ no collo de nossos maiores, e a
vida destes foi durante esse periodo tecida de amargura e de infamia.
EntŃo, alķm do oceano, nos campos de tua gloria, sentia-se um ruido
incessante. Eram as tuas fortalezas que desabavam; eram as tuas naus que
se affundiam; era o teu poder que expirava.
Nas veigas, o arado ficava esquecido no meio do sulco, e no prado e no
monte os novilhos mugiam debalde pelo seu guardador:
Porque os mancebos eram levados a combater em paizes remotos, para
sustentar a tyrannia de seus senhores, e, novo genero de ludibrio,
tambem oppressos, quinhoavam as maldicń§es lanńadas sobre os oppressores
da sua patria.
┴ viuva e ao orphŃo era arrebatado o obolo do tributo, e este ia
accumular-se nos cofres dos extranhos e servir, depois, ao luxo e ß
devassidŃo.
O soldado hespanhol estava em pķ, encostado ß lanńa, juncto ßs ameias de
nossos castellos, e o escravo portuguĻs que passava ao sopķ dos muros
pregava os olhos no chŃo, e a dor acabrunhava-lhe o espirito.
As cidades foram saqueiadas, os patibulos ergueram-se, os homens de
valor e virtude derramaram-se pela face da terra.
Mas os portugueses lembraram-se um dia de que o eram, e levantando os
brańos para o cķu, com os grilh§es que lh'os roxeiavam esmagaram os
craneos dos oppressores estrangeiros.
E breve os campos da Hespanha talados, as suas aldeias arrasadas, os
seus valentes postos ß espada, pagaram injurias de sessenta annos.
E na terra adubada com cinzas e sangue se lanńaram sementes de
malevolencia perpetua entre as duas nań§es.
Ai de n¾s, ai da patria, se o leŃo da Iberia podesse rugir solto pelas
nossas montanhas, e vir acoutar-se debaixo de nossos tectos!
E isto ķ o que pretendem os destruidores da liberdade, os suscitadores
da anarchia.
Sa·de pois o povo os tribunos e obedeńa-lhes, emquanto elles nŃo
consumam a sua abominavel obra; emquanto o nŃo entregam, como um rebanho
de ovelhas, nas mŃos dos seus futuros algozes.
N¾s, os que nŃo nascemos para a servidŃo, ergueremos as campas de nossos
paes, e ricos com estes restos queridos, iremos depositß-los debaixo do
cypreste do desterro.
NŃo, o hespanhol orgulhoso nŃo calcarß as cinzas dos nossos valentes,
embora possua esta terra corrupta e serva; embora venha riscar da face
della todos os monumentos dos seculos da nossa gloria.
XIX
Tal ķ, oh povo, o futuro que para ti guardam os teus tribunos no
thesouro de maldade de que sŃo ricos os seus corań§es.
Tu gemerßs captivo e nŃo ousarßs queixar-te; e as orań§es e as lagrymas
das tuas noites de tribulańŃo e vigilia nŃo romperŃo os cķus, tornados
para ti de bronze.
Eis porque os filhos da perdińŃo suscitaram no teu seio o grito da
guerra civil: foi para que a espada da fratricidio devorasse os teus
fortes, e se fartasse e embriagasse com o sangue delles.
Para que, inerme e enfraquecido, estendesses os brańos ßs cadeias e
curvasses o joelho ante aquelles de quem receberam o preńo da tua
liberdade.
Acaso poderŃo negß-lo?--NŃo: porque o mysterio da iniquidade foi
revelado, e a voz que o patenteiou era bem alta, e resoava desde o Tejo
atķ as alturas dos Pyrenķus.
CrĻ, agora, plebe illudida, crĻ que os homens que te vendem a extranhos,
melhor te venderiam a um tyranno domestico.
CrĻ que se homens taes fossem a unica barreira alevantada entre ti e
aquelle que n¾s expulsßmos e tu maldisseste em teus hymnos populares,
semelhante dique fora facilmente transposto pela torrente das vinganńas
do despotismo.
Que um pouco de ouro se espalhasse, e as comportas que rebatem o oceano
de sua c¾lera seriam por elles abertas de par em par, para te
mergulharem em um pķlago de agonias.
Tu os verias atķ combater por soldar o sceptro de ferro que quebrßmos,
se nessas almas mesquinhas houvesse valor para escutar o silvo do
pelouro, para ver o lampejar da espada erguida.
Ouvi-los-hia protestar que as suas mŃos estavam puras do sangue vertido
nas luctas da liberdade, nas luctas de um contra dez; que entre si e
esse cantinho de Portugal revolvido durante um anno pelas bombas e
granadas, varrido pela metralha, fustigado pelo granizo das ballas,
visitado longamente pela fome e pela peste, tinham mantido com esmero a
moderada distancia que medem as solid§es do oceano.
E falariam verdade; e serĒa porventura o unico dia da sua vida hypocrita
em que assim o fizessem.
XX
N'uma visŃo ajuncta Deus o passado e o futuro; porque para elle nŃo
existem nem espańo nem tempo. VisŃo, pois, do Senhor foi a que se me
representou.
Parecia-me ver uma grande cidade: rodeiavam-na antigos muros e
baluartes, cruzavam-se ruas estreitas e tortuosas dentro do seu ambito,
semelhantes ß rede do pescador, e, por entre uma selva de edificios
humildes, surgiam, aqui e acolß, torres ponteagudas subtilmente
lavradas, e templos alumiados por frestas esguias ornadas de vidros
corados, que reflectiam o sol occidental em espectros de luz
variadissima.
Grande numero de cavalleiros corriam pelas prańas, e iam armados de
elmos e saios de malha e grevas de ańo, que scintillavam, e nos seus
olhos e faces assomavam espĒritos valorosos.
E os campos circumstantes estavam cultivados, e a cruz plantada em todos
os termos dos caminhos e em todas as encruzilhadas.
E conhecia-se nos rostos dos homens que passavam pela cidade e pelos
campos que em seus corań§es havia virtude e contentamento.
E proxima desta povoańŃo estava outra muito mais aprazivel no primeiro
aspecto: as suas ruas eram espańosas: aformoseiavam-na os jardins e
hortos, e surgiam no meio della nobres e opulentos edificios.
Viam-se ainda ahi alguns templos, mas arruinados e solitarios, e como
que monumentos da queda de toda a crenńa.
E os campos que se dilatavam ao redor della estavam ßridos e ermos. Nem
uma s¾ cruz lß se descobria.
E os homens passavam silenciosos uns por outros. Das almas, turbadas por
paix§es tempestuosas e por crimes, subiam-lhes ßs frontes annuviadas, em
ondas de sombras, os escuros pensamentos.
E estas duas cidades eram a imagem dos tempos que foram e dos tempos que
hŃo de ser.
XXI
E na cidade do passado os coruchķus e eirados dos seus apinhados
edificios eram para os meus olhos, que divisavam tudo quanto se passava
no interior dos aposentos, como o crystal translucidos.
Em uma das quadras de um desses edificios estava um velho, e derredor
delle suas filhas, que o cercavam de amor.
E ao canto via-se um arnez, por muitas partes falsado e roto, e um elmo
abolado e com as enlańaduras quebradas. S¾ ahi faltava uma espada.
E quando eu considerava este velho guerreiro rodeiado dos seus e as
alfaias e os adornos desta habitańŃo tranquilla; quando bebia o halito
de paz que tudo ahi espirava, um mancebo armado entrou na sala: na
cincta trazia mettido um estoque largo e curto, espada do homem valente,
cujo punho em cruz lhe assentava sobre o corańŃo.
E dos labios das donzellas partiu um grito: este grito dizia que o
mancebo era seu irmŃo. Abrańando-o, os olhos se lhes arrasavam de
lagrymas.
O velho ergueu a cabeńa e olhou com aspecto severo para o soldado, que
se aproximou de seu pae, como se estivera perante o seu juiz.
Fronteiro d'Africa!--disse o anciŃo--posso acaso abenńoar-te como filho,
ou cubriste de infamia o meu nome e a minha espada? Quaes foram teus
feitos no servińo da patria, da religiŃo e do rei?
E o mońo, calado, desenlańou a courańa e, afastando as roupas que lhe
cubriam o peito, mostrou as cicatrizes de golpes da lanńa do arabe e do
alfange mourisco.
E o velho, alevantando-se tremulo, contava-as, e as lagrymas tambķm lhe
banhavam o rosto, e depois apertou o filho entre os brańos por largo
tempo.
D'ahi a pouco, armas ainda nŃo ferrugentas estavam encostadas ßs do
anciŃo no angulo da sala, e af¾ra ellas, via-se lß uma espada.
E esta familia era feliz; porque havia ahi virtude, honra e amor filial
e fraterno.
Mas esta parte da visŃo passou, como um sonho formoso; como os homens
virtuosos dessas epochas, sobre os quaes dorme o silencio dos tempos que
jß nŃo sŃo.
XXII
E o espirito de Deus collocou-me sobre a moderna cidade.
E aos meus olhos estavam patentes os segredos domesticos e a vida intima
da sociedade, e observando-os, o corańŃo me desfallecia ß vista de
tantas abominań§es.
Via a corrupńŃo em quasi todas as familias; crimes em grande numero
dellas; temor de Deus quasi em nenhuma.
E clamei ao Senhor na minha afflicńŃo, e disse-lhe:--Oh meu Deus, porque
abandonaste este povo?
E dos cķus me foi respondido:--O povo ķ que abandonou os caminhos da
salvańŃo e se afastou de sob as azas da piedade divina.
O perjurio foi sanctificado pelos que se chamaram eleitos do povo, e
este os victoriava quando elles assim quebravam o mais forte vinculo
social, e preparavam a quķda da republica.
A religiŃo avĒta apresentou-se ßs portas do senado, pedindo a esses
homens soberbos a deixassem subsistir neste paiz desgrańado, para
enxugar lagrymas de desditosos e ser a ultima esperanńa daquelles que
perderam todas as outras.
Porķm, como prostituta vil, a religiŃo de nossos paes foi coberta de
motejos, e, entre risadas, lanńada f¾ra do sanctuario das leis.
E houve ahi quem dissesse:--Que temos n¾s com Deus?--E as turbas
approvaram o dicto.
E o Dominador dos orbes respondeu:--Nada terei comvosco!
E o universo tremeu a estas palavras, que logo foram escriptas no livro
da morte.
Ai daquelles que romperam o pacto do Creador com a creatura: ai
daquelles por cuja b¶ca falou o espirito das trevas. A blasphemia cahirß
sobre a cabeńa dos blasphemadores; e o sepulchro lhes dirß onde ķ a
patria dos que motejam de Deus!
E esta voz de cima acabrunhou-me o corańŃo; porque nŃo sabia como
desculpasse perante a Providencia os peccados do povo. O anßthema estava
lanńado, e a consciencia me dizia que o cķu tinha sido justo: nem ousei
implorar outra vez a misericordia divina.
EntŃo olhei para a cidade que me ficava debaixo dos pķs, onde sussurrava
um ruido de vida, mas ruido semelhante ao de mar procelloso e ameańador
de naufragios.
E s¾ descobri rixas e bandos civis, e assassinios atraińoados e
dissoluń§es, e o roubo e a embriaguez.
O filho passava por juncto do feretro materno, que homens pagos levavam
com escarneos ao campo do esquecimento, e perguntava o nome desse
cadaver.
Juncto ao leito de pae moribundo, as filhas entregavam-se ß
prostituińŃo, e ao velho, morrendo, era ultimo sentimento o do
opprobrio.
Longa era esta scena de crimes, e parecia-me que fechava os olhos para
nŃo ver tŃo horrivel espectaculo. Neste momento a visŃo desvaneceu-se, e
achei-me banhado em suor frio e repassado de amargura.
E por impossivel tinha que tŃo negro futuro houvesse nunca de
verificar-se: mas subito ouvi muitas vozes que diziam:--Guerra ß
religiŃo do Christo!
EntŃo cri na visŃo que o Senhor me enviara, e apagou-se-me na alma o
ultimo clarŃo de esperanńa.
THEATRO-MORAL-CENSURA
*1841*
Quando, vencidas difficuldades que pareciam insuperaveis, o theatro
parece renascer entre n¾s na sua parte litteraria; quando, atķ, se
affiguram grandes probabilidades de vermos alevantar um edifĒcio
consagrado ß arte dramatica, onde este genero de litteratura possa ficar
a salvo daquella especie de ergastulo hediondo e triste a que poseram
por irrisŃo a alcunha do Theatro Normal; GeriŃo, cuja ossada se
esphacela debaixo da sua triplice face de taberna, de emunctorio das
ruas, e de prostibulo; quando todos os homens de letras e todos os que
as amam forcejam para que nesta formosa arte vamos algum dia emparelhar
com as outras nań§es, nenhuma questŃo que venha a suscitar-se acerca do
assumpto serß insignificante ou indifferente, porque nella interessam a
vida intellectual do paiz, a sua civilisańŃo e o seu bom nome
litterario. Mas se essa questŃo, alķm de importar ß arte dramatica,
envolver o interesse da moral publica, considerß-la e dar opiniŃo sobre
ella ķ obrigańŃo daquelles a quem Deus deu intelligencia para a
comprehender e razŃo para a avaliar. Ora, enquanto se forceja para
elevar e restaurar litteraria e atķ materialmente o theatro nacional,
vemos o drama decahir, prostituir-se moralmente cada vez mais. Cresce
todos os dias a indignańŃo da gente honrada contra os espectaculos que
sobem ß scena, orgias da arte, se arte se pode chamar a quadros onde ha,
nŃo o sublime de paix§es mais ou menos perversas, o sublime do horrĒvel,
mas o torpe, o asqueroso dos vicios mais vis. Cumpre que a imprensa seja
orgam desta indignańŃo; que busque a origem e o remedio do mal. A sua
mais alta missŃo ķ contribuir para que a sociedade se melhore e
civilise, e o theatro pode ser um poderoso instrumento de civilisańŃo.
Mas como desempenharß a imprensa este grave dever? Como se opporß a que
o theatro seja uma eschola de corrupńŃo, devendo ser um logar de puro e
innocente deleite? Como farß rasgar por uma vez esses cartazes, que,
affixados nos logares p·blicos, s¾ trazem ß memoria, pelos titulos dos
dramas que annunciam, as taboletas dos alcouces romanos desenterrados em
Pompeia? Fulminarß os desgrańados histri§es, machinas de aleijar as
verdadeiras obras d'arte, e de peiorar semsaborias; tĒteres de carne e
osso, incapazes de comprehenderem a sua nobre arte, e de resistirem ao
estragado gosto de quem os dirige, e nŃo sei se diga, ao mais estragado
da plateia? NŃo: deixae-os; porque sŃo existencias inertes, impalpaveis
para a imprensa, trańa do drama, da linguagem, do senso commum; pagos
para roer as concepń§es da intelligencia sobre quatro taboas velhas, ao
passo que o caruncho os vai imitando na substancia destas. Deixae-os,
pelo amor de Deus! Punirß com o ańoute do epigramma os empresarios e
directores dos theatros? Ainda menos. Um empresario ķ um individuo
inexplicavel e inclassificavel: ķ uma abstracńŃo de todas as idķas, de
todas as crenńas, de todos os affectos: a sua ķthica ķ o _livro de
razŃo_, o seu evangelho o da _caixa_; o seu culto o da _cruz_, mas da
cruz dos cruzados novos; o seu destino, alķm do sepulchro, o _limbo_.
NŃo acrediteis na possibilidade de os constranger a despregarem os olhos
destes tres objectos, que, junctos aos farrapos dos bastidores e ao oleo
fķtido das lanternas do proscenio, constituem o seu universo. Deixae-os
tambem; que para elles, que nŃo querem, nem sabem, nem podem ler, a
imprensa ķ como se nŃo existisse, e as suas reprehens§es mais amargas,
as suas ironias mais pungentes nŃo os distrahirŃo um momento da
contemplańŃo beatifica das moedas que rende em cada noite um
estabelecimento industrial de prostituińŃo para familias honestas. Seja
quem for o empresario de qualquer theatro, nŃo se abalance a imprensa ao
louco empenho de convertĻ-lo. Que pessoa tentou jamais educar e instruir
um surdo-mudo-cego de nascimento?
Contra quem pois alevantarß a imprensa a sua voz solemne? Contra as
auctoridades propostas aos espectaculos dramaticos? NŃo; porque posto
que revestidas de um poder arbitrario, acima dellas ha tambem o
arbitrio, que lhes inutilisa a energia moral, quando tentam usar della a
bem da decencia publica; e porque, impossibilitadas de julgar por si
essa alluviŃo de asquerosidades que diariamente sobem ß scena, e alķm
disso obrigadas por lei a ouvir sobre cada uma dellas o parecer de tres
censores, que podem julgar bem ou mal, nŃo se lhes ha de lanńar em conta
uma culpa que nŃo ķ sua. Nenhum homem de alguma gravidade se quizera
submetter a passar dias, mezes e annos inteiros quasi asphyxiado n'uma
atmosphera de sandices, pelos mais avultados proveitos do mundo, e muito
menos gratuitamente, como servem os inspectores do theatro.
Quem resta por tanto para accusar? Os censores?--Parece-me ouvir a
muitos daquelles que acham mais commodo invectivar individuos do que
avaliar instituiń§es, dizerem que sim. Eu todavia respondo:--NŃo; mil
vezes nŃo! Brevemente se verŃo os fundamentos da minha negativa.
NŃo sendo, porķm, culpados nem os histri§es, nem os bufarinheiros de
rosalgar moral chamados empresarios, nem os inspectores, nem os
censores, onde estarß a causa de um mal de que todos se queixam, e a que
ninguem busca o remedio nos thesouros inexgotaveis da reflexŃo e do
raciocinio?
Essa causa estß n'uma instituińŃo anachronica, absurda, insensata,
attentatoria da liberdade intellectual do engenho humano, e alķm disso,
perfeitissimamente inutil.
O mal nŃo vem dos homens: vem das cousas: vem de uma parvoice legal: vem
da _censura prķvia_.
O remedio s¾ lh'o p¾de dar um parlamento que queira pensar cinco minutos
nesta materia.
┴ luz politica, a censura prķvia applicada ao theatro ķ um attentado tŃo
flagrante como applicada ß imprensa. Todas as constituiń§es existentes e
possiveis consagram a liberdade do pensamento e a livre communicańŃo das
idķas. O theatro ķ, como a imprensa, como as artes plßsticas, um meio de
communicańŃo. Uma representańŃo scenica ķ um livro impresso em tantos
exemplares quantos sŃo os espectadores, com a unica differenńa de que
estes exemplares se apagam acabada a sua leitura. O principio da
liberdade do espirito ķ tanto ou mais sancto que o da liberdade da
terra: nŃo soffre excepń§es, porque, se as soffresse, desceria da
categoria de principio para a classe das regras transitorias da vida
civil. Onde quer que appareńa a censura, onde quer que se aninhe esta
irmŃ gķmea da inquisińŃo, ha uma quebra nos foros da independencia do
homem, ha uma insolencia do passado contra a dignidade social da gerańŃo
presente. Seja para o que for, a censura ķ um impossivel politico.
Contra o impossivel nŃo ha raz§es de utilidade. As mais evidentes
considerań§es de conveniencia deveriam cahir diante da immutabilidade
dos principios; porque nŃo ha meio termo entre o renegar do progresso
humano, e o respeitar sempre e em toda a parte os elementos fundamentaes
das sociedades modernas.
Mas existem, porventura, taes conveniencias? A censura do theatro--dizem
os defensores dessa c¾pula sacrilega e bestial de uma instituińŃo
cadaver com as instituiń§es vivas e actuaes--ķ uma necessidade: melhor ķ
prevenir que castigar: o castigo dos que abusarem deste modo de
publicańŃo nŃo impedirß que elle tenha jß produzido a corrupńŃo: sem
censura p¾de, atķ, attentar-se contra a seguranńa do Estado: no anno de
tal em Paris, em Bruxellas, na Haya, emfim nŃo sei onde, um drama
recheiado de maximas subversivas produziu tal assuada, tal motim, tal
revolta.--Eis as excellentes raz§es, pouco mais ou menos, com que se
defende a existencia de um absurdo.
Estes argumentos sŃo a apologia, nŃo da censura do theatro, mas de toda
a censura; da censura do drama, como do livro ou do jornal; e ainda mais
destes; porque o exemplar da publicańŃo scenica deixa de existir apenas
cahe o panno; mas do livro ou do jornal impressos, embora sequestreis os
volumes ou os numeros nŃo vendidos, os exemplares derramados do primeiro
golpe lß ficam no dominio publico; milhares de individuos os lerŃo, e
com tanto maior avidez quanto mais severa houver sido contra elles a
condemnańŃo dos tribunaes.
A desculpa da prevenńŃo nos attentados legaes contra os principios vai
mais longe: vai atķ a inquisińŃo, se quizermos ser logicos. Um homem ķ
conhecido por suas opini§es anti-religiosas: este homem ķ imprudente,
voluntarioso, ousado: nada mais facil, mais provavel que o vermo-lo
cahir na culpa de nŃo respeitar a crenńa do Estado, de a insultar
publicamente. ┴ cautella, creae-me uma inquisińŃosinha illustrada; uma
inquisińŃo progressiva, arejada, sem polķs, nem potros, mas preventiva e
paternal, onde o incredulo, entre serm§es, pŃo negro arrańoado e agua
benta, seja inhibido de commetter um crime, previsto na lei politica do
mesmo modo que o abuso da liberdade de escrever e de falar. Apostolos da
censura prķvia, em nome da logica, dae-me a sancta inquisińŃo.
Deixemos, todavia, as duas bagatellas dos principios e da logica.
Venhamos ao campo da experiencia. A censura ahi estß. Que tem ella
feito, nŃo digo jß entre n¾s, que palpamos todos os dias os bellos
effeitos da instituińŃo; mas na Franńa, na Belgica, na Hespanha? Onde
tem impedido a prevaricańŃo do theatro? Respondei-me.
╔ um dos argumentos mais triviaes e mais lastimosos que se fazem a favor
desta monstruosidade inutilissima o exemplo da Franńa. D'antes, em
Portugal, para fazer uma lei, o que se indagava era se ella convinha ao
paiz. Ha annos a esta parte entendemos que era mais judicioso ver se
convinha aos outros povos. Esta abnegańŃo completa da intelligencia
nacional poderß conduzir-nos ao cķu pelo caminho da humildade; mas
tem-nos arrastado cß na terra a muita vergonha legal.
A verdade ķ que em Franńa os homens independentes e illustrados clamam
tambem contra a censura prķvia do theatro, porque ķ attentatoria e
inutil. Quereis a prova da sua inutilidade no vosso paiz modelo?--Ahi a
tendes ß mŃo. D'onde nos vieram as _Torres de Nesle_, as _Proesas de
Richelieu_, e todas as mais prostituiń§es litterarias da nossa pocilga
dramatica, chamada theatro normal? Vieram-nos dos repertorios dos
theatros de Paris: atravessaram pela censura de Mr. Taylor ou dos seus
delegados, como em Portugal passaram sans e escorreitas pela censura do
Conservatorio. Lß, como cß, a censura ķ um phantasma de que todos se
riem, e que s¾ serve para descarregar os hombros dos empresarios,
auctores, e traductores dramaticos da responsabilidade moral e legal dos
seus envenenamentos litterarios.
╔ realmente uma das pequices mais desmarcadas falarem-nos das commoń§es
populares excitadas n'uma plateia. Quando a revoluńŃo vai assentar-se
nos bancos do theatro, nŃo busqueis a sua origem nas palavras energicas
do poeta: buscae-a na frouxidŃo ou na maldade do poder. Sob um governo
forte e justo, uma revoluńŃo no theatro nŃo passaria de comedia
representada ßquem do proscenio. Mas, alķm disso, onde achaes os
exemplos de semelhantes factos? Justamente em alguns dos paizes onde
existe censura prķvia. Como o capitŃo de Luiz de Cam§es, que nŃo cabia
em nada, sancta gente, v¾s nŃo cahis em que esse argumento ķ uma
punhalada na vossa querida censura?
Donde vem a impotencia da censura? De ser uma cousa anachronica, morta,
fķtida, inintelligivel. Ao censor que respeita a inviolabilidade dos
principios repugna o impedir a representańŃo de um drama; porque nŃo crĻ
que o seu arbitrio possa substituir os jurados; que se possa executar
uma lei evidentemente contraria ß lei fundamental do estado. Pelo que,
porķm, toca ao que nŃo crĻ nessas cousas, o aborrecimento inevitavel que
lhe traz o desempenho de um dever tedioso, de que nŃo tira nem honra nem
proveito, ou o receio de attrahir odios de homens mais ou menos
poderosos, para o que nŃo sŃo triviaes entre n¾s o valor e a
consciencia, faz com que ou deixe de ler, ou leia essas miserias e as
approve. Se algum ha que nŃo reflectisse no absurdo da instituińŃo, e
que tenha energia bastante para lhes p¶r o seu veto censorio, lß ficam
os empenhos e os respeitos humanos para fazerem escrever no rotulo do
boiŃo immundo de peńonha litteraria: _passe e venda-se por d¾ses de 480
rķis_.
╔ este o fado de todas as leis, de todas as instituiń§es contradictorias
com as idķas e principios capitaes de qualquer seculo. SŃo cadaveres, em
que a forńa legal opera os phenomenos que produz no corpo morto a pilha
voltaica; visagens de terror para os circumstantes, falsos movimentos de
vida, mas que todos sabem nŃo passarem de joguetes de physica.
Fazei uma lei para o theatro em harmonia com a lei politica da nańŃo,
com os principios eternos da liberdade intellectual, e salvareis a moral
e a decencia publica, que a vossa ridicula censura deixa todos os dias
impunemente affrontar.
Constitui um jurado especial composto dos membros das corporań§es
litterarias, homens que tem uma intelligencia para pensar, uma reputańŃo
de probidade, de litteratura, e de gravidade que perder. Ahi tendes um
avultado numero de individuos respeitaveis na Academia das Sciencias, na
Eschola Polytechnica, na Eschola Medico-cirurgica, na Eschola do
Exercito, no Conservatorio e em todos os mais estabelecimentos
litterarios. Confiae-lhes a defensŃo da moralidade. Os espiritos fracos,
mas honestos, ahi julgarŃo sem temor; porque a sua sentenńa serß
collectivamente sabida, mas individualmente secreta. Ahi, quando a
occasiŃo do julgamento legal chegar, a causa jß estarß julgada e
sentenciada pela opiniŃo publica, e esta opiniŃo farß tremer os juizes,
se porventura entre elles houver algum de mais larga consciencia, ou que
seja capaz de esquecer-se, por affeińŃo ou por odio, da sua grave e
importante missŃo.
Fazei que o processo seja rapido. Haja um procurador especial contra os
delictos dramaticos em offensa da moral publica. Seja o inspector dos
theatros; seja quem vos parecer. Se faltar ß sua obrigańŃo, puni-o.
A penalidade da lei seja severa. Por mais severa que a imaginemos, serß
sempre branda em comparańŃo da que cabe ao ladrŃo matador; e eu nŃo sei
resolver qual besta-fera ķ mais damninha, se um assassino do corpo, se
um envenenador do espirito, que assassina as almas inexpertas das
mulheres e da mocidade, surripiando-lhes ainda em cima alguns cruzados
novos.
Desenganae-vos de que as formulas constitucionaes sŃo mais efficazes que
as molas carunchosas do absolutismo.
Ficae certos de que os jurados nŃo terŃo de vibrar o golpe da punińŃo
mais do que uma vez. O primeiro empresario que, sem remedio, tiver de ir
dormir por um anno aos pańos de S. Martinho, e de practicar a
generosidade de mandar algumas dezenas de moedas para o Asylo de
Mendicidade, ou para a Casa dos Expostos, tirarß a todos os empresarios,
presentes e futuros, o fino gosto de offerecerem no theatro ao publico
indignado espectaculos que affrontariam um alcouce.
Que a censura prķvia ķ inutil, os factos tem-no sobejamente provado.
Se-lo-ha uma lei constitucional? NŃo o creio. Se assim acontecesse, a
nańŃo portuguesa nŃo fora uma sociedade corrompida; fora uma nańŃo
perdida. Nesse caso cumpriria deixar ß Providencia de Deus convertĻ-la
ou anniquilß-la.
OS EGRESSOS
*PETIŪ├O HUMILISSIMA A FAVOR DE UMA CLASSE DESGRAŪADA
1842*
NŃo sei se todos aquelles que passam os largos ser§es do inverno, nŃo
nos theatros, nem nos banquetes profusos, nem nos bailes esplendidos,
mas em aposento de poucas varas em quadro, rodeiados de alguns livros e
a s¾s com o seu pensar silencioso; nŃo sei, digo, se a todos esses
acontece o mesmo que a mim, quando o som do chuveiro subito, o silvo do
vento, e o bramido do mar, quebrando lß ao longe nos rochedos da
marinha, lhes vem toldar a serenidade do tŃo suave calar nocturno e as
imagens que transitam lentas no kaleidoscopo da imaginańŃo. Aquelles
brados da natureza, que parece gemer angustiada, nem uma s¾ vez deixam
de despenhar-me do meu tŃo formoso universo das idķas no mundo das
realidades. A vida actual obriga-me entŃo a tomar por uma das suas
estradas dolorosas, e como ao pobre judeu errante, esse bradar da
natureza, envolto no fustigar da chuva, no sibillar da ventania e no
rumorejar longinquo das ondas, repete-me de continuo:--┴vante! ßvante!╗
O que nesses caminhos muitas vezes se encontra ķ o clarŃo que illumina e
o clarŃo que deslumbra; ķ a sciencia que se entrevĻ, separada de n¾s
pela insufficiencia das forńas do espirito; sŃo profundezas ennevoadas
em que a razŃo se precipita e vai revoluteando atķ se incrustar n'um
macisso de trevas quasi tangiveis; ķ o desconsolo de trocar, de noite a
noite, o crer pelo duvidar, o duvidar pelo descrer; ķ aprender
laboriosamente pouco, desaprendendo dolorosamente muito; ķ substituir
pela observańŃo e pelo raciocinio opprimidos no finito, no existente, a
poesia que nos leva mansamente embalados atravez das suas creań§es
infinitas; ķ consumir a brevidade da vida em esforńos nŃo raro
inefficazes para alcanńar a verdade, que alķm da morte, nos espera
tranquilla nas amplid§es do tempo sem fim.
Foi n'uma destas noites procellosas, emquanto eu buscava a verdade do
passado, que a imaginańŃo insoffrida, como que a furto, me transportou
das realidades que foram para uma triste realidade que ķ.
Aproximava-se a meia noite. Tinha acabado de ler uma das bullas do
violento Innocencio III contra o nŃo menos violento Sancho I de
Portugal, inserida nos registos daquelle digno successor de Gregorio
VII, volumosos registos, onde ha muito que aprender ßcerca da vida
social de nossos maiores e das obscuras luctas da liberdade burguesa,
tronco antigo das modernas revoluń§es populares, que tambem tem as suas
arvores de costado, como a aristocracia de berńo.
Ao anoitecer o cķu estava toldado, a terra humida, e o ar tepido com o
bafo vaporoso do sul. Mas era mais tarde que a tempestade, como o ladrŃo
nocturno, queria fazer o seu gyro por entre as habitań§es dos homens.
Era, pois, jß bem tarde. Subitamente a chuva fustigou as vidrańas: o
primeiro bofar do vento fez ramalhar as arvores meias calvas; e senti-o
que se abysmava debaixo das arcarias de pedra.
Por momentos imaginei que uma especie de demonio familiar me batia ß
porta. Dir-se-hia que viera assentado no dorso erińado do tufŃo.
Pareceu-me que me affundia diante dos olhos as vis§es do passado, e que,
entre risadas, me chirriava aos ouvidos.--┴vante pelos caminhos do
presente; ßvante, sonhador de abus§es╗.
Obedeci: o meu espirito cahiu no mundo presente, presente na sua mais
rigorosa data, uma noite pessima do mez de novembro do anno do Senhor de
1842.
Lß f¾ra passava o temporal desfeito. Affigurou-se-me que, levado nas
azas delle, corria por agra e longa estrada das nossas provincias do
norte. Os robles baixos e reforńados, cuja vida, contrahida ao cĻpo pela
mŃo do homem, lhes converte os topos em hydrocephalos monstruosos,
assemelhavam-se aos renques de dolmens druĒdicos da Bretanha. Quando as
nuvens, no seu curso precipitado, abriam alguma fenda passageira, por
onde a lua golfava instantaneo clarŃo na terra, via-os fugir para traz
de mim negros, hirtos, nus, como cadaveres tisnados de cousa que jß
vivera. Parei. Ao longe, a fita alvacenta da estrada, coleando por entre
os linhares e milharaes, refrangia de quando em quando o luar fugitivo
da superficie alagada das baixas, e depois, alńando-se, como o collo do
cysne, sobre um outeiro, sumia-se no viso delle, ao curvar-se para o
pendor opposto. A dilatada fileira dos robles era o que unicamente se
alevantava da terra por um e outro lado. Pareceu-me, porķm, que um vulto
distante vinha pela estrada do lado do outeiro: era um vulto humano, que
ora se encobria na sombra de nuvem negra que passava chuvosa, ora se
desenhava na claridade transitoria do cķu. Aproximou-se vagarosamente, e
chegou ao pķ de mim: passando, os seus vestidos rońaram-me por uma das
mŃos: eram frios e molhados. Seguiu ßvante, sem reparar em mim, que nŃo
podia despregar os olhos d'elle. Os seus passos eram arrastados e
tremulos, vergado o corpo, a fronte nua e calva. E eu olhava para elle
fito. A chuva comeńou de novo a cahir cerrada e escura. O vulto
encostou-se entŃo a um dos robles da estrada, como buscando abrigar-se;
e na cerrańŃo da saraiva que sobreveio, ouvi-lhe um gemido.
Foi um gemido inexplicavel de desalento e agonia.
½╔ mentira:--dizia comigo, tentando quebrar o feitińo daquelle pesadello
de homem acordado.
E quebrei-o: e era mentira. ½Girei n'um circulo vicioso--pensava eu--.
Parti do ideal para chegar ao ideal atravez da realidade.╗
E de feito, como o leitor facilmente acreditarß, estava no meu gabinete,
com um tinteiro e algumas folhas de papel diante de mim, tendo do lado
esquerdo o segundo tomo das epistolas de Innocencio III, e da direita o
terceiro volume da _Monarchia Lusitana_ de Fr. Antonio BrandŃo; isto ķ,
da esquerda um papa ao mesmo tempo intractavel e astucioso; da direita
um frade modesto e sincero; e como personalisados nelles, o mau e o bom
anjo, que nos seguem sempre e por toda a parte.
De resto, a chuva cahia, mas era lß f¾ra. Eu estava enxuto e secco,
tanto, quasi, como a alma de um politico: estava bem, agasalhado,
commodamente. S¾ a luz do candieiro ķ que se tornara escandalosamente
mortińa.
Ergui o brańo para a espivitar, e a cabeńa para ver se a minha obra era
boa. NŃo sei se nestas palavras abuso das reminiscencias biblicas. Os
theologos o dirŃo.
O meu _fiat lux_ foi cumprido. O candieiro despediu um clarŃo brilhante,
que alagou todo o aposento.
Nunca eu tivera practicado este acto de omnipotencia! N'uma porta
fronteira, que dava para outro aposento desalumiado, estava o vulto que
vira no meu desvaneio de homem acordado; estava ahi, immovel, triste,
afflictivo, como a imagem do innocente suppliciado que apparecia todas
as noites sobre o bofete do celebre auctor da Ulissea.
E a figura avultava lß: e eu olhava para ella sem pestanejar. Oh que se
v¾s a vĒreis!
Era um anciŃo veneravel: tinha a fronte suave e pallida sulcada
profundamente dessas rugas horisontaes, que sŃo como as ondas que vem
morrer nas margens exteriores do oceano tempestuoso dos pensamentos: o
seu olhar era esse olhar manso, agasalhador, indulgente, que em certos
velhos nos fascina e subjuga, e que nos faz dizer a n¾s os mońos:--Quem
me dera ser teu filho!╗ Nas faces cavadas aninhava-se-lhe a fome ou a
penitencia...
½╔ a fome!--bradei eu, pondo-me em pķ; porque, correndo a vista ao longo
da barba branca do anciŃo, vi que esta lhe cahia sobre o escapulario
negro de monge benedictino.
Mas a visŃo desapparecera de novo: e apenas me pareceu ouvir soar ao
longe uma voz cava e debil, como a que sße de peito consumido por febre
pulmonar, que recitava estas palavras do Psalmista:
_Judica me Deus, et discerne causam meam, et a gente non sancta et ab
homine iniquo et doloso erue me_.
O meu circulo vicioso nŃo existia. Cahira das idealidades do passado no
mundo real, e ahi, n'uma das realidades mais torpes, mais ignominiosas,
mais brutaes, mais estupida e covardemente crueis do seculo presente,
que diante de Deus, que o vĻ e o condemna, ousa gabar-se de grande e
generoso e forte; mas em cuja campa o christianismo e a philosophia
escreverŃo algum dia unicamente este letreiro:
--Aqui jaz a ultima era dos martyres.--
E p¹s-me a scismar.
_Erue me! Erue me!_--O Senhor te resgatarß, pobre monge; porque nŃo
tarda a bater a hora em que durmas tranquillo na terra fria e humida,
fria e humida como a estamenha que te cobre. Queiras tu de lß
perdoar-nos!
E lanńando os olhos em volta, perguntava a mim mesmo:--Porque possuo eu
os commodos da vida, o pŃo do corpo e o pŃo do espirito, e porque perdeu
elle tudo isso? Que bem tenho eu feito ao mundo? Que mal lhe havia elle
feito?
┴ fķ, que a minha consciencia nŃo achou uma unica resposta cabal a tŃo
simplices perguntas.
A lembranńa do frade velho atormentou-me toda a noite. A imaginańŃo nŃo
m'o pintava jß na passagem escura, onde surgira pela segunda vez: via-o
na idķa, e ahi, encostado ao roble, procurando conchegar os membros
inteirińados na cogulla encharcada, e resguardar a cabeńa calva ao
abrigo do robusto madeiro. Errante e mendigo como o rei Lear, o monge
nŃo tinha, como elle, para o guiar na solidŃo e na procella a caridade
de um truŃo.
╔ que hoje nŃo ha tru§es. Este seculo ķ um grave, sķrio e cogitador
assassino.
De quantos anciŃos veneraveis serß a historia a historia do meu
benedictino?
½Mas elles tĻem pŃo: os soccorros publicos...╗ Olķ, homens grandes,
silencio!
Qual ķ o juro legal de cem milh§es? SŃo cinco.
Quanto dizeis v¾s que atiraķs dos vossos balc§es dourados aos hķlotas da
sciencia e do sacerdocio? Uma quota diminuta dessa quantia.
Cahiu tambķm a arithmetica debaixo das ruinas do passado? Se ķ assim,
dizei-o. Supprimamos a arithmetica. O que nŃo fica supprimido ķ a
palavra--mentira!
Mentistes; porque a somma de que falaes existe apenas em palavras mais
torpemente hypocritas que as da serpente tentadora de nossa primeira
mŃe, as que se escrevem nas paginas de um orńamento.
E a realidade? A realidade ķ a minha visŃo; ķ que o monge, o sacerdote,
se converteu em mendigo.
Silencio, outra vez, homens grandes! Tambem eu nasci nesta terra, e o
sangue ainda me nŃo esqueceu o caminho das faces.
E se n¾s, gerańŃo do progresso e da philosophia, nos envergonharmos de
ser deshonestos, e dissermos:--DĻ-se uma fatia de pŃo ao que morre de
fome!╗ Mais; se dissermos:--Pague-se um juro modico dos valores que nos
aproprißmos?╗
Se o fizermos, em logar de sermos mil vezes uma cousa, cujo nome nŃo
escreverei aqui, sĻ-la-hemos s¾ novecentas e noventa e nove; porque
teremos restituido a millesima parte do que loucamente havemos
desbaratado.
O homem nŃo vive s¾ de pŃo. Di-lo um livro que v¾s nunca lestes, mas que
nem por isso tem deixado de ser por dezoito seculos o abrigo, a
doutrina, a crenńa e a consolańŃo de innumeraveis milh§es de individuos.
Calculastes jßmais quanto ķ insolente, atroz, diabolico, chegar a um
velho, tomar-lhe nas mŃos todas as suas affeiń§es, todos os seus habitos
de largos annos, todas as suas esperanńas mais queridas, e despedańß-las
e calcß-las aos pķs, e dizer-lhe depois:--Dar-te-hei um bocado de pŃo?╗
Prometter pŃo aos setenta annos!... Feita a quem esperava morrer
abrańado com o passado; que reportava a elle o presente e o futuro; cujo
viver intimo era s¾ de memorias, essa promessa materialista e de
escarneo bastaria para deshonrar-vos. Que nome, porķm, se darß aos que
nem essa mesma cumpriram?
Quaes podiam ser as affeiń§es de antigo monge habitador de um d'esses
mosteiros solitarios espalhados pelas provincias, e afastados do tumulto
das grandes cidades? As suas affeiń§es existiam todas dentro dos muros
do claustro: era a cella caiada e limpa; era a enxerga do seu catre; era
a banca de pinho em que meditava e lia; era a poltrona tauxiada em que
se assentava; era a estamenha do seu habito; eram as suas sandalias de
peregrino; era a arvore da cerca, fronteira da janella, onde o rouxinol
cantava na madrugada; era o crucifixo do seu oratorio; era a lagea da
crasta, debaixo da qual dormiam seus irmŃos mais velhos, aquelles que
antes delle haviam seguido o caminho do Calvario, e donde pareciam
chamß-lo para o seio de Deus, quando os seus passos vagarosos soavam por
cima da pedra. Nisso, e em mil cousas como estas estavam postos o seu
amor, os seus affectos, as suas saudades, os seus desejos. Era o seu
mundo esse; e a vida, serena, calada, melancholica, balouńava-se-lhe
suavemente nessas affeiń§es do retiro. Porque lhe despedańastes tudo
isto? Quanto vos renderam a enxerga, as sandalias, a lagea do sepulchro
e o crucifixo?
Pobre velho! Pobre velho!
½Mas n¾s, acudireis, nŃo podiamos calcular essas cousas, nem cremos em
affectos moraes. Temos cabeńa, mas falta-nos corańŃo, como convķm a
homens politicos. Os frades eram um elemento da sociedade antiga que
cumpria annullar. Fizemo-lo. E entŃo?╗
EntŃo roubastes Satanaz.
Pois Satanaz era um demente, que vos dķsse palacios, carruagens,
banquetes, prostituiń§es, embriaguez, poderio, a troco de uma alma
inteiramente morta para os affectos; que nŃo comprehendesse nem a dor
moral, nem as harmonias suaves que ha entre o universo e o homem? Uma
alma sempre em noite, e na qual nunca penetrasse a saudade mysteriosa do
cķu? De que lhe serviria para comvosco a sua terribilissima heranńa de
uma eternidade de tormentos?
Ah... deixae-me dizer tudo isto; porque a imagem do velho benedictino
estß gravada na minha alma como um remorso; e sinto lß f¾ra a chuva que
lhe ańouta as faces ardentes de febre, o tufŃo que lhe revolve as cŃs
venerandas, a torrente que lhe alaga os pķs descalńos. As lagrymas do
sacerdote, s¾, mendigo, n·, esfaimado, sŃo uma tremenda maldicńŃo
contra n¾s, maldicńŃo que ha de cumprir-se.
A arte moderna parece ter achado os mais poderosos meios de excitar a
compaixŃo e o terror: tudo quanto a arte antiga tinha pathetico e
terrivel sentimo-lo hoje frouxo e pallido. Se hoje, porķm, houvesse
engenho capaz de traduzir em palavras humanas o drama horribilissimo das
ultimas agonias da vida monastica em Portugal, aquelle que lesse uma s¾
vez esse livro monstruoso e incrivel poderia depois, ao deitar-se,
conciliar o somno com o _Leproso de Aosta_, com o _Fausto_, com o
_Manfredo_, ou com os _┌ltimos dias de um sentenceado_.
Quando em 1834 se extinguiu o antigo e celebre cenobio de Sancta Cruz de
Coimbra, aconteceu ahi um facto que p¾de, atķ certo ponto, dar uma idķa
das primeiras scenas do negro drama que ha oito annos comeńou a passar
ante os olhos daquelles que ainda nŃo abnegaram de todo a humanidade e o
pudor. Expulsos os cenobitas, e inventariados os bens do mosteiro pelos
commissarios desta obra brutal, quasi por toda a parte brutalmente
executada, ainda uma cella daquelle vasto edificio ficava occupada por
um dos seus antigos habitadores. Era um velho de oitenta annos, a quem o
tropego, o quasi morto dos membros embargavam o caminhar, e que por isso
nŃo podia seguir seus irmŃos. Entrando no aposento, encontraram o
cenobita deitado no seu catre humilde, em cujo topo pendia o crucifixo
que, talvez por sessenta annos, tinha visto a seus pķs consumir-se na
meditańŃo, nas preces e na penitencia aquella dilatada vida. Estava s¾ o
anciŃo, e o silencio que o rodeiava apenas era interrompido pelos
gorgeios de uma avesinha, que pulava contente ao sol n'uma gaiola
pendurada da abobada. O velho parecia pensativo, como se adivinhasse que
era chegada para elle a hora do martyrio.
As passadas dos que entravam moveram-no a volver os olhos: correu-os por
aquelles rostos desacostumados: depois tornou-os a abaixar. Que lhe
importavam os homens do seculo? Elle nŃo os conhecia.
Disseram-lhe entŃo que era necessario sair d'alli.
½Porque?--perguntou o cenobita.
½Porque os frades acabaram:--replicou o mais eloquente e discreto dos
verdugos, como se exprimisse a idķa mais simples e trivial deste mundo.
½Porque os frades...: repetiu em voz baixa o velho, sem concluir. Os
labios nŃo podiam levantar de cima do corańŃo o resto daquella phrase
monstruosa: ella lh'o havia esmagado.
Um sorriso estupido passou pelas faces estupidas de alguns dos
circumstantes. No gesto espantado do cenobita liam elles a grandeza do
esforńo com que associavam o proprio nome ß obra prima do seculo.
E com razŃo. O triturar assim um corańŃo de oitenta annos era feito que
excedia em heroicidade todos os que haviam practicado dous cavalleiros
portugueses, que, lß embaixo na igreja, continuavam a dormir nos seus
leitos de pedra um somno de muitos seculos, e que se chamavam Affonso
Henriques e Sancho AdefonsĒades.
Os olhos do anciŃo ficaram enxutos. S¾ accrescentou:--Mas para onde hei
de eu ir?╗
½Para casa dos vossos parentes:--acudiu o philosopho.
O cenobita correu a mŃo pela fronte calva, e respondeu:--Jß nŃo tenho
parentes na terra: todos me esperam no cķu╗.
½EntŃo ireis para a de algum amigo.╗
½O unico amigo meu que ainda vive ķ aquelle!╗
E apontava para a avesinha.
½O frade irß pois morar na gaiola do pintasilgo:--rosnou por entre os
dentes um dos algozes, que tinha fama de gracioso. NŃo quiz, porķm,
communicar aos outros tal idķa. Tudo estouraria de riso.
Alguem, que estudava ahi perto esta scena de progresso moral, nŃo p¶de,
todavia, continuar os seus graves e terriveis estudos. Precisava de ar,
de luz, de ver o cķu. Atravessou ligeiro o longo dormitorio, e desceu a
quatro e quatro os degraus das extensas escadarias. As lagrymas
rebentavam-lhe como punhos.
┴ portaria de Santa Cruz as primeiras palavras que ouviu foram, que a
municipalidade acabava de fazer um calvario no fundo de uma petińŃo,
escripta em vasconńo por certo doutor affamado, na qual pedia ao governo
lhe atirasse aquelle osso do mosteiro de sete seculos, para o roer atķ
os fundamentos, e construir no sitio d'elle, nŃo me lembra ao certo se
um espogeiro, se uma sentina.
Era o estudo do progresso artistico ap¾s o estudo do progresso moral.
Quantos destes factos dolorosos se passaram naquella epoclha por todos
os Ōngulos de Portugal! Poderia contar-vos mil, e cada um delles fora
uma nova scena de agonia. Os martyres primitivos morriam nos eculeos,
nas garras das feras, nos leitos de fogo; nŃo eram, porķm, condemnados a
assentar-se em cima das ruĒnas de todos os seus affectos, clamando ao
Senhor durante annos: _Erue me! Erue me!_
Fizestes uma cousa absurda e impossĒvel: deixastes na terra cadaveres
vivos, e assassinastes os espiritos.
Ao menos que esses cadaveres nŃo sintam traspassß-los o vento que
sibilla nas sarńas, a chuva que alaga as campinas, o frio que entorpece
as plantas e os membros dos animaes.
PŃo para a velhice desgrańada! PŃo para metade dos nossos sabios, dos
nossos homens virtuosos, do nosso sacerdocio! PŃo para os que foram
victimas das crenńas, minhas, vossas, do seculo, e que morrem de fome e
de frio!
Cumpri aos menos a vossa brutal promessa. Podem n'essas almas ser
profundas as trevas, e todavia respeitardes as regras mais triviaes de
uma probidade vulgar.
SenŃo, que os pobres monges inclinem resignados a fronte na cruz do seu
martyrio, e alevantem uma orańŃo fervorosa ao Senhor para que perdoe aos
algozes, que nella os pregaram. ╔ este o exemplo que na terra lhes
deixou o Nazareno.
Mas que se lembrem os poderosos do mundo de que a orańŃo de Jesus na
hora suprema da agonia foi desattendida do Eterno. E comtudo, Jesus era
o seu Christo.
Que olhem para essa nańŃo que fluctua ha dezoito seculos no pķgo da sua
infamia, maldicta de Deus, e apupada pelo genero-humano, sem nunca poder
submergir-se nos abysmos do passado e do esquecimento.
Que se lembrem do proprio nome, do nome de seus filhos, de que ha
justińa no cķu, e na terra a posteridade.
Se nos seus corań§es restam vestigios de crenńas humanas, que meditem
uma hora, um minuto, um instante nisso tudo. Das profundezas de tal
meditar surgirß uma idķa, que lhes farß manar da fronte o suor frio da
morte; porque serß uma idķa tenebrosa e terribilissima.
*DA INSTITUIŪ├O
DAS
CAIXAS ECONOMICAS
1844*
I
A origem das caixas economicas, embora imperfeitamente organisadas, como
todas as instituiń§es nos seus comeńos, remonta apenas aos fins do
seculo passado, e a Allemanha e a Suissa foram os primeiros paizes que
as viram nascer. Hamburgo possuia uma em 1787, e a de Berna, instituida
s¾ para os creados de servir, appareceu em 1789. Seguiram-se poucos
annos depois a do ducado de Oldemburgo e a de Genebra. Todas as demais,
nestes e n'outros paizes, foram fundadas posteriormente, e pertencem ao
presente seculo. Em Inglaterra, dizem alguns que a idķa das caixas
economicas occorrera primeiramente ao celebre Wilberforce; mas os
vestigios dellas que ahi se apontam anteriores a 1810 sŃo de natureza
duvidosa ou apenas tentativas obscuras. Data daquella epocha o _banco de
poupanńas_ (_saving's bank_) de Ruthwel, fundado por Duncan, e que foi o
primeiro que se constituiu naquelle paiz com estatutos publicos e
regulares. Os seus prosperos resultados foram poderoso incentivo para a
diffusŃo das caixas economicas. Dentro de sete annos contavam-se no
Reino-unido perto de oitenta estabelecimentes analogos, e em 1833 quasi
quinhentos, onde 470:000 individuos, pouco mais ou menos, tinham
depositado a enorme somma de quasi 16 milh§es de libras esterlinas, ou
acima de 160 milh§es de cruzados, subindo nos quatro annos immediatos o
numero dos depositarios a 636:000 e o valor dos depositos a 20 milh§es
de libras ou mais de 200 milh§es de cruzados. Ao passo que estes
beneficos institutos cresciam e se multiplicavam na Gran-Bretanha,
generalisavam-se e prosperavam tambem no meio das nań§es continentaes.
Em 1838 o numero das caixas economicas subia na Allemanha a 257, e na
Suissa a 100. A Franńa, onde s¾ foram introduzidas em 1818, conta
actualmente (1844) perto de 300, e na Italia quasi nŃo ha cidade que nŃo
possua estabelecimentos desta especie. ┴ porfia, os governos e os povos
tem concorrido para arraigar uma instituińŃo, cuja idķa fundamental ķ,
talvez mais que nenhuma, civilisadora e moral. Como todas as cousas
verdadeiramente grandes e uteis, as caixas economicas nŃo tem encontrado
uma unica parcialidade politica, uma unica eschola que ouse
condemnß-las, uma s¾ crenńa religiosa que as repudie. As monarchias
absolutas, os governos parlamentares, as republicas acceitam-nas,
promovem-nas. Ao passo que o ministro protestante as aconselha como
poderoso instrumento de morigerańŃo e de ventura para o povo, o papa
sanctifica esta formosa instituińŃo, abenńoando-a e propagando-a nos
estados da igreja. Progresso verdadeiro, nascido no meio da terrivel
lucta de idķas, de paix§es e de interesses em que ha meio seculo se
debate a Europa, as caixas economicas nŃo tem custado ß humanidade nem
lagrymas, nem sangue. Evidentemente uteis por sua natureza; provadas
taes pelos principios em que se estribam e pelos seus esplendidos
resultados; simples no seu mechanismo, por toda a parte aquelles a quem
os seus beneficios sŃo especialmente destinados, os homens do povo,
tem-nas comprehendido e abrańado. Simplicidade, clareza, utilidade
reconhecida sŃo as principaes condiń§es de todo e qualquer pensamento
social que tenda a popularisar-se. As caixas economicas ostentam no mais
subido grau estes caracteres de todas as instituiń§es que devem vir a
encarnar-se na sociedade e a viver a larga e robusta vida das nań§es, a
vida dos muitos seculos.
Este consenso unanime, nŃo de paizes ignorantes, mas dos que estŃo na
dianteira da civilisańŃo, e ahi, nŃo de uma classe de individuos, mas de
homens de todas as jerarchias; tal consenso, dizemos, ķ o julgamento
mais completo, o testemunho mais irrefragavel da utilidade nunca
desmentida das caixas economicas. Onde quer que ellas appareceram, a
moralidade das classes inferiores e pobres melhorou em breve, e a
miseria, perspectiva permanente que o jornaleiro e o assalariado tem
diante dos olhos para o ultimo quartel da existencia, deixou de ser para
elles uma fatalidade ineluctavel. A sobriedade; a poupanńa, as virtudes,
em summa, de homem do povo deixaram de ser van precauńŃo contra o seu
negro porvir de mendicante velhice.
A familia, sobretudo, essa imagem da sociedade e sua origem, que para o
obreiro, ßs vezes escańamente retribuido, ķ, nŃo raro, flagello e
maldicńŃo, p¾de deixar de ser desgrańa, ao menos para aquelle a quem ou
viva crenńa religiosa, ou a natural bondade da indole induzem a preferir
ß satisfańŃo de vicios ignobeis o proprio bem estar futuro e o bem estar
de seus filhos.
Que ķ, pois, a caixa economica, essa arvore que produz taes fructos de
benńŃo? ╔ a cousa mais conhecida e trivial. ╔ o mealheiro; ķ esse velho
alvitre de poupados que desde pequeninos todos n¾s temos visto usar aos
pouco opulentos, e que nossos paes e av¾s jß conheceram; ķ a astucia do
pobre para fugir a superfluidades tentadoras (ķ longa a lista das
superfluidades do pobre: encerra quasi todo o necessario do rico) e ß
custa dellas achar em si proprio soccorro nos dias de inactividade
forńada, da carestia ou da enfermidade. ╔ o mealheiro, mas o mealheiro
tornado productivo, fecundado pela intelligencia e pelo principio de
associańŃo: ķ uma grandiosa, e por isso singela, invenńŃo do senso
commum, que durante muitas eras ficou, por assim dizer, no estado de
sementinha perdida, atķ que a luz do progresso e da civilisańŃo a fez
rebentar, crescer, bracejar, florir e gerar fructos preciosos, que della
colhem em abundancia as sociedades modernas.
A este baptismo de regenerańŃo, que, bem como ao do evangelho, sŃo
principalmente chamados os pequenos e humildes, s¾ tarde n¾s
concorremos. NŃo que ignorassemos a sua existencia, mas por essa especie
de destino mau que nos arrasta ap¾s novidades de pouca monta ou
contrarias ß razŃo, ao passo que desprezamos o que nas instituiń§es
estranhas ha conforme com os nossos costumes ou accommodado ßs nossas
precis§es reaes. Debalde um dos primeiros economistas portugueses[2]
prop¶s ha annos na camara dos deputados a creańŃo das caixas economicas,
offerecendo a lei que as devia regular, e mostrando as suas vantagens
n'um largo relatorio, onde ß vasta sciencia se ajuncta a eloquencia que
vem da convicńŃo profunda. Entretidos com theorias, ou com interesses de
partidos ou de pessoas, os homens politicos lanńaram no esquecimento as
boas e sinceras diligencias do deputado que desempenhava uma das mais
graves obrigań§es do seu mandato. Atķ hoje nada fizeram a semelhante
respeito aquelles a quem mais que a ninguem isso incumbia; e se a
existencia da primeira caixa economica portuguesa se realisou, deve-se o
facto a uma associańŃo particular[3].
╔ sabido que, por via de regra, as caixas economicas sŃo uma especie de
deposito, onde qualquer individuo p¾de ir ajunctando lentamente e em
quantias pequenas ou grandes as sobras da sua receita, salvas das
despesas necessarias ß vida;--que, em vez de ficarem inertes as sommas
alli depositadas, comeńam logo a produzir juro, o qual, passado um anno,
se converte em capital e se accumula ao capital primitivo para com elle
produzir novos juros;--que esta accumulańŃo, bem como a formańŃo do
capital primitivo, ķ perfeitamente indeterminada e sem accepńŃo nem
excepńŃo de tempos e de quantias, uma vez que nŃo sejam estas inferiores
ao diminuto minimo de cem rķis;--que o depositante p¾de quando lhe
aprouver levantar o juro ou o principal no todo ou em parte, ou
transmitti-lo por testamento ou por successŃo a seus herdeiros ou
legatarios;--que, finalmente, o homem laborioso e poupado tem alli as
suas economias seguras pelas garantias positivas que lhe presta uma
associańŃo poderosa e respeitavel, em vez de as conservar improductivas
e arriscadas no mealheiro domestico, ao qual, suppondo-lhe a indole
previdente e poupada que tantas vezes falta ao operario e, em geral, a
todos os que vivem de pequenos lucros eventuaes, teria necessariamente
de recorrer.
½Com razŃo se tem apontado, diz De Gerando, a utilidade moral que esta
instituińŃo produz, favorecendo as inclinań§es para o arranjo e
economia. Ella ķ propicia ßs virtudes que se ligam com essas
inclinań§es, ou que d'ahi nascem. Excita ao trabalho; habitua o homem
laborioso a cogitar; ajuda a desenvolver os affectos domesticos;
concorre para multiplicar tanto os estabelecimentos industriaes como as
familias, proporcionando meios de formar e conservar o cabedal
necessario para abrir uma officina ou ajunctar um dote para casamento;
ensina ao pouco abastado como em si proprio p¾de achar recursos e como
se p¾de remir na miseria, na doenńa e na velhice. As caixas economicas,
ao passo que diminuem o numero dos indigentes, concorrem tambem para
nobilitar o caracter do homem pobre e para lhe dar aquella honrada
altivez que nasce da maior independencia. Aos que vivem na estreiteza
faz-lhes saber quanto ķ grato o sentimento da propriedade,
estabelecendo-lhes uma que ķ real e que, apesar de modica, fructifica e
se perpetua. Alķm disso, sŃo proveitosas em subido grau ß sociedade,
porque sŃo conjunctamente symptoma e instrumento da quietańŃo publica.╗
Veio o successo justificar as previs§es do illustre moralista. Tem-se
observado em Franńa e em em Inglaterra, que nŃo ha individuo que tenha
feito depositos nas caixas economicas que fosse accusado nunca perante
os tribunaes, ao passo que as listas de criminosos feitas em diversas
epochas provam que as tres quartas partes dos individuos sentenceados
eram pessoas inclinadas ao jogo, ßs loterias, ou a bebidas espirituosas.
Os factos citados pelo virtuoso De Gerando sŃo, de feito, as
consequencias forńosas da idķa fundamental das caixas economicas. Das
classes populares saem, nŃo s¾ absolutamente, mas tambem relativamente,
a maior parte dos criminosos. Tem-se attribuido isto ß falta de educańŃo
nessas classes: sob certo aspecto e atķ certo ponto a causa ķ
verdadeira; nŃo ķ, porķm, a unica, nem a principal. Se indagamos quaes
foram os primeiros passos dos mais celebres malvados, achamos que
partiram dos simples roubos atķ chegarem ß maxima ferocidade no crime.
Poucos entre os assassinos famosos escreveram logo com sangue as paginas
maldictas da historia da sua existĻncia. Na estatistica da criminalidade
popular predomina o roubo: ķ cousa trivialmente sabida, como o ķ que a
miseria das classes laboriosas produz principalmente esse facto. Mas o
que a sociedade parece ignorar ou esquecer ķ que ella ķ a culpada de que
a pobreza do humilde se converta facilmente em miseria; miseria extrema,
desesperada, terrivel; miseria que impelle quasi forńadamente pela
estrada da immoralidade o homem do povo, para quem os legisladores ha
muito inventaram as masmorras, os desterros, os supplicios, em vez de
alevantarem barreiras moraes que lhe obstem a precipitar-se no abysmo.
Para o individuo sem propriedade, para o obreiro, o artifice, o creado
de servir; para aquelle, emfim, que s¾ tem por capital os proprios
brańos, e cuja renda ķ apenas um salario contingente, a imprevidencia e
o habito de procurar cada dia os meios de viver esse dia nascem
naturalmente da sua situańŃo precaria. Nada espera no futuro, e por isso
nada teme delle: probabilidades, contingencias, nŃo as calcula nem
previne. Assim, vemo-lo acceitar com facilidade os encargos de pae de
familia. Satisfez o appetite momentaneo; que importa o futuro ßquelle
para quem isso nŃo existe?
Depois vem os filhos, vem a doenńa, vem a falta de trabalho: as
affeiń§es domesticas enraizaram-se no corańŃo do desgrańado. A natureza,
a religiŃo, os costumes, tudo lhe diz que esses entes que gerou, que
essa mulher a quem se prendeu devem achar nelle o seu abrigo, a sua
providencia. Ao passo que a mß organisańŃo da sociedade o inhabilita
absolutamente para em certos casos poder supprir os seus, a mesma
sociedade lhe diz, e diz bem, que nunca os deve abandonar. Desta ordem
de cousas, falsa, violenta, contradictoria, resulta que as mais leves
tendencias para o crime se excitam e dilatam atķ chegarem a produzir
tristes fructos, cujo desenvolvimento a sociedade crĻ impedir com as
algemas, carceres, grilhetas, desterros e patibulos, emquanto ella
propria, com o seu desprezo pelas classes pobres, com a falta absoluta
de instituiń§es verdadeiramente moralisadoras e beneficas, alimenta a
arvore mortifera que produz as acń§es criminosas.
II
As caixas economicas sŃo o primeiro e agigantado passo para a soluńŃo do
problema que as leis ainda nŃo tentaram resolver: as caixas economicas
sŃo o contraste, a negańŃo do patibulo. Matam a perversŃo popular nas
suas causas, em vez de a punir nos seus effeitos. Criam o futuro para
milhares de individuos que nunca imaginaram tĻ-lo, creando-lhes o goso
da propriedade, e nesta um recurso para a hora da afflicńŃo e escaceza,
tŃo proxima, entre as almas vulgares, da hora do crime. O facto de nŃo
apparecer o nome de um unico depositante das caixas economicas nas
listas dos sentenceados em Franńa e em Inglaterra ķ a consequencia
natural dos principios em que esta instituińŃo se estriba.
A sua influencia moral vai ainda mais longe. Os vicios sŃo, depois da
miseria, a origem de frequentes attentados. O jogo e a embriaguez estŃo
por toda a parte mais ou menos nos habitos do povo: a embriaguez,
sobretudo, ķ para o maior numero de jornaleiros como refrigerio, como
prazer licito nos dias de repouso. Quem, todavia, ignora que estes dous
vicios sŃo quasi sempre a causa de rixas entre os operarios, de
desordens domesticas, e de se aggravar cada vez mais a miseria das
classes laboriosas? As caixas economicas guerreiam, geralmente com
vantagem, a propensŃo para as bebidas fermentadas e para o jogo.
Inimigas da penalidade feroz e sanguinaria que ainda governa a Europa,
nŃo o sŃo menos da taberna, que muitas vezes ķ a porta fatal por onde o
homem de trabalho enceta o caminho que tantas vezes o conduz ßs galķs,
ao desterro e, atķ, ß morte.
Mas, dir-se-ha, como podem as caixas economicas desarreigar os vicios
inveterados do povo? Como correrß este a depositar nos escriptorios das
caixas a exigua quantia que ia applicar ß embriaguez e ao jogo? A esta
pergunta responde a experiencia dos paizes onde esta especie de
depositos estŃo instituidos e vulgarisados ha certo numero de annos. A
principio a concorrencia era diminuta e lenta; mas cresceu gradualmente,
e vai tomando hoje um incremento que passa alķm de todas as previs§es
dos amigos da humanidade.
Entre n¾s mesmos ha um triste exemplo de como o povo, quando descortina
ainda a mais duvidosa perspectiva de melhorar a sua condińŃo, dß de
barato o satisfazer os outros appetites para correr ap¾s essa incerta
esperanńa. SŃo as loterias o exemplo: ķ exemplo essa deploravel invenńŃo
de especular com a cubińa e com o desejo ardente que as classes menos
abastadas tem de conquistarem, seja como for, fortuna independente.
╔ de ver a ancia, diriamos quasi o delirio, com que o vulgo concorre a
lanńar no sorvedouro das loterias quantos reaes lhe sobram do que lhe
cumpre gastar nas mais estrictas precis§es da vida. Muitos ha que atķ
cortam pelo necessario a si e ß famĒlia para o irem dar a devorar ß
loteria, a essa fatal banca de jogo em que se joga ß luz do dia, no meio
da prańa publica, embora haja a certeza de _que a grandissima maioria
dos que apontam hŃo de forńosamente perder_; circumstancia que
caracterisa esta instituińŃo _publica_ de modo, que, se fosse uma
especulańŃo particular, os tribunaes puniriam severamente o especulador.
Mas o facto demonstra que, apenas clareia algum tanto o negro horisonte
do porvir; apenas lß reluz uma esperanńa tenue, improvavel atķ, a de um
premio avultado, o povo corre para essa esperanńa; porque antevĻ as
dolorosas consequencias da sua precaria situańŃo e busca esquivar-se a
ellas.
╔ para tornar proficua e moral esta previsŃo que se instituiram as
caixas economicas. Fazendo convergir para si as sobras escańas dos pouco
abastados, as quaes alißs se desbaratariam provavelmente em vergonhosos
deleites, ou no que vale quasi o mesmo, na loteria, ellas nŃo apresentam
esses engodos fementidos, essas promessas mentirosas com que se desperta
a cubińa popular; nŃo promettem mil por dez com a condińŃo de, em cem
casos, perderem-se noventa e nove vezes os dez e nŃo se obterem os mil.
NŃo! As caixas economicas offerecem unicamente um juro modico, mas
constante, e alĶm disso a certeza de rehaver o depositante o seu
capital, augmentado com o juro, no momento em que delle careńa:
offerecem uma cousa simples, clara, possivel: nŃo promettem milagres,
nem sequer maravilhas; porque o maravilhoso muitas vezes, e o milagroso
sempre, nas cousas humanas, sŃo a caracteristica do charlatanismo.
Como os descobridores de thesouros encantados, como os viciosos de
loterias, como os alchimistas, os que desenvolveram e applicaram o
pensamento desta instituińŃo calcularam tambem com a insaciabilidade da
cubińa humana; com a cubińa que p¾de estar dormente ou subjugada por
outros affectos, mas que existe em todos os corań§es. O primeiro
sentimento que deve levar o obreiro, o familiar, o caixeiro, o artifice
a ir entregar na caixa economica alguns tost§es que forrou do producto
do seu trabalho serß a idķa de que virŃo de futuro as occasi§es da
enfermidade, da falta de occupańŃo ou de outro qualquer contratempo, e a
reflexŃo de que, reservando os sobejos de hoje para as faltas de amanhŃ
ķ, sem questŃo, mais judicioso accumulß-los no mealheiro seguro e
publico, onde nŃo corre uma hora, um minuto, em que a somma poupada nŃo
produza seu lucro, e em que este lucro nŃo se esteja transformando em
capital productivo, do que mettĻ-los no mealheiro particular, que p¾de
ser roubado, e onde, no momento da precisŃo, nem mais um ceitil se
acharß daquillo que ahi se metteu. ╔ este o sentimento que, no povo,
suscita desde logo a caixa economica, e conforme a experiencia de todos
os paizes, basta elle para angariar extraordinario numero de
depositantes. Ha, porķm, um perigo: quando algum destes tiver accumulado
certa quantia que repute sufficiente para occorrer a qualquer apuro
inesperado, os costumes viciosos e desordenados que o temor do futuro e
a esperanńa de remedio domaram, hŃo de provavelmente melhorar-se nessa
lucta entre o bem e o mal, e o homem de trabalho voltarß aos habitos de
desleixo e dissipańŃo que lhe absorviam as suas sobras, e que lh'as
tornarŃo a absorver de novo, e quem sabe se, atķ, as proprias economias
que fizera. Obviamente o perigo ķ real e grandissimo: ha, todavia, no
corańŃo humano tambem a avareza; ha essa paixŃo, que, ao contrario das
outras, augmenta com a posse, radica-se com a idade, arde violenta ainda
na penumbra fria do sepulchro. Na instituińŃo das caixas economicas,
contou-se com ella. InvenńŃo que toca as raias do sublime ķ o aproveitar
uma paixŃo mß e ignobil para fazer o bem; tornar instrumento da moral e
da civilisańŃo a mais indomavel, a pessima entre as nossas propens§es.
Perigosa, destructiva, anti-social no rico, ella serß ·til ao pobre,
que, sem deshonra, a p¾de alimentar onde quer que existirem as caixas
economicas. E ķ o que deve succeder e succede. O creado, o jornaleiro, o
artifice que insensivelmente se achou transformado em pequeno
capitalista e que vĻ, com o decurso do tempo, engrossar os tost§es em
cruzados, os cruzados em moedas, comeńa a amar o seu peculio e a fazer
sacrificios para o augmentar: esta idķa entranha-se no seu espirito, e
nŃo tarda a vir o exame severo das superfluidades e o c¾rte em todas
ellas. E fazem-no desafogadamente, porque sabem que no dia ou no
instante em que o excesso da poupanńa os conduza a algum apuro, ķ-lhes
licito ir levantar no todo ou em parte o juro ou o capital que possuem:
e se tal aperto se nŃo der, tem a certeza de que, quanto mais depressa
ajunctarem um peculio de certo vulto, mais depressa realisarŃo o sonho
constante da maioria dos individuos collocados na precaria situańŃo de
assalariados, a existencia independente. Um abrirß a loja de retalho,
outro a officina de pequena industria: este irß plantar a vinha no
outeiro escalvado; aquelle arrotear o chŃo baldio na planicie. Cada qual
seguirß a senda que a sua inclinańŃo lhe indicar, mas todos pensarŃo s¾
n'uma cousa, a independencia; a independencia que nasce da propriedade,
e que ķ o mais fertil elemento da moral, da paz e da prosperidade
publica.
As considerań§es que temos feito sŃo geraes; applĒcam-se a todos os
paizes, porque assentam sobre a indole dos affectos humanos, e sobre
circumstancias mais ou menos communs nas sociedades modernas. Se, porķm,
ha nańŃo cujo estado social, cujas tendencias entre as classes
inferiores assegurem ßs caixas economicas, mais que nenhuma outra, uma
acńŃo poderosa em melhorar a condińŃo dessas mesmas classes, essa nańŃo
ķ a nossa.
Em Inglaterra e em Franńa as caixas economicas, apesar das suas
grandissimas e innegaveis vantagens, tem apresentado alguns
inconvenientes: tal ķ o de servirem para especulań§es de gente rica,
que, na falta de applicań§es para os seus cabedaes, alli os vŃo
depositar com os juros compostos que delles devem auferir, sem correrem
riscos e sem se onerarem com as despesas de administrańŃo. Procurou-se
em muitas partes remover este inconveniente, estabelecendo maximos para
as entradas e para o total dos depositos de cada individuo; mas esta
providencia nem ķ geral, nem impede que a frequencia das entradas supra
a modicidade dellas, e que repartindo uma quantia avultada por diversos
membros da propria familia, e fazendo todos estes ao mesmo tempo
pequenos depositos em diversas caixas, o abastado venha a abusar de uma
instituińŃo cujo fim nŃo ķ, de certo, locupletß-lo.
Entre n¾s nŃo existe e difficilmente existirß semelhante perigo.
Portugal ķ um dos paizes da Europa, onde, grańas ß nossa antiga
organisańŃo social e ß natureza e condiń§es das nossas industrias, as
fortunas sŃo por via de regra mediocres, a propriedade territorial mui
dividida nas provincias mais populosas, e por consequencia os capitaes
raros e os grandes capitaes rarissimos. Fallecem elles ßs applicań§es,
nŃo as applicań§es a elles. Se a essa limitada forńa de capitaes que
possuimos faltasse o minotauro que os devora quasi todos, a agiotagem,
quasi sempre infecunda, com o governo e com os particulares, ainda
restavam as necessidades das industrias fabril e agricola, ßs quaes por
muitos annos nŃo bastarŃo os que existem, sem que receiemos sirvam para
perverter uma instituińŃo quasi exclusivamente destinada ßs classes
laboriosas e menos abastadas.
Tem-se ponderado que a acńŃo benefica das caixas economicas ķ impotente
contra a miseria do maximo numero de obreiros, isto ķ, contra a miseria
de quasi todos os que pertencem ß industria fabril. Nos paizes onde as
grandes fabricas sŃo a principal f¾rma, o mais commum systema da
industria, essa observańŃo ķ infelizmente verdadeira. O aperfeińoamento
das machinas, a concorrencia dos productos nos mercados, a desproporńŃo
entre o fabrico e o consumo tem feito descer os salarios a ponto que
toda e qualquer economia ķ impossivel para o operario, que ganha
exactamente s¾ o preciso para nŃo morrer de fome. Depois, nos grandes
focos de industria fabril, principalmente na Gran-Bretanha, a depravańŃo
dos costumes ķ tŃo profunda, que, ainda quando a economia nŃo fora
materialmente impossĒvel, sĻ-lo-hia moralmente. Ahi, portanto, as caixas
economicas, sŃo, sem duvida, insufficientes para libertar o povo da
miseria e da corrupńŃo.
III
Quando a organisańŃo de um paiz ķ viciosa e contrafeita; quando e onde a
propriedade estß mal e, digamos atķ, monstruosamente dividida: onde o
capital anda em guerra viva com o trabalho; onde a condińŃo do obreiro ķ
relativamente peior que a do servo da idade media, a caixa economica de
certo nŃo p¾de remediar os effeitos desta situańŃo absurda. Os
districtos ruraes da Inglaterra, nomeiadamente os da Irlanda, sŃo
victimas de uma constituińŃo da propriedade territorial em que ainda
estß viva a conquista dos normandos, e nas cidades manufactoras o
excesso dos aperfeińoamentos mechanicos tem gerado o excesso de miseria
dos proletarios. Para estes, que pelas fluctuań§es do commercio externo,
tem repetidas vezes largas ferias de trabalho, e se vĻem forńados a ir
receber a esmola dos soccorros parochiaes; para estes, a quem
frequentemente faltam os objectos de primeira necessidade, a caixa
economica ķ como se nŃo existisse. Em tal situańŃo recommendar ao
obreiro a economia e a previsŃo fora cruel escarneo.
Mas que ha entre n¾s que tenha semelhanńa com tal estado de cousas? As
nossas fabricas sŃo poucas e acham-se ainda longe dos grandes
aperfeińoamentos. Por outra parte, nŃo havendo superabundancia de
brańos, os salarios sŃo razoaveis. N'uma nańŃo essencialmente agricola a
industria manufactora difficilmente preponderarß sobre a agricultura. Do
modo como a propriedade estß constituida, sendo avultadissimo o numero
dos proprietarios ruraes, e predominando a pequena cultura pela grande
divisŃo do solo, essa preponderancia ķ e serß por muito tempo
impossivel. A supremacia industrial dos ingleses devem-na estes, talvez
quasi exclusivamente, a que na Gran-Bretanha a terra, por assim dizer,
foge debaixo dos pķs ao homem de trabalho. Paiz classico dos
latifundios, os possuidores de vastos predios, ou os seus opulentos
rendeiros obtem facilmente simplificar as operań§es da cultura com
engenhosos e potentes machinismos, dispensando assim um grandissimo
numero de brańos, que vŃo augmentar a offerta dos que a industria fabril
utilisa. Essa, forcejando igualmente para os substituir pelas machinas,
ao que a obrigam as luctas interminaveis da concorrencia, acceita-os,
acceita-os sempre, mas com a condińŃo inevitavel do abaixamento
indefinido do salario. Em Inglaterra a agricultura, adiantadissima em
extensŃo, em intensidade, em instrumentos, e em copia de capital movel,
estß restricta a operar dentro dos limites do solo cultivado. O
principal instrumento de producńŃo, a terra aravel, nŃo p¾de
multiplicar-se. Quando a machina ou um novo systema agricola expulsa o
operario rural, expulsa-o para dentro das barreiras da industria fabril.
Para esta, ao contrario, o espańo onde labora ķ um dos menos importantes
elementos da sua existencia. Para produzir indefinidamente, s¾ carece de
uma condińŃo essencial; ķ a que a faz triumphar da industria das nań§es
rivaes, a do preńo inferior ao do producto alheio com igual valor da
utilidade. A machina, ou aperfeińoada ou nova, e a reducńŃo dos
salarios, ou o augmento de horas de trabalho, o que ķ perfeitamente
identico, sŃo os seus meios heroicos. NŃo lhe importa se o instrumento
homem se quebra, porque o renovarß sem custo no meio das multid§es
famintas. Vive de produzir barato, e os seus obreiros hŃo de viver de se
afadigarem em procura da morte. Cumpre que a industria inglesa triumphe
na batalha incessante que se peleja entre as nań§es industriaes, batalha
onde se nŃo vĻ o fuzilar da espingardaria, nem se ouve o troar dos
canh§es, mas descortina-se o revolutear do fumo das chaminķs monstruosas
e soa o murmurar confuso da machina e do homem que lidam: terrivel
batalha, onde nŃo corre sangue, mas corre o suor do trabalho, e depois o
suor da agonia.
D'esta situańŃo, exteriormente esplendida e interiormente violenta e
dolorosa, estamos n¾s bem longe. NŃo receiamos dizer que em Portugal
serß raro o operario vßlido que por meio de severa e intelligente
economia nŃo possa depositar annualmente na caixa economica alguns
cruzados, ou para occorrer a desgrańa imprevista, ou para crear um meio
de subsistencia na velhice, ou finalmente para adquirir a independencia
de proprietario. Com o modo de ser da populańŃo portuguesa, p¾de-se
prever que, diffundindo-se pelo reino as caixas economicas, a
estatistica destas serß bem differente da estatistica das de Inglaterra,
e ainda das de Franńa. Nestes dous paizes apenas a quarta parte das
quantias depositadas pertence aos operarios, e a classe que predomina
como credora dellas ķ a dos creados domesticos. Entre n¾s a proporńŃo
tem de vir a ser diversa. Os donos de pequenos predios, os seareiros, os
creados de lavoura, os operarios, nŃo s¾ de officinas, mas tambem de
fabricas, hŃo de provavelmente predominar. E se assim acontecer,
poderemos affirmar que a nańŃo progride largamente no caminho da
civilisańŃo material e moral.
Alguķm acharß, talvez, que estas sinceras esperanńas na futura
regenerańŃo economica do nosso povo sŃo contradictas pelo facto da
perfeita analogia que se dß entre a Franńa e a Inglaterra, em serem
tanto n'um como n'outro paiz as mesmas classes as dos depositantes nas
caixas economicas. Na Franńa, dir-se-ha, a divisŃo da propriedade ķ
facilitada atķ o ultimo ponto pelas leis, e o numero dos pequenos
proprietarios ķ proporcionalmente maior que em Portugal: a agricultura
tambķm lß predomina sobre a industria fabril; finalmente a situańŃo do
rendeiro e do trabalhador rural ķ mais semelhante ß dos nossos que ß dos
de Inglaterra. Como, pois, nŃo dŃo as caixas economicas na Franca
resultados estatisticos diversos dos que subministram os _saving's
banks_ ingleses? NŃo se deve concluir d'ahi que nŃo tem a influencia que
se lhes attribue, e vice-versa, que no seu progresso ou na sua
decadencia nŃo influe nem a situańŃo relativa das classes sociaes, nem o
estado da propriedade?
NŃo. A analogia dos dous paizes na desproporńŃo, contraria ß ordem
natural das cousas, entre os operarios e as outras profiss§es, em
relańŃo aos depositos nas caixas economicas, tem causas em parte
semelhantes, em parte diversas, mas iguaes nos resultados. As fabricas
francesas seguem o rapido progresso das inglesas, e nos grandes centros
industriaes da Franńa notam-se jß em larga escala a miseria e a
dissoluńŃo das cidades manufactoras da Gran-Bretanha. Lille, Mulhouse,
Rheims, RuŃo, reproduzem o triste quadro de perversŃo que apresentam as
classes laboriosas em Manchester, Birmingham, Leeds, Glasgow, etc. A
pobreza extrema, sem esperanńa e sem limites, jß ahi golfa tambem das
caldeiras de vapor. A industria individual tende rapidamente a
converter-se na industria, digamos assim, collectiva. A officina
desapparece diante da fabrica, o homem diante da machina. A questŃo de
saber se isto ķ, em absoluto, um mal ou um bem, relativamente aos
interesses geraes de qualquer paiz, nŃo a ventilaremos aqui; mas ķ
indubitavel que esse transtorno completo na forma do trabalho torna
altamente angustiosa a situańŃo dos operarios, e inhabilita-os para
depositarem nas caixas economicas sobras de salarios diminutos e
frequentes vezes interrompidos.
Por outra parte, o modo de ser dos bens de raiz em Franńa ķ exactamente
o contrario da indole da propriedade territorial em Inglaterra. O solo
inglĻs ķ, por assim dizer, um grande vinculo aristocratico; a Franńa um
vasto allodio popular. A terra neste paiz estß retalhada em cento e
vinte e cinco milh§es de chŃos ou courellas e tende a subdivir-se ainda
mais. DŃo-se casos jß em que o preńo da venda de uma parcella de terreno
pouco excede o total das despesas necessßrias para legalisar a
transmissŃo. Muitos homens pensadores comeńam a ter serios receios de
que a extrema divisŃo do solo venha a impossibilitar em certas
circumstancias uma cultura remuneradora; e ainda os que julgam estes
receios infundados confessam a conveniencia de uma lei que, distinguindo
na propriedade o seu modo de ser, quando este modo de ser importa ß
causa publica, do direito do individuo ß mesma propriedade, consinta em
todas as divis§es possiveis deste direito, mas prohiba que se retalhem
indefinidamente os pequenos predios. O systema dos _quinh§es_ do
Alemtejo, que tem uma razŃo de ser, mas que estß longe de ter a
importancia que teria quando applicado ßs glebas de moderada grandeza,
prova que a doutrina que distingue o modo de ser da propriedade do
direito de propriedade ķ reduzivel ß praxe. Em Franńa, porķm, fora
difficil entrar nesta senda que repugna a habitos inveterados da vida
civil da nańŃo. No estado actual das cousas alli, o lavrador
proprietario ou ainda o simples rendeiro acha facilidade em empregar
immediatamente na acquisińŃo de terras as suas economias, sem que lhe
seja necessario accumulß-las por largos annos nas caixas economicas.
Quatrocentos, duzentos, cem francos que, lhe sobejem, deduzidas as
despesas de cultura e domesticas, ķ quanto basta; lß encontra logo um
prado, uma courella, um cerradinho, que comprado e cultivado com esmero,
lhe produzirß um lucro maior que o limitado juro da caixa economica:
prefere, portanto, aquelle expediente. Para elle esta bella instituińŃo
torna-se realmente inutil.
Eis, quanto a n¾s, a explicańŃo da analogia entre a Franńa e a
Inglaterra pelo que respeita ß proporńŃo das diversas classes de
contribuintes das caixas economicas. A condińŃo dos operarios fabris ķ
semelhante nos dous paizes. Quanto ß populańŃo rural, essa, em
Inglaterra nŃo contribue, porque a sua situańŃo pouco melhor ķ que a do
obreiro da industria, e o proprietario da pequena gleba ķ uma excepńŃo
pouco vulgar; em Franńa, porque ķ facilimo para os pequenos capitaes o
transformarem-se em propriedade territorial. Assim naturalmente
explicada, essa analogia nŃo invalida as considerań§es anteriormente
feitas.
Em Portugal o caso ķ diverso. Entre n¾s o modo mais commum de possuir a
pequena propriedade ķ a emphyteuse. Para o sabermos nŃo precisamos de
estatistica: basta olhar ao redor de n¾s. Nas provincias do norte, pode
dizer-se, talvez, que ķ rara outra especie de propriedade. Sommados os
prazos, os vinculos, as vias publicas, os terrenos chamados _nullius_,
pouco faltaria para ter a medida superficial dessas provincias, e ainda
ao sul do reino sŃo por milhares os terrenos emphyteuticos tanto ruraes
como urbanos. Os vastos allodios s¾ predominam no Alemtejo, se ķ que os
vinculos lhes nŃo levam a palma. Ora a caracteristica da emphyteuse ķ
ser um meio termo entre o systema de propriedade em Inglaterra, que nŃo
passa, na essencia, de uma odiosa e anti-economica aggregańŃo de
morgados, e aquelle systema illimitadamente parcellario da Franńa, que
suscita as apprehens§es dos pensadores. A emphyteuse, collocada no meio
destes dous extremos, se for simplificada e constituĒda de um modo
accorde com as idķas e costumes das sociedades modernas, serß sempre uma
das mais sensatas e beneficas instituiń§es civis, e os seus resultados
immensos nas crises sociaes que despontam no horisonte. Radicada nos
habitos nacionaes, parece-nos que nŃo corre o perigo de ser abolida; mas
se alguem o tentasse e o obtivesse, faria um bem mau servińo ao seu
paiz. O prazo fateusim hereditario realisa o desejo, por tantos
manifestado em Franńa, de que os terrenos que por successivas divis§es
desceram a um limitado perimetro, passassem indivisos, sem que por isso
deixasse de ser divisivel o direito de propriedade sobre elles.
╔ n'um paiz assim, se nos nŃo enganamos, que a vantagem da existencia de
caixas economicas ķ immensa. Em geral os prazos de certa grandeza
excedem em valor as economias annuaes que qualquer lavrador mediocre ou
seareiro pode realisar; mas estas economias, accumuladas por alguns
annos, bastarŃo nŃo raro para a acquisińŃo de um desses prazos, que
diversas causas tŃo frequentemente attrahem ao mercado. Quem conhece os
habitos do homem do campo sabe que, poupado durante a maior parte do
anno, porque os recursos lhe nŃo sobejam, quasi sempre desbarata uma
porńŃo do producto do seu suor na occasiŃo das colheitas. Pagos as
rendas, f¾ros e impostos, reservadas as sementes, provida a sua parca
dispensa, acha-se ainda com sobras mais ou menos avultadas. Illude-se
entŃo por alguns dias e supp§e-se rico. Quer gosar; e essas sobras, que
poderiam constituir lentamente um peculio consideravel, vŃo-se em luxo e
em festas, quando nŃo no jogo, na embriaguez ou na devassidŃo. Se
houvesse, porķm, um estimulo de cubińa que lhe excitasse o animo, essas
sobras assim malbaratadas converter-se-hiam em capitaes uteis, e tanto
mais uteis quanto, pertencendo ao mesmo homem de trabalho, iriam
fecundar duplicadamente a terra.
Depois, n'um paiz cuberto de baldios, para promover cuja cultura ķ
impossivel se nŃo olhe seriamente quando posermos treguas ß furia das
nossas paix§es politicas, qual nŃo deve ser o fructo das caixas
economicas?! Hoje, se estes baldios se offerecessem gratuitamente,
libertando de todos os impostos directos quem os cultivasse,
achar-se-hiam, provavelmente, muitos que se aproveitassem do beneficio.
Mas, quem seria? Os grandes proprietarios e lavradores e alguns dos
raros argentarios que as dońuras do agio nŃo trazem captivos. Os
pequenos cultivadores, os rendeiros, os seareiros, aquelles, em summa,
que, mais que ninguem, importaria se convertessem em proprietarios do
solo, esses justamente ķ que ficariam no maximo numero excluidos,
porque, por mais diminuto que supponhamos o cabedal necessario para o
arroteamento de poucas geiras quando ķ o pr¾prio dono que o faz, sempre
deve ser algum, e as classes trabalhadoras nŃo possuem capitaes nem
grandes nem pequenos. ╔ evidente, porķm, que as caixas economicas,
estabelecidas, propagadas, favorecidas por todos aquelles que podem e
devem fazĻ-lo, preparariam os elementos necessarios para, com verdadeira
utilidade social, se poder tomar tŃo importante providencia.
Hoje entende-se que o melhor instrumento de moralisańŃo e de ventura
social consiste em derramar entre o povo o desejo da independencia e o
amor da propriedade, associando por esse modo o capital ao trabalho em
vez de os conservar em mutua hostilidade, como infelizmente os vemos. Se
os modestos peculios se forem successivamente alistando no campo do
trabalho, este ha de frequentes vezes triumphar dos capitaes, embora de
maior vulto, mas combatendo isolados. Supponhamos que o rico concorre
com o homem do povo para adquirir a courella, o prazo, a pequena vinha,
o pequeno olival que se levou ao mercado. O primeiro calcula que somma
lhe serß necessaria para instrumentos, para sementes, para pagar aos
obreiros que hŃo de amanhar o predio, e ķ por este calculo e pelo lucro
comparado com o de outras applicań§es do seu dinheiro, que se regula
para determinar o maximo que pode offerecer. O homem de trabalho, porķm,
que tiver o sufficiente para viver atķ as primeiras colheitas, e
occorrer a poucas despesas prķvias que nŃo pode evitar, nŃo compara
lucros com lucros, nŃo conta com os obreiros. Dono e obreiro ķ elle;
sŃo-no a mulher e os filhos. O lavor da familia valerß o dobro do
trabalho salariado que paga o rico, e o primeiro lucro do trabalhador
proprietario serß o seu jornal e o dos seus, ganho no proprio campo. P§e
o signal de _mais_, por assim nos exprimirmos, onde o abastado p§e o
signal de _menos_. Do operario rural quando trabalha no seu predio
costumam dizer os outros: ½_anda comsigo_╗, expressŃo admiravel de
exacńŃo economica. ╔ isto que explica o phenomeno geralmente observado,
de, no mercado, o valor proporcional da propriedade rustica ser na razŃo
inversa da respectiva grandeza. O que nŃo serĒa, se o homem do campo de
humilde condińŃo poupasse tudo quanto desbarata!
Sinceramente confessamos que o unico meio simples, exequivel, pacifico,
nŃo de cohibir os abusos do capital pela negańŃo das suas funcń§es
economicas, e pela condemnańŃo da propriedade; mas de o cohibir nos
excessos com que muitas vezes opprime o operario, consiste em habilitar
este para se transformar de proletario em modesto proprietario. O
estabelecimento e o progresso das caixas economicas ķ o instrumento mais
poderoso de quantos se poderiam excogitar para obter, sem offensa de
nenhuns direitos e sem convuls§es sociaes, tŃo salutar resultado.
Que, pois, todos aquelles que se condoem das miserias populares: que
desejam ver augmentada a prosperidade publica, reformarem-se os
costumes, enraizar-se no animo do povo o aferro ao solo natal, protejam
por quantos modos souberem esta bella instituińŃo. Exigem-no o
christianismo, a philosophia, a moral e a politica. Que as tres grandes
forńas intellectuaes da sociedade, o sacerdocio do altar, o sacerdocio
da imprensa e o sacerdocio da eschola se liguem para esta grande obra de
civilisańŃo. Serß trahirem a sua missŃo negarem-se a fazĻ-lo; porque a
idķa a cuja realisacŃo tendem as caixas economicas ķ, embora ao primeiro
aspecto o nŃo pareńa, um consectario do evangelho, da philosophia e da
boa politica. Essa idķa ķ a manifestańŃo da caridade judiciosa, porque
se encaminha a combater os vicios e a miseria, e a alargar a esphera da
liberdade humana, contribuindo para a assegurar ßs classes laboriosas,
tantas vezes escravas da necessidade do salario. A liberdade pode
facilmente ser theoria, pode ser doutrina proclamada na constituińŃo de
qualquer paiz; facto, realidade, s¾ o pode ser onde a maioria dos
cidadŃos possuam com que serem independentes.
Que a experiencia das nań§es extranhas nos aproveite; que o pudor do
patriotismo nos incite. Jß que fomos a ultima nańŃo da rańa latina em
plantar entre n¾s esta instituińŃo bemfazeja, nŃo nos deshonremos
deixando-a logo definhar. Passariamos aos olhos do mundo attonito por
barbaros, e todos os nossos protestos de querermos o melhoramento moral
e material do paiz seriam havidos por hypocrisia insigne. Sem civilisar,
morigerar e felicitar as classes populares, todo o progresso ķ futil.
Dirigimos estas ponderań§es especialmente ß classe media e ao clero.
Naquella reside a illustrańŃo, a riqueza e verdadeiramente o poder; nas
mŃos deste a preponderancia que dß o predominio sobre as consciencias.
Que tanto uma como outro usem da sua influencia para attrahir o povo ao
caminho da previsŃo, da economia e das legitimas ambiń§es e esperanńas.
NŃo s¾ elle, hoje rude, pobre e inclinado a vicios ignobeis, lucrarß com
isso; mas tambem as classes mais elevadas ganharŃo na paz e ordem
publicas, que se irŃo firmando ß proporńŃo que as classes inferiores se
melhorarem nos costumes e na ventura domestica. Empreguemos o exemplo e
a persuasŃo: uns poucos de cruzados postos nas caixas economicas nŃo
produzirŃo, de certo, vantagens apreciaveis para o que possue uma
fortuna avultada ou ainda mediana; mas fructificarŃo para o povo,
gerando a confianńa e despertando nelle o instincto da imitańŃo.
Conspiremos todos para esta grande catechese; e que n'um paiz, onde o
habito da leitura ainda ķ limitadissimo, a persuasŃo oral, as relań§es
de familia ou de dependencia ajudem as diligencias da imprensa nesta
obra de alta moralidade. Deus abenńoarß os obreiros que semeiarem e
cultivarem essa rica sementeira de regenerańŃo na terra patria; e o
povo, com a sua futura gratidŃo, darß testemunho da benńam da
Providencia.
[Nota de rodapķ 2: O sr. Antonio de Oliveira Marreca.]
[Nota de rodapķ 3: A associańŃo do Monte-pio geral.]
AS FREIRAS DE LORV├O
*1853*
A
ANTONIO DE SERPA PIMENTEL
Meu amigo.--Escrevo-lhe do fundo do estreito valle de LorvŃo, defronte
do mosteiro onde repousam as filhas de Sancho I; deste mosteiro
melancholico e mal-assombrado como as montanhas abruptas que o rodeiam
por todos os lados: escrevo-lhe com o corańŃo apertado de d¾ e repassado
de indignańŃo. Descendo a examinar o archivo das pobres cistercienses,
penetrei no claustro por ordem da auctoridade ecclesiastica. Lß dentro,
nesses corredores humidos e sombrios, vi passar ao pķ de mim muitos
vultos, cujas faces eram pallidas, cujos cabellos eram brancos. Esses
cabellos nem todos os destingiu o decurso dos annos: a amargura
embranqueceu os mais delles. Quasi todas essas faces tem-nas
empallidecido a fome. Morrem aqui lentamente umas poucas de mulheres,
fechadas n'uma tumba de pedra e ferro. Estas mulheres ouvem de lß, do
seu tumulo, o ruido do burgo apinhado na encosta fronteira, e dividido
do mosteiro apenas por um riacho. Naquellas casas de telha-van, negras,
gretadas, desaprumadas, com o aspecto miseravel da maior parte das
aldeias da Beira, vive uma populańŃo laboriosa, que atķ certo ponto se
pode chamar abastada, e a que, pelo menos, nŃo falta o pŃo nem a
alegria. No mosteiro sumptuoso, vasto, alvejante, com um aspecto
exterior quasi indicando opulencia, ķ que nŃo ha pŃo, mas s¾ lagrymas.
LorvŃo ķ peior do que um carneiro onde se houvessem mettido vinte
esquifes de catalepticos, sellando-se para sempre a lagea da entrada. O
cataleptico, fechado no seu caixŃo, ouve, sente, tem a consciencia de
que foi sepultado vivo. Nas trevas e na immobilidade, o terror, a
desesperańŃo, a falta de ar matam-no em breve: a sua agonia ķ tremenda,
mas nŃo ķ longa. Aqui ķ outra cousa: aqui vĻ-se, por entre as grades de
ferro, a luz do cķu, a arvore que dß os fructos, a seara que dß o pŃo, e
tudo isto vĻ-se para se ter mais fome. Todos os dias uma esperanńa
duvidosa e fugitiva atravessa aquellas grades de envolta com os
primeiros raios do sol: todos os dias essa esperanńa fica sumida debaixo
das trevas que ß tarde se precipitam sobre LorvŃo das ladeiras do
poente. Depois as noites de insomnia; depois o choro; depois, sabe Deus
se a blasphemia!
Dez vezes que tenhamos lido o Dante, ao chegarmos ß descripńŃo da torre
de Ugolino errińam-se-nos sempre os cabellos. Mas LorvŃo ķ uma torre de
Ugolino. A differenńa estß em que no carcere da _Divina Comedia_ havia
um homem forte de alma e de corpo, affeito ß dor e ßs scenas de d¶r:
aqui ha dezoito ou vinte mulheres na idade decadente, que se affizeram
na juventude aos commodos, aos regalos, e atķ ao luxo compativel com as
condiń§es da vida monastica. Lß o _fiero pasto_ acabava, e depois
morria-se rapido. Aqui nŃo: aqui ha justamente quanto basta para
prolongar por mezes e por annos o martyrio. Dir-se-hia que existe uma
providencia infernal para que nŃo falte ßs freiras de LorvŃo o
restrictamente indispensavel para, lento e lento, se lhes irem os
membros mirrando n'um longo expirar, debeis e senis.
Imagine, meu amigo, uma noite de inverno, no fundo desta especie de pońo
perdido no meio da turba de montes que o rodeiam: imagine dezoito ou
vinte mulheres idosas, mettidas entre quatro paredes humidas e
regeladas, sem agasalho, sem lume para se aquecerem, sem pŃo para se
alimentarem, sem energia na alma, e sem forńas no corpo, comparando o
passado, sentindo o presente e antevendo o futuro. Imagine o vento que
ruge, a chuva ou a neve fustigando as poucas vidrańas que ainda restam
no edificio; imagine essas orgias tempestuosas da natureza que passam
por cima das lagrymas silenciosas das pobres cistercienses, e as horas
eternas que batem na torre. Imagine tudo isto, e sentirß accender-se-lhe
no animo uma indignańŃo reconcentrada e inflexivel.
Ha poucos dias passou-se em LorvŃo uma scena tremenda. N'um accesso de
desesperańŃo, parte destas desgrańadas queriam tumultuariamente romper a
clausura; queriam ir pedir pŃo pelas cercanias. Custou muito contĻ-las.
Tinha-se apoderado dellas uma grande ambińŃo; aspiravam ß felicidade do
mendigo, que p¾de appellar para a compaixŃo humana; que p¾de fazer-se
escutar de porta em porta. Era uma vantagem enorme que obtinham. A sua
voz ķ demasiado fraca, e os muros de LorvŃo demasiado espessos. Gemidos,
brados, prantos, tudo ķ devorado por esse tumulo de vivos. Ao menos,
surgiam como Lazaro da sua sepultura.
Gemidos, brados, prantos, nada disso chega aos ouvidos dos homens que
exercem o poder nesta terra; nada disso os incommoda. Entretanto, se eu
falasse com elles, dar-lhes-hia um conselho. Talvez o ouvissem, porque a
minha voz ķ um pouco mais forte que a das velhas freiras. Era o de
enviarem aqui sessenta soldados, formarem as monjas de LorvŃo em linha
no adro da igreja e mandarem-lhes dar trĻs descargas cerradas.
Desapparecia, a troco de poucos arrateis de polvora, um grande
escandalo, e resolvia-se affirmativamente um problema a que nunca achei
senŃo soluń§es negativas, o da utilidade da forńa armada neste paiz.
Sim, isto era util, porque era atroz; porque era uma festa de cannibaes;
porque se gravava na mente dos homens; porque ficava na historia, como
um padrŃo maldicto, para instaurar no futuro o processo desta gerańŃo.
Mas nŃo era infame, nŃo era covarde; nŃo era o assassinio lento,
obscuro, atraińoado, feito com a mordańa na boca das victimas. Corria o
sangue durante alguns minutos: nŃo corria o suor da agonia durante
annos. Era uma scena de delirio revolucionario; mas nŃo era um capitulo
inedito para ajunctar aos annaes tenebrosos do sancto officio.
A historia recente de LorvŃo ķ simples. Os bens acumulados naquelle
cenobio durante dez seculos tinham-no tornado demasiadamente rico. A sua
renda annual dizem que orńava por mais de oitenta mil cruzados. Como
mosteiro cisterciense, LorvŃo dependia dos monges brancos. Cem freiras
de que se compunha a communidade, e que viviam opulentamente, gastavam
muito, mas nŃo gastavam tudo. Cinco frades bernardos, aposentados n'um
palacete contiguo ao mosteiro, consumiam o resto. Eram elles que
administravam as grossas rendas da casa. Os banquetes e as festas
succediam-se alli sem interrupńŃo. Os hospedes eram continuos. O manto
da religiŃo cobria todos os excessos da opulencia. A chronica dos
bernardos em LorvŃo subministra mais de um capitulo curioso para a
historia dos _bons tempos_ que jß lß vŃo.
Atķ aqui nada ha extranho. Mas os frades entenderam que deviam comer a
renda e o capital das cenobitas laurbanenses. Refere-se que certa vez,
nŃo sabendo explicar plausivelmente o dispendio de uma verba de 600$000
rķis, escreveram n'umas contas irrisorias que mostravam annualmente ß
abbadessa: _Palitos--600$000 rķis_. Pode ser fabula. O que, porķm, nŃo ķ
fabula ķ que durante muitos annos o dinheiro das decimas que o mosteiro
devia pagar esqueceu em Alcobańa, dando-se em conta como pago. Por outro
lado as _necessidades da casa_ tinham feito com que suas reverencias
empenhassem a communidade em 6:000$000 ou 8:000$000 rķis. Os juros desta
divida tambķm se nŃo pagaram. Veio o anno de 1833. Desappareceram os
dizimos, principal rendimento do mosteiro. Os direitos senhoriaes
desappareceram tambem. Os frades, enxotados do seu feudo de LorvŃo,
sairam d'alli, mandando primeiramente derribar todas as arvores que
povoavam aquellas encostas e vendendo as madeiras. Era o ultimo _vale_
que davam a suas irmŃs. Ainda assim, ficava ßs monjas uma honesta
subsistencia. Passado, porķm, apenas um anno, o fisco arrebatou-lhes
quasi tudo pela divida de 25 contos de rķis de decimas, e os credores
particulares levaram-lhes depois os demais bens. Restavam-lhes apenas
alguns pequenos foros espalhados por diversos districtos, os quaes
geralmente lhes sŃo recusados, ou cuja difficil cobranńa quasi consome o
producto delles. Vacillantes entre a vida e a morte, as freiras de
LorvŃo prolongam uma existencia de d¶r e miseria pendente das
eventualidades desse tenue rendimento. Ha um ou dous annos, o governo
deu-lhes a esmola de um subsidio: este subsidio, porķm, cessou.
Ignora-se o motivo. Por ventura alguma secretaria de estado precisava de
novos estofos nas suas commodas poltronas, ou os felpudos tapetes das
salas ministeriaes tinham perdido o brilho das suas c¶res variegadas, e
cumpria renovß-los. SŃo despezas inevitaveis, e ķ necessaria a economia.
Se assim foi, respeitemos as exigencias imperiosas da dignidade
governativa. Alta noite, durante o inverno, vinte mulheres curvadas pela
inedia e pela velhice podem dirigir-se ao coro, calcando quasi descalńas
as lageas humidas e frias destes claustros solitarios; mas as botas
envernizadas de suas excellencias devem ranger mollemente sobre um
pavimento suave, e as suas cabeńas, afogueiadas pelas profundas
cogitań§es, reclinarem-se em fofos espaldares. Todavia a magestade das
secretarias e os apices da economia nŃo excluem a tolerancia, nem a
indulgencia. Fańo essa justińa ao poder. Quando a ultima freira de
LorvŃo expirar de miseria, ou debaixo de alguma dessas paredes
interiores do mosteiro que ameańam desabar, os ministros soffrerŃo com
animo paternal que mŃos piedosas vŃo lanńar o cadaver da pobre monja no
ossuario de sete seculos, onde repousam as cinzas de milhares de suas
irmŃs. Depois venderŃo o edificio e a cerca a algum destes judeus do
seculo XIX, a que chamamos agiotas, se algum houver a quem passe pelo
espirito ter uma casa de campo em LorvŃo.
Meu amigo: se a indignańŃo consentisse o riso, se nŃo se tractasse de
uma questŃo grave e triste, eu riria do afan da imprensa em ventilar os
meios de acudir ß desgrańada ilha da Madeira. O remedio ha de ser o
abandono. Quando vejo a facilidade com que a sorte das freiras de
Portugal se tornaria feliz, e considero o estado de LorvŃo, de Cellas, e
de tantos outros mosteiros, como hei de esperar que remedeiem um mal
cuja cura ķ mil vezes mais difficil?
Na secretaria da justińa encontram-se as provas de que a renda dos bens
que ainda possuem os conventos do sexo feminino em Portugal excede a
200:000$000 rķis, e todavia ha centenares de freiras que morrem ß
mingua. SŃo dous factos que nŃo carecem de commentario. ╔ a manifestańŃo
mais eloquente de que nŃo ha governo nesta terra. Existem mosteiros,
cujas habitadoras vivem na opulencia, e onde o superfluo se desbarata de
um modo escandaloso. NŃo digo quaes. E para que apontß-los? Aposto meia
moeda, uma moeda atķ, contra mil acń§es da companhia Hislop, que se
lembravam logo de reduzir esses mosteiros ß mendicidade para fazerem com
o rendimento delles sessenta coroneis e duas secretarias de estado
novas. Antes assim como estß. Defendiam-nos mais, e administravam-nos
mais. Deus nos livre disso!
╔ certo, porķm, que para as freiras de LorvŃo viverem tranquilamente os
seus ultimos dias, bastava que nos homens do poder tivesse existido um
leve instincto de equidade. Os frades de Alcobańa roubaram 25:000$000
rķis a LorvŃo. Eram responsaveis por elles. A sua responsabilidade
passou para o fisco seu herdeiro e successor. As decimas de LorvŃo
deviam ir buscar-se aos bens de Alcobańa, logo que se provasse que
Alcobańa espoliara fraudulentamente LorvŃo. Averiguou-se o facto? NŃo. O
fisco executou as freiras, e recebeu duas vezes a mesma divida. Onde
houvesse moralidade na administrańŃo publica practicava-se isto?
Mas porque o importuno com esta larga historia? NŃo ķ, meu amigo, s¾
para desabafo: ķ para lhe pedir um favor. Supponha que viu, como eu vi,
as faces enrugadas e pallidas das monjas de LorvŃo, por onde as lagrymas
se penduravam quatro a quatro, emquanto vozes convulsas descreviam
scenas do longo drama de miseria de que este sepulchro de vivos tem sido
theatro durante vinte annos: supponha que olhava para estas janellas mal
reparadas, para estas paredes verdoengas, cujo aspecto produz um
sentimento inexplicavel de frio, apesar do calor da atmosphera n'um dia
de julho; para as alfaias rońadas e poĒdas; para os proprios trajos das
freiras; que lia em tudo isso, repetida por cem modos, uma palavra s¾:
_infortunio, infortunio, infortunio_! Que fazia? Com o seu corańŃo, com
os seus principios, e redactor de um jornal que tem largas sympathias,
sentia-se grande e forte pondo a sua penna eloquente ao servińo da
desgrańa e da fraqueza. Fańa-o, meu amigo; fańa-o! Peńa esmola para as
freiras de LorvŃo, que foram ricas e felizes na mocidade, e que na
velhice tem fome. A velhice ķ sancta! Ponha esse contraste do passado e
do presente perante os olhos dos opulentos e ditosos, para que se
lembrem com alguns cruzados das pobres que gemem debaixo destas abobadas
escondidas no meio dos montes ladeirentos e agrestes do concelho de
Penacova. Ao governo nŃo peńa nem diga nada; deixe esses homens ao seu
destino; deixe-os estofar poltronas e dormir nellas. Deus e os vindouros
hŃo de julgar-nos a todos.
Se entender que esta carta de uma testemunha ocular p¾de servir de thema
ßs suas considerań§es, publique-a. O homem que vĻ o que eu vi e abafa no
peito o grito da indignańŃo ou ķ um malvado ou um covarde, e eu espero
nŃo merecer jßmais nenhum desses titulos. Imprima esta carta no todo ou
em parte, se quizer; porque folgarei com isso. O que importa ķ ver se
obtemos despertar a compaixŃo publica a favor destas infelizes.
Auctorisando-o, porķm, a publicar as idķas que me assaltaram ao
presenciar o espectaculo atroz e repugnante que estß diante de mim,
advirta que nŃo ha nisso nem virtude, nem audacia. Incommodam-me
mediocremente as coleras de certa gente, e a malevolencia ou antes o
odio della ķ titulo que aprecio, porque creio que ha de honrar perante a
posteridade quem quer que o possuir, se ķ que este paiz nŃo caminha
fatal e irremediavelmente ß dissoluńŃo social.
DO ESTADO
DOS
ARCHIVOS ECCLESIASTICOS DO REINO
E DO
DIREITO DO GOVERNO
EM
RELAŪ├O AOS DOCUMENTOS AINDA NELLES EXISTENTES
PROJECTO DE CONSULTA
SUBMETTIDO ┴
SEGUNDA CLASSE DA ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS
*1857*
Senhor.--Manda V. M. que a Classe de sciencias moraes, politicas e
bellas-letras da Academia Real das Sciencias de Lisboa consulte sobre as
representań§es dirigidas a V. M. por diversas corporań§es
ecclesiasticas, que recusara obedecer ß portaria de 11 de setembro de
1857 pela qual se ordenou a entrega de certos documentos antigos
pertencentes aos cartorios dessas e d'outras corporań§es, para serem
depositados no Archivo nacional da Torre de Tombo, onde tem de ser
examinados, a fim de se transcreverem aquelles que se reputarem dignos
de entrar na collecńŃo dos Monumentos Historicos de Portugal, que esta
Classe estß publicando, e que se tornou pela ultima lei do orńamento uma
obra verdadeiramente nacional, visto que a sua existencia se estriba
hoje n'uma providencia legislativa.
Examinando a portaria de 11 de setembro e as representań§es que ella
suscitou, a Classe nŃo p¾de deixar de deplorar que um acto do poder
executivo em que s¾ transluz o amor das letras e o patriotismo
illustrado e circumspecto do Governo de S. M. encontrasse resistencias,
ßs quaes se buscaram pretextos, que nem sequer tem o merito de
plausiveis, e que ao mesmo tempo envolvem affirmativas erroneas de
doutrina e de facto, que esta Classe, pertencendo a um dos primeiros
corpos scientificos do paiz, nŃo deve deixar sem correctivo, atķ porque
foi ella, nŃo s¾ quem sollicitou a transferencia d'aquelles documentos,
mas tambķm quem aconselhou a sua conservańŃo no Archivo geral do reino,
circumstancia esta que, diante de inexplicaveis resistencias, a forńam,
bem contra sua vontade, a dar as raz§es que a moveram a suggerir esse
ultimo arbitrio ao Governo de V. M.
Dos papeis transmittidos ß Classe por soberana resoluńŃo de V. M.,
comparados com as communicań§es dos commissarios encarregados da
recepńŃo dos antigos pergaminhos indicados pela Classe, resulta que
nenhum prelado diocesano recusou entregar os documentos que foram
pedidos dos archivos das respectivas mitras, ou de outros immediatamente
dependentes dos mesmos prelados. Provaram assim que comprehendiam, como
o Governo e o Parlamento o haviam comprehendido, a magnitude e o valor
do trabalho que a Academia emprehendera, provando igualmente que o
episcopado portuguĻs nŃo degenerou, e que o baculo pastoral dos Caetanos
Brand§es, dos Cenaculos, dos Avellares, dos Lemos, dos S. Luiz nŃo cahiu
em mŃos indignas delle. A Classe compraz-se em poder dar um testemunho
de agradecimento em nome das letras a quem tŃo nobremente sabe conciliar
a dignidade do caracter episcopal com o reconhecimento do direito do
Governo, e com o sentimento da gloria litteraria que resulta para o paiz
da publicańŃo dos seus monumentos historicos, empreza que jß ķ
devidamente apreciada, nŃo s¾ entre n¾s, mas tambem pelos homens
competentes de outras nań§es da Europa.
Do mesmo modo resulta dos documentos officiaes remettidos pelo Governo ß
Academia e das communicań§es dos agentes desta, que umas corporań§es se
mostraram promptas a obedecer ao Governo, que outras desobedeceram,
limitando-se a declarar oficialmente aos agentes da Academia o motivo do
seu proceder, e que outras desobedeceram e representaram a V. M. VĻ-se
d'aqui que entre ellas ha desacordo sobre a extensŃo dos respectivos
direitos, e que algumas entendem, e bem, como os prelados maiores, que o
Governo nŃo ultrapassou os limites das suas attribuiń§es.
Para poder apreciar devidamente os fundamentos da resoluńŃo tomada por
algumas das corporań§es de mŃo-morta, de que resultaria tornar-se
impossivel a continuańŃo de um trabalho que hoje a lei f¾rńa o Governo e
a Academia a realisar, cumpre expor o estado da questŃo e reunir as
objecń§es ao cumprimento da portaria de 11 de setembro, oferecidas nas
diversas representań§es recebidas pelo Governo e communicadas ß
Academia, e nas respostas que foram dirigidas officialmente ao agente
desta nas provincias do norte. NŃo podendo qualificar-se o acto das
corporań§es que recusaram fazer a entrega sem recorrer a V. M., senŃo de
pura e simples desobediencia, a Classe abstem-se de indicar qual deva
ser em tal caso o procedimento do executivo, encarregado de cumprir as
resoluń§es do poder legislativo. O Governo de V. M. sabe perfeitamente
qual ķ neste caso, nŃo s¾ o seu direito, mas tambem o seu dever. Todavia
a Classe nŃo p¾de deixar de se fazer cargo dos motivos de recusa que
directamente lhe foram dados, e conjunctamente d'aquelles sobre que ķ
mandada consultar.
A Academia pela Classe de sciencias moraes, politicas e bellas letras
sollicitou a vinda a Lisboa dos documentos anteriores ao anno de 1280
que existiam, nŃo s¾ nos cartorios dos extinctos mosteiros, mas tambķm
nos das corporań§es de mŃo-morta nŃo abolidas, pedindo ao mesmo tempo,
para maior seguranńa desses documentos, e para evitar uma
responsabilidade que lhe era inutil tomar, que fossem depositados no
Archivo geral do reino, aonde os academicos encarregados da publicańŃo
dos Monumentos Historicos podiam, sem incommodo grave, ir fazer a
escolha e os mais trabalhos necessarios ßcerca dos que se achasse que
deviam entrar naquella collecńŃo. A Classe possuia jß a este tempo um
inventario succinto de todos os documentos anteriores a essa data, que
ainda existem nos archivos dos districtos centraes e septemtrionaes do
reino, e que montam a alguns milhares. Este inventario fora feito por
um commissario da Academia com auctorisańŃo do Governo, nos annos de
1853 e 1854.
A correspondencia deste commissario, no desempenho das funcń§es que lhe
tinham sido commettidas, e em conformidade das instrucń§es que lhe
haviam sido dadas, fez conhecer ß Classe qual era o deploravel estado da
maior parte dos cartorios, nŃo s¾ das corporań§es extinctas, mas tambem
das existentes. A perda de antigos documentos, quanto ao passado, era jß
immensa, e podia prever-se qual seria quanto ao futuro, conservando-se
as cousas no estado em que se acham. Convencida de que fazia um bom
servińo ao paiz aconselhando o Governo a que conservasse no Archivo
geral do reino os documentos chamados a Lisboa, depois de examinados e
utilisados litterariamente, a Academia nŃo hesitou em fazĻ-lo;
absteve-se porķm de fundamentar com os factos de que adquirira
conhecimento um conselho, na verdade nŃo pedido, mas que o seu caracter
de corpo litterario official lhe impunha o dever de dar em materia de
sua competencia. Procurava assim evitar ßs corporań§es existentes o
desgosto que a narrativa de certos factos, que podiam vir a ser
publicos, devia causar-lhes, e ao mesmo tempo precaver a continuańŃo de
perdas irreparaveis. Entretanto, como o fim que entŃo se propunha, e que
hoje se prop§e, era o estudo e escolha desses documentos para continuar
o trabalho que encetara, deixou ao prudente arbitrio do Governo ponderar
se conviria mais restituir os documentos enviados ß Torre do Tombo, se
conservß-los alli, propondo a V. M. a resoluńŃo mais conveniente.
A portaria de 11 de setembro de 1857 nŃo ķ outra cousa senŃo a
reproducńŃo deste pensamento da Academia, abrańado pelo Governo de V. M.
Expondo summariamente as raz§es que ha para se conservarem de futuro na
Torre do Tombo os documentos pedidos, o ministro dos negocios
ecclesiasticos e de justińa limitou-se comtudo a ordenar em nome de V.
M. a entrega delles, reservando para tempo opportuno resolver se devem
ser alli conservados ou restituidos aos cartorios das corporań§es.
VĻ-se, pois, que nessa parte as representań§es eram licitas, e ķ atķ
possivel que as ponderań§es a favor da restituińŃo fossem de ordem tal
que movessem o animo de V. M. a ordenß-la. Isto, porķm, nŃo dispensava
as corporań§es de obedecerem quanto ß entrega e ao deposito temporario
no Archivo nacional, que era por entŃo o que preceptivamente se
estatuia. Quanto a este ponto, nenhuma opposińŃo plausivel se poderia
fazer, e as recusas dirigidas officialmente ao commissario da Academia
constituem nessa parte, como jß se notou, uma desobediencia formal.
E esta desobediencia ķ tanto mais grave quanto ķ certo que se o Governo
de V. M. nŃo procurasse reprimi-la, della resultaria, nŃo s¾ a
impossibilidade de se cumprirem as resoluń§es do Parlamento, mas tambem
grande descredito para qualquer ministro que tolerasse semelhantes
obstaculos ß continuańŃo de uma empreza que, por nos servirmos da phrase
de um de dos maiores sabios da Franńa, constituirß um dos tĒtulos mais
gloriosos do reinado de V. M.
A Classe lamenta que taes resistencias venham de corporań§es parte das
quaes sŃo compostas de individuos em quem se deve suppor maior ou menor
educańŃo litteraria, e que, em relańŃo ß sociedade civil, sŃo
verdadeiros funccionarios publicos. NŃo era por certo de esperar que,
tanto nas representań§es dirigidas a V. M., como nas respostas dadas ao
agente da Academia, se encontrasse tŃo singular esquecimento do direito
publico antigo e moderno do paiz, transtorno tŃo completo das boas
doutrinas, tŃo inexacta exposińŃo de factos, e atķ accusań§es tŃo
offensivas contra a Academia, que V. M. relevarß por certo que esta
Classe, repellindo-as, seja talvez sobradamente severa.
As ponderań§es feitas e os factos allegados, tanto nas representań§es
dirigidas a V. M., como nas respostas officialmente dadas ao commissario
da Academia, resumem-se no seguinte:
Diz uma das corporań§es que nŃo pode convir na alheańŃo dos antigos
documentos do seu cartorio, porque na maxima parte sŃo comprovativos de
contractos onerosos, e quando o nŃo sejam, illustram esses contractos, e
que a portaria de 11 de setembro alheia a favor do Archivo da Torre do
Tombo documentos que sŃo propriedade da mesma corporańŃo.
Diz outra: que a portaria encerra uma determinańŃo inteiramente nova e
contraria ß practica atķ hoje seguida.
Declara ao mesmo tempo, n'um officio ao commissario da Academia, que
para o exame de qualquer documento no seu archivo ķ indispensavel
licenńa regia e uma ordem do prelado ordinario; mas que para se tirarem
documentos seriam necessarias ou uma lei que dispensasse as formalidades
do esbulho da propriedade, ou sentenńa do poder judicial.
Outras duas corporań§es limitam-se a dizer em officios ao dito
commissario que a portaria de 11 de setembro offende o direito de
propriedade, e que recusam a entrega por terem representado sobre esse
assumpto ao Governo de V. M., representań§es que esta Classe nŃo p¾de
apreciar porque nŃo lhe foram communicadas.
Duas corporań§es monasticas do sexo feminino declaram, emfim, nŃo
poderem entregar os dictos documentos por causa dos inventarios dos seus
bens a que se estß procedendo por ordem do Governo, em virtude de
resoluńŃo de Cortes.
As outras corporań§es mostram-se todas promptas a obedecer ßs ordens de
V. M.
Senhor, os membros da Classe de sciencias moraes, politicas e bellas
letras nŃo podem deixar de dizer a V. M. com o respeito devido ao chefe
do estado, mas com a liberdade de homens de letras, que ķ impossivel
acumular mais desvarios do que os que se lĻem nos documentos acima
substanciados. Elles provam peremptoriamente a necessidade de uma
profunda reforma no systema da educańŃo do clero, e de vigilancia da
parte do Governo sobre o modo como sŃo providos os beneficios
ecclesiasticos.
Predomina, em geral, nos documentos que temos presentes uma certa somma
de idķas, nŃo sabemos se astutas, mas sem duvida falsas. ╔ uma dellas a
confusŃo dos bens administrados pelas corporań§es com os titulos
primitivos dos mesmos bens, confundindo-se igualmente esses titulos
primitivos com os actuaes; os que podem ter uma utilidade practica na
administrańŃo ou no foro com os que s¾ em casos rarissimos servirŃo para
fortificar ou esclarecer o testemunbo d'est'outros. Posses immemoriaes,
tombos incomparavelmente mais modernos do que os pergaminhos anteriores
ao seculo XIV, contractos de epochas posteriores, mais ou menos
recentes, eis os verdadeiros documentos de uso practico, que se
conservam nos cartorios das corporań§es. E se esses pergaminhos antigos
tem a utilidade material que se lhes attribue, as corporań§es devem
possuir Ēndices regulares que apontem em substancia o objecto, a indole
d'elles e os logares onde se acham nos respectivos cartorios: depois,
devem abundar os exemplos de casos nos quaes ellas os hajam utilisado
nos ultimos vinte ou trinta annos. Exija o Governo de V. M. aquelles
Ēndices; peńa a enumerańŃo especificada destes casos, que por certo nŃo
ficarß edificado da verdade das allegań§es nesta parte.
Ainda admittindo todas as inexacń§es de direito e de facto apinhadas nas
representań§es e officios sobre este assumpto, ha uma circumstancia que
torna a denegańŃo absoluta e completa das corporań§es ao cumprimento da
portaria de 11 de setembro, nŃo s¾ um acto de vandalismo litterario e de
desprezo pela gloria da nańŃo, mas tambem uma verdadeira espoliańŃo
feita ao paiz. Na epocha a que pertencem os documentos exigidos, nŃo
existia archivo especial do rei ou do estado, o qual s¾ comeńou no tempo
de D. Fernando I. Os diplomas de alta importancia, cuja existencia se
desejava conservar para a posteridade, manda-vam-se depositar nos
cartorios dos cabidos e dos principaes mosteiros, chegando-se aponto de
se ordenar esse deposito no proprio corpo do diploma. ╔ um facto este
que as corporań§es desobedientes tinham obrigańŃo de nŃo ignorar.
Depois, os prelados, os cabidos, as ordens ecclesiasticas e militares
exerciam, como donatarios da coroa, actos que importavam manifestań§es
de soberania, e contractos em que rigorosamente esses corpos nŃo
figuravam senŃo como representantes do poder publico: taes eram os
foraes instituindo municipios e comprehendendo provis§es de direito
publico local; taes eram os contractos por que se transformavam os
terrenos reguengos em jugadeiros, as quotas de fructos em rendas certas,
etc. Os documentos desta ordem nŃo respeitam ßs corporań§es; respeitam
ao paiz, como aquelles que os antigos monarchas confiaram ß guarda do
clero. Suppondo que ellas tivessem direito a negar a entrega dos que
exclusivamente lhes dizem respeito, poder-se-hia tolerar que tambem
sequestrassem impunemente os documentos da nańŃo por um capricho
inexplicavel, ou antes explicavel de mais?
Ha, pouco, Senhor, que examinando-se por ordem desta Classe os restos
que escaparam do rico archivo do mosteiro de Aguiar, conservados no
Thesouro-publico, ahi se foram encontrar no original muitos documentos
politicos e economicos da mais alta importancia relativos aos seculos
XIII e XIV. Se ainda existissem corporań§es religiosas do sexo
masculino, como existem do feminino, ķ natural que, como algumas destas,
os monges de Aguiar recusassem obedecer ß portaria de 11 de setembro.
Toleraria, porķm, o Governo que esses documentos importantes para a
historia, e talvez para quest§es actuaes ou futuras com a Hespanha
ßcerca de limites, ficassem sepultados e inuteis nas tristes solid§es do
Cima-Coa? E tolerß-lo-hia s¾ porque alguns frades suspicazes e
ignorantes receiassem que o conhecimento dos velhos pergaminhos do seu
cartorio podesse servir para lhes contrariar interesses materiaes de
cuja legitimidade a consciencia os fizesse duvidar?
As difficuldades, Senhor, que se oppoem agora ß realisańŃo do empenho da
Academia e ao cumprimento da lei jß em parte surgiram quando se ordenou
que os cartorios das corporań§es fossem franqueiados ao simples exame de
um commissario da mesma Academia. Houve recusas formaes; houve
subterfugios dilatorios. Indagou-se o motivo disto, e soube-se que se
receiava fosse utilisado o exame a que se procedia em beneficio dos
colonos ou proprietarios com quem as corporań§es tem litigios sobre
direitos dominicaes; porque a algumas d'ellas, ou a todas, custava a
comprehender que se gastasse tempo em decifrar esses pulverulentos e
afumados diplomas sem algum interesse material. Note-se agora a infeliz
coincidencia entre a resoluńŃo administrativa que chama a Lisboa os
documentos de antigos tempos, e a que ordena um inventario dos bens de
certas corporań§es de mŃo-morta, e achar-se-ha facilmente, em suspeitas
nŃo menos insensatas que as primeiras, a explicańŃo mais plausivel das
resistencias que apparecem por esta parte.
Os cartorios dos corpos de mŃo-morta tem sido sempre considerados como
cousa publica. Uma das corporań§es reconhece-o formalmente no officio
que dirige ao commissario da Academia, affirmando a necessidade de
licenńa regia, e determinańŃo do prelado, para qualquer extranho
examinar os documentos do seu archivo. De certo um particular nŃo
precisaria de licenńa regia para facultar a qualquer o uso do seu
cartorio ou para deixar sair delle quaesquer titulos. Tanto se
consideravam esses archivos como dependentes do Estado, que os seus
documentos mereceram sempre uma especie de fķ publica. Em muitos delles,
atķ, existiam e existem chartularios, geral e impropriamente denominados
Tombos, e feitos em diversas epochas, desde o reinado delrei D. JoŃo II
atķ o delrei D. JoŃo V, em que se contķm traslados dos documentos
antigos, precedendo provis§es regias, pelas quaes se dß a estas copias o
mesmo valor dos originaes, para dellas se passarem certid§es. Esses
actos do poder supremo nŃo provam s¾ a consciencia que o Governo tinha
da incapacidade ordinaria dos membros das corporań§es, e dos tabelliŃes
desses logares para lerem os antigos diplomas: provam tambem o caracter
publico de taes archivos; porque nŃo nos consta que provis§es de
semelhante natureza se passassem nunca a favor de cartorios
particulares. Embora o poder civil dķsse a sua sancńŃo ßs disposiń§es
canonicas relativas ß conservańŃo dos documentos dos corpos de
mŃo-morta; embora prohibisse, como mais de uma vez prohibiu, a saĒda
delles do respectivo archivo, essa prohibińŃo estß justamente
demonstrando que elle poderia ordenar o contrario, se entendesse que
convinha mais guardß-los n'outra parte. Foi por isto que no reinado de
D. JoŃo V se proveu a favor da Academia de Historia, para que se lhe
facultasse o conhecimento e copia de todos os documentos das corporań§es
de mŃo-morta, que foram obrigadas a transmittir inventarios de todos
elles ß mesma Academia. Foi por esse fundamento juridico, que nos
estatutos da universidade (L. 2, tit. 6, cap. 3) se determinou que os
cartorios dos mosteiros e das cathedraes estivessem patentes aos
professores de direito patrio, para lerem, estudarem, extractarem,
copiarem, ou fazerem extractar e copiar todos os documentos que
entendessem serem uteis ao ensino das leis patrias e da sua historia,
disposiń§es que nŃo se estenderam, nem podiam estender, ainda debaixo do
absolutismo ferrenho daquella epocha, aos cartorios particulares. ╔,
finalmente, ß vista de tal jurisprudencia e de taes exemplos, que na
portaria de 11 de setembro o Governo ordena se facilite ß Academia o uso
desses diplomas, reservando para si o direito, que indubitavelmente lhe
pertence, de resolver sobre o modo mais conveniente da sua futura
conservańŃo.
Mas, diz uma das corporań§es desobedientes, que foi no proprio archivo
della que Brito e BrandŃo tomaram notas dos documentos ahi existentes;
que o guarda-m¾r Lousada copiou os mais curiosos e mandou as copias para
a Torre do Tombo; que alli se tiraram traslados dos mais importantes
para o Archivo de Historia Portuguesa; que a corporańŃo possue no seu
seio um paleographo capaz de trasladar tudo, embora nŃo seja tŃo habil
como os da capital; que nŃo convem que os documentos andem de mŃo em
mŃo; emfim, que a Academia nŃo restituiu integralmente os documentos
recebidos por ella, uma unica vez que lhe foram confiados.
A Classe desejava, Senhor, nesta consulta nŃo empregar uma unica phrase
que nŃo fosse moderada; mas, vendo accusados, se nŃo os membros actuaes
da Academia, ao menos os que os precederam, de falta de probidade, e
sabendo que essa accusańŃo vai directamente cahir sobre homens tŃo
eminentes por sciencia e virtudes como D. Francisco de S. Luiz, Trigoso
e outros var§es, cujos nomes sŃo veneraveis para o paiz e para as
letras, teme nŃo saber reprimir sempre os impetos de indignańŃo diante
das calumnias vertidas sobre as cinzas de individuos que nŃo se podem
defender, mas que os academicos de hoje, posto valham menos do que
elles, nŃo devem, nem querem deixar sem pleno desaggravo.
A corporańŃo que, desobedecendo ao Governo, mostra desconhecer o antigo
e o moderno direito publico destes reinos, nŃo foi feliz querendo dar
licń§es ß Academia sobre materias de sua competencia, e increpß-la de
menos probidade. Se esta virtude tivesse faltado aos seus antigos
membros ßcerca de documentos publicos, nŃo seria o melhor meio de
preservar os actuaes de semelhantes delictos p¶r-lhes diante os nomes de
Brito e Lousada, que passaram a vida, nŃo tanto a distrahi-los, como a
forjß-los e a falsificß-los. Curiosas devem ser as memorias por onde
consta ß corporańŃo desobediente que o escrivŃo Lousada (despachado por
ella guarda-m¾r da Torre do Tombo) mandou para alli copias dos
documentos mais curiosos do seu cartorio, do que alißs nenhuns vestigios
restam no Archivo geral do reino. Dos que se remetteram para o Archivo
de Historia Portuguesa nada tem que dizer a Classe, porque nŃo lhe
consta que tal archivo exista ou existisse nunca no mundo. P¾de ser
excellente o paleographo que essa corporańŃo inculca ß Academia; mas a
Classe emprehendeu um trabalho demasiado serio, para exigir dos membros
encarregados da publicańŃo dos Monumentos Historicos a conferencia
pessoal das copias destinadas ß publicańŃo com os respectivos originaes,
depois de terem apreciado quaes merecem ver a luz publica. Estes
trabalhos preliminares, assßs tediosos e longos, nŃo podem os socios
effectivos ir fazĻ-los a 50 ou 60 legoas da capital, porque tem aqui
outros deveres que cumprir, e por isso nŃo aproveitam o offerecimento.
Se o sincero, honesto e judicioso BrandŃo teve a simplicidade de se fiar
em copias subministradas pelas corporań§es e nos paleographos habeis
dellas, pagou bem caro a sua imprudencia, nŃo havendo, talvez, senŃo um
ou dous documentos, dos publicados por integra na 3.¬ e 4.¬ Partes da
_Monarchia Lusitana_, que esteja devidamente correcto. Quando,
finalmente, esta Classe pede, nŃo que venham para a sua secretaria os
documentos que pretende examinar e transcrever, mas que se depositem na
Torre do Tombo, para onde os remette directamente a pessoa encarregada
de os receber, e onde nŃo ha perigo de se extraviarem, nem de serem
presa de algum incendio; quando esta Classe prefere ß propria
commodidade ir alli preparar e dirigir os trabalhos de que estß
incumbida, temendo os riscos que de outro modo poderiam correr esses
restos dos abundantes monumentos historicos que outr'ora possuimos;
quando, depois, aconselha ao Governo que os conserve cuidadosamente
naquelle archivo, o ponderar-se que nŃo convem que os antigos documentos
andem correndo de mŃo em mŃo ķ uma verdadeira inepcia.
Desde o comeńo desta consulta e no proseguimento della, a Classe
forcejou e forcejarß sempre por nŃo designar nomeiadamente nenhuma das
corporań§es a que se refere. Move-a a isso um sentimento de
generosidade. ╔ todavia forńada a fazer uma excepńŃo quando se tracta da
honra do instituto de que forma parte, e da boa fama dos que precederam
os signatarios deste papel nas cadeiras que hoje occupam. Na sua
representańŃo dirigida ao digno prelado metropolitano, para ser presente
ao Governo, o cabido da sķ de Braga accusa a Academia de nŃo ter
integralmente restituido varios documentos que, por ordem do mesmo
Governo, lhe haviam sido confiados. Dos registos da Academia consta, com
effeito, que para uso da commissŃo de Cortes foram chamados a Lisboa, em
1836, varios monumentos do cartorio daquelle cabido; mas dos actos
officiaes, junctos por copia ß presente consulta, se vĻ, 1.░, que a
Academia pediu um codice e cinco documentos avulsos do mesmo cartorio,
indicando o logar onde estes se achavam, e um volume manuscripto do
archivo da mitra; 2.░, que foram remettidos pelo cabido o codice e tres
dos cinco documentos pedidos, declarando o presidente da corporańŃo que
nŃo fora possivel encontrar os outros dous, nem na gaveta onde deviam
estar, nem nas diversas gavetas que diligentemente se examinaram; 3.░,
que em 1840 foram devolvidos ß secretaria do reino para voltarem a Braga
o manuscripto da mitra, e bem assim o codice e os tres pergaminhos
avulsos que tinham vindo do cabido. A restituińŃo foi, portanto,
integral. Esses actos officiaes, que a Classe leva ß presenńa de V. M.,
nŃo sŃo, porķm, s¾ importantes para desfazer uma calumnia: sŃo-no
igualmente para provar com quanta razŃo a Classe aconselhou que os
antiquissimos documentos chamados agora a Lisboa fossem conservados no
Archivo geral do reino. De cinco pedidos pela Academia, indicando ella o
logar onde se achavam, apenas tres existiam naquella conjunctura, porque
nem alli, nem nas outras gavetas, se acharam. Di-lo o chefe da
corporańŃo; e das suas explicań§es se deduz que tambem nŃo havia indice
do cartorio, nem registo por onde constasse como haviam sido
distrahidos. Se da historia, porķm, dos cinco diplomas, pedidos
casualmente, houvessemos de tirar illań§es para o resto do archivo
capitular, infeririamos que dous quintos dos seus pergaminhos tĻem sido
desencaminhados, apesar das constituiń§es synodaes e das excommunh§es
fulminadas contra os dissipadores dos titulos da cathedral, excomunh§es
que poderiam gerar nos animos sķrias apprehens§es sobre o destino alķm
da campa dos conegos atķ entŃo fallecidos, mas que teriam sido
impotentes para salvar da rapina ou do desleixo os primitivos e
veneraveis monumentos da antiga metropole da Galliza.
Ainda, em relańŃo ßquella remessa de documentos, faz o reverendo cabido
bracharense uma severa increpańŃo ß Academia, de que esta Classe nŃo
sabe, Senhor, defendĻ-la, mas para esquivar a responsabilidade da qual
se offerece em holocausto. O codice e os tres pergaminhos voltaram a
Braga ß custa do cabido! ╔ um successo que talvez perturbasse gravemente
a economia da fazenda capitular. Liquide-se aquella divida, e a Classe
restituirß integralmente o frete dos dous codices e dos tres
pergaminhos, como fica provado que se restituiram essas preciosidades.
Se nas suas representań§es ao Governo, por intervenńŃo do prelado, o
reverendo cabido de Braga calumniou a Academia, no officio ao agente
desta calumniou todos os poderes publicos. Diz ahi o reverendo cabido
que, para se lhe tirarem os documentos de que se tracta, precisa-se de
lei precedente que dispense as formalidades do esbulho da sua
propriedade, ou sentenńa do poder judicial que o convenńa de que a deve
largar. Estas poucas phrases, senŃo sŃo filhas da hallucinańŃo ou de
incrivel ignorancia, sŃo um grave insulto a todos os corpos do Estado. O
cabido offende o Governo, porque lhe attribue um acto de espoliańŃo,
quando a portaria de 11 de setembro nŃo ķ senŃo uma providencia
administrativa ordinaria, e que honra por mais de um modo o mesmo
Governo. Offende o poder legislativo, porque o supp§e capaz de fazer
leis inconstitucionaes e absurdas. O legislador nem mantem, nem dispensa
formalidades no esbulho, porque nunca p¾de determinar o esbulho. Quando
estatue a expropriańŃo por utilidade publica, estatue sempre a
compensańŃo. Offende o poder judicial, porque presupp§e que elle p¾de
ordenar a alguem por sentenńa que largue a propriedade que ķ sua. Quando
o magistrado julga que o individuo deve perder o que possue, ķ
justamente pelo motivo contrario; ķ porque se convence de que o
individuo retem o que nŃo ķ seu; e nesse caso, nŃo tira, mas defende a
propriedade.
Somos chegados, Senhor, a um ponto, ßcerca do qual a Classe de sciencias
moraes, politicas e bellas letras tem, por mais de um modo, o dever de
lanńar neste papel algumas considerań§es; porque se tracta de um
assumpto que ķ da sua competencia, como corpo official scientifico. O
pensamento de qualificar a portaria de 11 de setembro como um acto
exorbitante do Governo contra a propriedade nŃo se manifesta s¾ nas
phrases acima citadas: revela-se tambem, mais ou menos expressamente, na
linguagem de outras corporań§es desobedientes. Na opiniŃo dellas, os
antigos pergaminhos dos respectivos cartorios sŃo uma cousa em que o
Governo nŃo p¾de tocar, sem quebra do direito constitucional que garante
a propriedade dos cidadŃos; porque esses pergaminhos sŃo os titulos dos
bens que possuem, os quaes as dictas corporań§es de mŃo-morta supp§e
gratuitamente que sŃo uma propriedade sua, analoga ß de qualquer
individuo ou associańŃo civil.
A Classe disse jß e mostrou como muitos dos documentos de que se tracta,
pela sua natureza, pelo sua origem, e por factos historicos sabidos e
certos, pertencem pura e simplesmente ao Estado; disse e mostrou jß como
os cartorios das corporań§es de mŃo-morta se consideraram sempre
archivos publicos; disse e mostrou como os pergaminhos anteriores a 1280
nŃo sŃo nunca, ou quasi nunca, documentos de uso practico nos litigios
ou nas duvidas administrativas que podem suscitar-se ßcerca de alguns
desses bens; e quando o fossem, nem a portaria de 11 de setembro ordena
definitivamente a sua retenńŃo na Torre de Tombo, nem o Governo,
supposto que de futuro assim o ordenasse, deixaria de prover do modo que
estabelece naquella portaria. As corporań§es obteriam gratuitamente,
quando necessarios, transumptos authenticos, f¾rma unica em que elles
costumam figurar na tela judicial. Uma ou outra corporańŃo p¾de achar no
seu seio ou na localidade onde reside um paleographo legalmente
habilitado para authenticar os traslados de antigos documentos; mas, na
maior parte dos casos, dada a necessidade de taes copias, elles teriam
de vir a Lisboa para serem decifrados e reduzidos os seus transumptos a
f¾rma authentica. Qual seria, porķm, mais seguro para os velhos
pergaminhos, e atķ mais barato para as corporań§es; isto, ou as
providencias a que se refere a portaria de 11 de setembro?
As corporań§es falam da propriedade dos pergaminhos, confundindo-a com a
de quaesquer outros bens moveis ou de raiz. Os antigos documentos sŃo ou
foram titulos de propriedade, o que ķ diverso. Para qualquer cousa ser
materia de propriedade precisa de ter um valor de utilidade; servir aos
fins e necessidades do homem. NŃo sendo como prova de dominio, elles de
nada servem ßs corporań§es; e a nŃo ser como monumentos litterarios ou
historicos, nŃo tem nenhum valor real. Por este lado as corporań§es
estŃo bem longe de poderem utilisß-los. Como prova do dominio, nem o
Governo quer destrui-los, nem guardados no Archivo nacional ficam menos
seguros do que no seio das corporań§es, antes incomparavelmente mais.
Depois, nŃo ķ o Estado padroeiro de todas essas cathedraes, collegiadas
e mosteiros desobedientes? NŃo teve elle sempre o direito de suprema
inspecńŃo sobre o cumprimento dos deveres que resultam para esses corpos
das condiń§es da sua fundańŃo e instituińŃo? NŃo lhe incumbiu sempre
vigiar sobre a conservańŃo e uso dos bens unidos aos mesmos corpos? NŃo
deriva immediatamente desse direito o de providenciar do modo mais
conveniente sobre a fiscalisańŃo daquelles bens, e de chamar a si os
titulos delles quando entender, e sobretudo quando se provar, que esses
titulos sŃo tractados com desleixo, ou que podem ser conservados em
melhor ordem ou com maior seguranńa, ou finalmente quando precisar
delles para verificar se se tem dado abusos que o mesmo Governo possa e
deva corrigir? Se as corporań§es crĻem que os documentos que lhes pedem
ainda tem o valor de titulos, em virtude de que direito recusam obedecer
ß portaria de 11 de setembro?
E preciso, Senhor, dizer por uma vez a verdade inteira. As corporań§es
recalcitrantes, por um capricho insensato, talvez por insinuań§es
perfidas, e provavelmente por apprehens§es infundadas de que o
conhecimento dos diplomas e chartularios que se lhes pedem possa ser
nocivo aos seus interesses como administradoras de rendas e direitos
dominicaes, aparentam por esses velhos pergaminhos, inintelligiveis e
indifferentes para ellas, um zĻlo, um affecto que realmente nŃo sentem.
Foi isto que as arrastou a invocarem o direito de propriedade, a falarem
de tal direito em relańŃo aos bens que desfructam. P¾de o Governo
tolerar, toleram os bons principios que as corporań§es se digam
proprietarias dos bens que usufruem? Atķ aqui a Classe provou por
diversos modos o desarrazoado e illegal das resistencias que suscitaram
esta consulta, ainda dada a situańŃo de proprietarias, em que as
corporań§es pretendem collocar-se. No caso presente, o antigo direito
publico derivado dos antigos principios, das prerogativas do poder
supremo como entŃo se concebia, e atķ o direito canonico relativo ao
padroado, bastariam para legitimar o acto practicado pelo Governo e
justificar as intenń§es manifestadas na portaria de 11 de setembro. Mas
esta Classe tem de ir mais longe. Desde que se querem estender as
actuaes garantias politicas dos cidadŃos a corporań§es de mŃo-morta, por
um sophisma grosseiro; desde que se proclamam doutrinas subversivas que
mutilam a acńŃo do poder publico, a Classe tem, pela sua indole, pelos
fins da sua instituińŃo, o dever restricto de protestar contra erro tŃo
perigoso. SŃo as corporań§es que a f¾rńam ao cumprimento de uma
obrigańŃo desagradavel.
A propriedade, Senhor, ķ um direito preexistente ßs sociedades, visto
derivar da necessidade que tem o individuo de satisfazer aos fins
racionaes para que foi creado. O direito de propriedade estriba-se na
lei natural, porque ķ inherente ß natureza do homem. Desde que este
direito se nŃo collocar acima das leis positivas, quer constitucionaes
quer civis, e anteriormente a ellas, a sociedade acceitarß um elemento
de dissoluńŃo e de morte. Se ķ o legislador que cria esse direito; se
este nŃo o precedeu no mundo, elle p¾de tambķm crear o direito
contrario. Reduz-se tudo a uma questŃo de conveniencias moraes e
materiaes e de opportunidade, e tanto ķ possivel existir s¾ a
propriedade commum, como existir a individual, ou, para exprimir a mesma
idķa com diversa formula, tanto ķ possĒvel a nŃo propriedade, como a
propriedade. D'aqui nasce que esta ķ primordial e principalmente
individual. A idķa de propriedade collectiva, como regra, como
principio, depois de andar por seculos ao servińo de um despotismo
espoliador; depois de attribuir ao chefe do Estado o dominio imminente e
aos subditos uma posse e um dominio incompletos, quando o sentimento da
liberdade e a razŃo esclarecida por tal sentimento collocaram os
direitos dos cidadŃos ß sua verdadeira luz, veio, apesar de velha e
gasta, p¶r-se ß mercĻ das escholas socialistas e communistas. Como em
mechanica dizia Archimedes, dĻem a estas esse ponto nas regi§es do
direito, e ellas revolverŃo o mundo.
A propriedade commum nas associań§es civis voluntarias nŃo ķ senŃo uma
forma especial de manifestańŃo da propriedade individual, que lhe muda
os accidentes sem lhe alterar a essencia. Dissolvida a associańŃo, a
propriedade toma immediatamente os caracteres da individualidade. NŃo
assim nas corporań§es de mŃo-morta, cuja existencia depende do poder
publico. Ha, por certo, propriedades collectivas; taes sŃo os bens
nacionaes de uso commum dos cidadŃos; mas esta especie de propriedade,
estribando-se puramente na lei, supprime-se, desapparece, transforma-se,
accumula-se, tambem ß mercĻ da lei, e ķ por isso que se denomina
propriedade legal. As instituiń§es garantem a propriedade individual, a
do cidadŃo, aquella que se funda n'um direito acima das leis e anterior
a ellas. NŃo podem ir alķm sem serem antinomicas comsigo mesmas; sem
darem ao legislador a funcńŃo de crear e nŃo a de extinguir; sem
confundirem o absoluto com o condicional.
Os membros das corporań§es de mŃo-morta nŃo gosam menos que outros
quaesquer cidadŃos da garantia constitucional pelo que respeita ß sua
propriedade particular. NŃo lhes ķ applicavel, porķm, a mesma garantia
quanto ß propriedade collectiva que desfructam, porque essa propriedade
ķ apenas legal. SŃo proprietarios, como membros d'uma associańŃo? N'esse
caso, porque nŃo podem alienar; porque nŃo podem testar; porque nŃo se
resolverß em propriedade individual esse cumulo de bens, na hypothese de
deixar de existir a corporańŃo? ╔ que a sua existencia nŃo deriva da
natureza; deriva do direito positivo. Assim, era com sobrada razŃo que
um publicista dizia: ½Do mesmo modo que a suppressŃo de uma corporańŃo
nŃo ķ um homicidio, a revogańŃo da faculdade que lhe foi concedida de
possuir bens de raiz nŃo ķ uma espoliańŃo╗. Pessoas facticias, a lei
p¾de destrui-las, como as creou; e se a sua existencia ķ precaria, como
ķ que possuem por um direito absoluto? Comprehende-se que o clero
hierarchico desfructe uma porńŃo de bens que o Estado nŃo revocou a si.
Como classe de funccionarios, de ministros de uma religiŃo dominante, e
por consequencia official, podem ser retribuidos, no todo ou em parte,
por este modo: ķ um systema bom ou mau; mas ķ um systema que presupp§e a
doutrina de que os bens que administram nŃo sŃo propriedade sua e de que
nem sequer usu-fructuarios sŃo por direito proprio. Porque recebem
corporań§es e individuos pertencentes ß jerarchia da igreja, e cujas
congruas estŃo fixadas, apenas complementos d'essas congruas pelo
Thesouro, quando os redditos dos chamados bens ecclesiasticos
subministram parte d'ellas? Tractando-se de materias temporaes, se a
propriedade ecclesiastica ķ o mesmo que a propriedade individual, donde
provĻm a desigualdade que resulta de uma retribuińŃo desigual, que o
clero acceita sem murmurar? Se ķ por se attender s¾ a que tenham a
_congrua sustentańŃo_, porque nŃo serß esta calculada tambem em relańŃo
aos bens patrimoniaes do sacerdote funccionario? Aquelles que hoje
invocam o seu direito de propriedade como sendo analogo aos dos cidadŃos
tĻem jß reconhecido, pelo facto proprio, que entre as duas cousas nŃo
existe paridade.
Mas se nos lembrarmos, Senhor, da origem e historia dos bens
ecclesiasticos em Portugal, quanto mais deploraveis e imprudentes nŃo
acharemos as doutrinas invocadas pelas corporań§es desobedientes, em
damno da gloria e das letras patrias! Verdadeiramente, entre n¾s, aos
bens d'esses gremios s¾ quadraria uma qualificańŃo repugnante comsigo
mesma, a de _propriedade anti-legal_. Comeńaram cedo neste paiz, nos
principios do seculo XIII, as leis de amortisańŃo, e jß antes el-rei D.
Sancho I, escrevendo a Innocencio III, affirmava o seu direito de privar
o clero dos bens que possuia para lhes dar uma applicańŃo em seu
entender mais util. Renovadas successivamente as leis de amortisańŃo,
foram tantas vezes vilipendiadas e infringidas pela prepotencia do clero
quantas de novo promulgadas. As corporań§es julgavam-se entŃo tanto
acima do legislador quanto parece julgarem-se hoje acima do Governo. Sem
recorrer a outros monumentos das varias phases d'essa permanente revolta
de um dos corpos do Estado contra o direito publico do reino, basta
abrir successivamente os tres codigos que, um ap¾s outro, regeram este
paiz desde o seculo xv atķ os nossos tempos, para vermos que os
verdadeiros titulos dos bens usufruidos pelas corporań§es nŃo sŃo tanto
os antigos pergaminhos que ellas recusam largar da mŃo para utilidade
commum, como o desprezo insolente de leis que os nossos monarchas nunca
tiveram forńa para tornar effectivas. As Ordenań§es affonsinas, as
manuelinas e as philippinas reproduzem sempre o direito antigo, que
prohibia ßs corporań§es de mŃo-morta possuir bens de raiz, mas a
clausula pela qual se perdoava a desobediencia passada perdia tudo;
porque provava a impotencia da lei, e abria campo a novos abusos, que se
tornavam a perdoar para se tornarem a repetir. O melhor titulo de
propriedade que as corporań§es podem invocar ßcerca dos bens que
desfructam ķ este. V. M. apreciarß a sua legitimidade.
Resta unicamente, Senhor, ß Classe de sciencias moraes, politicas, e
bellas letras desempenhar um dever que desde o principio d'esta consulta
reconheceu incumbir-lhe. ╔ o de dar a razŃo por que aconselhou ao
Governo que conservasse no Archivo da Torre do Tombo os documentos mais
antigos e preciosos das corporań§es tanto extinctas como existentes,
depois de utilisados pela Academia. NŃo foi, Senhor, um conselho dado de
leve: foi a triste convicńŃo de que, sem isso, os vestigios e as
memorias authenticas das gerań§es que passaram irŃo gradualmente
desapparecendo, como atķ aqui tem desapparecido. Nos logares onde se
acham, os antigos pergaminhos e chartularios nŃo sŃo entendidos nem
apreciados, nem resguardados de um modo conveniente contra os accidentes
que possam sobrevir-lhes: nŃo ha ordem racional na sua arrumańŃo, nos
raros casos em que estŃo n'alguma ordem: nŃo ha indices aos quaes se
possa recorrer quando ķ necessario consultß-los. Por quasi todos os
archivos se encontram pergaminhos nas costas dos quaes se escreveu a
palavra fatal _inutil_. Inutil quer dizer que nŃo serve a algum
interesse material da corporańŃo. Em regra, ķ no meio d'estas
inutilidades que se vŃo achar os documentos historicos mais importantes.
Quaes tem sido, porķm, os effeitos d'aquella qualificańŃo, quaes
continuarŃo a ser, facil ķ adivinhß-lo. N'alguns cartorios a phrase _ķ
latim_, tambem escripta nas costas do diploma, soa igualmente como
sentenńa de condemnańŃo. Acham-se frequentemente pergaminhos (e destes
muitos n'um cartorio onde tal barbaridade nŃo era de esperar), cuja
leitura quiz fazer algum curioso inhabil, cubertos de aguadas de galha,
que avivaram momentaneamente as letras sumidas, mas que depois formaram
uma s¾ mancha negra, onde nŃo tornarß a ser possivel decifrar uma unica
palavra. Grande parte dos cartorios dŃo, ao simples aspecto dos seus
documentos, as provas de que durante annos estiveram, e de que estŃo
ainda expostos ß chuva, ao passo que nŃo ha um s¾ que se possa dizer ao
abrigo dos incendios. As abobadas arejadas e enxutas, debaixo das quaes
se guardam a parte antiga e ainda uma grande porńŃo das addiń§es
modernas do Archivo Nacional, uso adoptado tambem por alguns mosteiros
da congregańŃo benedictina, que sabia tractar objectos destes, porque
sabia entendĻ-los e apreciß-los, nŃo existem em nenhuma parte. ╔ esse um
dos factos que mais instantemente exigem a conservańŃo na Torre do Tombo
dos jß tŃo rareiados documentos dos primeiros dous seculos da monarchia
e dos que a precederam. A imprevidencia de collocar cartorios em logares
nŃo convenientemente isolados fez com que n'uma noite perecessem
inteiros os quatro archivos mais ricos de monumentos da Beira Alta, os
de Salzedas, Tarouca, S. Pedro das Aguias e S. Christovam de Laf§es, bem
como o incendio da Casa-pia, do Porto deu aso a perderem-se (dado que
perecessem nas chammas, o que ķ controvertido) quasi todos os cartorios
monasticos do Minho, que constituiam a parte mais importante das
riquezas do paiz n'este genero. O celebre incendio do Thesouro, que
tambem foi fatal a esta especie de documentos, ķ outro grande exemplo da
imprudencia que ha em nŃo conservar archivos cuja perda ķ irreparavel em
edificios isolados ou pelo menos abobadados.
Expostos aos lentos effeitos da humidade e a serem devorados pelas
chammas, os antigos documentos das corporań§es nas provincias estŃo,
alķm d'isso, sujeitos ßs devastań§es das guerras civis e estrangeiras.
Explicam estas em grande parte o nŃo se acharem em quasi nenhumas
camaras do reino documentos originaes anteriores ao reinado de D. Diniz.
Nas tres provincias do norte, esta Classe apenas p¶de descubrir a
existencia de um no cartorio da camara de Braganńa. Sabemos, todavia,
que ainda certo numero d'elles existia nos fins do seculo passado. NŃo
teria sido mais util para o paiz, e atķ para as proprias
municipalidades, que o Governo tivesse feito recolher esses
antiquissimos pergaminhos no Archivo geral do reino? Quando el-rei D.
Manuel mandou expedir os foraes novos, recolheram-se alli as cartas
constitutivas e os privilegios annexos a ellas, respectivos aos
concelhos a quem se concediam aquelles foraes novos. ╔ por isso que, em
parte, os seus primitivos titulos de liberdade ainda hoje existem. E que
ķ feito de tudo o mais que lß ficou? Desappareceu completamente.
A estes accidentes accresce a deteriorańŃo permanente que o desleixo e a
ignorancia produzem. No cartorio de certa corporańŃo, lanńado pela
janella f¾ra durante a guerra peninsular por alguns soldados franceses,
e de que s¾ uma pequena parte foi recolhida, achou-se ainda em 1853
incrustado nos pergaminhos o lodo em que estiveram mergulhados durante
alguns dias; tal tinha sido o desvelo da corporańŃo ßcerca dos
monumentos que salvara. NŃo sabemos se ķ das que bradam contra a offensa
feita ao seu direito de propriedade. Em outro archivo de um corpo de
mŃo-morta, os documentos antigos tinham sido lanńados em monte na
divisŃo inferior de um armario humido, cujo pavimento era de tijolo.
Alli haviam apodrecido atķ a altura de duas ou tres pollegadas,
constituindo, quando se examinaram em 1853, uma massa negra e compacta.
Salvaram-se apenas os que tinham cahido na parte superior d'aquelle
acervo, aonde a podridŃo ainda nŃo chegava. Outra corporańŃo pediu tempo
ao commissario da Academia para lhe tornar accessivel o cartorio. Estava
este n'um aposento sem vidrańas, e pelas roturas das janellas os
passaros tinham estabelecido alli a sua residencia habitual. Era preciso
desimpedir aquella nova especie de estabulo de Augias. A maior parte das
corporań§es, cujos archivos se examinaram n'esse e no seguinte anno, nŃo
poseram obstaculo algum a que os documentos de que se tomava nota fossem
separados e emmassados ß parte, como se fez. A razŃo era simples. Tanto
importava aquella disposińŃo como outra qualquer, visto nŃo existir ahi
ordem nem indices. Cartorios ha, e dos mais notaveis, onde se adoptou a
distribuińŃo corographica, mas esta distribuińŃo era e ķ apenas parcial,
e necessariamente incompleta. Os documentos que por algum resumo ou
declarańŃo externa, postos no verso do pergaminho, ou que por serem
modernos podiam facilmente classificar-se como relativos a tal ou tal
propriedade, collocaram-se nos massos respectivos. Todos aquelles,
porķm, cujo conte·do se ignorava, ou que refugiam a este systema
imperfeitissimo, assignalados ou nŃo com o ferrete de _inuteis_, foram
amarrados em feixes e atirados para o fundo de armarios, onde ficaram
jazendo por dezenas e dezenas de annos, cubertos de p¾ e condemnados ao
esquecimento e a lenta ruĒna. Em um d'estes cartorios, depois de se ter
concluido o seu exame, achou-se uma gaveta, em logar pouco apparente, na
qual, debaixo de um monte de caruncho, se encontraram 40 a 50 bullas
originaes expedidas pela maior parte do decurso dos seculos XII e XIII.
Talvez durante 50 ou 60 annos ninguem tivera noticia da existencia
d'aquelles diplomas.
Certa corporańŃo clerical teve a singular idķa de enquadernar os seus
pergaminhos avulsos. Era um arbitrio devido, segundo parece, ß fecunda
imaginańŃo de uma communidade franciscana, cujos documentos primitivos
se acham n'uma repartińŃo de fazenda da provincia cosidos n'um volume,
podendo ler-se apenas parte de cada um d'elles. A corporańŃo, porķm,
encontrara uma difficuldade imprevista em aproveitar o alvitre dos
frades. Os sellos pendentes eram um obstaculo a essa obra meritoria.
Cortaram-nos, ensacaram-nos, e hoje mostram innocentemente aquelle
monumento de sabedoria. Os sellos, sobretudo os dos diplomas
pontificios, esperam pela trombeta final do archanjo para se unirem aos
respectivos corpos, porque s¾ a trombeta final poderß operar tal
maravilha.
Esta mesma corporańŃo possuia um chartulario dos mais conhecidos na
nossa litteratura historica. Esse chartulario tinha saĒdo do archivo,
por ordem do prelado maior, havia quasi vinte annos, para se tirarem
delle copias de varios documentos, de que se carecia para objecto
litterario. Quando em 1854 a Academia mandou examinar os cartorios
provinciaes, o seu commissario perguntou pelo celebre codice. F¶ra elle
que tirara aquellas copias quasi vinte annos antes. Disseram-lhe que
existia bem guardado. Pediu-o: apresentaram-lhe uma copia moderna.
Observou que esse volume nŃo passava de um bom ou mau transumpto do
manuscripto de que se tractava. NŃo se conhecia outro! O commissario da
Academia recordou-se, porķm, de uma circumstancia: as copias tiradas por
elle tinham sido feitas em certa livraria vizinha. Teria esquecido alli
o codice? Era um desleixo de vinte annos, absurdo, vergonhoso, incrivel,
mas por isso mesmo, probabilissimo. Prop¶s que se buscasse, ou antes,
offereceu-se elle proprio a procurß-lo. Acceitou-se a offerta. NŃo se
enganava. O precioso chartulario vivera desterrado vinte annos, emquanto
o seu pouco leal Sosia lhe usurpava as homenagens daquella corporańŃo
erudita.
No fasciculo jß impresso dos _Monumenta_ pertencente ß serie intitulada
_Scriptores_ foi inserido um chronicon, cujo original existe no archivo
de uma das corporań§es ecclesiasticas que representam a V. M. contra a
portaria de 11 de setembro. Havia duas ediń§es discordes entre si, e
ambas inexactas, como depois se viu. Quando se colligiam os monumentos
destinados a entrar naquelle fasciculo, buscou-se obter o codice
original para restabelecer a verdadeira licńŃo. Era impossivel. As
excommunh§es contra a extracńŃo dos documentos do cartorio onde elle
existia obstavam a isso. O anjo percuciente velava ß porta do cartorio
com a espada de fogo na mŃo. ┴ Academia, porķm, repugnava manter n'um
trabalho serio, e feito com consciencia, o texto incorrecto. Favoreceu-a
uma circumstancia imprevista. A vigilancia do anjo percuciente fora
entretanto illudida. Pessoa particular obtivera por esse tempo que o
codice viesse a Lisboa. Empregaram-se entŃo meios indirectos para
alcanńar copia exacta do chronicon. Mas voltou o codice ao logar d'onde
saĒra? Esta Classe ignora qual foi o seu ulterior destino.
╔ tempo, Senhor, de colher as vellas ao discurso. Parece-nos que o
Governo de V. M. fica habilitado para despachar as supplicas das
corporań§es conforme a justińa e as conveniencias publicas. A Classe tem
a consciencia de que, tanto nas suas sollicitań§es como nos seus
conselhos, procurou sempre conciliar o zelo com a circumspecńŃo, e que
nŃo deu neste negocio um ·nico passo que nŃo signifique o cumprimento de
um dever. Resta ao Governo cumprir o seu. Se no assumpto que se debate
ha lucta entre o amor das cousas patrias e um egoismo pueril, entre a
sciencia e a ignorancia, entre a luz e as trevas, nŃo julga esta Classe
que o reinado de V. M. seja a epocha mais propicia para a victoria da
barbaria contra a civilisańŃo.
Deus guarde a vida de V. M. como o paiz e as letras hŃo mister.
A SUPPRESS├O
DAS
CONFERENCIAS DO CASINO
1871
A
J.F.
Teve v. s.¬ a bondade de me remetter o discurso que o sr. Anthero do
Quental proferiu ou devia proferir no Casino (da sua carta nŃo infiro
claramente se o facto chegou a verificar-se) o que, com os discursos dos
oradores que o precederam, deu aso a serem tolhidas pelo governo
aquellas conferencias. Pede-me v. s.¬ que leia o discurso e lhe dĻ a
minha opiniŃo sobre o seu conte·do e sobre o procedimento da
auctoridade. Nesta vida positiva que hoje vivo, pouco ķ o tempo que me
sobeja para a leitura, nem, a falar verdade, o espirito se inclina muito
para esse lado. Depois, as suas perguntas referem-se a assumptos graves,
e atķ abstrusos, que, porventura, nŃo cabem na capacidade da minha
intelligencia. Accresce que geram em mim tristeza as nossas quest§es
publicas, e com o egoismo de velho fujo de pensar nellas. Apesar, porķm,
de tudo isso, forcejarei por fazer uma excepńŃo a favor deste discurso,
por certa sympathia que sinto pelo auctor, nŃo obstante a profunda
divergencia que ha entre as nossas opini§es. ╔, talvez, porque no seu
caracter me parece descobrir uma destas indoles nobremente austeras que
cada vez se vŃo tornando mais raras. Revela o trabalho que me remette as
precipitań§es e os impetos proprios da idade de quem o delineou. S¾ os
annos nos curam desse defeito. Quizera eu que o sr. Anthero do Quental
conhecesse melhor a doutrina e a tradińŃo verdadeiramente catholicas,
porque havia de ser menos injusto com o catholicismo, embora nŃo fosse
menos severo, ou talvez o fosse ainda mais, com os padres.
Quanto ß prohibińŃo das conferencias, que quer que lhe diga? ╔ peior que
uma illegalidade, porque ķ um desproposito; e na arte de governar, os
despropositos sŃo ßs vezes peiores que os attentados. O que serĒa
escutado e em grande parte esquecido por cem ou duzentos ouvintes serß
agora lido e meditado por milhares, talvez, de leitores. Diz-me que se
tomou por pretexto da suppressŃo das conferencias o desaggravo da
religiŃo offendida. Erro deploravel. Idķa perseguida, idķa propagada:
lei perpetua do mundo moral, perpetuamente esquecida pelo poder. Por
certo, o governo tem obrigańŃo de manter a religiŃo do Estado, como tem
obrigańŃo de manter todas as instituiń§es do paiz. Mas o respeito pela
inviolabilidade do pensamento entra tambem no numero das suas
obrigań§es. E quando a religiŃo do Estado e a liberdade do pensamento
collidem, ķ aos tribunaes judiciaes que cumpre dirimir a contenda. O
discurso oral ķ manifestańŃo da idķa, como o ķ o discurso escripto. NŃo
se p¾de supprimir o orador, como se nŃo p¾de supprimir o escriptor. Para
um, como para outro, ha a responsabilidade e a punińŃo.
Depois, creio pouco que o sr. Anthero do Quental, apesar da sua clara
intelligencia, e da auctoridade moral que lhe dß a integridade do seu
caracter, seja assßs poderoso para derribar o catholicismo, a religiŃo
de S. Paulo e de S. Agostinho, de S. Bernardo e de S. Thomßs, de Bossuet
e de Pascal. O perigo, nŃo absoluto, mas relativo, estß n'outra parte.
Aggredido pela frente, o catholicismo p¾de applicar a si, melhor que o
protestantismo, o verso do bello hymnario de Luthero.
Ein feste Burg ist unser Gott.
NŃo se toma a fortaleza divina; mas p¾de ser minada e alluida por uma
guarnińŃo desleal. ╔ este actualmente o grande perigo que a ameańa: nŃo
sŃo os discursos do Casino. A situańŃo da igreja assemelha-se hoje
ßquella em que se achava no IV seculo, quando o arianismo, no dizer de
S. Jeronymo, triumphava por toda a parte, e atķ o papa Liberio adheria ß
formula ariana do conciliabulo de Sirmio e acceitava como orthodoxa a
heresia. Esta situańŃo tristissima da igreja ķ cousa um pouco mais grave
para a religiŃo do Estado do que todas as hostilidades imaginaveis dos
seus adversarios leaes.
Que me seja licito fazer uma pergunta, que vai maravilhß-lo. Existe
ainda entre n¾s o catholicismo proclamado instituińŃo social pela Carta?
A resposta que eu proprio darei a esta pergunta ainda, porventura, o
maravilharß mais. Existe apenas na fķ perseverante, mas silenciosa e
triste, de alguns fieis, que deploram os destinos preparados ß igreja
por um clero geralmente faccioso e sem convicń§es. Hoje a igreja, se
podesse perecer, correria grande risco de nŃo completar o vigesimo
seculo da sua existencia. Dar-lhe-hei nesta carta a razŃo do meu dicto,
embora isso a torne, talvez, demasiado longa; mais longa, por certo do
que eu desejaria.
Caracter fundamental do catholicismo verdadeiro, do catholicismo que nos
inculcaram na infancia, era a immutabilidade, a perpetuidade e a
universalidade dos seus dogmas e das suas doutrinas na successŃo dos
tempos, caracter precisamente descripto no celebre _Commonitorium_ de
Vicente de Lerins. Nessa crenńa, tŃo incomprehensivel seria a suppressŃo
de um dogma antigo, como a addińŃo de um dogma novo, ou (para me servir
de phrase de um theologo eminente do seculo XV) nessa crenńa nŃo se
tinha por menor heresia affirmar ser de fķ o que nŃo o era, do que negar
que o fosse o que era [4]. Nisto consistia practicamente a immensa
vantagem do catholicismo sobre as seitas dissidentes, indefinitamente
variaveis, fluctuantes, subdivididas de dia para dia, gerando as mais
desvairadas aberrań§es religiosas. Alķm disso, a igreja tinha leis que a
regiam desde os seculos primitivos e que s¾ os parlamentos christŃos, os
concilios, podiam alterar, quando essas alterań§es nŃo fossem de
encontro ßs tradiń§es apostolicas, e a que todos os membros da sociedade
catholica, desde o papa atķ o mais obscuro entre os fieis, eram
obrigados a obedecer. Depois, na economia da sua administrańŃo interna,
nos ritos, e em outras manifestań§es accidentaes do culto, cada igreja
nacional, e atķ cada provincia ecclesiastica, tinha os seus usos e
liberdades especiaes, que a igreja universal consentia, porque o que
constitue verdadeiramente a unidade ķ a unidade da fķ. Governo
parlamentar, maximas fundamentaes dominando atravez dos seculos a
legislańŃo canonica, direito commum conciliando-se com o respeito ßs
autonomias, ninguem superior ß lei, a fraternidade humana, a tolerancia
material ao lado da intolerancia doutrinal; em summa, uma grande parte
das conquistas da civilisańŃo moderna sŃo apenas velhas conquistas do
christianismo transferidas para a sociedade temporal. Cuidando aportarem
a praias ignotas, os publicistas mais de uma vez tem plantado padr§es de
descobrimento em regi§es onde, embora occultos pelos musgos e sarńas, os
padr§es da cruz estŃo plantados ha mais de mil e oitocentos annos.
Sem duvida, durante a idade media, grande numero de abusos se tinham
introduzido na disciplina, no mechanismo da sociedade catholica. Houve
sempre homens grandes e virtuosos que luctassem contra esses abusos, mas
nem sempre alcanńavam moderß-los e mormente vencĻ-los. Na epocha dos
concilios de Constanńa e de Basilea,[5] os dous ultimos concilios
sinceros e livres que a historia ecclesiastica memora, sorriu para a
igreja uma esperanńa de reforma; mas essa esperanńa desvaneceu-se em
breve. Os abusos adquiriram novo vigor quando o renascimento veio
substituir as tendencias christans pelas tendencias pagans, e se
tornaram possiveis papas como Alexandre VI e LeŃo X, mais devotos da
trindade de Momo, Venus e Baccho do que da trindade evangelica. EntŃo,
em logar da reforma, veio a revoluńŃo: veio Luthero. O catholicismo,
mutilado, tornou-se fragmento, embora grandioso fragmento. A resistencia
ß revoluńŃo gerou, porķm, a assemblķa de Trento. Trento exprime um facto
notavel. A igreja servira, seculos antes, como de typo ß sociedade
temporal: a sociedade temporal, onde as liberdades da idade media tinham
cedido jß o campo ao absolutismo victorioso, reflectiu na reorganisańŃo
da igreja. Como o absolutismo trouxera vantagens na vida civil,
trouxe-as tambem na vida espiritual; mas, tanto aqui como alli, essas
vantagens foram bem modestas comparadas com os males que derivavam da
nova contextura da sociedade religiosa e da sociedade temporal; tanto
aqui como alli, um abuso derribado era o prenuncio de muitos que Ēam
pullular. Esses abusos, quer antigos quer modernos, ingeridos na
sociedade christan, invadiam sempre mais ou menos as igrejas nacionaes.
Mas, no meio da decadencia exterior, a essencia do catholicismo--o
dogma--mantinha-se intacta. O symbolo salvo pelo concilio de Nicķa e
pelos esforńos de S. Athanasio continuou atķ n¾s immutavel. Na propria
disciplina, o poder temporal, quando nisso interessava, reprimia as
tendencias abusivas de Roma, e atķ, nŃo raramente, o episcopado,
momentaneamente desperto, recordava-se da sua instituińŃo divina. Novo
Encelado, revolvia-se debaixo da enorme pressŃo do papado e, batendo com
as algemas nos degraus do throno pontificio, fazia-o estremecer.
Travavam-se ßs vezes luctas sķrias entre os dous absolutismos. Ambos
tinham por alliado o cķu. _Tu es Petrus_, allegava o papa: _Per me reges
regnant_, redarguia o rei. _Pasce oves meas_: acudia o papado. _Omnis
potestas a Deo_: repunha o absolutismo. Roma, por via de regra, nŃo
levava a melhor, sobretudo quando os bispos, ou por conveniencia ou por
convicńŃo, se associavam ao poder temporal, o que era frequente.
Ao promulgar-se a Carta, Portugal achava-se nesta situańŃo religiosa. A
Carta, convertendo o catholicismo em instituińŃo politica, adoptava-o
como elle existia no paiz--essencia e f¾rma; dogma e disciplina. Disse o
legislador que a religiŃo catholica apostolica romana _continuaria_ a
ser a religiŃo do reino: nŃo disse que essa instituińŃo seria uma cousa
nova, fluctuante, mudavel, conforme approuvesse aos jesuitas ir
supprimindo ou annexando dogmas ß doutrina catholica, mediante o assenso
ou inconsciente ou incredulo do papa e do episcopado. O que contin·a nŃo
ķ o que vem de novo; ķ o que existe no acto de continuar. Ora os factos
estŃo desmentindo esta doutrina irrefragavel. Desde a promulgańŃo da
Carta tem-se realisado gradualmente uma revoluńŃo na igreja catholica.
Com assombro da gente illustrada e sincera, vimos transformar em dogma
uma superstińŃo dos seculos de trevas, rendoso mealheiro de
franciscanos, tinctura de pelagianismo, aproveitada hoje para aviar
receitas na botica de S. Ignacio, a immaculada conceińŃo de Maria, dogma
que forńadamente conduz ou ß ruina do christianismo pela base, tornando
inconcebivel a RedempńŃo, ou ß deificańŃo da mulher, ß mulher-deus, ß
mulher redemptora, recurso tremendo nas mŃos do jesuitismo, que,
lisonjeiando a paixŃo mais energica do sexo fragil, a vaidade, o
converte em instrumento seu para dilacerar e corromper a familia, e pela
familia a sociedade. Depois, ludibrio desses homens de trevas, vemos o
papa, celebrando uma especie de concilio disperso, mandar perguntar
pelas portas dos bispos que tal acham aquelle appendiculo ß fķ
catholica. Os bispos, pela maior parte, encolhem os hombros ou riem-se,
dizem-lhe que estß vistoso, e vŃo jantar. Depois, os que falam em nome
do pontifice, tendo tornado virtualmente absurdo, por inutil, o
sacrifĒcio do Golgotha para a redempńŃo da humanidade, ou dando ao
Christo um adjuncto na sua obra divina, divertem-se em negar no
_Syllabus_ os dogmas, um pouco mais verdadeiros, da civilisańŃo moderna,
e tendo elevado o erro, apenas tolerado, e ainda mal que tolerado, nos
dominios do opinativo, a dogma indisputavel, e sanctificado assim uma
opiniŃo peior que ridicula, convidam a sociedade temporal ß guerra
civil. ╔ a Companhia de Jesus na sua manifestańŃo mais caracteristica.
Os principios da Carta, como os de todas as constituiń§es analogas, sŃo
condemnados, anathematisados, exterminados _in petto_. ╔ a communa de
Paris, prefigurada em Roma, a arrasar e queimar, em vez de edificios,
todas as conquistas do progresso social, todas as verdades fundamentaes
da philosophia politica. Ao concilio vagabundo segue-se entŃo o concilio
parado. ╔ que falta ao _Syllabus_ a sancńŃo divina. Dar-lha-ha a
infallibidade indossada pelo episcopado ao papa ou ß sua ordem.
Ajunctam-se nŃo sei quantos bispos, muitos bispos; uns reaes, outros
pintados: agremiam-se; e o papa pergunta ao gremio, em vez de o
perguntar a si mesmo, se ķ infallivel. Os bispos tornam a encolher os
hombros ou a rir-se, dizem-lhe que sim, e vŃo ceiar. O papa infallivel,
que nŃo sabĒa se era fallivel, fica emfim descanńado, e os bispos
ceiados, dormidos e desappressados do _visum est Spiritui Sancto et
nobis_ do concilio apostolico de Jerusalem, transferido definitivamente
para a Casa-professa, voltam a annunciar aos respectivos rebanhos essa
nova correcńŃo das erroneas doutrinas da primitiva igreja.
Taes sŃo os deploraveis e incriveis successos que temos presenciado. O
jesuitismo converte o infeliz Pio IX n'um Liberio ou n'um Honorio,
induzindo-o a subscrever heresias, e a grande maioria dos bispos,
creando na igreja uma situańŃo analoga ß dos tempos em que o arianismo
dominava por toda a parte, e abandonando a maxima sacrosancta da
immutabilidade da fķ, tornam-se em arautos e pregoeiros dos desvarios de
Roma. As novidades religiosas vem perturbar as consciencias, e o
marianismo e o infallibilismo quasi levam o christianismo de vencida na
igreja catholica. Ninguem vĻ isto; ninguem sabe disto. ╔ que, em
Portugal, os que ainda crĻem em Deus e na divina missŃo de Jesus, sem
crerem na conceińŃo immaculada nem na infallibilidade do summo
pontifice, pelo seu diminuto numero e pela tibieza que ķ geral em todas
as crenńas, nŃo tem nem forńa, nem resoluńŃo para arrostar com as iras
do beaterio neo-catholico. O governo, esse vĻ s¾ o Casino, ouve s¾ os
discursos do Casino. Aquillo ķ que ameańa subverter a religiŃo, a
monarchia e a liberdade. _Dedit abyssus vocem suam_. A voz do abysmo sŃo
aquelles quatro ou cinco mancebos que vŃo falar de cinco ou seis
quest§es desconnexas a cem ouvintes, metade dos quaes provavelmente nŃo
entendem a maior parte do que elles dizem, o que tambem ķ muito possivel
me succedesse a mim.
Isto ķ simplesmente, macissamente, indisputavelmente ridiculo.
O que ķ grave em si, e como tendencia, e como symptoma, ķ a intervenńŃo
da policia preventiva nessa questŃo: ķ a policia violando um direito
anterior ß lei positiva, o direito da livre manifestańŃo das ideas,
direito exercido por individuos que se apresentam franca e lealmente
adversarios do catholicismo e acceitam sem tergiversar a
responsabilidade e a penalidade que possam corresponder ao seu acto. O
governo parece ignorar que o bom ou mau uso dos direitos absolutos estß
acima e alķm das prevenń§es da policia. Dizer-se que se respeita a
liberdade do pensamento, sob a condińŃo de nŃo se manifestar, ķ pueril.
Na manifestańŃo ķ que reside a liberdade, porque s¾ os actos externos
sŃo objecto do direito, e a liberdade de pensar em voz alta ķ um direito
originario, contra o abuso do qual nŃo p¾de haver prevenńŃo, mas
unicamente castigo. Menos essencial ķ o direito eleitoral ou a garantia
do jury. Traz aquelle nŃo raro violencias, corrupń§es, tumultos: traz
esta pela indulgencia, ßs vezes pela venalidade, frequentemente pelo
temor, audacia nos maus, frequencia nos crimes. A propria religiŃo dß
pretextos ao fanatismo, e o fanatismo tem escripto a sua historia com
lagrymas e sangue na face dos seculos. Pois bem: supprimi o eleitor;
supprimi o jurado; supprimi a religiŃo; supprimi tudo, pelos perigos que
de tudo podem advir. Fique s¾ a prevenńŃo e a policia.
O seu amigo Anthero do Quental podia fazer dez, vinte, cem conferencias
contra o catholicismo, comtanto que nŃo perturbasse a paz publica, e o
governo podia querelar d'elle dez, vinte, cem vezes. Di-lo o artigo
363.░ do codigo civil. NŃo assim a respeito das novidades que tem
alterado a indole da igreja catholica. Aqui nŃo se tracta do modo como
um cidadŃo exerce um direito inauferivel: tracta-se do modo como
funccionarios publicos, segundo a jurisprudencia recebida, exercem as
suas funcń§es. Visto que assim se entende a Carta, os prelados
diocesanos e o seu clero sŃo funccionarios, nŃo s¾ porque o poder
temporal lhes dß uma intervenńŃo maior ou menor em assumptos de
competencia civil: sŃo funccionarios publicos no proprio ministerio
sacerdotal; porque, convertida a religiŃo em instituińŃo politica, os
ministros d'ella sŃo agentes e executores da lei constitucional,
justamente na esphera espiritual; absurdo, na verdade, grande, mas
corollario ineluctavel de outro absurdo maior, a interpretańŃo que os
reaccionarios e ainda alguns liberaes dŃo ao artigo 6.░ da Carta.
Eram acaso dogmas em 1826 o immaculatismo e o infallibilismo? Quem
ousaria affirmß-lo? Era em 1826 um dos caracteres essenciaes do
catholicismo a perpetuidade da fķ e a sua identidade atravez dos
seculos? Ninguem se atreveria a negß-lo. Os proprios restauradores de
velhos erros, agora convertidos em dogmas, fazem esforńos desesperados
para os filiarem nas tradiń§es da igreja. SŃo esplendores do cķu que
andavam nublados. Acceitavam-se, porventura, antes dessa epocha as
maximas do _Syllabus_ contradictorias com as leis do reino, com o seu
direito publico? Jß notei que nem o proprio absolutismo acceitava
aquellas que o contrariavam quando, dispersas, nŃo se pensava ainda em
compaginar essa especie de mappa estrategico da campanha contra a
civilisańŃo. O absolutismo tinha o _placet_ regio para repellir as
invas§es de Roma e os proprios erros de doutrina em que Roma, ou antes
os successores de Pedro, podiam, como elle, nŃo perpetuamente, mas
temporariamente, cahir; e o absolutismo usava amplamente desse recurso.
Era uma praxe sanctificada pelo simples senso commum, pelo direito que
tem todo o dono de casa de examinar as doutrinas que os vizinhos lhe
inculcam ß familia. D'ahi derivou a legitimidade da convocańŃo dos
primeiros concilios ecumenicos pelos imperadores romanos.
A historia do _placet_ ou _exequatur_ ķ por toda a parte rica de
peripecias. Nos ultimos seculos, o rei e o papa eram dons duellistas de
supremo cavalheirismo e esmerada educańŃo. Das mutuas delicadezas, dos
apices de benevolencia nŃo omittiam um s¾ ao encetarem qualquer lucta.
Quasi que sentiam um pelo outro mutua ternura. O rei beijava, cß de
longe, o pķ do papa: lß de longe, o papa estendia para o seu filho
predilecto a benńŃo apostolica. A questŃo, que se iniciava pela recusa
do _placet_, terminava, de ordinario, por ser intimado o nuncio para
sair da corte em vinte e quatro horas, e por ser o paiz posto em
interdicto. Chamava-se entŃo a isto, na phrase dos homens de estado e
dos jurisconsultos, concordia do sacerdocio e do imperio.
A Carta, transformando a religiŃo em instituińŃo politica, manteve
felizmente o beneplacito a que estavam sujeitas sem excepńŃo todas as
letras apostolicas de caracter generico. Digo, felizmente, porque, em
vez de se dar ao artigo 6.░ da Carta uma interpretańŃo racional, e que
nŃo esteja em antimonia com as garantias dos cidadŃos e com as maximas
mais indubitaveis das sociedades livres, dß-se-lhe, com acceitańŃo
commum, um valor monstruoso e illiberal. Racionalmente, a instituińŃo de
uma religiŃo do Estado n'um paiz livre nŃo p¾de significar senŃo uma
homenagem ß crenńa da grande maioria dos cidadŃos, homenagem
representada pela manutenńŃo do sacerdocio e do culto a expensas do
Estado, pelo singular privilegio de ser este culto o unico publico, e
pelas demonstrań§es de respeito para com a religiŃo da sociedade que se
exigem de todos os cidadŃos. Ao lado disto, n'um paiz livre, nŃo p¾de
deixar de ser escrupulosamente mantida a plena liberdade da consciencia,
e removida completamente a mistura dos actos e formulas religiosas com
as phases e com os actos da vida civil em que tal mistura produza
annullańŃo de direitos ou da igualdade de direitos. Com semelhante
garantia, e nesta situańŃo transitoria entre o antigo predominio de uma
crenńa exclusiva e tyrannica e a distincńŃo precisa entre o estado e a
igreja, que tem de vir a formular-se definitivamente nas sociedades
futuras, as prevenń§es do ¦ 14.░ do artigo 75.░ da Carta seriam
excessivas, e atķ, porventura, desnecessarias. Mas, quando se quer que a
existencia de uma religiŃo do Estado importe para a universalidade dos
cidadŃos o dever de se conformarem com os preceitos della em todos
aquelles actos da vida exterior que taes preceitos possam abranger, e se
dß a uma crenńa religiosa, isto ķ, a certa norma das relań§es entre o
homem e Deus, os caracteres e a natureza de uma norma das relań§es entre
o homem e a sociedade, ķ obvio que se attribue ß religiŃo uma indole
mundana, temporal, derivando unicamente a sua auctoridade e a sua forńa
coactiva de ser instituińŃo politica, e essa forńa e auctoridade hŃo de
manter-se, interpretar-se, applicar-se, circumscrever-se, pelos mesmos
meios e pelo mesmo modo por que se mantem, interpretam, applicam e
circumscrevem as das outras instituiń§es analogas.
Supposta a theoria da coacńŃo religiosa, supprimir na constituińŃo a
doutrina do beneplacito seria absurdo, porque seria impossivel sem ella
impor aos ministros a responsabilidade por tolerarem qualquer infracńŃo
do artigo 6.░ da Carta, quando a infracńŃo procedesse de abusos da curia
romana, de excessos do poder espiritual, do mesmo modo que seria
impossivel impor-lha recusando-lhes a inspecńŃo dos actos do clero
official, ainda relativos ßs suas funcń§es puramente sacerdotaes. ╔
certo que o direito de beneplacito ķ um dos erros feios anathematisados
no _Syllabus_; mas tambem ķ certo que no _Syllabus_ estß anathematisado
um bom terńo dos artigos constitucionaes da Carta.
Tendo, pois, os ministros por dever a manutenńŃo da crenńa official na
sua integridade, nem mais nem menos, e possuindo os meios que lhes
faculta a constituińŃo para desempenharem esse dever, como ķ que os
governos d'esta terra tem defendido, em relańŃo ßs aggress§es do poder
espiritual, a instituińŃo politica da religiŃo do Estado? De um modo,
que, se a responsabilidade ministerial fosse entre n¾s cousa sķria, e
nŃo uma phrase inventada para os ambiciosos em disponibilidade darem
vaias aos ambiciosos em exercicio, receio muito que a maioria dos nossos
ministros, ha vinte e cinco ou trinta annos a esta parte, tivessem
corrido grande risco de severo castigo. Essas loucuras practicadas no
centro da unidade catholica, a que jß me referi, reproduzem-se entre
n¾s. A historia da igreja portuguesa nos ultimos annos ķ uma
contradicńŃo permanente com a Carta. Altera-se o dogma e busca-se
alterar a disciplina. Nas pastoraes, nos pulpitos, na imprensa
infallibilista inculcam-se novidades no regimen da igreja e novidades de
crenńa. Os missionarios e uma parte do clero curado repetem ao povo
quantas semsaborias se espriguińam por essas vastas charnecas das
allocuń§es que os jesuitas assignam com o pseudonymo de _Pio Nono_. Os
principios que sŃo hoje condiń§es essenciaes da existencia politica da
nańŃo portuguesa apontam-se ao povo ignorante como invenń§es do diabo.
Miss§es dos agentes do jesuitismo, umas ineptas, outras astutas,
instillam por toda a parte o veneno do ultra-montanismo extremo, e
corrompem o elemento social, a familia, sobretudo pela fraqueza
mulheril. Vemos bispos que protegem esses agentes, e que os applaudem;
parochos que os acceitam para que elles fańam o que, em diverso sentido,
fora dever seu fazer. ╔ uma conspirańŃo permanente, implacavel contra a
sociedade. As resistencias nascidas no seio do proprio clero sŃo
difficilimas, senŃo impossiveis. O que tentasse levantß-las seria
esmagado. Os antigos institutos monasticos, que pela emulańŃo, e pela
seriedade e profundeza dos seus estudos, se contrapunham ao jesuitismo e
ß sua sciencia facciosa e dolosa, desappareceram, e se hoje se
restaurassem entre n¾s, succederia o que succede quasi por toda a parte:
ir-se-lhes-hia encontrar a roupeta de S. Ignacio debaixo da cogulla
benedictina ou augustiniana. O presbyterado, que ķ como a burguesia da
igreja, e no seio do qual se encontram jß muitos sacerdotes mońos, ao
mesmo tempo crentes e illustrados, nŃo tem forńa para readquirir nos
negocios da sociedade christan o quinhŃo de influencia que a disciplina
primitiva lhe dava. E, todavia, s¾ uma especie de presbyterianismo
orthodoxo e simplesmente disciplinar tornaria agora possivel dar-se
algum remedio ß ruina da igreja; porque talvez esses homens novos
quizessem e soubessem congrańß-la com a sociedade moderna. Infelizmente,
porķm, ß abdicańŃo dos bispos nas mŃos do papa, comeńada ha seculos e
consummada no nosso tempo, tem correspondido a servidŃo cada vez mais
profunda dos presbyteros. Ao procedimento do episcopado p¾de applicar-se
a phrase de Tacito ½_omnia serviliter pro dominatione_╗. Tudo o que
tende a dar a menor sombra de independencia ao clero inferior irrita o
ciume dos prelados. Sirva em Portugal de exemplo a pertinaz resistencia
que se tem feito ßs transferencias de parochos sem a intervenńŃo
episcopal. De certo as tradiń§es disciplinares do velho catholicismo nŃo
favorecem essas mudanńas; nŃo ķ, porķm, a quebra dos canones que
incommoda os prelados; e, senŃo, digam se viram jß algum delles
indignado de o transferirem para sķ mais importante ou mais pingue sem a
intervenńŃo do concilio provincial, embora o consorcio entre o bispo e a
sua igreja nŃo seja menos sķrio do que o ķ entre o presbytero e a sua
parochia. O que os mag¶a ķ que o simples clerigo possa obter a minima
vantagem sem que propriamente lh'a deva; que nŃo dependa delles sempre e
em tudo. As aspirań§es desta succursal da Casa-professa a que ainda hoje
se chama igreja docente resumem-se n'uma formula breve: perfeito
absolutismo na jerarchia sacerdotal, tendo por cuspide um summo
sacerdote, como Deus infallivel. Roma homologou, substituindo-o ß
constituińŃo da igreja, o instituto da Companhia, porque assim sŃo mais
precisos e pontuaes os movimentos estrategicos do exercito ultramontano
sob o commando do geral dos jesuitas, e o pensamento da assemblķa
celebrada em Trento ha trezentos annos tende sempre, com mais ou menos
fortuna, ß sua completa realisańŃo. O absolutismo na igreja ķ como o
prodromo do absolutismo na sociedade civil, sanctificado pelo _Syllabus_
com os anathemas ß liberdade. Depois, fundindo-se ambos n'uma ultima
evoluńŃo, a sua synthese definitiva seria o poder illimitado e omnimodo
do papa, do pontifice-deus, sobre a existencia interior e exterior,
espiritual e temporal dos povos; seria a monarchia universal, o
despotismo theocratico sonhado pela ambińŃo de Gregorio VII.
Fora necessario estar inteiramente obcecado para nŃo ver que a revoluńŃo
que de ha muito se Ēa preparando no seio do catholicismo, que hoje se
realisa, e cujo termo tem necessariamente de ser fatal para a igreja ou
para a liberdade, se espraia jß, onda ap¾s onda, entre n¾s, sem
encontrar resistencia da parte dos poderes publicos, e nem sequer a
resistencia collectiva do partido liberal, que faz travesseiro para
dormir do destino das gerań§es futuras. Na Allemanha, no paiz da forńa e
da vida moral, da sciencia e da consciencia, as audacias de Roma
perturbam e concitam os animos, e o velho catholicismo arma-se para o
combate. N¾s nŃo pensamos nessas insignificancias: n¾s elegemos e somos
eleitos. Que importa o resto? _Loco libertatis esse coepit quod eligi
possumus_, dizia Tacito dos romanos corrompidos. Os povos, como os
individuos, assentam-se indifferentes e serenos no atrio da morte quando
lhes chega a quadra fatal do idiotismo senil.
E todavia, a questŃo ķ ao mesmo tempo simples e grave.
Tem o governo negado o _exequatur_ aos documentos emanados, a bem dizer,
diariamente da chancellaria apostolica, donde resultam alterań§es no
dogma e na disciplina da religiŃo official, ou em que sŃo aggredidos os
princĒpios do actual direito publico portuguĻs? Tem o governo imposto
aos prelados a obrigańŃo de lhe submetterem as suas pastoraes antes de
serem publicadas, de modo que quaesquer novidades religiosas ou
politicas nŃo sejam propagadas pela auctoridade do alto clero? Tem o
governo advertido este de que os pulpitos dos templos fundados pela
nańŃo, em eras mais ou menos remotas, protegidos pelas leis, e mantidos
ß custa do Estado, nŃo podem servir de instrumento para a ruina do mesmo
Estado? Se tem feito isto e nŃo tem sido obedecido, o governo ķ
responsavel por nŃo haver coagido os seus funccionarios ecclesiasticos a
respeitarem as instituiń§es e as leis do paiz. Se nŃo o tem feito, ķ rķu
de traińŃo contra a Carta. Nenhum parlamento imp¶s essa
responsabilidade, ķ certo; nenhum, provavelmente, a imporß. Sei isso, e
sei porquĻ. NŃo ķ, todavia, menos verdade que ha vinte e cinco ou trinta
annos o clero estß infringindo a Carta, se o artigo 6.░ della significa
o que o mesmo clero e tanta outra gente pretende que signifique. O
bispo, o parocho, o missionario, que propalam doutrinas tendentes a
alterar a religiŃo do paiz, ou que offendam o pacto social, tumultuam.
Esses homens estŃo em manifesta rebelliŃo, rebelliŃo, nŃo porque
condemnem as instituiń§es em linguagem mais ou menos violenta, o que, se
fossem simples cidadŃos, constituiria apenas um delicto commum sujeito ß
apreciańŃo dos tribunaes, mas porque aproveitam a forńa moral que lhes
dß o seu caracter sagrado e a sua condińŃo de funccionarios do Estado
para, ao mesmo tempo, inficionarem com extranhos erros a religiŃo de
nossos paes, que, immutavel, deve _continuar_ a ser a religiŃo official,
e para alluirem pelos fundamentos a monarchia representativa.
╔ racionalmente possivel semelhante situańŃo? Ha de soffrer-se a
anarchia, porque se agita, nŃo nas ruas e campos, mas sob os doceis
episcopaes, no pulpito e no confessionario? Fizeram-se os governos para
proverem nos grandes perigos sociaes como este, ou para estarem
espreitando ßs fisgas das portas se algum mancebo mais ou menos
imprudente, mas sem pensamento reservado, sem compromissos occultos com
conspiradores estrangeiros, expoem as suas opini§es, embora erradas, a
uma assemblķa pacifica, pouco numerosa, e pouco attenta, provavelmente,
ß substancia do discurso, mas curiosa da belleza da f¾rma? Pois a
consciencia timorata da policia a escrupulisar de ouvir impiedades e a
p¶r, para as cohibir, o bengalŃo do quadrilheiro no logar das f¾rmulas
judiciaes ķ cousa que se tolere? Quando taes enormidades fossem licitas,
nŃo se deveria dar ßs exuberancias sinceras da mocidade mais importancia
do que tem realmente. Ha verduras da intelligencia, como ha verduras de
corańŃo. Nas indoles energicas, nos cerebros vastos ķ que ellas sŃo
maiores. Ha a esperar nessas intelligencias os effeitos do tempo e das
cogitań§es. Da inepcia ou da hypocrisia ķ que nada ha a esperar. Quando
as tempestades moraes, as longas e acres tristezas da existencia e os
profundos desenganos do mundo tiverem devastado aquellas almas, nŃo serß
raro que se vß encontrar o impio dos vinte cinco annos, lß pela tarde da
vida, assentado ao pķ da cruz, a scismar no futuro e em Deus. NŃo quer
dizer isto que os devotos fervorosos de vinte annos sejam provadamente
hypocritas. A convicńŃo religiosa p¾de ser mais precoce e mais viva
neste ou naquelle espirito. Todavia, sempre serß bom verem se lhes
descobrem debaixo da burjaca piedosamente mal talhada o cabeńŃo de
jesuita.
Mas que ha de fazer o governo? Cumprir o seu dever. Compellir o clero
official a respeitar as doutrinas da Carta, recusar o beneplacito a tudo
que venha de f¾ra alterar a religiŃo do paiz, a religiŃo como ella era
em 1826, e obstar a que os prelados acceitem e promulguem como dogmas
erros de fķ, como direito a quebra dos canones, como doutrina catholica
as blasphemias contra as maximas fundamentaes da sociedade civil. O
governo tem arbitrio para conceder ou negar o _exequatur_ ßs decis§es
conciliares ou ßs letras apostolicas quando nŃo collidirem com a
constituińŃo do reino. As que forem hostis a esta, ķ obvio que ha de
rejeitß-las, combatĻ-las, annullß-las. Podem em Roma inventar o que
quizerem, proclamar o que lhes convier, anathematisar o que lhes
parecer. Em Portugal ķ que nada disso p¾de ser admittido, se repugnar ßs
instituiń§es politicas de que forma parte a religiŃo do Estado. Nas
proprias resoluń§es synodaes ou pontificias que nŃo se contraponham ß
Carta, mas de applicańŃo geral, e que, portanto, hŃo-de obrigar a
generalidade dos cidadŃos nas suas relań§es religiosas, a simples
acceitańŃo do governo nŃo basta: ķ necessaria, para terem vigor e
obrigarem, a acceitańŃo do parlamento.
Mas, dir-se-ha, os ministros nŃo sŃo theologos nem canonistas para
aquilatar os actos e doutrinas recentes da igreja ou do seu chefe,
afferindo-os pelas tradiń§es religiosas do paiz. Oh sancta simplicidade!
Os ministros sŃo tudo o que ķ preciso que sejam para serem ministros.
Ninguem os recruta para isso. Mas ainda ao mais insciente ministro, dado
que as facń§es nŃo possam dispensß-los de serem profundamente ignorantes
n'estas materias, uma experiencia facil ensinarß se o neo-catholicismo ķ
ou nŃo o mesmo que o catholicismo de nossos paes. Se nŃo ķ, cumpre
extirpß-lo das regi§es officiaes, porque a manutenńŃo do pacto social o
exige. Os reaccionarios que, em nome da Carta, nŃo admittem a minima
tolerancia para as divergencias religiosas que por qualquer modo se
manifestem, devem, por maioria de razŃo, ser os primeiros a applaudir a
severidade do governo.
E a experiencia ķ simples. Em encyclicas, em livros, em publicań§es
periodicas, em pareneses de missionarios sŃo apodadas de erros, de
blasphemias e de heresias grande parte das doutrinas contidas na Carta.
Diante destas aggress§es contra os principios liberaes, os ministros
podem talvez esquecer que ha tribunaes e juizes. Se faltam ao que, em
rigor, ķ dever seu, eu, pelo menos no foro intimo, estou quasi tentado a
perdoar-lhes. A laxidŃo neste caso confunde-se um tanto com a
tolerancia, e a tolerancia nunca se me affigura demasiada. Bom fora que
ella dķsse tambem uma volta pelo Casino. O que me parece de mais ķ que o
governo abandone a defesa moral, alißs tŃo facil, dos principios que sŃo
hoje o fundamento da sociedade civil. O clero official nŃo p¾de recusar,
sem previamente resignar as suas funcń§es, o ser instrumento do governo
nessa modesta e legitima defesa. ╔ obvio que a antiga religiŃo que, pela
Carta, _continuou_ a ser a religiŃo do reino era e ķ perfeitamente
accorde com aquelles principios. Sem isso, a Carta nŃo seria s¾ absurda;
seria practicamente impossivel. Ou o artigo 6.░, como na praxe se
interpreta, matava o resto, ou o resto matava o artigo 6.░ As liberdades
patrias, os direitos e garantias dos cidadŃos, o mechanismo do governo
representativo conciliam-se, portanto, com a nossa crenńa. O pacto
social ķ a consagrańŃo de todo esse conjuncto de instituiń§es. A sua
coexistencia, a sua harmonia sŃo indispensaveis sob o regimen da Carta.
Quando pois, neste paiz, a malevolencia reaccionaria declara a religiŃo
inimiga da sociedade moderna, nŃo se refere ß religiŃo de Portugal, e se
o seu intuito ķ referir-se a ella, calumnĒa e insulta a crenńa nacional.
Nesse caso, cumpre que os bispos, os parochos, em summa, todos os
funccionarios ecclesiasticos desaggravem a fķ offendida e esclareńam o
povo para que o erro nŃo possa transviß-lo. ╔ para servirem a religiŃo
que a sociedade lhes confere honras, proventos, exempń§es, auctoridade;
e a unica religiŃo que elles tem de ensinar, servir e defender ķ a que
coexiste e se harmonisa ha perto de meio seculo com as instituiń§es da
Carta. ╔ o direito e ķ o dever do governo compelli-los a que o fańam. ╔
necessario exigir delles manifestań§es positivas, e que os bispos,
parochos e professores publicos de theologia declarem falsas e
subversivas todas as doutrinas, sejam de quem forem, venham donde
vierem, que tenderem a tornar contradictoria a religiŃo do reino com as
condiń§es impreteriveis da sociedade actual estatuidas na Carta.
Que o governo exija isto, e espere o resultado.
Outra experiencia.
Em 1826 a theologia, a historia ecclesiastica, os ritos, os canones
ensinavam-se na universidade, nos seminarios, nos cursos de estudos das
congregań§es e das ordens monasticas. As dioceses tinham os seus
catecismos, pelos quaes os parochos e mestres educavam a infancia na
doutrina catholica. Os prelados de entŃo acceitavam esses compendios,
expositores e catecismos; ordenavam-nos, atķ. O ensino, portanto, das
sciencias ecclesiasticas e a doutrinańŃo dos fieis eram necessariamente
conformes com a religiŃo catholica seguida pelo paiz. Atenhamo-nos,
pois, aos catecismos, aos compendios, aos expositores, aos livros, em
summa, por onde se ensinaram as sciencia ecclesiasticas e se educou o
clero e o povo desde o principio deste seculo atķ a promulgańŃo da
Carta. Declare-se que todas as doutrinas, ou desconhecidas nesses
livros, ou contrarias ßs que elles encerram, ou a que se dĻ uma
interpretańao ou um valor differentes dos que se lhes davam entŃo, ou
sŃo heterodoxas ou erroneas, quer se refiram ao dogma, quer ß moral
religiosa, quer ß disciplina. Teremos assim a certeza: primeiro, de que
_contin·a_ a ser religiŃo do reino a que d'antes era; em segundo logar,
de que essa ķ a crenńa catholica apostolica romana de que fala a Carta.
Os bispos eram entŃo, como o foram sempre, os principaes juizes da fķ, e
os papas os chefes visiveis da igreja pela sua primazia. Pio VI ou Pio
VII valiam bem Pio IX. Nunca, porķm, nessa epocha Roma lanńou sobre n¾s
sequer uma suspeińŃo de heterodoxia, e fossem quaes fossem as
divergencias entre a curia romana e a igreja portuguesa ou o governo
portuguĻs em assumptos disciplinares, nunca se proferiu contra n¾s a
accusańŃo de scisma. Estavamos, pois, pelas nossas tradiń§es e doutrinas
perfeitamente no seio da igreja. Mantendo exclusivamente o dogma
catholico, nem mais, nem menos, como a igreja no-lo ensinou a n¾s os
velhos, e conservando-nos, em relańŃo ß disciplina, onde estavamos,
estamos indubitavelmente no gremio dessa igreja; porque a religiŃo ķ
immutaveĒ, a religiŃo nŃo se aperfeińoa. O criterio supremo do
catholicismo estß resumido na celebre maxima: _Quod ubique, quod semper,
quod ab omnibus creditum est_.
Diga o governo isto aos bispos, aos cabidos, ßs escholas de theologia e
de canones, aos parochos, aos commissarios de estudos, aos mestres
primarios. Envolva-se no manto da sua ignorancia. O seu criterio ķ
apenas o do senso-commum. Mantem a religiŃo da Carta, porque lhe nŃo ķ
licito manter outra sem crime, e conscio da propria incompetencia,
recorre a um meio seguro de nŃo errar. Imponha o ensino de ha cincoenta
ou sessenta annos em materia religiosa, e vigie pelos seus agentes se
alguem exorbita das doutrinas de entŃo e se atraińoa com o ensino oral o
ensino escripto. O imperante farß nisto nŃo s¾ o papel de mantenedor da
Carta, mas tambem o de bispo externo; farß o mesmo que nos seculos
aureos do christianismo faziam os imperadores romanos com applauso dos
Padres da primitiva igreja.
O tumulto que ha-de alevantar este procedimento, alißs tŃo simples e
razoavel, sei eu. Verß, meu amigo, o que vai. Verß a reacńŃo a inquietar
na jazida com seus furiosos clamores as cinzas dos nossos mais
veneraveis prelados dos fins do seculo XVIII e dos principios deste
seculo, dos magistrados mais integros, dos professores mais sabios, dos
mais abalisados jurisconsultos e theologos, e atķ a memoria de algumas
das congregań§es religiosas que desappareceram, para os accusar de
jansenismo, de gallicanismo, de philosophismo. Verß o que succede ao
clero regular que foi, aos benedictinos, aos augustinianos, aos
oratorianos. Referindo-me ß congregańŃo do Oratorio, nŃo falo do pequeno
hereje ruivo, o terrivel padre Pereira de Figueiredo. Esse tem de ha
muito recebido o seu quinhŃo de anathemas maranathas. Tudo
pedreiros-livres. Os reaccionarios hŃo-de provar atķ a evidencia que o
artigo 6.║ da Carta nŃo diz o que diz. _Quidquid dixeris, argumentabo_.
HŃo-de provar que o verbo _continuar_ significa em rigor _ser
substituido_, substituido o catholicismo da biblia e da tradińŃo, o
catholicismo de nossos maiores, pelo neo-catholicismo, com os seus
dogmas de nova fabrica e materia velha, com as suas maximas
anti-sociaes, com as suas pretens§es ß restaurańŃo do papado como o
concebiam Gregorio VII ou Bonifacio VIII, e com a moral asquerosa dos
casuistas do padre Lainez substituida ß do evangelho de Jesu-Christo.
╔ uma lucta, pois, que eu aconselho ao poder civil? De certo. Os
governos fizeram-se para luctar quando ķ necessario manter as
instituiń§es do paĒz. O direito estß da sua parte. Se o artigo 6.░ da
Carta tem a significańŃo e a latitude que se lhe dß, ķ indispensavel que
se dĻ igual valor e extensŃo ao ¦ 14.░ do artigo 75.░ Cumpre que o clero
official venha a uma situańŃo definida e precisa. Ou o _Syllabus_ ou a
Carta. A questŃo reduz-se a isto.
Mas a acceitańŃo prestada pela maioria dos bispos ßs definiń§es _ex
cathedra_ do pontifice? Mas a adopńŃo do _Syllabus_ pelos prelados como
norma de doutrina? Mas as decis§es do concilio ecumenico do Vaticano?
Sem debater as condiń§es que a tradińŃo exige para terem valor as
definiń§es pontificias, e se ķ ou nŃo pueril a moderna distincńŃo _ex
cathedra_ e _non ex cathedra_, inventada para salvar as contradicń§es
dos papas em materias de fķ e de costumes: sem indagar se a adhesŃo dos
bispos representa sempre a adhesŃo das respectivas igrejas; sem
finalmente individuar os caracteres que assignalam a ecumenicidade de um
concilio, e atķ onde obrigam as suas resoluń§es, quando Ócerca destas
nŃo houve, ao menos, a unanimidade moral; evitando, em summa, quest§es
abstrusas, origem de interminaveis debates, limite-se o governo a exigir
o cumprimento rigoroso do respectivo artigo da Carta interpretado pela
reacńŃo. Que mais querem? Os neo-catholicos constituidos em dignidade,
exercendo funcń§es publicas, ficam na plena liberdade interior de crerem
o que lhes aprouver: nos actos exteriores hŃo-de ser catholicos de 1826.
Supponho que a theoria ķ esta. Collidem as infallibilidades papaes?
Deixß-las collidir. Admittamos que a boa, a de lei, ķ a de hoje. Os
neo-catholicos estŃo salvos. Vai para o inferno o Estado quando morrer.
Manda-o para alli a Carta. Cumprir e fazer respeitar as instituiń§es e
as leis ķ a missŃo dos ministros; nŃo o ķ a salvańŃo das almas. Isso
pertencia d'antes ß igreja, e pertence hoje, por transacńŃo particular,
ß Companhia de Jesus.
Que ninguem se assuste com a immensa e omnipotente auctoridade de um
concilio ecumenico. A primeira condińŃo da sua forńa ķ a certeza de sua
ecumenicidade e da liberdade das suas decis§es; alißs nŃo passaria de um
conciliabulo; de um _latrocinio d'Epheso_, conforme a phrase dos Padres
de Calcedonia. Ainda, porķm, que se dĻ tal certeza, nem por isso o poder
temporal fica inhibido de negar o seu assenso ßs resoluń§es synodaes.
Figurava de ecumenico o concilio de Trento, e todavia a Franńa recusou
constantemente acceitß-lo, sem distincńŃo de dogma ou de disciplina.
Havia, atķ, certa affectańŃo nos actos officiaes em chamar _assemblķa de
Trento_ ao concilio. Foi infructuoso todo o empenho do clero francez em
fazer admitti-lo, porque as barreiras que lhe oppunham ora os reis, ora
os tribunaes, eram insuperaveis. E nunca a Franńa foi por isso reputada
scismatica, nem os reis _christianissimos_ deixaram de ser os _filhos
primogenitos da igreja_. Era simples a explicańŃo da repulsa. Muitas das
resoluń§es disciplinares do concilio repugnavam aos principios e ßs leis
que a sociedade temporal reputava uteis ou necessarias ß sua existencia.
Acceitando o concilio, a sociedade feria-se ou suicidava-se. Era contra
o direito natural. ┴ cautela, repellia tudo, porque nas deliberań§es do
concilio nem sempre era facil discriminar o doutrinal do disciplinar.
Nenhum perigo havia naquella rejeińŃo absoluta. Se o concilio nŃo fizera
senŃo confirmar a doutrina catholica derivada das suas duas unicas
fontes, a Escriptura e a tradińŃo constante e universal da igreja, a
Franńa lß seguia essa doutrina desde remotissimos tempos. Se, porķm, o
concilio inventara novos dogmas, ou alterara em qualquer cousa a antiga
crenńa, deixava de ser concilio, e rejeitando-o _in totum_, a Franńa
separava-se tanto da igreja universal, como se, por um acto solemne,
rejeitasse a ConfissŃo de Augsburgo.
Mas--perguntar-me-ha--p¾de razoavelmente esperar-se que haja um desses
governos a que estamos habituados, com energia e vontade sufficientes
para emprehender commettimento de tal ordem? Deve fazer-se neste ponto
uma distincńŃo essencial. Hoje, sem duvida, do gremio de qualquer das
facń§es que disputam entre si a ponta da corda que vai arrastando para
futuro incerto o corpo enfermo do Estado, nŃo devemos esperar que sßia
um governo capaz de reduzir o debate entre o liberalismo e a reacńŃo a
estes simples termos. Todas ellas dependem, atķ certo ponto, do cura na
questŃo eleitoral, questŃo suprema e talvez unica das facń§es, instincto
de vida que ķ desculpavel. Ora o cura ķ o _servus a mandatis_ do bispo,
como o bispo ķ o _servus a mandatis_ do papa, ou para falar com mais
exacńŃo, do geral da Companhia. Depois, ha aqui, alli, nŃo se sabe bem
onde, o jesuita; o jesuita, que se encontra e sente, sem se ver, em toda
a parte, desde os pańos atķ a taberna; o jesuita, que veste gentilmente
a farda bordada ou a farda lisa, a casaca ou o paletot, a bķca, a loba,
preta, roxa, encarnada, ou a grosseira jaqueta do operario; o jesuita,
que, se cumpre, ķ mais impio que Voltaire, ou mais fanatico do que Pedro
de Arbuķs e Torquemada; que ķ absolutista, democrata, socialista,
communista, se a ordem de S. Ignacio interessa com isso; que seria, atķ,
liberal, daquelles celebres liberaes do _Syllabus_, se hypothese tŃo
abominavel fosse admissivel. Ora o jesuita p¾de vigiar a urna, morigerar
a urna, penitenciar a urna. ╔ pois necessario ao homem d'estado (talvez
conheńa o typo nacional da especie) manter-se em certa altura de tacto
politico para nŃo adivinhar o jesuita, para nŃo crer na existencia do
jesuita, dessa singular invenńŃo de certos visionarios. Precisa a patria
de que a jerarchia ecclesiastica e a congregańŃo nŃo venham, irritadas,
oppor o seu voto, a sua preponderancia, ßs benevolencias da urna.
Eis porque ķ impossivel, por emquanto, travar sķriamente a lucta em chŃo
firme. Deixe gritar contra a reacńŃo. Puro formulario. Bem como a
responsabilidade ministerial, o epitheto de reaccionario nŃo significa
nada, na linguagem dos homens d'estado. ╔ um extracto do vocabulario
politico, que a facńŃo decahida mette impreterivelmente na algibeira,
quando desce das regi§es do poder, para apupar e injuriar cß da rua os
de outra facńŃo que para lß subiram. De resto, amor e respeito omnimodo
e universal ß congregańŃo. Se algum dia, porķm, a gymnastica das
ambiń§es deixar de ser o espectaculo mais divertido destes reinos e
passar de moda, ha uma reflexŃo gravissima a que antes de tudo tem de
attender-se. N'um paiz, onde, por ignorancia do clero inferior e mß-fķ
ou desleixo dos prelados, as maiorias incultas crĻem nas bruxas, nos
feitińos, nas mulheres de virtude, nas almas penadas, na permutańŃo de
milagres por ex-votos de cera, e onde, falando geralmente, as minorias
intelligentes e instruidas buscam estonteiar-se, supprimir uma voz
interior que fala de Deus, com a indifferenńa ou com o scepticismo, o
clero, jesuita ou nŃo-jesuita, ha-de forńosamente exercer certa
influencia, que, por mais que elle se desconsidere ou o desconsiderem,
nŃo serß facil destruir. Para combater essa influencia, quando nociva, a
incredulidade superciliosa nŃo ķ a melhor das armas, porque a
incredulidade ķ a negańŃo de uma tendencia natural do homem, a
religiosidade; ķ o espirito violando-se a si proprio. As multid§es nŃo
podem ser, nŃo serŃo nunca incredulas. Onde e quando lhes faltar a boa
doutrina, seguirŃo a mß. Nas almas incultas a precisŃo da crenńa ha-de
sempre satisfazer-se. Por uma lei psychologica, o crer tenaz suppre
nellas o crer reflexivo das intelligencias privilegiadas. NŃo tem arte,
nem sciencia para oblitterar em si uma condińŃo humana, o aspirar, com
maior ou menor ardor, ao infinito, ao immortal. Se deixardes sair de
todo pela porta o catholicismo christŃo, entrar-vos-ha pela janella o
que ainda cß falta do moderno catholicismo do beaterio, com os seus
intuitos dissolventes, com as suas extravagancias dogmaticas da
immaculidade e da infallibilidade, e com as blasphemias sociaes do
_Syllabus_.
Mas, radicalmente, a questŃo nŃo ķ nem com os governos de hoje, nem com
os homens de hoje. Na escripturańŃo da primeira entre as companhias
commerciaes do mundo, a Companhia de Jesus, n¾s os velhos, e ainda uma
ou duas gerań§es dos que tem nascido depois de n¾s, fomos jß levados,
como perda redonda, como valores incobraveis, ao livro de conta de
ganhos e perdas. Do que se tracta sķriamente nas especulań§es da
Casa-professa ķ da infancia; daquelles que hŃo-de receber as primeiras
impress§es moraes e religiosas de mŃes filiadas nas associań§es de
diversos feitios e nomes, sob qualquer das epigraphes da mulher-deus, da
mulher redemptora. Decorridos mais alguns annos, os symptomas do mal
serŃo cada vez mais visiveis. EntŃo a imminencia do perigo ha-de coagir
os homens novos a tractarem de p¶r sķrias barreiras a esse immenso lavor
subterraneo que tende a converter a Europa, sobretudo a Europa latina,
n'uma como vasta copia das Miss§es do Paraguay. Se, pois, esta carta
sair das suas mŃos, ķ aos homens de quinze atķ vinte e cinco annos, cuja
educańŃo o jesuitismo, aninhado entre os affagos maternos, nŃo tenha jß
viciado, que as precedentes idķas poderŃo, porventura, aproveitar. Deixo
por isso ß apreciańŃo de v. s.¬ a conveniencia ou inconveniencia
absolutas de as tornar conhecidas, bem como a opportunidade ou
inopportunidade dellas. Nem ambiciono, nem temo que as minhas opini§es,
neste como em qualquer outro assumpto, sejam sabidas. Ao cabo da
existencia, os applausos ou as censuras do mundo fazem mediocre
impressŃo em quem estß costumado a reflectir. Ou a nossa memoria se
desvanece nos longes indecisos do progressivo esquecimento, ou sŃo
outros os juizes que hŃo-de definitivamente sentencear-nos; juizes
suspeitos quando julgarem as quest§es de opiniŃo ou de interesse da sua
epocha, imparciaes e incorruptiveis quando julgarem as cousas e os
homens do nosso tempo.
[Nota de rodapķ 4: Joan. Major, In 3.um Sent. Dist. 37, Quest. 16, apud
Launoium, Oper. vol. I, p. 78. ╔, expressa por outra f¾rma, a doutrina
constante da igreja, tŃo admiravelmente resumida por Vicente de Lerins:
½Christi ecclesia, sedula et cauta depositorum apud se *dogmatum*
custos, nihil in iis unquam permutat, nihil *minuit*, nihil *addit*.
_Commonitorium_ c. 32.]
[Nota de rodapķ 5: Emquanto ecumenico.]
INDICE
PAG.
Advertencia prķvia I a XV
A Voz do Propheta, precedida de uma IntroducńŃo 1 a 118
Theatro, Moral, Censura 119 a 134
Os Egressos 135 a 154
Da InstituińŃo das Caixas Economicas 155 a 192
As Freiras de LorvŃo 193 a 206
Do estado dos Archivos Ecclesiasticos do Reino 207 a 251
A SuppressŃo das Conferencias do Casino 253 a 297
CATALOGO DE ALGUNS LIVROS
QUE SE VENDEM
NA LOJA DA VIUVA BERTRAND & C.a
AO CHIADO N.░ 73
Affonso Africano, poema heroico da presa de Arzilla e
Tanger, por Vasco Mousinho de Quebedo; nova edińŃo;
8.║, 1844--480 rķis.
Os amores de Dido com Enķas, traducńŃo da 4.¬
Eneida de Virgilio (com o texto latino ao lado), por
JoŃo Nunes de Andrade; 8.░, 1847--240 rķis, br.
Bellezas de Coimbra, por Antonio Moniz Barreto C¶rte
Real; 12.║ grande, 1831--480 rķis, br.
Cantatas de JoŃo Baptista Rousseau, traduzidas
em verso portuguez por Antonio Josķ de Lima LeitŃo;
4.░, 1816--240 rķis, br.
Caramur·, poema epico do descobrimento da Bahia,
composto por fr. Josķ de Santa Rita DurŃo; 2.¬ edińŃo;
8.░, 1836--360 rķis.
Carta de guia de casados, para que pelo caminho da
prudencia se acerte com a casa do descanso, por D. Francisco
Manuel; nova edińŃo; 8.░, 1853--200 rķis, br.
Chronica de Palmeirim de Inglaterra, por Francisco
de Moraes, a que se ajuntam as mais obras do
mesmo auctor; 4.░, 3 vol., 1786--2$4OO rķis.
Cinco annos de emigrańŃo na Inglaterra, na Belgica
e na Franńa, do brigadeiro Antonio Bernardino
Pereira do Lago; 8.░, 2 vol., 1834--400 rķis, br.
Comedias (as primeiras quatro) de Terencio, traduzidas
em verso solto portuguez por Leonel da Costa,
com o texto latino em frente; 8.░, 2 vol., 1788--1$200
rķis.
Ordem, ou construińŃo litteral, palavra por palavra,
das primeiras quatro comedias de Terencio, pelo mesmo
Leonel da Costa; 8.░, 2 vol, 1790--960 rķis.
Eclogas de Virgilio, traduzidas em portuguez em verso
rimado, com as notas, explicańŃo da fabula e de alguns
logares escuros, por Josķ Pedro Soares; 8.░, 1800--160
rķis, br.
Elegiada, poema da jornada de Africa, por Luiz Pereira;
fielmente copiado da edińŃo de Manuel de Lyra,
anno de 1588, por Bento Josķ de Sousa Farinha; 8.░.
1785--480 rķis.
Erasto, pastoral de Gessner, traduzida do allemŃo; 8.║,
1817--120 rķis, br.
Escolha de poesias orientaes, traduzidas da versŃo
ingleza de Guilherme Jones, e seguidas de outras varias
rimas, por Francisco Manuel de Oliveira; 8.░, 2 vol.,
1793-94--400 rķis, br.
Eufrosina, comedia de Jorge Ferreira de Vasconcellos;
3.¬ edińŃo, fielmente copiada por Bento Josķ de Sousa
Farinha; 8.░, 1786--480 rķis.
Henriada, poema epico de Voltaire, traduzido em verso,
e illustrado com varias notas, por Thomßs de Aquino
Bello e Freitas; nova edińŃo; 16.░, 2 vol., 1812--480
rķis, br.
Henrique IV, poema epico, traduzido do original francez,
por ***; 4.░, 1807--480 rķis, br.
Historia de Cromwell, conforme com as memorias escriptas
d'aquella epocha, e as collecń§es das notas parlamentares;
escripta em francez por mr. Villemain, e
traduzida por M. S. da C. Courańa; 8.║ grande, 1842--600
rķis, br.
Historia dos descobrimentos e conquistas dos
portuguezes nas Indias orientaes e occidentaes:
traducńŃo do francez pelo capitŃo Manuel de
Sousa; 8.░, 4 vol., 1786--1$920 rķis.
Historia de NapoleŃo, por mr. Norvins; traduzida do
francez sobre a ultima edińŃo; 8.░, 4 vol., 1846--1$200
rķis.
Historia critica do theatro, e causas da decadencia
do seu verdadeiro gosto, traduzida do francez por Luiz
Antonio de Araujo; 8.░, 1779--320 rķis, br.
O Hyssope, poema heroi-comico, por Ant¾nio Diniz da
Cruz e Silva; nova edińŃo, revista, correcta e ampliada
de notas; 12.║ grande, Paris, 1821--600 rķis.
Idyllios, e poesias pastoris de SalomŃo Gessner:
traduzidos em verso portuguez por Joaquim Franco de
Araujo Freire Barbosa; 8.░, 1784--200 rķis.
Itinerario da India por terra atķ Aleppo e d'ali Ó
ilha de Chipre, por frei Gaspar de S. Bernardino; conforme
a edińŃo de 1611; 8.░ grande, 1842--360 rķis, br.
Lisboa reedificada, poema epico de Miguel Mauricio
Ramalho; 8.░, 1780--300 rķis.
Marilia de Dirceo, por T. A. G.; nova edińŃo; 16.░,
3 partes, 1 vol., 1840--120 rķis, br.
A Natureza, poema, por Josķ Agostinho de Macedo;
8.║, 1846--320 rķis, br.
Newton, poema, por Josķ Agostinho de Macedo; 2.¬ edińŃo,
correcta e augmentada; 8.░, 1815--300 rķis, br.
Noites clementinas, poema em quatro cantos ß morte
de Clemente XIV (Ganganelli), trasladado em vulgar por
um anonymo; nova edińŃo; 8.░, 1816--320 rķis.
Obras de Francisco de Borja GarńŃo Stokler,
tomo 1.║ (contendo elogios de homens illustres--memoria
sobre a originalidade dos descobrimentos maritimos
dos portuguezes no seculo xv, etc.); 8.░, 1805--400
rķis, br.
Obras ineditas de Duarte Ribeiro de Macedo,
publicadas por Antonio Lourenńo Caminha; 8.░, 1817--400
rķis.
Obras poeticas de Bartholomeu Soares de Lima
BrandŃo, abbade de Coronado; 12.║ grande, 1794--240
rķis, br.
Obras poeticas de Francisco Dias Gomes, mandadas
publicar por ordem da academia real das sciencias
de Lisboa, a beneficio da viuva e orphŃos do auctor;
4.║ 1799--800 rķis, br.
Obras poeticas de Nicolau Tolentino de Almeida;
nova edińŃo, augmentada com as suas obras posthumas;
16.║, 3 vol., 1828--300 rķis, br.
Obras poeticas de Pedro Antonio Correia GarńŃo;
nova edińŃo; 8.░, 2 vol. 1826--600 rķis, br.
Obras de Virgilio, traduzidas em verso portuguez, e
annotadas por Antonio Josķ de Lima LeitŃo; tomo 1.░,
contendo as Bucolicas e as Georgicas; 8.░ grande,
1818--5OO rķis, br.
O Paraiso perdido, epopķa de JoŃo Milton, vertida do
original inglez para verso portuguez por Antonio Josķ
de Lima LeitŃo; 8.░ grande, 2 vol., 1840--1$200
rķis, br.
Poemas lusitanos do dr. Antonio Ferreira; 3.¬ impressŃo;
16.░, 2 vol., 1829--320 rķis, br.
O porque de todas as cousas, ou endelechia da philosophia
natural e moral, problemas de Aristoteles; escriptos
no idioma castelhano por frei Andrķ Ferrer de
Valdecebro e expostos na linguagem portugueza pelo
padre Manuel Coelho Rabello; 8.░, 1818--300 rķis.
Rimas de JoŃo Xavier de Matos; nova edińŃo; 8.░,
3 vol., 1827--1$440 rķis.
Rimas varias, Flores do Lima, etc., por Diogo Bernardes
e seu irmŃo Fr. Agostinho da Cruz; 12.░, 3 vol.
1770--600 rķis, br.
Do sitio de Lisboa, sua grandeza, povoańŃo e
commercio, etc., dialogo de Luiz Mendes de Vasconcellos;
nova edińŃo conforme ß de 1608; 8.░, 1786--240
rķis, br.
As Solid§es, poema de Cronegk, extrahido e traduzido
da escolha de poesias allemŃs de Huber; e algumas poesias
portuguezas feitas em 1833 ao Bussaco; 8.░, 1835--160
rķis, br.
Successo do segundo cerco de Diu, estando D. Joham
Mascarenhas por capitŃo da fortaleza, em 1546; poema
de Jeronymo C¶rte Real, fielmente copiado da edińŃo
de 1574 por Bento Josķ de Sousa Farinha; 8.░, 1784--480
rķis.
Tratados de amisade, Paradoxos, e Sonho de
ScipiŃo, compostos por M. T. Cicero, e traduzidos do
latim em linguagem portugueza por Duarte de Rezende,
no anno de 1531; agora reimpressos por Luiz Antonio
de Azevedo; 8.░, 1790--300 rķis.
Ulysippo, comedia de Jorge Ferreira de Vasconcellos
3.¬ edińŃo, fielmente copiada por Bento Josķ de Sousa
Farinha; 8.░, 1787--480 rķis.
A verdade, ou pensamentos philosophicos sobre os objectos
mais importantes ß religiŃo e ao estado, por Josķ
Agostinho de Macedo; 16.░, 1837--200 rķis, br.
Viagem extatica ao templo da sabedoria, poema
em quatro cantos, por Josķ Agostinho de Macedo; 4.║,
1830--600 rķis, br.
Viagens de Cyro, historia moral e politica, pelo cavalheiro
de Ramsay, traduzida em portuguez; nova edińŃo;
12.░, 2 vol., 1817--600 rķis.
End of the Project Gutenberg EBook of Op·sculos por Alexandre Herculano -
Tomo I, by Alexandre Herculano
*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK OP┌SCULOS POR ALEXANDRE ***
***** This file should be named 16111-8.txt or 16111-8.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
https://www.gutenberg.org/1/6/1/1/16111/
Produced by Biblioteca Nacional Digital (http://bnd.bn.pt),
Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team
Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.
Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties. Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research. They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.
*** START: FULL LICENSE ***
THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK
To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
https://gutenberg.org/license).
Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works
1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.
1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement. See
paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works. See paragraph 1.E below.
1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States. If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed. Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work. You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.
1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in
a constant state of change. If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.
1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg:
1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:
This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org
1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges. If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.
1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.
1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.
1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.
1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form. However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.
1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.
1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that
- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
you already use to calculate your applicable taxes. The fee is
owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
has agreed to donate royalties under this paragraph to the
Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments
must be paid within 60 days following each date on which you
prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
returns. Royalty payments should be clearly marked as such and
sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
address specified in Section 4, "Information about donations to
the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."
- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
License. You must require such a user to return or
destroy all copies of the works possessed in a physical medium
and discontinue all use of and all access to other copies of
Project Gutenberg-tm works.
- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
electronic work is discovered and reported to you within 90 days
of receipt of the work.
- You comply with all other terms of this agreement for free
distribution of Project Gutenberg-tm works.
1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.
1.F.
1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.
1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.
1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from. If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation. The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund. If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.
1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.
1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.
Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at https://www.pglaf.org.
Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation
The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
https://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations. Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected]. Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at https://pglaf.org
For additional contact information:
Dr. Gregory B. Newby
Chief Executive and Director
[email protected]
Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation
Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment. Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.
The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements. We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance. To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit https://pglaf.org
While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.
International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
ways including including checks, online payments and credit card
donations. To donate, please visit: https://pglaf.org/donate
Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.
Professor Michael S. Hart was the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
https://www.gutenberg.org
This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01
Subjects:
Download Formats:
Excerpt
The Project Gutenberg EBook of Op·sculos por Alexandre Herculano - Tomo I
by Alexandre Herculano
This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org
Title: Op·sculos por Alexandre Herculano - Tomo I
Read the Full Text
— End of Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01 —
Book Information
- Title
- Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 01
- Author(s)
- Herculano, Alexandre
- Language
- Portuguese
- Type
- Text
- Release Date
- June 22, 2005
- Word Count
- 59,708 words
- Library of Congress Classification
- PQ
- Bookshelves
- Browsing: History - European, Browsing: Literature
- Rights
- Public domain in the USA.
Related Books
A Primavera
by Castilho, Antonio Feliciano de
Portuguese
1218h 31m read
Eurico, o presbytero
by Herculano, Alexandre
Portuguese
1013h 3m read
Manhãs de Cascaes
by Pimentel, Alberto
Portuguese
756h 59m read
Entre o caffé e o cognac
by Pimentel, Alberto
Portuguese
792h 26m read
A Pata no Choco
by Anonymous
Portuguese
87h 30m read
Opúsculos por Alexandre Herculano - Tomo 06
by Herculano, Alexandre
Portuguese
1026h 6m read