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OBRAS COMPLETAS
HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA
INTRODUCÇÃO
HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA
EDIÇÃO INTEGRAL
1 Introducção e Theoria da Historia da Litteratura
portugueza 1 vol.
2 Trovadores portuguezes 1 "
3 Amadis de Gaula 1 "
4 Poetas palacianos 1 "
5 Os Historiadores portuguezes (_Inedito_) 1 "
6 Bernardim Ribeiro e os Bucolistas 1 "
7 Novellas de Cavalleria e Pastoraes (_Inedito_) 1 "
8 Gil Vicente e as origens do Theatro nacional 1 "
9 Sá de Miranda e a Eschola italiana 1 "
10 Ferreira e a Pleiada portugueza 1 "
11 A Comedia e a Tragedia classicas 1 "
12 Vida de Camões 1 "
13 Lyricos camonianos 1 "
14 Epopêas historicas 1 "
15 Bibliographia camoniana 1 "
16 Os Culteranistas (_Inedito_) 1 "
17 Épicos seiscentistas (_Inedito_) 1 "
18 As Tragicomedias dos Jesuitas 1 "
19 A Arcadia de Lisboa (_Inedito_) 1 "
20 Dissidentes da Arcadia (_Inedito_) 1 "
21 A baixa Comedia e a Opera 1 "
22 Bocage, vida e época litteraria 1 "
23 José Agostinho de Macedo (_Inedito_) 1 "
24 Garrett e o Romantismo 1 "
25 Os Dramas romanticos 1 "
26 Alexandre Herculano 1 "
27 Castilho e os Ultra-Romanticos 1 "
28 João de Deus e o moderno Lyrismo (_Inedito_) 1 "
29 A Eschola de Coimbra 1 "
30-31 Recapitulação da Historia da Litt. portugueza 2 "
32 Indice geral analytico (_Inedito_) 1 "
_N. B. N’esta reedição começa-se de preferencia pelos volumes a
refundir, e especialmente pelos que estão ainda =ineditos=._
HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA
INTRODUCÇÃO
E
THEORIA DA HISTORIA
DA LITTERATURA PORTUGUEZA
POR
THEOPHILO BRAGA
[Ilustração]
PORTO
LIVRARIA CHARDRON
Casa editora
SUCCESSORES LELLO & IRMÃO
1896
Todos os direitos reservados
_Porto--Imprensa Moderna_
PROLOGO
Um dos sonhos que me embalaram a vida já está realisado: foi a Epopêa
da Humanidade, idealisação de trinta annos contínuos enquadrada
na VISÃO DOS TEMPOS. Um outro sonho, tambem absorvente e
consolador, o plano da HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA,
é que me foi educando o criterio e interessando o espirito por toda
a complexidade dos phenomenos sociaes. Como autodidacta, n’esse
longo trabalho apresento as vacillações e incertezas de methodo, e
o desconhecimento de sciencias subsidiarias da historia litteraria.
Quanto mais avançava para a terminação da HISTORIA DA LITTERATURA
PORTUGUEZA, mais sentia a necessidade de refundil-a integralmente,
unificando o processo critico e esclarecendo-a por uma mesma luz
philosophica. A obra estava tratada com amor, e apezar de todos os
seus defeitos merecia ser reelaborada; assim o disseram alguns criticos
estrangeiros. Para fazel-o, era preciso vencer o problema material dos
meios de publicação; emquanto o não consegui fui escrevendo e deixando
ineditos os volumes que faltavam á obra completa. Agora que se tornou
possivel a reedição da HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA, e
que já passaram vinte e trez annos de magisterio sobre esta disciplina
no Curso Superior de Lettras, volto mais habilitado a emendar os
meus erros e a supprir as deficiencias da educação universitaria.
Recordar-se é viver, porém acordando muitas vezes magoas latentes que
são sem remedio: revêr uma obra da mocidade é tambem uma recordação,
um confronto da capacidade mental, com a vantagem de poder eliminar
erros e dar mais nitidez ás concepções de uma vocação incipiente. Para
escrever uma HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA digna d’este
titulo, faltava-me o conhecimento da anthropologia e da ethnographia;
ignorava o processo da formação das linguas romanicas e o methodo
philologico comparativo; tinha uma incompleta noção historica da
Edade media, e principalmente da revolução occidental que envolve
todas as manifestações da historia moderna da Europa; estava desviado
de apreciar a missão iniciadora e profunda da cultura greco-romana
continuada pelos povos latinos; com um criticismo anarchico julgava
as instituições e os homens, sem ter a vista de conjuncto de uma
Philosophia que me revelasse as leis psychologicas e historicas, para
coordenar o immenso tropel de factos accumulados por uma erudição
impertinente. Todas estas faltas fui reconhecendo, acudindo-lhes com a
disciplina conveniente. A revisão de toda a HISTORIA DA LITTERATURA
PORTUGUEZA impoz-se como uma necessidade; se na obra poetica fiz
a minha Cathedral, esta agora identificada em um mesmo methodo critico
ficará o meu Palacio, por onde divaguei livre de paixões ruins em um
sonho do trinta annos.
DA 1.^A EDIÇÃO (1870)
Em 1867, em uma nota do CANCIONEIRO POPULAR appareceu pela primeira vez
a promessa de uma HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA. A obra está
prompta; não sabemos se será possivel vencer a indifferença geral por
esta ordem de trabalhos. Se a parte principal tiver de jazer inedita ou
se perder, aqui fica desde já a INTRODUCÇÃO, como fio conductor para o
que aventurar-se a examinar os páramos da nossa Litteratura.
Estão lançadas as bases, determinado o elemento nacional, discriminadas
as influencias das litteraturas estrangeiras que actuaram sobre nós,
e ligada a cultura portugueza ás grandes tradições da Edade media da
Europa. A INTRODUCÇÃO Á HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA
inaugura uma critica nova: inventaram-n’a os Schlegel, os Grimm, Victor
Le Clerc, Paulin Paris, Fauriel e outros; nada mais fizemos do que
repassarmo-nos da sua luz. Trabalho modesto a par dos iniciadores, é
grande em uma terra aonde se não estuda e nada se respeita.
INTRODUCÇÃO
Á
HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA
Quando no fim do seculo XII se constituiu independente o estado
de Portugal, terminava o periodo fecundo da Edade media, em que
foram elaboradas as condições para a existencia e desenvolvimento
das sociedades modernas: Estavam unificadas as _raças_, que
desde o seculo V até ao seculo VII se encontraram, em invasões e
occupações territoriaes; differenciadas as classes, as guerras
defensivas e o trabalho industrial tinham garantido a estabilidade
das cidades com os seus codigos locaes, esboços para a constituição
das _nacionalidades_ europêas; realisada a creação popular das
_linguas_ romanicas, e o seu emprego na elaboração esthetica
das _tradições_ epicas das Gestas feudaes e das canções lyricas
dos trovadores ocitanicos; florescia a architectura ogival, e o
Catholicismo e o Feudalismo mantinham a nova ordem pela unanimidade da
crença sob o Poder espiritual, e pela dependencia ou subserviencia ao
Poder temporal.
Com a nacionalidade portugueza cooperam no seu desenvolvimento moral,
economico e politico todas essas manifestações que imprimiram uma
certa unidade nos povos europeus sob o regimen catholico-feudal. As
diversas raças peninsulares integraram-se em um typo de população
_mosarabe_; os dialectos romanicos definem-se nas formas vulgares
em que o _galleziano_ se aperfeiçôa no uso popular e palaciano das
canções _trobadorescas_; as cidades livres ou behetrias redigem
os seus codigos locaes ou _Cartas de Foral_; erigem-se os bellos
templos gothicos, e compartilha-se do enthuziasmo da guerra defensiva
das _Cruzadas_, tanto no territorio hispanico como nas expedições
de ultra-mar.
Porém do seculo XII em diante, começa a grande crise da Revolução
Occidental, pela dissidencia dos espiritos contra a unanimidade
do Poder espiritual da Egreja, e das luctas da liberdade civil
contra o Poder temporal do Feudalismo. Quando as linguas romanicas
estavam aptas para fixarem a idealisação esthetica dos interesses
da sociedade medieval, deu-se a instabilidade dos sentimentos e o
negativismo dos pensamentos. As Litteraturas romanicas resentiram-se
d’esta perturbação, que se prolonga até hoje e ainda actúa sobre
ellas; durante os primeiros trez seculos da crise, do XIII ao XV,
desconheceram mais ou menos completamente a Antiguidade classica,
e os themas poeticos da Edade media foram tratados sem respeito,
preponderando o genio sarcastico nas satyras, nos _fabliaux_, nos
cantos _farsis_, nas parodias, nas comedias, e até na epopêa,
como o _Renard_, e a _faulse Geste_. No seculo XVI, esta
revolta ataca a ideia religiosa, na Reforma; e pelo enthuziasmo dos
Humanistas diante das litteraturas classicas da civilisação polytheica
greco-romana, a Edade media é desprezada como uma época barbara, e as
Litteraturas romanicas exercem-se na imitação erudita, separando-se
os escriptores da cooperação com o povo; aggrava-se esta situação
deprimente com a influencia geral do pseudo-classicismo francez no
seculo XVII e XVIII, e sómente no periodo do Romantismo, no primeiro
quartel do seculo XIX é que as Litteraturas modernas foram revocadas
á idealisação das suas origens pela rehabilitação e pelo estudo
scientifico da Edade media.
Como todas as outras Litteraturas romanicas a portugueza acompanha
esta longa crise _social_ e _mental_, em que o sentimento
ficou sem disciplina; através das mais artificiosas canções amorosas
dos trovadores destacam-se as satyras e as coplas obscenas; por seu
turno a auctoridade classica impõe-se á imitação dos escriptores, que
abandonam com desdem as tradições nacionaes e populares, chegando a
idealisação poetica a ser um producto frivolo para a distracção pessoal
nas Academias e Tertulias.
A historia da Litteratura portugueza só póde ser feita scientificamente
pelo processo comparativo, e collocando-a no quadro das Litteraturas
novo-latinas; sob este aspecto não é menos fecunda, nem menos original
do que as outras congeneres, embora se manifestasse depois de todas
ellas e reflectisse todas as suas influencias pela solidariedade com a
civilisação europêa.
A creação da Historia litteraria é muito recente; foi entrevista
por Bacon no seculo XVII, e só depois dos trabalhos materiaes da
bibliographia, e pela renovação dos estudos historicos n’este seculo,
é que se conseguiu deduzir da obra litteraria a psychologia do que
a sentiu, e a relação com o meio social em que foi sentida. Nenhum
facto do espirito satisfaz tão bem este processo como a Litteratura;
os factos da vida politica ou das emoções religiosas, das instituições
sociaes e das descobertas progressivas, são sempre motivados por
paixões bastante violentas, com consequencias imprevistas, e por
isso não explicam tão claramente o homem como as creações estheticas
produzidas por sentimentos desinteressados, por uma espontaneidade
especifica de inspiração, por meio de themas tradicionaes que conduzem
a uma unidade sympathica. Quem escrever uma Historia litteraria, tem,
diante da série das obras de arte, de deduzir o genio e caracter intimo
do povo que as produziu, e sobretudo de pôr em relevo as circumstancias
exteriores que lhes deram origem; é um processo _philosophico_
desenvolvendo-se conjunctamente com a investigação _historica_.
No estudo da Litteratura portugueza chegamos por um esforço individual
a este resultado, tão lucidamente formulado por J. Jacques Ampère:
Se a Litteratura não é uma declamação vã, se é uma sciencia, então
entra no dominio da _philosophia_ e da _historia_. São pois
a _Philosophia da Litteratura_ e a _Historia da Litteratura_
duas partes da sciencia litteraria. Fóra d’isto não ha senão minucias
da critica de detalhe e alarde de logares communs. Ampère recommenda
que se comece pela Historia litteraria, porque: «Da historia comparada
das Artes e da Litteratura em todos os povos, é que deve resultar a
Philosophia da Litteratura e da Arte.» De facto os estudos da historia
da Litteratura da Grecia, revelam-nos que a _Tradição_ é sempre
o elemento organico e o thema elaborado conscientemente pelas mais
altas idealisações individuaes; bem como as fórmas universaes das
Litteraturas, o _Lyrismo_, a _Epopêa_ e o _Drama_ têm uma correlação
intima com as phases psychologicas da humanidade na sua representação
_objectiva_ e na sua reacção _subjectiva_. Todo o grupo das
Litteraturas romanicas está cabalmente historiado, e pela luz do
methodo comparativo chega-se aos caracteristicos da sua unidade e
similaridade de evolução, como observaram Frederico Schlegel e Comte,
na lucta do espirito novo elaborando as tradições medievaes nos rudes
dialectos que se hão de tornar linguas nacionaes, reagindo contra o
perstigio das obras classicas da antiguidade impostas á imitação pelos
eruditos e pela admiração incondicional dos monumentos antigos. Goëthe
presentiu que o conhecimento de todas as litteraturas levará ás novas
fórmas de uma inspiração universalista; e Comte, prevendo o termo da
grande revolução occidental que se prolonga do seculo XII ao XIX,
liga á edade normal da humanidade as novas idealisações que darão ao
_sentimento_ a preponderancia social e moral de uma Synthese affectiva.
Pela marcha dos estudos accumulados póde já preceder a _Philosophia
da Litteratura_ á _Historia da Litteratura_, como a luz que
melhor fará comprehender a complexidade de innumeros factos concretos,
que tendem sem esse criterio a perder-se na curiosidade esteril. Tal o
intuito d’esta introducção ou theoria da historia.
I
Elementos staticos da Litteratura
Como um producto da actividade social em condições de estabilidade, uma
Litteratura só póde ser bem estudada e comprehendida conhecendo-se os
elementos _staticos_, ou de ordem, e _dynamicos_ ou de progresso, de
que ella é um dos effeitos complexos. Spencer submettendo os phenomenos
sociaes e mentaes á correlação das forças physicas, formúla com clareza
esta base critica: «_Uma sociedade pouco numerosa_, seja qual fôr a
superioridade do caracter dos seus membros, não póde desenvolver a
mesma somma de acção social como uma que é grande. A producção e a
distribuição das mercadorias deve fazer-se em uma escala relativamente
pequena. Uma imprensa numerosa, uma _litteratura fecunda_, uma agitação
politica poderosa não lhe são possiveis. A producção das obras de arte
e das descobertas scientificas tambem não deve ser excessiva.»[1]
Escrevendo a Historia da Litteratura portugueza importa ter sempre
presente este ponto de vista, para não attribuir á raça a fraqueza
da tradição nacional, a falta de concepção original e de invenção
scientifica, a indifferença politica e a incapacidade de um regimen
economico. Somos uma nação pequena, sem os estimulos organicos de
uma numerosa população, sem o conflicto de classes, e limitada á
provocação de um exiguo territorio. Isto se comprova ainda pelo final
do pensamento de Spencer: «O que demonstra melhor a correlação das
forças sociaes com as forças physicas, por meio das forças vitaes,
é a differença das quantidades de actividade que desenvolve uma
mesma sociedade conforme os seus membros dispõem de quantidades
differentes de força tiradas do mundo exterior.» Assim, a visinhança
do oceano Atlantico ao passo que nos differenciou dos hespanhoes,
fez dos Portuguezes um povo de navegadores, dando-lhe a iniciativa
das descobertas maritimas e condições economicas subsistentes. Os
periodos de esplendor litterario ligam-se á influencia d’estes
estimulos; surgiram os Quinhentistas, destacando-se então a epopêa mais
caracteristica e expressiva da civilisação moderna, os _Lusiadas_.
Por esta ordem de factos se infere, que ha nas litteraturas
manifestações de phenomenos inconscientes e separados ou fóra da acção
da vontade do homem. Para bem comprehender a obra do homem, sentida,
reflectida ou praticada, convém antes de tudo determinar-lhe o circulo
de fatalidade dentro do qual se produz: o impulso atávico da _raça_,
que orienta o sentimento do escriptor ou artista; a _tradição_,
transmittida de seculos, que se torna o thema da elaboração ideal
e pela qual a obra do genio realisa a synthese affectiva em uma
sociedade; a _lingua_, como expressão do sentimento individual, que o
escriptor não creou, mas que modifica para universalisar estados das
consciencias, as mais indefinidas vibrações da sensibilidade e ainda
as aspirações latentes de uma edade; por fim a _nacionalidade_, ou a
consciencia da vida collectiva, que tem de exteriorisar-se pela acção
historica, objecto das narrativas, das commemorações, dos monumentos,
que vão unificando cada geração na mesma continuidade. Applicando
pois a segura concepção de Augusto Comte, que divide os phenomenos
sociologicos em staticos e dynamicos, á Litteratura como resultante
do meio social, poder-se-hão considerar como staticos os factores
que preponderam invencivelmente na elaboração esthetica: a _raça_, a
_tradição_, a _lingua_, a _nacionalidade_. O influxo de uma determinada
época historica, como transição, já pela decomposição de um regimen
passado, já como aspiração a uma ordem nova; e além d’isso, o espirito
inventivo das altas individualidades, que nas suas obras servem
essa corrente regressiva ou progressiva, constituem perfeitamente a
parte dynamica na historia litteraria. Uma tão clara distincção é
já uma base segura para a critica scientifica; para o estudo dos
phenomenos staticos são subsidiarias a Anthropologia, a Ethnographia,
a Glottologia ou Philologia, a Historia geral, e a Sociologia; a
comprehensão das obras primas das Litteraturas resulta d’estas relações
intimas scientificamente investigadas e conscientemente estabelecidas.
Sómente assim, é que a historia da litteratura, embora pertença a
um pequeno povo, servirá de verificação das leis psychologicas e
sociologicas, conduzindo ao conhecimento definitivo--a sciencia do
homem.
=§ 1.--A Raça e o Meio=
Só muito tarde descobriu o homem, que os actos que elle julgava mais
livres, reacções immediatas da sua vontade consciente, eram motivados
por influencias a que obedecia sem as conhecer. No mundo physico
vê-se isto na pressão atmospherica, em que nos equilibramos. Depois
de Vico ter formulado o principio autonomico--_o homem é obra de si
mesmo_,--Herder encetou a philosophia da historia pela descripção
physica da terra, como do theatro em que a humanidade tinha de actuar,
segundo as variações do scenario. Se as descobertas da astronomia,
depois de Galileo, fizeram caducar o erro geocentrico, os estudos
historicos e archeologicos desfizeram a illusão anthropocentrica.
Como a distribuição das plantas sobre o planeta depende da luz e do
calor, tambem a cada modificação na climatologia dão-se no homem
modificações profundas na sua organisação; depois de Hippocrates,
que lançou as bases da sciencia da Mesologia, Montesquieu foi dos
primeiros pensadores que ligou uma importancia séria á influencia
dos _climas_; e por certo a diversidade das raças proveiu
de acclimações successivas senão da acção de meios differentes.
Blumenbach, na _Unidade da Especie humana_, considera o negro
retinto e o loiro dinamarquez como provindo do mesmo tronco. Uma
distancia de gráos modifica as nossas ideias eternas do bello, abre
um abysmo entre a _Venus de Milo_ o a _Venus hottentote_;
dá-nos uma glotte mais perfeita e harmoniosa, e a abstracção na
linguagem, que facilita e habitua á cogitação. A doçura do ár ambiente,
a estabilidade da temperatura, as aguas crystallinas, o céo puro
fazem o temperamento sanguineo, como observam Cabanis, Chrichton,
Haller, Cullen, Pinel e outros. O temperamento sanguineo dá uma
carnação viva, um thorax largo proprio para receber grandes volumes
de ár, uma circulação mais forte, de que resulta um augmento de calor
distribuido até ás extremas radiculas nervosas: assim, impressões
promptas, facilidade de movimentos, synergia revelada por um bem estar
descuidado, a graça, a jovialidade espontanea. Eis a organisação do
Grego; em um clima brando, suave, em uma natureza risonha, collocado
em um justo equilibrio das forças do meio exterior com as do seu
organismo, não se sente absorvido como os povos das regiões do oriente,
nem provocado na sua individualidade como na rispidez do norte; gosa
a vida por todos os póros e guarda uma juventude perpetua, uma
voluptuosidade da communicação, na cidade, no ágora, onde o conflicto
dos interesses agita as paixões que criam a obra da Arte. A Grecia
realisou na civilisação o sentimento do _Bello_. Outros povos
indo-europeus, nas suas diversas paragens revelam outras capacidades,
com que se reconhecem na historia; o Romano attingindo a mais clara
noção do sentimento do _Justo_, faz de Roma, no dizer dos antigos
jurisconsultos, _a patria das leis_. Mais alguns gráos para oéste,
e os Celtas, aventureiros, sonhadores, attingem a docilidade moral, a
dependencia da confraternidade, e são dominados pela ideia religiosa
da immortalidade, que os deprime. O Germano, em lucta com a natureza
brumosa do norte, de uma robustez excepcional, faz da independencia
individualista o seu caracter, e lança-se á invasão do occidente, onde
é incorporado pela civilisação romana. No extremo norte da Europa, o
Slavo conserva as suas primitivas tendencias mysticas, e assimilando
todos os progressos da Civilisação oriental e da occidental aspira á
hegemonia futura da humanidade.
Emfim, os innumeros factos em que se observa a influencia dos
climas, a transformação dos temperamentos e as hereditariedades das
raças, têm-se agrupado por forma que estão lançadas as bases para a
systematisação da _Geographia moral_, como lhe chamou Michelet. A
historia da Arte, as creações das Litteraturas, todas as obras em que
a alma humana se deixar surprehender em sua espontaneidade emocional,
são verdadeiramente elementos d’esta sciencia nova. Todas as vezes
que o estylo artificioso, a rhetorica banal ou o servilismo da moda
de uma certa época velarem as manifestações francas do espirito,
essa litteratura não tem valor, por insignificativa; não reflecte o
resultado das ideias religiosas, nem as formas linguisticas, nem as
agitações sociaes, nem a synthese das concepções que constituem a
civilisação de cada cyclo historico.
Nas Litteraturas, como expressão da vida affectiva das sociedades,
é talvez mais importante o elemento inconsciente da tradição e do
meio, do que a obra propriamente original da individualidade do
escriptor. No meio social observam-se a _persistencia_ de certas
qualidades transmittidas na especie, e que differenciam os grupos
humanos ou raças; as _sobrevivencias_ de costumes, que se
conservam automaticamente quando já de todo passaram os estados ou
organisações sociaes que os provocaram e com que estavam em harmonia;
e as _recorrencias_, ou renovações d’essas qualidades anteriores
e costumes extinctos, quando um certo abalo social desperta em um povo
todas as forças do seu instincto de conservação, mantendo-se pelas suas
condições staticas. Como expressão da collectividade, a Litteratura
reflecte ainda nas obras das mais altas individualidades a impressão
d’estas forças latentes, e mesmo as suas concepções ideaes são bellas
em todos os tempos, e são comprehendidas pela humanidade em geral, por
que derivam d’essas condições staticas. Na Europa não existe uma raça
pura de mescla; mas tem-se abusado cynicamente das caracteristicas
da _raça_ nos aggregados nacionaes para justificar hostilidades
egoistas e anachronicos instinctos guerreiros para exploração de
conquistas. Para a comprehensão d’esta influencia das condições
staticas nas Litteraturas ou em qualquer outra manifestação humana,
basta determinar a lei da _recorrencia_ biologica, tão nitidamente
formulada pelo physiologista Muller: «Uma raça nascida da fusão de
duas raças, propaga-se pela união com o seu semelhante; ao passo que,
quando ella se une com as raças que concorreram para produzil-a, ao
fim de muitas gerações torna ao typo de uma d’estas ultimas.» Vemos
prevalecer esta lei de regressão, nas populações _ibericas_:
embora se fusionassem com o elemento árico (Celtas, Romanos e
Germanos), comtudo tinham a seu favor o maior numero, e em ulteriores
invasões com a mestiçagem dos Lybios, Bastados, Alanos, Berberes e
Mouros, raça africana branca, fixaram pela recorrencia o seu primitivo
typo anthropologico. Broca reconhece tambem que pelo predominio
_numerico_ a raça mestiçada tende a regressar, na série das
gerações, á raça mãe. Por esta regressão se explicam as differenciações
dos caracteres ethnicos dos povos, e portanto todas as fórmas das suas
actividades sociaes. Herbert Spencer reconhece que as Litteraturas e as
Bellas Artes só existem como resultante d’estas actividades, tornando
por isso necessario o conhecimento do que as torna possiveis. Tiveram a
intuição d’este principio os humanistas do seculo XVI quando procuravam
interpretar as instituições sociaes romanas pelas referencias dos
poetas satyricos e comicos de Roma, e Vico interpretava Homero como
a synthese dos povos hellenicos, que Wolf applicou methodicamente.
Este processo critico é já antigo e acha-se confirmado pelos grandes
fundadores da historia como sciencia.
Ao começar a historia da Litteratura grega, Otfried Müller foi um
dos primeiros a reconhecer o valor do criterio da raça: «O que é
infinitamente mais importante para a historia da cultura intellectual
dos Gregos, é _o distinguir as raças_ o os dialectos que se
formaram durante a edade a que se deu o nome de heroica por causa da
preponderancia que tiveram n’ella as tribus guerreiras, e por que um
certo gosto pelas aventurosas emprezas a caracterisa evidentemente.
Por este tempo deveria ter começado o contraste entre as raças e os
idiomas da Grecia, que exerceu posteriormente uma influencia tão
notavel sobre toda a vida civil e intellectual, sobre a poesia, sobre
as artes e sobre a litteratura.»[2] Unificando os diversos dialectos
da Grecia nos dois ramos _Dorio_ e _Jonio_, Otfried Müller
deduz o duplo caracter da civilisação hellenica, baseada no accordo
entre o respeito pela tradição do passado e o espirito progressivo de
aperfeiçoamento: «Nos Dorios ... assim como mostram uma predilecção
manifesta pelos sons largos, energicos e asperos, que conservam com
uma regularidade inflexivel, póde-se naturalissimamente esperar o
encontrar entre elles uma disposição a fazer prevalecer até mesmo
em toda a organisação da sua vida publica e domestica, o espirito
de austeridade e de respeito pelos antigos usos. Os Jonios, pelo
contrario, mostram já no seu dialecto uma certa inclinação para alterar
as velhas fórmas segundo o gosto e o capricho do momento, e uma
tendencia a embellezar e a aperfeiçoar o seu idioma, que contribuiu
muito, sem duvida, para que este dialecto, posto que mais novo e
derivado, fosse o primeiro cultivado na poesia.»[3] A differenciação
entre estes dois elementos existia quando ainda estacionavam na Asia
Menor; os Doricos atravessam o Hellesponto e fixam-se nos territorios
montanhosos ao norte da peninsula da Grecia; os Jonios occupam as ilhas
e as costas do archipelago. As differenciações ethnicas são mantidas
pelas condições do territorio: o montanhez é ferrenho nas suas crenças
e costumes, e por isso Delphos torna-se a capital religiosa da primeira
unidade federativa dos Hellenos, apoderando-se Sparta de uma severa
hegemonia. Os habitantes das costas e das ilhas distinguem-se por um
caracter de cosmopolitismo e assimilação facil de costumes; o seu deus
nacional é maritimo, Poseidon, contraposto a Delios, e Athenas torna-se
a capital politica, que realisa pela primeira vez no mundo a liberdade
na formação da lei (_autonomia_) e a egualdade perante a lei
(_isonomia_), que deram ao genio grego o poder creador que o faz
dirigir ainda hoje sob o aspecto de renascença a marcha da humanidade.
Estes dois elementos ethnicos, Dorios e Jonios, fusionam-se pela pressão
da necessidade, para resistirem aos assaltos dos piratas do
Mediterraneo, quando os Phenicios dominavam no mar Egeo; e depois, pelo
estimulo de independencia contra as invasões asiaticas. A synthese
historica da civilisação da Grecia resume-se nas caracteristicas
d’estas duas raças: o elemento _dorico_ prepondera até á guerra da
Persia; até ás guerras do Peloponeso predomina o elemento
_jonico_; o esplendor do genio hellenico revela-se na sua unidade,
primeiramente nas creações estheticas, e por fim na acção politica da
grande época de Alexandre. O antagonismo de Apollo e Poseidon, os
caracteres antinomicos de Achilles e Ulysses, as duas epopêas
da _Iliada_ e da _Odyssea_ idealisando esses dois typos heroicos, as
instituições aristocraticas lacedemonicas, e democraticas da Attica,
não podem ser bem comprehendidas sem a discriminação d’estes dois
elementos, capitalmente estudados emquanto aos Dorios por Otfried
Müller, e por Ernst Curtius emquanto aos Jonios.
Os caracteres da raça _persistem_ através do tempo, cooperando
para a _sobrevivencia_ das tradições e dos costumes. Na Grecia
moderna, as tradições heroicas e muitos versos das tragedias de Eschylo
e de Euripides andam nos estribilhos populares. North Douglas, no
_Ensaio sobre os Gregos_, achou na companhia dos mancebos jonios o
semblante e a linguagem dos antigos hellenos: cantavam nas guitarras
como os rhapsodos, e ao toque da buzina corriam á conspiração, como no
tempo em que reagiram contra a Persia. Este viajante diz, suspirando:
«vinte e quatro seculos antes, seriam uns Alcibiades. É ainda hoje
popular a _Canção das andorinhas_, a que alludem os antigos, e
Charonte continúa a ser evocado nas pragas supersticiosas.»[4]
A separação que se dá entre os Arias e os Iranios, apparece reflectida
nas differenças entre os Gregos e Romanos, embora pertencendo á mesma
raça; o genio hellenico foi essencialmente especulativo, o romano
extremamente pratico ou activo. A Grecia eleva-se á unidade moral pelo
ideal artistico e pela concepção philosophica, Roma faz a unidade
politica pela realisação do Direito. Mas apesar d’estas differenças, é
pelos caracteres das raças da Italia, que se explica como a civilisação
romana foi conjunctamente _agricola_ e _guerreira_; como no
seu direito conservou sempre um constante dualismo (_optimo jure_
e _minuto jure_); por que motivo cedo abandonou as tradições
proprias pela imitação das obras artisticas ou poeticas da Grecia;
por que causas se desenvolveram as linguas novo-latinas ou romanicas,
e como o genio gaulez chegou a ter importancia na Litteratura latina
(Petronio, Ausonio, Rutilio, Sidonio Apollinario, etc.), na época da
decadencia.
Antes das migrações pelasgicas que atravessaram os Alpes carnicos o
se estabeleceram ao nordeste da peninsula italica, já n’ella existia
uma raça autochtone ou população preexistente, a que os Gregos chamaram
_Opicos_ (comprehendendo os Oscos ou Volsquos, Marses, Sabinos,
Sabelios, Samnitas, Lucanios, Campanios). Eram estes povos dados á
agricultura, e á vida pastoral, seguindo alguns as armas, como os
Sabinos, os Marsos, os Hirpinos e Samnitas. Vinte seculos antes da
nossa éra fixa-se a época do encontro com os emigrantes pelasgicos ou
Illyrios (Liburnos, Venetes ou Henetes, das bordas do Adriatico; e
Siculos, das costas da Italia e do Latio). Seguindo as costas do mar,
entram tambem na Italia por esta mesma época os Ligurios, e Sicanos
que se fusionam com os Siculos ou Tyrrhenos. Não admira por tanto que
antes da conquista de Tarento, Roma tivesse conhecimento da civilisação
da Grecia e tendesse a imital-a, abandonando as tradições oscas, pela
preponderancia dos elementos pelasgiscos da Grande-Grecia.
No seculo XIV antes da nossa éra é invadida a Italia septentrional
pelo desfiladeiro do Tyrol, pelos Ambrones, Isombres, ou Ombrios,
raça gauleza cisalpina. É depois d’esta invasão que começa a lingua
osca a tornar-se um meio de unificação social. No seculo XI, antes da
éra moderna, dá-se uma terceira invasão dos Rasenas, raça de pequena
estatura e grande cabeça, extranha á familia greco-italica, que funda
a primeira Confederação, creando a civilisação fundamental da Etruria.
A importancia d’este elemento ethnico, resultou da sua similaridade
com as populações autochtones da Italia, os Opicos, e por tanto com
a separação natural dos elementos extranhos ou _Inopes_, começa o
dualismo da civilisação romana: Os _Opes_, eram constituidos na vida
privada pelos Chefes de Familia a quem competia o _Nome proprio_, a
_Justae Nuptiae_, o _Locuples_ ou dominio do territorio dos tumulos
urbicos, o direito de herdar dos filhos ou _Haeres_, a compartilha
com o pae e com o filho ou _Dubnus_, e a Divindade estavel da terra,
_Opulentus_ (de _Opim_, a divindade feminina ou a Terra agricultada).
Emquanto á vida publica, competia-lhes com o Direito de Propriedade
o dominio auctoritario, o levar os Clientes á guerra, concorrer ás
magistraturas justas, o direito de vida e morte sobre os filhos e a
mulher, o uso do vinho civil _Temetum_ o do pão sagrado _Maza_, a posse
das _Res sacra_ (os Deuses da cidade, _Indigetes_: da Casa, _Penates_,
e da Familia, _Lares_ e _Manes_) e os Augurios.
Pelo seu lado os _Inopes_, formados de Servos, Clientes, Estrangeiros
(almas decahidas) não tinham Familia, eram sem nome, tinham o
_Contubernium_ ou _Injustae Nuptiae_, e existiam pelo Patrono. Não
tinham propriedade.
Os Chefes de Familia elegeram d’entre si um Rei, unificando esta época
do Patriarchado o culto de Saturno e de Cybele; porém, quando se
apoiaram na Propriedade e nos Clientes, constituiram-se em Republica
aristocratica ou Senado, sendo a unificação social sob o culto de
Jupiter e Juno; quando por fim prevaleceram os Clientes pela fórma do
Tribunato, e se chega ao Imperio plebiscitario, preponderaram Vulcano
e Venus. Tal é a evolução da historia da civilisação dos Romanos,
(_Ramnes_) que unificaram os outros dous elementos Lucerense e
Titiense.
A proposito do livro de Noël des Vergers, _A Etruria e os
Etruscos_, escreveu Beulé: «do estudo dos monumentos resalta uma
verdade, que será sempre cada dia mais sensivel, e vem a ser, que Roma,
apenas fundada, e já augmentada por fórma a poder attrahir a attenção,
tornou-se _uma cidade etrusca_, pela religião, pelas artes, pela
civilisação, e preciso é confessal-o, pela conquista. Não é amesquinhar
o genio latino o reconhecer que elle recebeu uma educação, soffreu um
jugo salutar, e acceitou modelos que viria a exceder. A vitalidade
e originalidade da raça latina sobreviveram através d’estas provas;
que direi? engrandeceram-se á custa d’ellas.--Roma devia reagir de
prompto, absorveu a Etruria, como a Grecia sua mãe, e a sua grandeza
não diminuiu por ter conhecido dominadores antes de ter adquirido o
imperio do mundo.»[5] A persistencia d’este caracter _etrusco_,
notado por Beulé na civilisação de Roma é o que melhor explica a
sua facil incorporação das raças brancas do norte da Africa, dos
Iberos da Hespanha e dos Gaulezes, de cuja civilisação rapidamente se
apropriaram, a ponto de darem litteratos a Roma.
Roma achou-se collocada entre dois pontos que diversamente actuaram nas
suas capacidades e épocas litterarias: ao sul, a Grande-Grecia, d’onde
recebeu a cultura hellenica, na poesia, na arte, na philosophia,
na eloquencia e na historia: vê-se isso em Livio Andronico, Ennio,
Pacuvio, Terencio, Horacio. Ao norte, é na Gallia Cisalpina que
desponta o espirito original e universalista da grande raça gauleza;
pertencem a esta corrente Cecilio, o comico; Catullo, de Verona;
Tito Livio, de Padua; Virgilio, de Mantua; Cornelio Gallus, o amigo
de Virgilio, de Frejus; Propercio, de Mevania, na Ombria, bem como
Passienus Paullus, e o umbriano Plauto.[6]
O fundo ethnico da população italica, que apesar d’estas duas
influencias grega e gauleza ou pre-celtica, não perdeu o seu caracter
proprio, chegou a transparecer na litteratura e nos costumes populares
de Roma. As _Saturae_ etruscas, representações scenicas ao som da
flauta, com mimica e dansa, as _Atellanas_ oscas pondo em scena os
aldeãos da Campania, conservaram-se no gosto publico até á época do
Imperio. Este genero de farça burlesca era improvisado de momento, por
typos conhecidos e vulgarisados na sua caracterisação; e o que é mais
para notar é que um tal genero de improvisação dramatica ainda persiste
na Italia, na _Commedia dell’Arte_, e os velhos typos burlescos têm os
mesmos representantes na actualidade, como o Maccus (_Polichinello_), o
Pappus (_Pantalon_), Casnar (_Cassandra_), Sannio (_Zanni_), Manducus
(_Croquemitaine_), que continuam a fazer rir o povo com os seus
ditos desenvoltos. A comedia improvisada pertence a um fundo ethnico
occidental, pois que a encontramos na tradição popular hespanhola nas
_Encortijadas_, e a fórma portugueza conserva-se nos costumes do Brazil
no auto do _Bumba meu boi_. Vê-se portanto, que este fundo ethnico
_Osco_, analogo ao _Euske_ da Hespanha, ao _Ausci_ da Aquitania, é que
nos explica a similaridade dos cantos épicos ou Romances no occidente
da Europa, como a observaram Nigra, Liebrecht, F. Wolf e R. Köhler;
dá-se egual morphologia nos cantos lyricos, Pastorellas, balladas e
serranilhas, como observaram Paul Meyer e Mainzer. E se estas fórmas
se conservaram através da forte cultura greco-romana implantada nas
Gallias e na Hespanha, persistiram tambem os costumes, as superstições,
os jogos, que provocavam o seu emprego, assim como as tendencias
federalistas mantinham as condições para a differenciação do Latim em
dialectos rusticos independentes, que depois se tornaram as linguas
romanicas, pelas condições de autonomia nacional.
Dá-se na Litteratura latina o estranho phenomeno de não se encontrar
a poesia do povo ou da _tradição_ nos seus poetas; estes, absorvidos
pela imitação dos Alexandrinos, ou preocupados com as doutrinas
philosophicas da Grecia, obedeceram a uma corrente do gosto que lhes
fez perder o sentimento da nacionalidade. Procurando-se o caracter
da Poesia latina, não se encontrará nos seus maiores poetas, que
se esqueceram das tradições do Latio e abandonaram a metrificação
organica da sua lingua, a _Accentuação_, do verso saturnino, pela
_Quantidade_, dos gregos, exprimindo o sentimento nas mesmas fórmas de
Pindaro, de Alceo e Sapho, descrevendo a natureza como a representaram
Homero e Hesiodo, e parodiando os conflictos da vida pela adaptação
dos typos de Aristophanes e de Menandro na comedia, e de Euripides,
na tragedia. Como os actos juridicos dependiam para a sua validade
de um certo numero de ritos symbolicos e formulismos tradicionaes, a
que os Opicos ligaram os seus privilegios, é por isso que através do
dominio absoluto dos rhetoricos em Roma, essas _antiqui juris fabulas_
constituiram na sua Jurisprudencia, como observou luminosamente
Vico, na _Sciencia Nova_, uma _severa poesia_. A moderna erudição
historica e as investigações ethnologicas vão determinando esse fundo
anthropologico nas tradições e nos costumes; estão achados os _Cantos
dos irmãos Arrales_, as cantigas a Julio Cesar, a _Vigilia de Venus_,
e numerosos versos a que alludem os escriptores latinos.[7] A Italia
antiga revive ou persiste tambem nos costumes, crenças e tradições
populares; as excavações de Pompeia mostram que a mulher italiana ainda
usa o _venetus cuculus_, a agulha de aço com que prende os cabellos; o
_pileus_ usa-se até em Fondi; os _improvisatori_ de hoje, rodeados pela
multidão, procedem como o poeta Stacio em Roma ante o seu auditorio;
na alimentação segue-se o mesmo regimen, o _prandium_ ao meio dia;
os preceitos das _Georgicas_ ainda vigoram na agricultura, e as
cercanias de Roma permanecem desertas, mantendo o aphorismo de Catão na
observancia do systema dos prados. Os _Condotieri_ precisam dar largas
ao antigo instincto bellicoso do salteador, instincto modificado pelo
contracto de associação. Os contos maravilhosos da feiticeira Circe
continuam a povoar a imaginação do povo; e como observa Bonstetten,
no seu livro O _Latio antigo e moderno_: «segundo Niebuhr, os romanos
de hoje acreditam na existencia da donzella Tarpêa em um poço do
Capitolio. Os Marsi curavam mordeduras de serpentes, e os Giravoli
dos arredores de Syracusa pretendem hoje cural-as com saliva.» Muitos
costumes persistiram mudando-lhes o Christianismo o sentido por uma
lenta evolução: os milagres da Medêa são attribuidos pelos napolitanos
a San Domenico di Cullino; o templo de Romulo e Remo pertence hoje aos
gemeos S. Cosme e Damião; no sitio d’onde se precipitou Anna Perenna,
está a capella de S. Anna Petronilla.[8]
As differenciações ethnicas que mantiveram na Italia as fórmas
federalistas (_lucumonias_), accentuam-se no genio esthetico. Cada
escóla de Pintura, na Italia, tem caracteres em que apparecem feições
locaes, que se succedem fatalmente. O primeiro passo para vencer
a rudeza morta da pintura byzantina foi a ideia de aperfeiçoar os
_baixos-relevos_; sente-se aqui a transição da estatua para o quadro.
A Toscana, aquella antiga Etruria onde primeiro appareceram as artes
e as sciencias na peninsula italica, começou este movimento. Nicoláo
Pisano imitou na pintura as figuras em relêvo dos tumulos antigos;
vendo mais a fórma material que apalpava do que a _linha_, cujo ideal
procurava, não podia deixar de ser um excellente architecto.[9] A
escóla de Roma e de Florença (Raphael, Salvator Rosa) são correctas no
desenho; as figuras reproduzidas de um modo severo têm muitas vezes,
como nota Michelet, a secura architectural.[10] Apoz a esculptura veiu
o mosaico, descoberta da Toscana (do monge Mino da Turita). Á altivez
e terror, seguiu-se a graça e a delicadeza; tal o estylo do florentino
Cimabue. A escóla da Lombardia eleva-se na pintura á _graça_ (Leonardo
de Vinci, Corregio) e ao _movimento_; a escóla de Napoles descobre
os _effeitos da luz_; a escóla de Veneza não tem rival no _colorido_
(Paulo Veronese, Giorgione, Ticiano) e na faina de uma republica
mercantil, que precisa de emoções fortes, esse _colorido_ é vivo e
exagerado (Tintoreto, pintando com furia em quadros descommunaes).
A escóla de Bolonha pertence a uma época em que acabava a creação
inconsciente; formada depois de todas as outras, fixa as regras da
technica, e é naturalmente eccletica (os Carraches, Dominiquino,
Primatice.)[11] Raça e acção mesologica, nas suas sobrevivencias, e na
determinação dos temperamentos individuaes são o verdadeiro criterio
para a comprehensão das creações de uma psychologia collectiva.
Exemplificámos este facto capital com o exame ethnologico da Grecia e
de Roma, que pelo universalismo helleno-italico são ainda hoje a base
da Civilisação occidental propagada á Europa pelo genio francez; assim
naturalmente ficou esboçado esse elemento classico ou greco-romano que
veiu a influir no desenvolvimento das litteraturas modernas. E como a
França suscitou em todos os povos da Europa as manifestações do genio
poetico pela imitação dos seus cyclos épicos, novellescos, e lyrismo
trobadoresco, torna-se tambem importante fixar as caracteristicas de
raça nas fórmas da sua Litteratura, apesar de pela propria corrente da
civilisação europêa irem-se apagando cada vez mais essas differenças
anthropologicas.
A historia da litteratura franceza já foi tratada sob o ponto de
vista dos caracteres da raça por Émile Chasles:[12] no typo _gaulez_
synthetisa o genio nacional persistente através de todas as fusões e
assimilações historicas com outros povos; no _Gallo-romano_, descreve
a esplendida civilisação meridional, que veiu a produzir a creação do
Lyrismo trobadoresco; no _Gallo-bretão_, as ficções novellescas que
encantaram o mundo medieval unindo o espirito christão e cavalheiresco;
no _Gallo-franko_, a unidade politica imposta pelo poder real na
lucta dos grandes vassalos, lucta que inspirou o cyclo épico feudal
das Canções de Gesta, creadas no norte da França. O encontro das
raças produz, como observou Lemcke, um desenvolvimento de poesia; o
conflicto da França feudal com a França meridional desenvolve e faz
manifestar o genio lyrico nas canções da lingua d’oc, que se propagam
pelo meio dia e pelo norte da Europa; a propria Bretanha, antes de
entrar na unificação nacional faz a revivescencia dos seus cantos ou
lais, que se desenvolvem nos poemas de _Merlin_, de _Arthur_ e da
_Tavola redonda_. A estes trez elementos que constituiram a unificação
da nacionalidade franceza, correspondem no territorio trez regiões
climatologicas, agronomicamente bem reconhecidas. Os Celtas e os
Frankos, que se fusionaram com o elemento _Gaulez_ não apagaram, apesar
da sua supremacia árica, esta raça, que através de todos os tempos
synthetisou a feição nacional da França. Se o Gaulez manteve e imprimiu
em tudo o seu caracter, é por que além do seu numero tinha attingido
uma civilisação superior á dos Celtas e Frankos. O imperador Claudio,
que conhecia perfeitamente a Gallia, diz que Roma não póde desprezar
a nação que estava unida á civilisação romana pelos costumes, pelas
artes, pelas affinidades (_moribus, artibus, affinitatibus nobis
mixto_.) Quaes seriam estas affinidades, para o imperador que nascera
em Lyon, senão a similaridade ethnica de uma raça que se estendia
por toda a Europa meridional, e que mantinha os mesmos costumes e
práticas industriaes. Os Romanos, segundo Diodoro Siculo, davam o
nome de Gaulez a todos os povos da França meridional; pela sua parte
Polybio já distinguiu o _Gaulez_ das outras populações celticas, raça
que se manteve intacta na Aquitania entre os Pyreneos, o Garona e o
golfo da Gasconha. Broca diz que tudo induz a crêr que os Aquitanios
pertencem a esta raça de cabellos pretos, cujo typo se conserva quasi
sem mistura entre os Bascos actuaes.[13] (_Gascões_, _Vascones_ e
_Bascos_.) Este elemento iberico, commum á Hespanha, Italia e França
meridional, é caracterisado por Jorge Philipps: «no tempo de Cesar, os
Iberos possuiam ainda na Gallia a maior parte do territorio situado
entre o Garona, o Oceano e os Pyreneos; elles se conservaram n’este
triangulo, apesar das conquistas dos Ligurios primeiramente, e depois,
de um inimigo mais terrivel, a raça Celtica.» Estes factos comprovados
pelos modernos anthropologistas explicam-nos a transmissão do lyrismo
trobadoresco a todo o occidente da Europa. Chasles d’Héricault,
considera os Iberos como repovoadores e civilisadores da Gallia;
Émile Chasles, resumindo o estado d’esta questão apresenta o seguinte
facto: «Atravessando a Bretanha franceza, notareis com surpreza, em
certas aldeias, homens que têm os olhos com a obliquidade dos Mongoes,
e por consequencia a arcada zygomatica do extremo Oriente, signal
palpavel de uma migração obliterada na historia.»[14] Charrière, na
_Politique de l’Histoire_, acceita a identidade primitiva da raça
hispanica e italica, reunindo-se pelo laço natural da Aquitania e pelo
meio dia da Gallia; e Petit Radel observou a semelhança de um grande
numero de nomes geographicos da Italia e da Hespanha.[15] O typo do
_africano branco_ é o que conservou mais puros os caracteres d’esta
raça autochtone do Occidente da Europa, anterior ao estabelecimento
dos Celtas, e com os quaes se cruzou; Émile Chasles cita um facto, que
segundo confessa, faz pensar: «na Edade media um exercito de invasão
passou da Africa a Hespanha, e devastou-a até aos Pyreneos. Chegados
alli, os Africanos reconheceram immediatamente em um reconcavo da
montanha, _gente que fallava a mesma lingua que elles_; em logar de se
baterem fraternisaram em nome de um remoto parentesco que a politica
e o tempo tinham obliterado. Eis aqui Berbères, que nos dão uma lição
sobre os primordios da historia, e que por ventura fornecerão um
novo argumento a M. de Belloguet.»[16] Na sua _Ethnogénie gauloise_,
Belloguet sustenta a anterioridade da civilisação gauleza á celtica,
que attribue aos Ligurios. Sobre este fundo ethnico commum á França,
Italia e Hespanha, é que as invasões dos Celtas, dos Romanos e Germanos
vieram constituir os povos que formaram as modernas nacionalidades
depois da queda do Imperio. Competia á França a hegemonia sobre as
nacionalidades da Edade media, continuando a grande Civilisação
occidental, que em Marselha reflectira a cultura grega, e em Tolosa
a cultura romana. Pela região da Aquitania transmittia á Italia e
Hespanha o _gai saber_, a idealisação do lyrismo trobadoresco; pelo
elemento celtico espalhava na Inglaterra as tradições do _Santo Graal_
e da _Tavola redonda_; pelo elemento franko, transmittia á Allemanha o
impulso que acordava a inspiração dos seus _Minnesaenger_. O que vemos
pelas condições da raça, confirma-se pela consideração geographica, em
que a França tinha naturalmente de exercer uma missão intermediaria
entre os novos estados da Europa; escreve Edgar Quinet: «seja qual
fôr a diversidade dos instinctos da Europa, tem a França orgãos para
apanhar-lhes o caracter. Pelo Meio Dia e golfo de Lyon não toca ella
na Italia, a patria de Dante? Do outro lado, os Pyreneos não a ligam
como um systema de vertebras ao paiz d’onde surgiram os Calderon,
Camões, Miguel Cervantes? Pelas costas da Bretanha não se prende ella
intimamente ao corpo inteiro da raça gallica, que deixou a sua feição
em todo o genio inglez? Emfim, pelo valle do Rheno, pela Lorena e pela
Alsacia, não se une ella ás tradições como ás linguas germanicas, e
não lança ella um dos seus ramos mais vivazes ao seio da litteratura
allemã?» E assim como a França influiu directamente na cultura europêa
por estas condições mesologicas, ellas mesmas facilitavam esse
espirito de sociabilidade e prompta assimilação de todos os progressos
europeus; é assim, que no seculo XVI o humanismo italiano leva a França
ao abandono das tradições medievaes e imitação das obras classicas
da Antiguidade; no seculo XVII a Hespanha inspira os seus poetas
dramaticos, como Corneille e Molière, e dá-lhe o modelo das novellas
picarescas; no seculo XVIII a Inglaterra suscita a actividade do
pensamento critico e do encyclopedismo; e no seculo XIX é da Allemanha
que recebe a nova corrente de idealisação litteraria do Romantismo,
que propagou depois ás litteraturas meridionaes. Quinet, fallando da
diversidade das provincias francezas para estas diversas assimilações,
conclue: «Resulta d’esta diversidade, que estando em communicação com a
Europa inteira, a França não tem a temer uma influencia exclusiva; que
o Norte e o Meio Dia se corrigem mutuamente, e que este paiz chamado
para tudo comprehender, póde enriquecer-se com cada elemento novo sem
se deixar absorver por nenhum.» Onde se conhece esta indemnidade ou
originalidade é no chamado _genio francez_, já notado pelos escriptores
da antiguidade, que alludem á sua paixão guerreira e oratoria (_Rem
militarem aut argute loqui_, segundo Catão); _tumidissimi_, lhe chamam
outros, e vê-se pelas referencias de Aristoteles, de Plutarcho, de
Sallustio, de Florus, de Tito Livio, de Cicero, de Diodoro Siculo e de
Cesar, que as suas qualidades os impressionaram excepcionalmente.
O caracter gaulez, audaz e mobil, com regularidade nos seus caprichos,
logico na paixão, preferindo a prosa á poesia, o conto faceto á
lenda épica, trocando a palavra abstracta pelo symbolo naturalista e
concreto, possuindo-se primeiro do que outrem da verdade das grandes e
generosas ideias pelo que ellas têm de prático e de sociavel, adorando
a dedicação da amisade e mais ainda o chiste de um bom dito, leviano
mas intuitivo no alcance, bom e ao mesmo tempo implacavel na ironia,
sensualista e crente na immortalidade, o genio gaulez é sempre a alma
d’este eccleticismo intelligente e do sentimento de sociabilidade que
caracterisa o francez em toda a parte. Quando o direito universal se
exprimia por um symbolismo poetico, a França começava pela linguagem
da rasão; quando a Europa jazia sob a arbitrariedade do Feudalismo e
dos terrores da Egreja, o burguez ria-se nos _Fabliaux_, mofando
das duas tyrannias temporal e espiritual; a lingua franceza tornou-se
de um universalismo extraordinario pelo espirito de sociabilidade, e
como dizia Martin de Carrale, no seculo XIII: «_la plus delitable à
lire et à oir que nulle autre_.» É uma lingua vulgarisadora para
toda a ordem de factos, cooperando para que a França seja a capital
da civilisação, o centro em que palpitam as emoções mais generosas.
A litteratura franceza é influenciada por este génio da raça: ora
desenvolta e cheia de ironias e ditos de boa sociedade, como em
Rabelais, Montaigne, Bonaventure des Periers, Beroalde de Verville,
Luiz XI e a rainha de Navarra, La Sale e tantos que continuaram sob
o humanismo classico a vêa sarcastica e mordente dos _Fabliaux_
dos seculos XIII e XIV e das _Sotties_ do velho theatro popular;
ora pautada, pedante, convencional como no preciosismo, em Racine,
Marmontel, Scudery, Delille; mystica, como em Calvino, Francisco
de Sales e Fénélon; tumida e emphatica em Victor Hugo. A hegemonia
intellectual da Edade media continuou-se pela França na fórma social
depois da Revolução, que ella propagou a todos os povos da Europa não
tanto com balas como com cantigas. Michelet, que comprehendeu tão
lucidamente a hegemonia da França, proclama-a na _Introducção á
Historia universal_: «Toda a solução social ou intellectual fica
infecunda para a Europa, até que a França a interprete, traduza,
popularise... Ella diz o Verbo da Europa, como a Grecia disse o da
Asia.»
Para a comprovação do genio da raça transluzindo nas creações
artisticas, ainda apesar do convencionalismo de escóla e dos
preconceitos da civilisação, Taine determinou na Historia da
Litteratura ingleza duas correntes de inspiração, provenientes dos
sangues _saxão_ e _normando_, caracterisadas nos maiores escriptores.
O _Saxonio_ tem o genio tenaz, luctador, vive da incerteza, sorri-lhe
a ideia da morte, põe-se em combate com a natureza; a tensão violenta
diante da catastrophe é o momento mais bello da sua vida; tem uma
mythologia sombria, tradições medonhas, instinctos brutaes. Dos
parceis do mar germanico, vem como o alcyão da tormenta accoitar-se
na Bretanha, e com os Juttes e os Anglos supplanta pela conquista o
elemento celtico. Para esses invasores o céo plumbeo da Inglaterra
é uma aurora comparado com a cerração dos mares do norte; são meio
hyppopotamos na ferocidade e na voracidade, procurando a alegria
ruidosa nas bebidas mais corrosivas. Quando o influxo do Christianismo
veiu explorar o instincto supersticioso d’esta raça, substituiu-lhe o
terrivel deus Thor que atirava o martello pelos áres, pelo deus dos
exercitos que arrojava o raio, e enlevou-a com as lendas tenebrosas
da Descida ao Inferno (_Tundal_ e _Purgatorio de S. Patricio_.) A
poesia ingleza, exprimindo esta energia saxonia representa na sua
espontaneidade a trilogia satanica, a Duvida, o Mal, o Desespero; é
Shakspeare propondo a fórmula dubitativa em Hamlet: _To be, or not te
be_, quando depois da Renascença se dissolvia a synthese theologica
da Egreja sem se determinar a synthese humana da consciencia; é
Milton, depois da revolução social, divinisando o principio do Mal,
Satan, como a libertação de todos os absurdos que desde a Reforma
prendia a sociedade e o espirito em um despotico puritanismo, na
phrase: Mal, torna-te o meu bem (_Evil be then my good_) na epopêa do
_Paraiso perdido_; é Byron, levado ao paroxismo do desespero entre uma
aristocracia convencional, que não percebe a marcha do tempo moderno, e
que o repelle com o desdem de uma mediocridade panurgica; ello abandona
a Inglaterra, o vagabundo _Child Harold_, que divaga pelo occidente á
busca do seu ideal da liberdade, indo morrer por ella na Grecia.
A Renascença como o regresso da alma ás fontes da natureza, e as
luctas violentas da Reforma suscitaram em Inglaterra a preponderancia
d’este veio _saxonio_, como as fortes torrentes que descarnam os
rochedos: Dayton, Greene, Marlow, Ben Johnson são os precursores ou os
primeiros productos da corrente que orientou o genio de Shakspeare. E
assim como apparecia o drama em Inglaterra, onde as instituições dos
homens livres coexistiram sempre com instituições feudaes ou senhoriaes
e monarchicas, tambem a complexidade dos interesses burguezes e da
moral privada deram logar á creação nova das litteraturas modernas,
o Romance, de que são creadores Fielding, Swift, de Föe, Richardson,
Goldsmith.
Ao veio saxonio contrapõe-se o genio _normando_, como exemplifica
Taine. Desde os seculos IX e X, que os Normandos infestavam as costas
meridionaes da Europa; terriveis como os saxonios, a permanencia nos
climas suaves do sul enfraqueceu-lhes a irritabilidade, fel-os brandos,
amigos da novidade. A conquista dos Normandos sobre os Saxões foi
superficial, por que os vencidos em menos de trez seculos imprimiram a
sua feição aos vencedores: o _normando_ conservou apenas as qualidades
exteriores dos seus habitos senhoriaes, que differenciam ainda hoje
a aristocracia ingleza, ao passo que o franco caracter _saxonio_ se
conserva no povo. Os velhos chronistas notaram este antagonismo; diz
Roberto de Gloucester: «As gentes da _Normandia_ ainda habitam entre
nós, e aqui ficarão para sempre... Os _Normandos_ descendem dos homens
de alta cathegoria, que estão n’este paiz, e _os homens de baixa
condição são filhos dos Saxões_.» Antes de Taine, já o historiador
Agustin Thierry fundou sobre este conflicto de raças a _Historia
da conquista de Inglaterra_. A litteratura ingleza resente-se da
influencia _normanda_ na predilecção da fórma, na imitação dos modelos
convencionaes, em um classicismo sem ideia, em um meio termo do bom,
em menos espontaneidade e mais estylo; Drydon, Pope, Addisson, Waller,
Gray, seguem a moda litteraria, e ainda hoje fazem a predilecção dos
espiritos academicos, dos que consideram a litteratura como um nobre
ocio, ou uma habil curiosidade. A hombridade saxonia e a cortezania
normanda reunindo-se formaram esse temperamento sanguineo ligado a
um caracter impassivel; o _humour_ é o estado psychico d’esta fusão,
um lampejo de alegria sob um ár taciturno constante, uma jovialidade
indecisa como de quem reage contra um mal estar. O _humour_ é o
verdadeiro elemento da obra de arte ingleza: Sterne, no _Tristan
Shandy_ e _Viagem sentimental_, Swift, nas _Viagens de Gulliver_,
Fielding, no _Tom Jones_, Butler, no _Cavalleiro de Hudibras_, e
modernamente Carlyle representam esta fórmula da esthetica ingleza. Em
philosophia, tem a audacia critica de Hobbes e de Bolingbroke a par
do mais subserviente biblicismo; tem o positivismo de Locke e Hume
conjunctamente com o idealismo de Berkeley, e na sciencia procura
manter o accordo official entre a velha synthese theologica com as mais
audaciosas theorias transformistas, como se observa em Darwin.
Ampliando o criterio ethnologico á litteratura da Allemanha, já alguns
criticos observaram as differenciações locaes reflectindo no genio dos
escriptores; a Suabia, é a patria do _lied_, a canção tradicional,
do canto que se desenvolve em um esplendido lyrismo; na Franconia,
o gosto artistico popular organisa-se nas _Meistergesang_. Na sua
_Physiologia dos Escriptores e dos Artistas_, Deschanel transcreve
as palavras de um critico indicando que Schiller era da Suabia, e
Goëthe da Franconia, deduzindo assim a diversidade d’aquelles dois
genios que synthetisam toda a litteratura allemã: «O primeiro, como
a raça allemanica d’onde provém, raça isempta, altiva, concentrada,
democratica, apresenta-nos a irritabilidade dos sentimentos, a
vivacidade da imaginação, o liberalismo da rasão; o segundo, em
virtude da sua origem, possue a calma, a correcção, a serenidade, a
flexibilidade industriosa de um espirito aberto a toda a cultura.
Schiller gastou-se prematuramente pela impetuosidade interior; Goëthe,
durante a sua longa vida, foi avançando por um progresso insensivel e
contínuo para a perfeição.»[17] Apesar do sentimento nacional tender
para a unidade politica, ainda assim prevalecem as influencias locaes
nas manifestações do espirito allemão; escreve G. Weber: «Debalde
se procurará hoje, um centro litterario parecido com aquelles que
existiram outr’ora em Saxe e em Thuringe. Berlim permanece a séde
da philosophia e das sciencias especulativas; Munich o fóco das
bellas-artes e o baluarte do ultramontanismo; Leipzic e Dresde o
centro da critica, da arte dramatica e das bellas-letras...»[18]
Heinsius, na sua _Historia da Litteratura allemã_ determina-lhe os
periodos da evolução sob o aspecto da raça: o _gotico_, até ao meado
do seculo VIII; o _franko_, até ao advento dos Hohenstaufen no seculo
XII; o _suabio_, periodo dos _Minnesinger_ e da cavalleria exaltada;
o _rhenano_ ou _saxonio_, da erudição e das Universidades, do seculo
XIV a XVI; o _saxonio_, comprehendendo a renascença, as controversias
religiosas, os _Meistersenger_, ou os cantores populares, e a creação
da lingua nacional, pela fusão dos dois dialectos principaes por
Luthero; o _silesio_ e _suisso_, em que predomina a influencia franceza
da escóla de Opitz, reagindo e vencendo o perstigio das tradições
germanicas em Klopstock, que determina a grande época _allemã_, em que
brilha a pleiada dos genios creadores, como Goëthe, Schiller, Bürger,
Wieland, Lessing, etc., como uma integração affectiva da Germania.
Sobre esta successão, conclue Heinsius: «Observa-se que em cada época,
á parte esta ultima, _é uma das grandes familias da nação allemã que
conduz todas as outras_, que preponderou tanto no pensamento como na
actividade, nas letras como na vida social, que, finalmente, _imprimiu
o seu caracter ao resto da nação_ e a fecundou com o seu genio.»[19]
Não é excessiva a nossa comprovação, ao tratar-se de determinar o
caracter da raça, e acção do meio na civilisação e litteratura de
Portugal; por que todos esses povos, a começar pela França exerceram
uma acção profunda, já na constituição da raça, já nas fórmas da
manifestação do genio nacional. Celtas, Romanos, Germanos e Arabes
actuaram sobre o fundo persistente das populações hispanicas, que
apesar d’isso conservaram as suas tendencias separatistas e as
suas differenciações locaes. Nas creações artisticas formadas por
individualidades que estão fóra das influencias vulgares, ainda
assim se revela esta fatalidade do sangue, e do meio cosmico. Sobre
a mais antiga camada anthropologica da peninsula estabeleceram-se
os cruzamentos: _Hispano_-celtico, _hispano_-romano, _hispano_-gotico,
e _hispano_-arabe. Vê-se aqui um fundo persistente de população, que as
invasões successivas não conseguiram obliterar nas suas mestiçagens.
O que era pois este elemento _hispano_? Quando as primeiras
frotas tyrias aportaram no Mediterraneo, já a peninsula se achava
habitada por gente que se considerava autochtone ou filha da propria
terra. Bem podiam ter-se esquecido da sua proveniencia, desde que os
Pyreneos a defenderam contra a terrivel invasão dos gelos da época
glaciaria. Quem era essa raça mysteriosa aqui escondida? Ella achava-se
ramificada pelo sul da Italia e tambem pelo meio dia da França, mesmo
pelo norte da Africa; chamaram-se os _Iberos_. Segundo Guilherme
Humboldt, o genio iberico é a base da unidade dos povos meridionaes;
com os recentes estudos anthropologicos foram-se esclarecendo estas
similaridades, e nos estudos comparativos dos costumes e das tradições
confirmando pelas analogias ethnicas este sub solo social. Segundo
Bergman, o _Ibero_ é a transição da raça amarella para a aríaca;
além da Italia e da França, tambem apparece na Inglaterra, e no typo
ruivo germanico, constituindo um fundo primordial ou preárico da
Europa. Monumentos, superstições, mythos religiosos, recorrencias de
costumes, tradições lyricas e heroicas, communs principalmente ao
occidente da Europa, explicam esta raça a que na Hespanha se deu o nome
de iberica, que os escriptores da antiguidade greco-romana descrevem
com uma elevada cultura, com leis e poesia. Nas successivas invasões
da peninsula nunca este elemento hispanico foi obliterado; entraram
aqui os Celtas gaulezes, deixaram o seu vestigio no onomastico local,
venceram as tribus locaes ibericas, mas foram absorvidos por ellas,
como os Saxões da Inglaterra vencidos pelos Normandos os assimilaram
ao fim de trez seculos. Os Celtiberos nunca puderam ligar-se
completamente para a defeza commum, d’onde Guilherme Humboldt conclue
mais pela cohabitação do que pela fusão d’estes dois elementos; o
Ibero continuou a ser taciturno, e accoutando-se nas montanhas por um
instincto defensivo, e o Celta veiu insensivelmente isolando-se para
as bandas do mar, para lançar-se á vida aventureira. _En Dorel_ e
_Esus_ são os dois deuses d’estas raças, que persistem em muitas
das inscripções lapidares da Hespanha. A facilidade de adaptação estava
da parte dos Celtas, que tambem na Italia, em França e Inglaterra se
unificaram com outros povos preexistentes, conservando a sua delicada
sensibilidade poetica. Aqui temos um começo de differenciação na
futura raça hispanica ou nacionalidades peninsulares. As esperanças
da raça celtica, personificadas na vinda do Rei Arthur, ainda hoje
alentam o povo portuguez, que na decadencia da sua grandeza historica
compraz-se com o sonho do _Quinto Imperio do mundo_, em que o
desejado Dom Sebastião hade vir aqui formar a ultima grande monarchia;
as tradições da velha Atlantida enlevam a imaginação dos portuguezes
insulares, que julgam vêl-a nas cerrações em noite de Sam João. Para
as regiões centraes e montanhosas confinaram-se os iberos, de que os
bascos actuaes, apesar dos seus cruzamentos são ainda um manifesto
documento anthropologico; o elemento docil, aventureiro, amoroso,
propriamente celtico irradiou pela orla maritima, em uma linha norte
sul, vindo por isso os Portuguezes a conservarem o genio celtico, não
obstante Herculano affirmar que o portuguez nada tem de commum com os
antigos occupadores da peninsula. É pela extensão e diffusão d’este
ramo celtico, que se explica a facil adopção do latim nas conquistas
romanas, e mais ainda a differenciação dialectal, que produzia as
linguas novo-latinas, cuja formação os discipulos de Diez deduzem
de simples degenerescencias phoneticas. O facto da adopção de uma
linguagem, orgão de uma mais elevada cultura, em nada modificára a
população hispanica.
Os Phenicios, que exploraram o Mediterraneo, vieram attrahidos á
peninsula pela noticia das suas riquezas metalurgicas; os que já
estavam cansados dos errores longinquos, fixaram-se ao norte da
Africa onde fundaram Carthago, e d’ali exploraram commercialmente a
Hespanha, preferindo o trafico á guerra. Seria esta situação do ramo
semita, naturalmente incommunicavel, segura e sem perturbação, se as
rivalidades com o poder romano não produzissem a derrota da segunda
guerra punica.
Roma repelliu da peninsula o dominio carthaginez; possuindo um energico
poder centralisador, começou por imprimir no territorio dos hispanos
as suas divisões administrativas e militares. Não dominava pelo
numero e cruzamentos, por que Roma não tinha gente sufficiente para a
occupação, mas pela vigilancia das suas legiões, e pelo colonato dos
povos vagabundos, que se entregavam á sua protecção, é que sustentava
a conquista. A concessão do _direito italico_ harmonisava-se
com os costumes ibericos. A influencia de Roma é profunda, como
elemento civilisador, e de unificação social, mas nulla em quanto á
modificação dos caracteres anthropologicos da raça. Sob o seu dominio
os _hispanos_ ficaram taes como eram. A lingua latina como
universalista, exprimindo o direito e a poesia, dava distincção ao
que a fallava; por tanto deu a Hespanha á litteratura romana muitos
dos seus melhores escriptores, coincidindo esta actividade com a
adopção da religião universalista do Christianismo, que vinha unificar
sentimentalmente o Occidente: Seneca, Lucano, Marcial, Prudencio,
Draconcio, Sam Damaso, fazem brilhar a lingua de Cicero na época de
uma decadencia que se sustentou com a vitalidade provincial. O verso
latino, que na época de esplendor desprezava a _accentuação_
natural pela _quantidade_, á imitação da poetica grega, voltou nos
primitivos hymnos da Egreja, compostos por Sam Damaso, á simplicidade
do verso saturnino, ao octosyllabo popular. Estavam achadas as bases
da poesia moderna, do lyrismo das novas linguas, a _accentuação_
e a _rima_, que mesmo nos hymnos da Egreja dão á expressão latina
uma belleza incomparavel. A Egreja e o Imperio romano imprimem aos
povos da peninsula uma unidade politica e moral, deixando esse germen
da cultura erudita, que se sobrepõe ás tradições populares sem comtudo
ellas se extinguirem. A Egreja, depois da queda do Imperio, mantém
na sua liturgia a lingua latina, e os Reis germanicos reataram a
tradição imperial, conservando a _lex romana_ e o seu processo nos
tribunaes: estas mesmas causas cooperam para a unidade da civilisação
do Occidente.
As invasões germanicas, communs á Italia (Ostrogodos e Lombardos),
á França (Frankos e Borguinhões), á Inglaterra (Saxões) e á
Hespanha (Visigodos e Suevos), determinam uma certa similaridade das
instituições modernas, cujas relações com as instituições gregas e
romanas foram achadas por Freemann como provenientes de um fundo
commum árico. Mas a invasão germanica da Hespanha, embora numerosa,
não alterou o typo anthropologico da população iberica. Assim como
os Lombardos, no clima quente da Italia ao fim de um seculo estavam
extinctos, por egual causa os Visigodos seriam lentamente eliminados em
Hespanha; ao fim de dois seculos já não puderam resistir a uma pequena
incursão de Arabes. Comtudo, a invasão germanica deixou elementos
que foram apropriados pela povoação hispanica, como vamos vêr. Os
Godos aqui em contacto com a organisação civil e politica romana
conformaram-se com ella; e a sua aristocracia ou classe guerreira,
chegou a esquecer a mythologia de Odin pelo polytheismo social romano;
imitou os Codigos romanos, principalmente o theodosiano, excluindo
do seu direito a _banda pastoral_ e _agricola_, a quem deixava o
costume ou lei consuetudinaria do Estatuto territorial, conservando
exclusivamente para si o estatuto pessoal; esqueceu-se do culto
da mulher, de que falla Tacito, e adoptou os costumes dos harens
asiaticos; em religião, abandonaram a doutrina da humanidade de Jesus,
tornaram-se orthodoxos por corrupção, e desprezaram completamente as
suas tradições poeticas. D’esta ruina falla o profundo Jacob Grimm:
«As tradições goticas, tão bellas, tão numerosas, aniquilaram-se na
maior parte, e não se avalia o alcance d’esta perda; pelo que nos
deixou Jornandes se poderá julgar a importancia das origens mais
antigas e mais ricas, que existiam no seu tempo.»[20] Grimm explica
esta ruina pela influencia da reacção catholica: «A historia trata
os Godos com severidade por causa de terem abraçado o arianismo e
combatido a orthodoxia;»--«o christianismo triumphante arruinou-lhes
os monumentos do passado, prescrevendo como um dever o abandono dos
velhos costumes, e o desprezo de todas as tradições do paganismo.»
Estas tradições conservaram-se nas camadas populares da banda agricola
e pastoral, como o symbolismo juridico. Muitas das lendas germanicas
se acham implantadas, confundidas com as nossas lendas portuguezas: as
lendas de _Nossa Senhora da Nazareth_, salvando Fuas Roupinho,[21] da
_Roussada de Bemfica_, contada por Fernão Lopes,[22] o estratagema do
_Alcaide do castello de Faria_,[23] a de _Geraldo sem Pavor_,[24] de
_Gaia_,[25] da _Náo Catherineta_,[26] são provenientes d’este fundo
dos lites ou colonos decahidos da condição de homens-livres. Nas
superstições populares prohibidas pelas Constituições dos Bispados, vem
apontada a _Camisa de Soccorro_, costume privativamente germanico.[27]
No Direito portuguez consuetudinario, as Cartas de Foral encerram
numerosos symbolos germanicos, embora o mechanismo dos Concelhos tire
as suas designações de nomes arabes.[28] Porém, esta camada popular dos
lites, era formada do _colonato_ admittido pelos Romanos, de Alanos
e outras tribus que acompanharam as invasões sem serem propriamente
germanicas; pertenciam a esse fundo que já vimos identificado com o
elemento iberico. Não admira pois o facto, citado por Émile Chasles,
que na invasão dos Arabes, os Berberes fallassem e se entendessem com
povoações acantonadas nos valles (_Cagots_, _Mauregatos_), por isso
que pertenciam a esse elemento iberico ou hispanico. Quando se deu a
reconquista visigotica ainda a aristocracia quiz conservar no Codigo
Visigotico os seus privilegios, mas não foi isso possivel diante do
desenvolvimento da população das cidades, que era hispanica.
Com a invasão dos Arabes, embora a peninsula fosse fundamentalmente
revolvida e até certo ponto as duas civilisações se penetrassem, nem
por isso o elemento semita alterou os caracteres anthropologicos da
população iberica. Assim como os Romanos, nas suas conquistas formavam
o grosso das suas legiões com povos barbaros, tambem os Germanos
trouxeram nas suas bandas guerreiras tribus que lhes eram extranhas
(_Alanos_, _Gelas_, _Seythas_), e os Arabes occuparam a peninsula
hispanica quasi que com exercito de _Berberes_. Os dominadores
conservaram-se sempre estranhos ou incommunicaveis com os povos
conquistados; o estipendiario, o mercenario, o aventureiro trazidos na
corrente da conquista é que se misturavam entre o povo e conviviam em
uma crescente mestiçagem. O Proconsul romano, o Conde germanico, e o
Emir arabe consideravam barbaros a sociedade e o paiz que governavam,
e fechavam-se nos seus costumes aristocraticos, e nos seus privilegios
excepcionaes; pelo contrario os elementos do _colonato_ romano, dos
_lites_ germanicos, que se haviam confundido na persistente população
hispanica, e dos _mouros_ trazidos pela invasão e ulteriores conflictos
do dominio dos Arabes, vieram a constituir a gente sedentaria das
villas e cidades, a que já no seculo XII se dava o nome de _Mosarabes_.
Esta designação é preciosa, por que denominando o fundo anthropologico
da raça hispanica ou _iberica_, exprime a influencia exterior ou a
acção do contacto com a civilisação dos Arabes; segundo Pascoal de
Gayangos, _Must’ariba_ significa o que imita o viver dos Arabes.
Bastava a profunda tolerancia politica e religiosa dos Arabes, e o modo
como garantiram a existencia e a propriedade ás populações sedentarias,
mediante um leve imposto de capitação, para os seus costumes provocarem
interesse. Mas estas relações entre o povo conquistado e o Arabe
não foram descriptas com verdade pelos chronistas ecclesiasticos;
do seculo VII em diante não cessaram de retratar com as côres mais
sinistras o quadro da invasão arabe; representam razzias sangrentas,
desolação geral, ruina dos templos, ausencia de toda a cultura
litteraria; para elles entre a Cruz e o Crescente existe um abysmo,
de odio eterno, irreconciliavel, de morte; as duas raças, arabe e
germanica, repellem-se com uma antithese absoluta. Para os escriptores
ecclesiasticos e chronistas contemporaneos é esse eterno antagonismo
que faz com que a aristocracia visigoda se refugie nas montanhas das
Asturias abandonando as populações sedentarias ao invasor arabe, e é
que o obriga passado o primeiro espanto a ir reconquistando a palmos
o solo patrio. Odio politico, repugnancia entre as duas religiões,
aversão á diversidade de linguas e costumes, era quanto bastava para
communicar entranhado ardor á cruzada permanente que terminou na
conquista de Granada.
Triste erro da paixão patriotica e religiosa dos chronistas, que não
quizeram relatar como a população sedentaria, _colonos_ romanos,
_lites_ germanicos, sob o regimen de tolerancia dos Arabes, acceitaram
a convivencia com os _mouros_ ou berberes, e vieram do seculo VII ao
seculo XI a formar d’esse complexo elemento hispanico ou iberico um
povo livre. No onomastico popular acham-se os nomes godos ligados
com os arabes (ex. _Venegas_ e _Viegas_ = Ibn-Egas); acham-se
nos divertimentos e cantos populares os nomes dos instrumentos
musicos e dos generos poeticos, (_quitara_, _serranilha_, _leila_,
_lenga-lenga_); os sacerdotes christãos têm nomes arabes, e escrevem
em caracteres arabes ou aljamia. Quando começou a reconquista pela
aristocracia goda, este elemento popular ou propriamente nacional
estava já tão desenvolvido nas suas relações civis e economicas,
que não foi possivel restaurar as velhas e atrazadas instituições
germanicas, artificialmente e capciosamente regulamentadas no
chamado _Codigo Visigotico_. É esta população que recebeu o nome de
_Muztarabe_, como se acha em um documento de 1101, de Affonso VI; no
poema de Gonzalo de Berceo, _Milagros de la Virgen_, já se dá a essa
collectividade o nome de _Mozarabia_, em contraposição á classe culta
ou Clerezia; o nome é vulgar no castelhano _Mozarabe_, no valenciano
_Moçarab_, _Moçab_, e no portuguez _Mosarabe_. Este dualismo entre um
povo livre, que se vae constituir em nacionalidades, e uma aristocracia
atrazada que vae ser submettida pelo poder real, acha-se perfeitamente
representado no typo épico do Cid, como observou judiciosamente
D. Agustin Duran: «Ha um Cid monarchico, _popular_, religioso e
aventureiro; ha outro aristocratico, _feudal_, cavalheiresco e devoto;
porém nunca se confundem no principio politico que representam. O Cid
_feudal_ e devoto acha-se sómente idealisado na _Chronica rimada_ e
em alguns romances tirados d’ella; o Cid monarchico, _popular_, santo
e cavalheiresco está formado no _Poema_ publicado por Sanchez, nas
Chronicas latinas e castelhanas, e provavelmente nos cantares que
n’ellas se citam, ou que convertidos em prosa se inseriram no texto, e
nos romances velhos que restam, ou em antigos compostos posteriormente
no seculo XVI, quando predominavam o espirito cavalheiresco e os
costumes palacianos. Este Cid, que se oppõe ao Cid dos senhores, é o
que triumphou das ideias feudaes, é a verdadeira figura popular que
a escripta e a tradição nos legaram, condemnando ao olvido a do seu
antagonista; é a que caracterisa em todas as épocas a idiosincrasia
nacional, a necessidade de conquistar a unidade de territorio e das
leis, a de acabar com a anarchia que impedia a reconquista do paiz
contra os Arabes. Este é o Cid, que, como o povo, se ligava aos
monarchas para libertar-se da oppressão dos senhores; mas que, ao mesmo
tempo, vencido de outra tyrannia que podia empecer a liberdade, ao
passo que acatava e fortalecia os reis, lhos fallava severa linguagem
de verdade, obrigando-os a respeitar a lei da opinião.»[29] A poesia
popular fez aqui a synthese da creação da sociedade civil na alliança
da burguezia com a realeza.
Foi tambem com o nome de _Mosarabes_ que Alexandre Herculano designou
a população da Extremadura e da Beira antes da constituição da
nacionalidade portugueza: «os habitantes da capital da antiga Luzitania
eram principalmente Mosarabes...»[30] E: «na Beira, o _mosarabismo_
devia caracterisar mais profundamente a população, do que ao norte do
Douro...»[31] _Mosarabia_ e _Mosarabismo_, significa com todo o rigor
historico, ethnico e anthropologico a raça hispanica ou iberica, tendo
incorporado em si todos os elementos celticos, _colonato_ romano,
_lites_ germanicos, tribus _maurescas_ ou berbericas, vindo sob a
tolerancia arabe a constituir a nova povoação livre que se transforma
de classes servas no povo das nacionalidades peninsulares. A designação
é restricta á época arabe, como exprimindo uma unificação ou integração
social; creadas as nacionalidades, esqueceu-se o nome de _Mosarabia_,
prevalecendo o separatismo nos nomes de Gallegos, Portuguezes,
Aragonezes, Leonezes, Navarros, Castelhanos, etc. Mais tarde o nome de
_Mosarabe_ revivesceu com um sentido puramente religioso, para designar
aquellas povoações, que em contacto com os Arabes souberam conservar
intacta a fé e o culto christão; tal é o sentido com que se encontra
em uma comedia citada por Ticknor.[32] Este dualismo da _Mosarabia_
e Clerezia, indica em que elemento ethnico se devem procurar os
caracteres psychologicos e os themas tradicionaes das creações
artisticas, e por que via as correntes da erudição grega e romana
exerceram por vezes uma obnubilação na phantasia dos escriptores
peninsulares. Quando estas populações christãs foram reconquistadas,
o laço religioso é que as unificava, porém os costumes imitavam a
cultura arabe, subordinando-se aos novos senhores pela identidade da
fé; no acaso da guerra, se tornavam a cahir no dominio sarraceno,
eram tratadas com mais brandura. No seculo X o terreno comprehendido
sob o titulo de Minho, Traz os Montes e Beira-Alta era extremamente
povoado, o que não teria sido possivel se tivesse sido occupado
simplesmente por christãos asturo-leonezes. Os territorios do Douro e
do Mondego já por este tempo apresentavam grande numero de granjas,
casaes, villares e povoas. Sob as phrases do latim tabellionico dos
diplomas, como notou Herculano, sente-se palpitar uma população livre,
que se fará reconhecer mais tarde. A contar do seculo IX encontram-se
nos contractos celebrados entre estas differentes sociedades nomes
goticos e romanos amalgamados em agnome e cognome com os nomes
arabes; presbyteros e diaconos assignam-se com nomes mussulmanos, e
ás vezes filhos e irmãos entre si diversamente chamados com nomes
arabes e goticos. Pelo que, conclue Herculano: «Não é evidentemente
esta confusão de denominações a imagem da assimilação, que, salva a
differença do culto e da jurisprudencia civil, se operára lentamente
entre os sarracenos e os hispanogodos sujeitos ao seu dominio?»[33]
Na magistratura civil, os nomes dos varios cargos tinham tambem
designações arabes; na segurança da sua erudição, concluiu Herculano:
«O resultado definitivo de todos estes factos, devia de ser, no começo
da monarchia _a preponderancia do elemento =mosarabe= entre as classes
inferiores_, ao passo que entre a nobreza preponderava forçosamente
a raça asturo-leoneza.»[34] De facto na Extremadura, Alemtejo e
Algarve, depois da separação de Portugal de Leão, ficaram vivendo os
_mouros_ forros com a sua independencia garantida pelos Foraes e pela
immunidade da communa. Assim se fortificava esse elemento _mosarabe_
nas classes inferiores, onde se crearam as manifestações artisticas,
principalmente architectonicas, e se conservaram as tradições poeticas,
ou _Aravias_. Esta influencia poetica dos Arabes acordou a imaginação
popular; pelos Arabes da Hespanha se implantaram na Europa os contos
orientaes do _Hitopadeça_, do _Pantchatantra_ e do _Calila e Dimna_;
foram esses themas novellescos vulgarisados pelos arabes que vieram
fortalecer o instincto da liberdade burgueza, e que foram estimular a
creação romanesca no _Decameron_ de Boccacio, nos _Contos_ de Sassetti,
nas _Notte piacevoli_ de Streparole, nas graciosas narrativas das
litteraturas romanicas.
Este dualismo, que Herculano tambem observou entre as classes
inferiores ou _mosarabes_ e a aristocratica ou asturo-leoneza,
reflecte-se no antagonismo entre as autonomias nacionaes, ou
individualismo dos estados peninsulares, e a obliteração de todos esses
caracteres por um espirito abstracto de unitarismo, conservado da acção
imperial romana, gotica e arabe, que a organisação tambem unitaria da
Egreja veiu fortificar na aristocracia e na realeza, que ao caminhar
para a dictadura se separou do povo. Era este espirito de unidade
que fazia com que os reis e aristocratas christãos se entendessem
por vezes com os emires e kalifas; na batalha de Zalaka trinta mil
sarracenos combatiam sob as bandeiras christãs do rei de Castella e
Leão, ao passo que os cavalleiros christãos coadjuvavam as hostes do
almoravide Iussuf; Affonso VI, no enlevo dos seus amores por Zaida,
queria pôr no throno o filho da sevilhana que estremecia; em Portugal
tambem vêmos D. Affonso Henriques fazer uma alliança com Iben-Kasi. O
ideal da unificação manifestou-se na creação do kalifado de Cordova,
e na reconstituição da unidade visigotica, nas luctas de Castella,
Navarra e Aragão. Alheio a todas as ambições creou-se um povo vivendo
por si e para si, que emquanto manteve os seus separatismos naturaes,
ou pequenos estados, chegou a exercer uma acção immensa na Civilisação
occidental. É este caracter ethnico, que o nome de _mosarabe_
exprime tão perfeitamente, que deve ser procurado nas creações dos
povos peninsulares differenciados pelas condições do territorio.
Portugal occupa na peninsula hispanica uma faixa _norte a sul_,
na orla occidental: d’aqui a grande variedade da sua climatologia, das
suas producções agricolas, e das capacidades e caracteres individuaes
dos seus habitantes. Foi esta a causa immediata da actividade social
que o levou á desmembração da unidade asturo-leoneza, e que sem
fronteiras naturaes, separou Portugal profundamente dos outros estados
hispanicos. Além d’esta situação, que em muitas cousas torna Portugal
comparavel ás peninsulas da Italia e da Grecia, o solo do paiz é
bastante accidentado, influindo pelas altitudes na variação do clima de
provincia para provincia; a visinhança do mar, ou as grandes montanhas
e os valles profundos tornam o clima ora desegual, ora desabrido,
como na Beira, Minho e Traz os Montes, apresentando as vegetações
das zonas frias na Serra da Estrella e no Gerez, e o algodoeiro das
zonas quentes no Algarve. A florescencia indica esta instabilidade:
os cereaes recolhem-se um mez mais cedo na Extremadura e Alemtejo
do que em Traz os Montes, em Trancoso, na Guarda, em Almeida e no
Sabugal; o pecegueiro, o damasqueiro e a cerejeira florescem em Chaves
em Janeiro, em Montalegre em Dezembro, e em Coimbra nos principios
de Fevereiro. As duas primaveras que o anno apresenta em Fevereiro e
Outubro, são alternadas, a primeira de calor e chuva em todos os trez
mezes de duração, a segunda é precedida de trez mezes de calma ardente
e falta de agua até ao equinocio, em que começam as chuvas torrenciaes.
Cada provincia apresenta caracteres differentes; nos districtos mais
elevados das provincias do norte, as neves mantêm na estação calmosa
a frescura da atmosphera, tornando as noites frias mesmo nos ardores
do verão. O Minho é a mais pequena de todas as provincias e a mais
florescente em agricultura, em commercio e industria; aqui a actividade
do homem venceu o terreno esteril tornando-o fecundo; ha mais densidade
de população, mais fartura, mais desenvolvimento moral e iniciativa.
Na Beira, o systema agricola dos pousios não deixa á terra a largueza
da sua producção, que diminue cada vez mais com a extensão dos baldios
para pastagens; a falta de communicações conservou por muito tempo
o povo em uma rudeza e fanatismo invencivel. Traz-os-Montes é uma
provincia montanhosa, fria em extremo no inverno, abrasada pelas calmas
no verão, em rasão dos grandes montes que a fecham; tem immensos
baldios, contando mais de dez leguas abandonadas desde a raia de
Hespanha até ás proximidades de Barca d’Alva; alli o homem participa
do caracter energico que lhe dá a natureza, é contrabandista. Na rica
Extremadura, é mais geral a miseria da população solitaria e ignorante,
explorando o solo feracissimo com rotinas caducas. O Alemtejo é a
provincia mais extensa, mais fertil e a mais despovoada; a fecundidade
do solo fez o habitante indolente; ama de preferencia o ser guardador
de gado, a vida de campino; o seu desleixo tem empobrecido a provincia
por não procurarem agua. O clima do Algarve é amenissimo, uberrimo o
terreno, mas desprezado; não conhecem os habitantes as vantagens das
florestas e vão sendo invadidos pelos areaes; a vegetação é tropical,
como a bananeira, a palmeira, a cana de assucar; amendoaes, alfarrobaes
e figueiraes florescem luxuriantes, mas os rios e as barras vão-se
tornando incommunicaveis pela indolencia dos povos.[35]
Perturbações subitas da atmosphera levam á formação do temperamento
bilioso, que como observa Stendhal torna as impressões violentas, e
as ideias mais absolutas mas inconstantes;[36] a agitação e o mal
estar permanente provocam-no á actividade. Diz Stendhal: «O bilioso
melancolico, _variedade tão commum em Hespanha e Portugal_,
e no Japão, parece-me o temperamento da desgraça em todas as suas
fórmas.»[37] E exemplificando este temperamento pelos typos tão
caracteristicos de Domingos de Gusmão, Carlos V, Cromwel, podemos
equiparar-lhes os portuguezes Pedro I, Dom João II, Affonso de
Albuquerque, Fernão Mendes Pinto, Sá de Miranda, Ruy de Pina, Damião
de Goes, typos austeros e atormentados. Para o melancolico _o amor
é sempre um negocio sério_, como observa Stendhal; e que sômos
aos olhos da Europa, senão um povo de apaixonados? Quem tem os mais
exaltados poetas do amor, como Bernardim Ribeiro, Christovam Falcão,
Camões, Rodrigues Lobo, Garrett, João de Deus? Uma lenda de amor deu
a primeira tragedia nas litteraturas da Europa, a _Castro_, de
Ferreira; o amor é uma fatalidade invencivel, como se vê nas _Cartas
da Religiosa portugueza_, e torna contagioso o suicidio na mocidade
e nas classes populares.
A _visinhança do mar_ imprimiu a estas energias uma acção
commum, que tornou Portugal um dos principaes factores da historia:
a exploração do _Mar Tenebroso_, a circumducção do globo, e a
idealisação de uma das mais bellas Epopêas da humanidade.
Ha no caracter portuguez uma certa sympathia pela novidade, uma facil
assimilação de todos os progressos ou _estrangeirismo_; foi esta
qualidade, tão mal comprehendida, que fez do genio jonio o elemento
fecundo e activo da civilisação hellenica. É esta tendencia progressiva
que reserva a Portugal uma missão hegemonica na futura federação dos
Estados peninsulares.
Com a marcha da civilisação humana as raças vão naturalmente
unificando-se, e, como observa Comte, só virão a conservarem as suas
qualidades e caracteres differenciaes as raças branca, amarella e
negra. A successão e distribuição das raças da Europa, segundo as
modernas investigações da anthropologia, apresentam uma quasi completa
similaridade; na corrente da historia, uma mesma cultura greco-latina,
uma mesma religião catholica, accordando as consciencias, os mesmos
elementos sociaes desenvolvendo as instituições civis e politicas,
concorreram activamente para esta solidariedade humana que já merece
o nome de Republica occidental. D’estes antecedentes, e do contacto
sempre crescente dos povos europeus no sentido industrial e economico,
resulta a influencia mutua que todos elles exercem entre si,
conduzindo para a _acção commum_.
Os Francezes, Italianos, Hespanhoes e Portuguezes formam perante
a civilisação um mesmo povo; as mesmas raças invadiram os seus
territorios e ahi se fixaram fusionando-se. O elemento iberico assimila
e unifica em si o romano, o celta, os ramos germanico, franko, lombardo
e gotico e por fim o arabe. A creação das linguas romanicas proveiu
mais da persistencia dos caracteres communs dos povos conquistados
pelos romanos do que da decomposição do latim litterario. Uma mesma
tradição, formada da decadencia dos seus polytheismos serve de assumpto
para essa nova linguagem; o jogral cantando de terra em terra faz-se
entender por toda a parte mudando a accentuação das palavras, chega a
empregar ao mesmo tempo varios dialectos, como no _Descort_; uma
mesma lingua, o latim, presta os seus moldes de construcção syntaxica
a esta diversidade de dialectos, dos quaes os mais desenvolvidos se
tornarão linguas nacionaes; uma mesma poesia, a canção trobadoresca,
alegra a mudez dos castellos, irradia do Meio Dia da França, cultiva-se
nos principados da Italia, em Aragão, na região gallecia ao norte
de Portugal. A arte da poesia ou do _gai saber_ ramifica-se,
imprimindo uma unidade sympathica aos povos novo-latinos. As mesmas
lendas épicas seduzem a imaginação d’estes povos: Carlos Magno, o
centro heroico das Gestas, combate nos romances os Sarracenos; os
Hespanhoes celebram a sua derrota em Roncesvalles na pessoa de Roland;
os Italianos ferem-no na vileza e degradação do filho e dão o nome de
_ciarlatani_ (de Carlos) aos troveiros que celebram os seus feitos
nas praças publicas: em Portugal apparecem os vestigios meio apagados
do Cyclo carlingio, trazido pela passagem dos Cruzados que ajudaram a
conquista de Lisboa.
As mesmas commoções politicas succederam na Europa meridional; o
impeto revolucionario era contagioso, e o grito da liberdade popular
repetia-se por todas as cidades da Italia, servindo aquellas que
primeiro alcançavam a independencia, de typo para a exigencia de
futuras garantias. Por toda a parte o alto clero se oppoz á revolução
communal, em que se creavam as condições do terceiro estado. As
_Chartes_ e _Coutumes_ serviam de typo para as povoações que procuravam
organisar-se; em Hespanha as _Cartas pueblas_ e os _Fueros_, em
Portugal as _Cartas de Foral_, foram consequencia d’esta corrente a
que depois da reconquista obedeceu a liberalidade régia. Os Foraes de
Salamanca, Avila e Zamora foram o typo geral que os povos reclamavam
como segurança das suas garantias, subsistindo em Portugal os typos de
Salamanca, Santarem e Evora.
As lendas da credulidade religiosa foram por todo o Occidente as
mesmas, com egual intensidade e fervor: na Italia, França, Hespanha e
em Portugal campêam as Cathedraes goticas, bellas como noivas préstes
a receberem a visita do amado. Sente-se o mesmo sarcasmo nos contos
decameronicos e nos _fabliaux_, que pintam a vida domestica burgueza e
a defendem; espalha-se o mesmo terror nas lendas da _Dansa da Morte_,
da _Descida aos Infernos_, do _Judeu errante_, dos semeadores das
pestes, da condemnação do livre exame, equiparado ao pacto demoniaco
como no _Milagre de Teophilo_, e ainda no panico do fim do mundo fixado
para o anno mil.
A consanguinidade dos povos latinos é evidente; pelo processo da
fixação do poder monarchico, egoismo das familias dynasticas e abuso da
dictadura, foi-se estabelecendo a separação d’estes povos com as mais
insuperaveis fronteiras de bastardia politica. Esta antinomia, como
observa João Müller, explica dez seculos de guerras na Europa. Foram
as Litteraturas modernas, no seu periodo medieval que conservaram o
instincto d’esta confraternidade apagada; serão ellas os principaes
orgãos, na sua futura idealisação universalista, que hão de tornar
consciente este espirito de _occidentalidade_.
=§ 2.--A Tradição e os Costumes=
De todas as raças que se encontraram na Peninsula hispanica, assim como
ficaram vestigios dos seus caracteres _anthropologicos_, que se
imprimem persistentemente na população actual, tambem se conservaram
disposições _ethnicas_, que se transmittem na prática dos
costumes e no automatismo das Tradições. Esta physionomia organica e
moral do passado revela-se ás primeiras observações, e muitas vezes a
intelligencia dos dizeres dos antigos geographos quando descrevem os
povos peninsulares, comprehende-se melhor fazendo a comparação com os
habitos do presente.[38]
Conforme as raças que occuparam a Hispania se foram mestiçando,
accumularam-se tambem as _Tradições_ poeticas, coexistindo por
modo que ainda hoje se póde determinar o que provém de uma origem
iberica, celtica, phenicia, romana, germanica ou arabe. O syncretismo
d’estes elementos resultava da obliteração dos _caracteres
nacionaes_; por que o facto da unificação politica da Peninsula foi
sempre um esforço artificial, voluntario, mas impotente, sem que, sob
o imperio romano, germanico ou kalifado arabe se conseguisse fundar
a synthese organica de todos estes povos em um substractum de nação.
Existem tradições ibericas, que não exprimem um sentimento nacional;
como existem tradições celticas que não attingiram tambem esta alta
expressão social. Se as tradições germanicas ou arabes chegaram a
revelar essa consciencia superior de uma raça, perderam o sentimento
nacional n’este syncretismo determinado pela successão de tantos povos
já de caracter mongoloide ou allophylo, já de caracter semita e árico.
As nacionalidades peninsulares, como a portugueza, por exemplo, são
posteriores a este grande residuo de tradições ethnicas: e a sua
constituição é devida a um impulso individual, ao heroismo e ambição de
um chefe; mas este esforço seria esteril se não aproveitasse as
condições immanentes, que existiam nas populações que se confederavam
espontaneamente nas suas _Behetrias_. Diante d’isto facil foi o
equivoco de um historiador qualquer de attribuir a formação da
nacionalidade portugueza á vontade de homens que se impuzeram á
multidão inconsciente. Se D. Affonso Henriques e os reis que lhe
succederam até D. Affonso III, não dessem cohesão ás cidades livres do
Condado portucalense, jurando elles proprios as suas garantias
em _Cartas de Foral_, não teriam conseguido apoiar o seu poder real
sobre populações autonomistas, que assim se submetteram a uma
unificação nacional. Em uma carta de Alexandre Herculano vimos uma
allusão a essa theoria historica de nação-consciencia, que elle refuta
com simplicidade dizendo, que no seculo XII já os Portuguezes chamavam
com desdem aos hespanhoes _estrangeiros_. E Fernão de Oliveira, tambem
notava, sem o saber explicar, como é que os Portuguezes acceitaram a
fórmula castelhana _El-Rei_ para designarem uma instituição politica
que não tinham, por que viviam por si, nas suas cidades confederadas.
Quando esta união se conheceu pela primeira vez proficua nas batalhas
do Salado e de Aljubarrota, e nas expedições maritimas do Atlantico,
foi então que a collectividade portugueza pulsou com o sentimento de
Patria; é n’este activo periodo, que abrange os fins do seculo XIV e
todo o seculo XV, que as tradições peninsulares, persistentes e
sobreviventes de um longo passado, se adaptam á expressão do sentimento
nacional. Assim, vetustas tradições do cyclo da Odyssea mediterranea,
como a dos errores de Ulysses e do regresso do heroe, tomam o aspecto
nacional das navegações portuguezas nos romances da _Náo Catherineta_ e
da _Bella Infanta_. O povo canta o seu heroe nacional na idealisação do
Condestavel Nun’Alvares, e lamenta como em um novo _Iálemos_ a morte do
princepe Dom Affonso. As vagas tradições phenicias das Ilhas encantadas
servem-lhe para estimular a audacia nas expedições maritimas pelo
_Mar Tenebroso_; e as lendas celticas da ilha dos heroes, da phantastica
Avalon, servem para guardar a esperança do vingador da nacionalidade
extincta, o desejado e popular Dom Sebastião. Aqui vêmos como se faz a
apropriação ao organismo nacional e historico d’esse residuo de
tradições de todas as proveniencias ethnicas persistentes na peninsula
hispanica. E n’este ponto de vista está implicita uma certa
similaridade de fórmas lyricas, épicas e dramaticas em todos os povos
do occidente da Europa em que entraram os mesmos elementos da raça,
facto já anteriormente notado por alguns philologos e ethnologistas em
quanto a Portugal, Hespanha, França, Italia e Grecia moderna. É pois
esta a primeira base para o estudo comparativo das
_Tradições_, resultando das suas similaridades nas fórmas lyricas,
épicas, novellescas e dramaticas a reconstrucção de uma manifesta
_occidentalidade_.
Depois d’esta coordenação fundamental, em que os povos meridionaes não
se plagiam mas são simplesmente conservadores inconscientes, apparecem
os rudimentos em que pela aggremiação territorial se iam estabelecendo
os esboços de nacionalidades. As Tradições e cantos populares do Minho
(norte de Portugal) completam-se pelo estudo simultaneo e comparativo
das Tradições da _Região Asturo-Galecio-Portugueza_, substractum
de uma nacionalidade que se definia na orla maritima de oéste, que
chegou a abranger a Beira. Ao sul de Portugal esboça-se um outro
rudimento social apagado na historia, mas persistente nas Tradições
da _Região Extremenha-Betico-Algarvia_. No percurso historico
da nacionalidade portugueza, a expansão colonial começa quando a
Tradição se tornava a expressão do sentimento de Patria; os cantos
tradicionaes fixaram-se n’esses varios centros de persistencia ethnica,
os _Archipelagos da Madeira_ e _dos Açores_, e modificaram-se
segundo os elementos da população nos outros fócos coloniaes da
_Africa_, _Brazil_ e _India_.
Quando um povo entra na vida historica, assimilando os progressos
realisados na humanidade e contribuindo para a civilisação com a
energia ou tendencias novas que distinguem a sua raça, a este impulso
dynamico corresponde a manifestação d’essa outra força statica, a
_Tradição_, que no meio de todas as transformações hade ser o
vinculo moral e affectivo da nacionalidade. A Tradição torna-se muitas
vezes um estimulo de actividade, como se vê na Grecia quando reagiu
contra a Persia; e então, como primeira revelação da unidade d’esse
povo, o amor das tradições provoca elaborações individuaes conscientes,
que pelo seu intuito esthetico constituem o phenomeno sociologico da
_Litteratura_. Só merece o nome de Litteratura, tomada sob este
aspecto, a série das creações sentimentaes e intellectuaes por onde o
gráo de consciencia que esse povo tem do seu individualismo nacional
chegar a ser expresso. Todos os povos que tiverem caracteres de raça
bem accentuados, que a par de uma marcha historica importante não
tiverem obliterado as suas relações com um passado tradicional, que ao
facto da nacionalidade ligaram um ideal de liberdade na esphera civil,
politica e philosophica, esses povos devem possuir uma Litteratura
original e fecunda, servindo ao mesmo tempo para patentear o seu
nivel moral e para annunciar a aspiração que ás vezes leva seculos
a ser effectuada. Sob um tal aspecto não existem Litteraturas mais
ou menos perfeitas, por que productos reflexos do meio social, o seu
estado é um documento immediato; se se moldam por typos de convenção,
a que as academias chamam classicos, se a obra do escriptor consiste
em uma paciente imitação e é produzida sem intuito de communicação
com o povo, a sua esterilidade está revelando que a nacionalidade se
conserva em uma aggregação sem destino, e que causas intimas a atacam
nas suas condições organicas. Estas são as bases positivas da critica
de qualquer litteratura; procurar se as obras se conformam com os
preceitos rhetoricos, ou se se aproximam do typo abstracto do Bello
pelo confronto com as realisações artisticas da Grecia, estes dous
processos são os que ainda seguem os obcecados habitos escholares do
humanismo jesuitico, e os que levados por miragens metaphysicas dão a
phrases sem sentido o nome de syntheses.
A Litteratura é objecto de uma sciencia concreta, que se presta á
deducção de leis geraes da Sociologia; estabelecer a relação entre as
concepções individuaes ou dynamicas, e os elementos staticos da Raça e
da Tradição é o processo por meio do qual se chega á determinação do
caracter nacional de uma litteratura. O criterio da _filiação_ pertence
rigorosamente á historia; por isso a Historia da Litteratura assenta
sobre esta phylogenia da _Raça_ e da _Tradição_ como modificadores de
todas as concepções individuaes. Só por uma tal connexão é que essas
obras podem ser bem sentidas e bem comprehendidas. A _Historia da
Litteratura_ é este processo em que se procura descobrir pela
realisação que nos apresenta, a vitalidade da raça, a consciencia da
nacionalidade, e até que ponto estas duas forças naturaes estiveram em
harmonia ou antinomia com a civilisação.
O estudo comparativo das Litteraturas levou a determinar um certo
numero de fórmas, por assim dizer universaes, que são a _Epopêa_,
o _Lyrismo_ e o _Drama_; a sua universalidade deriva de estados
psychologicos communs, bem como a successão do seu desenvolvimento
resulta das transformações do meio social, onde muitas vezes se
conservam os elementos tradicionaes que serviram de thema ás obras e
concepções sentimentaes das individualidades superiores. Remontar pela
critica das obras primas do genio a esses elementos inconscientes da
Tradição, relacional-as com as exigencias moraes da sociedade cujas
aspirações exprimem, eis o processo da historia completo nos seus fins
de disciplina critica e de synthese.
Estas fórmas litterarias têm uma origem commum humana, n’esse poder
mental de personificar em _mythos_ e de communicar a emoção pelo
equivalente da _imagem_, ou intuição das analogias. Ao trabalho
da personificação, que se acha plenamente desenvolvido nos Mythos
religiosos, segue-se uma degenerescencia provocada pela especulação
abstracta dos dogmas, e em grande parte é d’essa degeneração popular
dos mythos que se formaram as Epopêas antigas ou anonymas. As analogias
das _imagens_ serviram para fixar o modo de expressão do
sentimento em um periodo em que o impressionado não podia ainda julgar
a sensação emotiva; assim o _Lyrismo_ foi tambem descriptivo,
e simultaneo com a _Epopêa_, tendo egualmente uma base de
transmissão tradicional; taes foram os typos hymnicos e dithyrambicos,
e na Europa Occidental as _Pastorellas_ e _Balladas_.
O apparecimento do _Drama_ é tradicionalmente bem caracterisado;
nascido tambem de actos ritualisticos, desenvolve-se com as condições
que emancipam as classes medias ou burguezas, quando ha egualdade
civil, interesses geraes, collisões de deveres, conflictos de ambições,
quando existe um consensus moral por onde se afferem os actos das
personalidades. Nenhuma fórma da arte ou da Litteratura se cria por
méra curiosidade; corresponde sempre a um estado psychologico, á
necessidade de uma expressão e communicação de sentimento.
Seguiremos esta divisão natural de todas as Litteraturas, derivando
cada uma d’estas fórmas dos seus germens tradicionaes, determinando
assim o que ha de organico em manifestações tão complexas que se julgou
terem sido creadas arbitrariamente.
_a_) DAS FÓRMAS LYRICAS
A relação entre a Epopêa e um fundo tradicional foi muito cedo achada
pelos philologos e é uma base positiva da critica; porém não era
procurada essa relação com o _Lyrismo_ por se attribuir o seu
desenvolvimento ao ideal do sentimento resultante do maior progresso
social, e da elaboração subjectiva de um estado do passividade
consciente que se discute. Antes do sentimento pessoal existiu o
sentimento da collectividade, expresso em fórmas consagradas nas festas
do trabalho, como labutação da lavoura, dos rebanhos e do mar, e nos
factos da vida domestica, como nascimentos, casamentos e enterros, ou
mesmo na vida publica. O sentimento pessoal servia-se d’essas fórmas
tradicionaes, adaptando-as á expressão consciente e voluntaria de uma
situação particular; é assim que se destaca do fundo tradicional a obra
litteraria, a qual para ser bem comprehendida precisa ser aproximada da
sua origem. Os cantos hymnicos, que apparecem nas religiões primitivas,
embora se immobilisassem na fórma do dithyrambo, ou a successão de
_imagens_ representando sempre a mesma ideia, conservam o typo
tradicional do Lyrismo: essa ideia unica repete-se como apoio rythmico,
é o estribilho, refrem ou retornello, correspondendo a esta cadencia
estrophica o parallelismo. Assim despontou o lyrismo egypcio, e se
vê seguir o mesmo desenvolvimento nas canções accádicas e chinezas,
e o que hoje traz embaraçados os criticos, ainda se observa nas
_Pastorellas_ do occidente da Europa.
Para comprehender a poesia lyrica portugueza é necessario
determinar-lhe scientificamente as suas bases tradicionaes; ellas nos
explicarão a sua originalidade e vigor, e estabelecerão as relações
com as correntes litterarias da Europa, caracterisando assim pela
connexão historica as épocas e influencias cultas que actuaram sobre
a sua manifestação. Já pessoal e psychologicamente descriptiva, a
fórma lyrica reflecte o estado intellectual do que canta; o poeta é
conhecido, causam interesse os pequenos successos da sua vida, as
aventuras, os triumphos, os desalentos _pessoaes_. Isto influe
sobre as fórmas em que se quer mostrar perito, sabedor de todos os
segredos da arte (_gai saber_); a construcção da estrophe torna-se
a preoccupação exclusiva; inventa o metro caprichoso, acha as rimas
novas, cruza-as, encadeia-as; taes foram os _Trovadores_, que pela
relação com os jograes, nunca se esqueceram completamente dos elementos
vitaes da tradição originaria, que depois imitaram artisticamente.
Outras vezes o poeta faz da fórma lyrica o meio de analyse da sua
paixão, torna o sentimento uma casuistica, desenvolve a imagem até
á allegoria, convertendo o seu estado emocional em uma synthese
philosophica; taes foram os _Petrarchistas_, que não podem ser bem
avaliados quando separados dos Trovadores. A imitação material em que o
lyrismo foi applicado a descrever todos os accidentes insignificantes
de uma vida mediocre, motivou esses productos morbidos das Academias
litterarias (_Culteranismo_, _Arcadismo_) contra os quaes
reagiu a renovação do _Romantismo_, que começou pela revivescencia
das tradições medievaes, e depois da vaga melancholia chegou á
expressão synthetica de uma emoção consciente e universal.
Na poesia trobadoresca, o lyrismo provençal conservou as suas origens
tradicionaes em um elemento popular commum tanto ás _pastorellas_
italianas, como ás _balladas_ francezas, como ás _serranilhas_
gallegas, portuguezas, valencianas e castelhanas, que chegaram a
penetrar nos Cancioneiros aristocraticos e litterarios. Este facto
encerra um grande problema, que tem preoccupado os mais atilados
criticos: que não é na Provença que se hade determinar o ponto de
irradiação do Lyrismo das litteraturas modernas, mas em um facto de
_persistencia ethnica_, que se poderá definir pela observação da área
que facilitou a sua propagação do sul da França á Italia meridional e
ao norte da Hespanha. Analysando algumas canções portuguezas extrahidas
por Ernesto Monaci do grande _Cancioneiro da Vaticana_, o romanista
Paul Meyer, observando as analogias com antigas balladas provençaes,
concluiu que ellas não provieram de uma imitação directa, mas: «_foram
concebidas segundo um typo tradicional, que devera ter sido commum a
diversas populações romanicas, sem que se possa determinar em qual
d’ellas fôra creado_.»[39]
Aqui temos proposto o problema com toda a nitidez, e a que julgamos
ter dado uma solução definitiva, sobretudo auxiliado pelo criterio
ethnico. Para isso descemos das fórmas conhecidas pela via litteraria
até ás suas relações com os costumes populares, e d’estes até ao centro
ethnico da irradiação.
O lyrismo trobadoresco manifestou-se pela fórma escripta ou provençal
na zona gallo-romana; no sul da França o elemento gaulez não soffreu
uma transformação organica, como no norte em prezença do vigoroso
elemento franko. O romano preoccupado com a ideia da unificação
administrativa dominava mas não absorvia, impunha fórmas governativas
mas não assimilava as populações; a sua organisação municipal,
pelas autonomias locaes, não atacava a essencia da nacionalidade
_gauleza_, ainda que a forçava a uma certa unidade civil. Segundo
Diodoro Siculo, os romanos davam o nome de _gaulez_ a todos os
povos que entraram na França meridional; já Polybio separava os Celtas
dos Gaulezes, antes das confirmações decisivas da Anthropologia.
No sul da França conservaram-se tradições, cuja existencia se
determina pelas prohibições canonicas dos bispos, desde o seculo V;
taes eram os cantos acompanhados de dansa, a que deram o nome erudito
de _Balismalia_ ou _Vallemachia_ (a _bailata_ ou _balada_) com o
caracter satyrico, que reappareceu nas sirventes; taes eram os desafios
poeticos com processos de casuistica sentimental, como os _Puy_, que se
desenvolvem nas _Côrtes de Amor_; taes eram os cantares de _Alvoradas_
e _Serenadas_, de que os trovadores fizeram generos litterarios; e
ainda a caracteristica da composição poetica especialmente pelas
mulheres. Esses cantos eram oraes; não tinham importancia no gosto dos
latinistas para merecerem ser escriptos; e mesmo esses costumes, de que
formavam parte, eram condemnados pela Egreja, e eram risiveis ante o
viver dos castellos senhoriaes.
Identica persistencia das fórmas poeticas se encontra em Italia, com
a mesma similaridade tradicional, como observou Costantino Nigra. E
assim como o sul da França se distingue da França do norte ou feudal
pelo exclusivismo das _fórmas lyricas_, tambem na Italia, segundo
Gregorovius, faltam as tradições épicas; conservam-se ali os _Voceros_,
os _Triboli_, ou _Lamenti_, analogos ás _Endechas_ dos mortos na
peninsula hispanica, e aos _Aurusta_ do Béarn, e _Arrirajo_ das
Vascongadas. Os costumes estão indicando um elemento ethnico commum.
Na sua entrada na Europa os Celtas encontraram uma raça de cabellos
pretos, com que mais ou menos se fusionaram, conservada por longo tempo
intacta na Aquitania, em uma região comprehendida entre os Pyreneos, o
Garona e o golfo da Gasconha; já nos referimos á observação de Paulo
Broca: «Tudo induz a crêr que os Aquitanios pertencem a esta raça de
cabellos pretos que se conserva quasi sem mistura entre os Bascos
actuaes.» É n’este triangulo situado entre o Garona, o Oceano e os
Pyreneos, que essa raça, que se estendeu pela Italia e pela Hespanha,
se confinou, como observa Jorge Philipps, resistindo á invasão celtica.
O problema proposto por Paul Meyer, quanto á communhão lyrica das
diversas populações romanicas, não póde ser explicado como propoz
Nigra, pela raça celtica, e muito menos pelo elemento franko, como
entendem Jeanroy e Gaston Páris. A realidade está na persistencia
d’esse elemento iberico na Aquitania, á qual pertenceu tambem a
Galliza; a propagação do lyrismo para a Italia e Sicilia torna-se
tambem um facto natural de revivescencia. O sul da França teve
condições historicas para esta iniciativa: «Onde quer que a conquista
sobrepoz uma raça a outra, acontece que o vencido por fim retoma os
seus direitos. É o genio da raça primitiva que retoma pouco a pouco
a dianteira. A Gallia soffreu o duplo dominio do Romano e do Franko;
ella recebeu a substancia das duas raças: mas o _velho fundo gaulez
prevaleceu em ultimo logar_, e a França não chegou ao supremo gráo
da sua energia nacional se não no dia em que o Gaulez absorveu o Romano
e o Sicambro.»[40] Esse lyrismo corresponde a uma certa estabilidade na
vida pastoral e agricola, que nem o Ligurio ou Celta maritimo conhecia,
nem o Celta nomada podia acceitar. Com o seu profundo senso artistico,
Montaigne conheceu o valor esthetico das canções populares da Gasconha,
a que chamou _Villanelles_[41]; a que os italianos chamam
_Villoti_, e que Miguel Leitão de Andrada, no fim do seculo XVI
chamava _Villanellas_ para designar as fórmas do lyrismo popular
portuguez.
Esta persistencia do lyrismo tradicional no sul da França impuzera-se
aos trovadores, como vemos em Ramon Vidal, dizendo nas _Les
rasos de trobar_: «la parladura franceza est plus avinenz a far
_romans_ et _pasturettas_, mas cella de Lemosin val mais
per far vers e cansons e sirventes.» O trovador indicava aqui um
genero popular em contraposição com as fórmas artisticas que outros
trovadores iam destacando e individualisando; por que os primeiros
trovadores revelaram-se adstrictos ás fórmas populares, como vêmos em
Cercamons, «joglars de Gascoigna, e _trobet vers e pastoretas_
a la usanza antiga.» O discipulo d’este trovador, Marcabrun, em duas
_pastorellas_ que compoz, já elabora o typo tradicional com um
intuito de satyra moral e social. O typo tradicional, abandonado ao
povo, não foi totalmente esquecido pelos trovadores subjectivistas, por
que ainda foi seguido por Cadenet e Gui de Usiel, que fazem a transição
de Marcabrun para Giraud de Riquier.
A ausencia do criterio ethnico é que fez com que Wackernagel e
Brakelmann attribuissem a origem tradicional da _pastorella_
ao norte da França, quando ella pertence a este fundo da população
occidental que occupou a França, a Italia e a Hespanha antes da invasão
celtica. Esta mesma insufficiencia fez com que Jeanroy considerasse
ironicamente as investigações sobre este campo como litteratura
pre-historica! Como se a tradição pertencesse ás épocas historicas.
As investigações sobre as origens cio lyrismo tradicional feitas na
Italia por d’Ancona, levam a precisar este fundo anthropologico
occidental. Observando as fórmas do _Contrasto_ de Cielo
d’Alcamo, poeta siciliano do seculo XIII, analogas aos themas e
estructura francezas, d’Ancona quer que ellas derivem do antigo
_carmen amebeum_, que se conservou na Sicilia; e conclue: «os
antigos historiadores nos asseguram que _esta fórma teve origem na
Sicilia_, que ella é devida primitivamente aos pastores sicilianos.
Saíndo dos nossos valles e montanhas, ella se nobilitou, um pouco
tarde talvez, nas mãos de Theocrito e de Virgilio; mas ella permaneceu
na sua simplicidade nativa propriamente do povo da Sicilia, no qual
se perpetuou com o dom da improvisação.» A ilha da Sicilia foi o
ponto de juncção das raças brancas do norte da Africa com as da orla
europêa mediterranea; a persistencia d’esse fundo lyrico impressionou
Theocrito e Virgilio, como os themas da Gasconha ou da Aquitania
impressionaram os Trovadores e os levaram á imitação. Reconhecendo as
relações do _Contrasto_ italiano com as fórmas francezas, escreve
Jeanroy: «mas nós nos guardamos de sustentar que este genero fosse
exclusivamente francez, da mesma maneira que não podemos conceder a M.
d’Ancona que elle fosse propriamente siciliano; deve ser effectivamente
uma propriedade commum de todo o territorio romanico.»[42] «Ainda mesmo
que houvesse já _Contrasti_ na Sicilia no tempo de Atheneu e
de Diodoro, não nos auctorisava isto de modo algum a crêr que elles
fossem originarios da Sicilia.--É essa uma fórma, que longe de ser
exclusivamente siciliana, se acha na poesia popular de um grande
numero de povos.»[43] E mostra como longe da Sicilia esta fórma lyrica
tradicional é seguida pelas aldeãs de Ferrara nas _Romanellas_,
em Portugal nos _Desafios á desgarrada_, e nos _Dayemans_ da
Lorena.
Mas estendendo mais o campo da observação, é um caracteristico commum a
este lyrismo tradicional o ser a canção amorosa composta e cantada pela
mulher. Nos cantos populares da Galliza a mulher conserva o costume que
vêmos nas serranas e pastoras do Cancioneiro trobadoresco da Vaticana.
Já o erudito Sarmiento, nas _Memorias para la Historia de la Poesia
española_, escrevia: «he observado que en Galicia las mugeres no solo
son poetisas, sino tambien músicas naturales.--En la mayor parte de las
coplas gallegas hablan las mugeres con los hombres; y es por que ellas
componen las coplas sin artificio alguno; y ellas mismas inventan los
tonos ó ayres à que las han de cantar, sin tener idea de arte musico.»
[44] É ainda este o costume do Minho;[45] o caracter da lyrica de
elaboração feminina determina-lhe a sua mais alta antiguidade; escreve
Jeanroy, apesar de ter receio da litteratura pre-historica: «W.
Scherer, em uma muito instructiva noticia, citou um grande numero de
factos que o provavam: desde o seculo X, a canção de mulher existia na
Allemanha, como o mostra uma pequena peça latina d’essa época; as
canções servias são ordinariamente collocadas na bocca de uma rapariga,
e Talvj pensa que são realmente as raparigas que as compõem; peças
analogas se acham na Islandia, na Russia, na China, nas Kabylas, e em
muitas tribus selvagens. A attribuição das canções a uma mulher, é por
consequencia uma feição commum á nossa antiga lyrica popular e a muitas
outras.»[46] Por este exame de Scherer, encontramos sempre este
caracter do lyrismo tradicional entre povos em que persiste o
elemento _mongoloide_ (como a Servia, a Russia, as Kabylas, a China,
notando-se tambem que entre os Germanos se fusionou o Geta.) E
continuando a citação: «Scherer faz notar, que o _parallelismo_ mais ou
menos rigorosamente seguido entre a descripção de algum objecto natural
e a pintura da paixão se encontra em um grande numero de poesias
populares, particularmente entre os Servios, os Allemães, os Malaios,
os Chinezes. A poesia slava, sobretudo, abunda n’este genero em uma
infinidade de especimens, dos quaes alguns têm impresso o cunho da mais
alta, da mais bella poesia, etc.»[47] É por consequencia um processo
logico o procurar estas origens do Lyrismo na raça branca, não árica
nem semita, que precedeu ou occupou a Europa antes dos Celtas; o centro
ethnico da Aquitania como ponto de irradiação do Lyrismo, levou-nos á
investigação apparentemente aventurosa: as fórmas tradicionaes communs
á Italia, Provença, Galliza, Catalunha e Portugal,(populações romanicas
que não lhes deram origem), têm um typo perfeitamente egual ao das
Canções accádicas, descobertas e traduzidas pelos modernos
assyriologos, e são na sua estructura semelhantes ás canções chinezas
do _Chi King_, traduzidas pela fórma homeometrica, homeostrophica e
homeorythmica por Legge. D’aqui a inferencia sobre o estado moral e
relações anteriores d’esse typo _iberico_ conservado mais puro na
Aquitania. O desenvolvimento da poesia provençal fôra attribuido á
influencia dos Arabes no lyrismo do Occidente; mas a poesia lyrica dos
povos semitas, como o provam os estudos assyriologicos, foi produzida
pela imitação da poesia dos Accads. Reconhecida esta demonstração,
comprehende-se como, apparecendo na poesia arabe a fórma
da _Pastorella_, esse grande ramo semita viesse estimular a
revivescencia de uma tradição, que se extinguia entre a transmissão
oral das camadas populares. Como relacionar esse fundo occidental ou
iberico com os povos accádicos? Esse é o problema a que conduzem todas
as similaridades do Lyrismo tradicional; a elle respondeu Roisel no seu
livro _Les Atlantes_, mostrando como a civilisação da Chaldêa foi
iniciada por navegadores atlanticos da raça branca primitiva e
autochtone da Europa.[48] Comprehende-se como os cantos arabes fossem
communs entre o povo hespanhol e portuguez; nos versos do Arcipreste de
Hita ainda vem enumerada a lista dos instrumentos musicos para
os _cantares arabicos_, e em Gil Vicente ha uma referencia a uma canção
arabe _Calbi arabin_. No _Cancioneiro da Vaticana_ existe uma canção
trobadoresca com o estrebilho _Lelia vai Lelia_, que dava nome a um
genero lyrico tão popular e persistente nos costumes, que Philippe II
prohibia que se cantassem as _Leilas_ arabes. A designação com que no
seculo XV se conhecia esta fórma tradicional da _Pastorella_ era a de
_Serranilha_, da palavra arabe serra. Na poesia moderna do povo da
Galliza persiste este genero na fórma da _Muiñeira_; e em Portugal
tornou a communicar-se aos escriptores como Gil Vicente, Sá de Miranda,
Christovam Falcão e Camões, tomando a fórma litteraria das _Modinhas_
brazileiras, especialmente nas Lyras de Gonzaga. Determinada, pois, esta
base tradicional, temos a disciplina critica para conhecer o
desenvolvimento do Lyrismo trobadoresco, e successivamonte da sua
transformação italiana do _dolce stil nuovo_, e imitação geral nas
Litteraturas romanicas da Renascença até ao Romantismo.
_b_) DAS FÓRMAS ÉPICAS
Nas composições poeticas tradicionaes distinguem-se o genero lyrico ou
subjectivo, e o genero narrativo ou épico, essencialmente objectivo.
Observando esta distincção nas _Origens da Poesia lyrica em
França_, escreve Jeanroy: «Os differentes criticos estrangeiros
que se têm occupado respectivamente da historia da sua poesia, MM.
Bartoli, d’Ancona, Scherer, Richard M.-Meyer, Braga, entre outros,
sustentam unanimemente a opinião que estas ultimas (as narrativas)
constituem o fundo original da sua poesia. Sendo nos trez paizes
esta parte identica ou muito analoga, elles não podem egualmente ter
rasão. Nós tentaremos demonstrar que estão egualmente em erro, e que
n’isso em que vêem uma emanação espontanea do genio nacional, importa
vêr uma imitação de toda uma poesia franceza hoje perdida.»[49] Mas
referindo-se aos themas tradicionaes d’esses cantos narrativos,
Jeanroy presente um fundo ethnico que não é propriamente francez:
«Nós demonstraremos bem que _estes themas não são exclusivamente
italianos, allemães, portuguezes_; mas demonstraremos nós por isso
que elles _são exclusivamente francezes_? _Não_; e seria uma
pretenção evidentemente excessiva. Queremos só fixar um ponto, e vem a
ser, que as peças estrangeiras consideradas como autochtones, devem,
na sua fórma actual alguns dos seus traços á imitação franceza, que
ellas não lhe escapam, como se tem dito. Mas, será certo que o assumpto
mesmo tenha sido importado da França, que o thema nos pertença tão bem
como a fórma que o revestiu? Não. É mesmo mais que provavel que, se a
nossa poesia achou tanto enthuziasmo no estrangeiro, é por que ella
ali encontrava assumptos analogos aos seus, e que o terreno estava
como que preparado para receber a communidade de certas tradições
poeticas. Bem longo de affirmar que estes themas são exclusivamente
francezes, nós _não ousamos sustentar que elles sejam exclusivamente
romanicos_.»[50] Não andavamos em erro quando localisámos as nossas
investigações no fundo anthropologico persistente na Europa, de que
o elemento iberico, eusk e gaulez na Italia, França e Hespanha, e o
elemento getico e seythico na Allemanha, conduzem a uma unidade de
tradição poetica.
É incalculavel a extensão e profundidade da tradição popular hispanica
d’onde se tem colligido desde o seculo XIII até hoje esses pequenos
cantos narrativos, verdadeiros rudimentos de uma Epopêa cyclica que
não chegou á elaboração, como as Gestas germanicas. Esses cantos
aproveitados por Affonso o Sabio como elemento historico para a
_Cronica general de España_, explorados pelos impressores do
seculo XV, estudados e colligidos com amor desde o principio d’este
seculo, constituem o vasto campo do _Romanceiro_, que se deve
considerar o elemento poetico mais rico das Litteraturas peninsulares.
A tradição apparece por vezes commum a Portugal e Hespanha; outras
vezes os paradigmas encontram-se em França, na Italia, e na Grecia
moderna, o que revela uma fonte primordial. Nos _Romances_
peninsulares ou meridionaes, encontram-se costumes de uma sociedade
barbara, como na _Sylvana_ e _Rico-Franco_, vive-se em estado
de guerra, e a lei é a vontade irrefreiavel de um só.
D’onde provém essas tradições? Nada se encontra semelhante na
civilisação romana; mesmo entre as colonias mais romanisadas, como
a Italia, a poesia tradicional narrativa é pouco profunda.[51] Se
os dialectos romanicos se desenvolveram pela acção dos Romanos, os
costumes e as tradições são mais antigos, devem ser procurados em
um sub-solo ethnico; os dialectos romanicos servindo de expressão
e unificação d’esses elementos, contêm as _indoles_, como os
proprios romanos lhes chamavam, mas cuja natureza não é romana.
Os recentes estudos accádicos e assyriologicos, e as conclusões da
anthropologia e ethnogenia peninsulares, dão auctoridade ás palavras
de Strabão, que consignava a existencia de poemas heroicos entre os
Turdetanos, de mais de seis mil annos do antiguidade. As inscripções
lapidares encerram tambem os nomes de muitos deuses ibericos; e as
superstições comparadas com as do magismo accádico, espalham uma grande
luz sobre a ethnologia iberica. A persistencia do typo iberico na
Peninsula, quer pelas migrações do norte, como se vê pela Aquitania,
quer pelo sul, como se comprova pelos Berberes, acha-se confirmada
pelas differenças cephalicas representadas nos _dois typos_
bascos francez e hespanhol. Por tanto o estudo da poesia tradicional
narrativa da Peninsula deve fixar-se n’este fundo ethnico iberico,
remontando essas camadas de civilisação até á constituição das suas
nacionalidades. Como o estudo dos cantos lyricos feito comparativamente
leva a achar nas _Serranilhas_ gallezianas e _Pastorellas_
francezas um typo commum ás populações romanicas, o estudo dos cantos
épicos, ou _Romanceiros_, deve seguir egual methodo, que conduz
aos mesmos resultados, como observaram Nigra, Wolf, Köhler e Liebrecht.
_Do elemento iberico._--Os cantos heroicos peninsulares foram chamados
_Romances_ pelos eruditos, por considerarem os dialectos em que
eram cantados como despreziveis em comparação com a lingua e cultura
latina; ainda no seculo XVII _romancista_ era o homem sem cultura
litteraria ou scientifica. O povo, porém, chamou-lhes _Aravia_, e
mais geralmente _Estoria_; a primeira designação é vulgar em algumas
das ilhas dos Açores, e contém um sentido que nos leva ao intimo do
problema: a _Aravia_ significou um dialecto vulgar das classes que
estavam em contacto com os Arabes ou propriamente com Berberes; esta
classe sendo constituida com as populações hispanicas preexistentes
á invasão arabe, facilmente assimilou a si o elemento _mauresco_
determinando a revivescencia do typo iberico. Para os eruditos do
seculo XV e XVI, a _Aravia_ é a linguagem corrupta com que christãos e
arabes se entendiam, é uma especie de giria não escripta, e a propria
designação de um canto do povo. Mem Moniz, que esteve no seculo XII no
cêrco de Santarem: «sabia fallar mui bem a _aravia_.» E Gil Vicente,
nos seus Autos: «Que linguagem é essa tal?--Ui! e elle falla _aravia_.»
Quando no fim do seculo XVI o P.^e Fernão Guerreiro, na phrase «_entoar
uma aravia_» a empregou no sentido de canto, já era usada pelo povo
nas colonias portuguezas dos Açores, e nas colonias hespanholas do
Perú, depois que a cultura latina atacou a originalidade nacional.
Na propaganda catholica, os missionarios hespanhoes introduziram na
toada dos cantos peruanos os romances castelhanos ao divino. Prescott,
na _Historia da Conquista do Perú_, fallando dos troveiros peruanos
chamados _Haraveques_, como os que registavam os annaes d’essa
extraordinaria civilisação, diz: «D’esta maneira formou-se um corpo de
_poesias tradicionaes semelhantes ás balladas inglezas e hespanholas_,
pelas quaes o nome de um chefe barbaro, que teria desapparecido á
falta de historiador, chegou á posteridade por causa de uma melodia
rustica.»[52]
Esta relação notada por Prescott entre os _Yaravis_ peruanos e as
balladas inglezas e hespanholas é tanto mais importante, quanto pelos
estudos ibericos se sabe da correlação entre a Peninsula e as ilhas
Cassiterides ou Inglaterra. Do mesmo fóco atlantico que iniciou a
civilisacão dos Accads na Chaldêa, partiu o impulso das civilisações
rudimentares da America. Continúa Prescott, fundado na auctoridade de
Garcilasso no _Commentario real_: «A palavra _haraveque_ significa
inventor, auctor, e no seu titulo e nas suas funcções este poeta
menestrel póde-nos lembrar o _trouvère_ normando.» A funcção do
menestrel saxonico que cantava á meza dos princepes, dos feitos
e batalhas reaes: «era em parte exercida pelos _Haraveques_, que
escolhiam os incidentes os mais brilhantes para assumpto das suas
canções e balladas, que se cantavam nas festas reaes á mesa dos Incas.»
Dos cantos populares do Perú, escreve o moderno viajante Paul Marcroy:
«Estas composições chamadas _Yaravis_ ... foram a principio cantos
de victoria, odes, dithyrambos destinados a celebrar o triumpho das
armas dos Incas, suas qualidades particulares e seu poderio. Com o
andar do tempo tomaram fórmas mais variadas, e cantaram o amor, a
natureza e as flores.» E em nota accrescenta, definindo a palavra
_Yaravi_: «Litteralmente, cantos tristes. Os _Yaravis_ são hoje
simples _romances_, cuja musica é sempre escripta em tom menor e com
um movimento lento. Cantam-se com acompanhamento de guitarra.»[53]
Tanto o _Yaravi_, como a _Aravia_ açoriana, ou o romance peninsular
ainda hoje são acompanhados á _quitara_ arabe, ou á guitarra actual,
e entre os Arabes, os _Ravi_ eram os narradores. Dá-se aqui o mesmo
influxo de revivescencia tradicional no Occidente ao contacto da
civilisação arabe, como se notou nos cantos lyricos por essa influencia
da poesia accádica no lyrismo semita. A parte communicativa da raça
arabe na invasão da Peninsula eram os _mouros_, cruzamento do Arabe
com o Berber, coadjuvando assim a regressão mais pronunciada ao typo
iberico. A origem dos cantos epicos occidentaes tem sido já procurada
n’este sub-sólo social de uma raça não árica; Liebrecht encontra
paradigmas do romance _Donzella que vae á guerra_ nos cantos chinezes,
e Lange acha nos poemas homericos inclusas tradições mongolicas.
Strabão referindo-se ás tradições de Troya no occidente da Europa,
allude a cantos narrativos na Italia e na Hespanha, que em vez de
se diffundirem dos poemas homericos foram unificados n’elles: «Não
só na Italia se conservam passagens d’essas historias, senão tambem
_na Iberia_, existem mil vestigios de taes expedições, assim como da
guerra de Troya.»[54] As tradições argonauticas que se crearam nas
primitivas expedições atlanticas, é que foram depois incorporar-se nos
poemas odyssaicos, circumscrevendo-se ás expedições mediterraneas ou
jonicas.[55]
No velho romanceiro peninsular ainda se encontram fórmas que revelam
o primitivo modo de recitação coral, em que a rima _masculina_
e _feminina_, grave e aguda, se alternam em um canto amebeo.
Na tradição asturiana dá-se a este genero o nome de _cantos de
estavillar_ (do typo _Ay! un galan d’esta villa_.) É ainda
vulgar na Finlandia esta fórma de recitação das runas, como observa
Léozon le Duc. A rima do canto No _figueiral figueiredo_ é um
vestigio precioso d’esta perdida estructura poetica, que tanto nos
aproxima da origem das tradições épicas peninsulares.[56]
_Do elemento germanico._--Nas invasões germanicas na Peninsula, foram
os Visigodos os que preponderaram, submettendo os outros ramos á
unidade nacional. Da grande familia germanica foi o Godo o que deixou
menos vestigios de tradições poeticas, apesar das immensas riquezas
lendares de que se serviram Jornandes, Paulo Diacono e Saxo Grammatico
nas suas historias. A causa d’esta obliteração, segundo Jacob Grimm,
foi por ter o godo adoptado o arianismo, soffrendo depois os renhidos
combates ou repressões do catholicismo; comprova-se isto com o
Borguinhão, que tambem era sectario do arianismo, e cujas tradições
épicas se perderam. Ao godo da _banda guerreira_, que veiu a formar
a aristocracia feudal, fascinado pela civilisação romana, facil lhe
foi despojar-se das suas crenças e tradições; a _banda agricola e
pastoral_, que pela decadencia dos homens livres veiu a constituir a
classe dos _lite_ (_lendes_, _lazzi_) e dos _Vassu_, com a fusão com
o colonato romano e assimilação do elemento mauresco, formou esse
rudimento de povo, que avançou para o estabelecimento da liberdade
civil e foi conhecido pelo nome de _Mosarabe_. Entre esta grande
classe que sacudiu a servidão, é que se conservou pela sua situação
atrazada aquillo que mais se apodéra da alma humana, os _Symbolos_, as
_Superstições_, os _Costumes_, emfim, a tradição poetica até aos seus
mais inconscientes vestigios.
Em nenhum povo da Europa, como notou Reyscher, apparece a conservação
dos _Symbolos_ como na familia germanica; comprovámol-o no
symbolismo juridico do direito consuetudinario das Cartas de Foral
exigidas ou concedidas ás povoações mosarabes. Estudada esta
efflorescencia dos Symbolos juridicos,[57] por elles fomos levados a
comprehender a importancia tradicional dos Romanceiros.
Raro será o romance popular portuguez que não contenha um symbolo
germanico francamente expresso, mesmo com a ingenuidade de quem já
o não comprehende. Enumeremos alguns dos mais profundos: no romance
de _Gerinaldo_, o rei deixa o punhal collocado entre sua filha
e o pagem que dorme com ella, como o signal de que ha entre elles a
distancia inaccessivel de classe; depois de perdoar ao pagem e de o
casar com sua filha dá-lhe a egualdade pela cerimonia de sental-o
comsigo á meza. No romance insulano _Flores e Ventos_ apparece
a penalidade germanica do _banido_ completamente desenhada,
negando-se-lhe tecto, lar e agua, tal como nos Foraes portuguezes; isto
mesmo se encontra no romance castelhano de _Lanzarote del Lago_,
em que os criminosos chegam a transformar-se em cães e veados, especies
de _Wargus_. No romance portuguez de _Clarinda_ ha a pena
de fogo para o adulterio da mulher, como no Codigo visigotico. No
romance da _Infantina_ ha a condição do servo germanico notada com
o nome de _malato_, como se encontra nos documentos juridicos.
O symbolo do _cabello atado_, como signal de mulher casada, e
_em cabello_ (_mancipia in capillo_, da fórmula foraleira)
conserva-se nos anexins: «Moça _em cabello_ não m’a louves
companheiro.»
Passemos ás superstições: o culto do carvalho sagrado _Ygdrasill_,
debaixo do qual se celebrava a assembléa juridica dos homens livres
germanicos, é a carvalheira á porta da egreja, debaixo da qual julgavam
os homens-bons dos Foraes; é esse mesmo _roble_ em que está
a donzella encantada, a _Infantina_ dos romances hespanhoes o
portuguezes, tendo além d’isso a particularidade do _tanque de agua
fria_, que é a _fonte de Urda_. Esta mesma tradição encontra-se
em muitas terras de Portugal, que tem _carvalhos_ consagrados
ao pé de poços de _aguas santas_. O symbolo não comprehendido
torna-se superstição, como o _Wargus_, o banido que era equiparado
ao lobo nocturno, e que ficou para o nosso povo o _lobishomem_.[58]
Nos costumes populares portuguezes temos a _Cavalgada furiosa_
na fórma da _Corrida do porco preto_, em Braga; e _Wodam_,
no _Homem das ervas_, das festas de maio. Ainda que as festas
populares de S. João, Maias e Natal, vestigios polytheistas do
_Combate do Verão e do Inverno_, sejam anteriores ás tradições
germanicas, comtudo a sua persistencia entre o povo mostra-nos que o
rigorismo catholico e a cultura romana pouco actuaram n’este ponto
entre os Mosarabes.
A palavra _Rima_, significando a composição poetica em geral,
é empregada n’este sentido pelo Chanceller Ayala, que em versos de
lingua vulgar diz: «mi tiempo passar, En fazer _rimos_...»
Tambem no seculo XV chamava D. Duarte _Rymanço_ á fórma que
melhor se decorava por causa da _rima_. Parece que o termo de
_romance_, referindo-se á linguagem vulgar se identificou com o
_rimance_, que segundo a origem germanica designava a tradição
poetica. Nas fórmas poeticas conservou-se tambem a _aliteração_,
que com a _rima_ constituem a poetica dos povos do norte. Nos
anexins populares é frequente a _aliteração_, como: Gota a gota, o
mar se esgota.--Vento e ventura, pouco dura, etc.
Dos themas poeticos germanicos parece-nos pertencer ao typo scandinavo
de _Sigurd_, o romance: _Eu bem quizera senhora_, etc. A vida historica
da raça germanica começou no seculo V; n’este periodo ella cria uma
fórma poetica, breve, narrativa, cantando os feitos bellicos e a
independencia individual, adaptando-se aos successos novos, correndo de
bocca em bocca, sempre anonyma, com interesse immediato, dando vida a
todos os dialectos e animando as tribus á invasão. Tacito falla d’esta
ordem de poemas, a que os medievistas, fundados em um texto de Oderico
Vital deram o nome de _Cantilenas_. D’este typo rudimentar, que pela
aggregação cyclica formou as Epopêas feudaes ou _Gestas_, além de
outros especimens, existe desde 1812 em que se descobriu, a magnifica
cantilena de _Hildebrand e Hadebrand_. Não temos hoje as cantilenas
goticas da Peninsula, posto que sua efflorescencia poetica appareça em
symbolos e superstições populares. Á designação de _Chacone_, tanto em
Portugal e Hespanha, como em Italia e França, por onde se estendeu a
occupação germanica, corresponde esse costume primitivo da raça, em que
os _cegos_, principalmente entre os Lombardos, eram os que diziam as
Cantilenas heroicas, como Ludgero e Bernlef o frisio; chamaram-se por
isso _Chiecone_. Nas raças germanicas entraram populações scythicas,
como colonos e servos, e era costume entre os scythas cegar os escravos
(Herodot., IV, 2); _cegar_ era synonimo de _escravisar_, e _filho
de cego_ significava propriamente escravo. Eram esses os cantores
narrativos, dos quaes escreve Ozanam: «No seculo XVIII via-se ainda
nas aldeias pagãs da Frise, _cegos_ e mendigos ganharem o seu pão
recitando nos ajuntamentos de aldeãos--as aventuras do tempo antigo, e
os combates dos velhos reis.»[59] Isto explica a persistencia do genero
da _Chiecone_, pelo sentido do poeta identificado no de _cego_, como em
_Cieco_ d’Ascoli, _Cieco_ de Ferrara. Homens cultos e aristocraticos,
como o Marquez de Santillana, no seculo XV, tinham por infimos e
despreziveis os que tratavam romances vulgares. O nome de _Chacoula_ é
ainda designativo de canto popular no Alemtejo.
As Cantilenas germanicas, antes do seculo IX, decaíam por falta de
importancia historica; estava terminado o periodo das invasões. O
que se dava no ramo mais vigoroso da familia germanica, com mais
intensidade deveria dar-se entre os Godos, por causa da reacção
do catholicismo fortalecido com a cultura romana. As Cantilenas
germanicas, logo que appareceu o vulto de Carlos Magno receberam um
novo interesse, uma actualidade devida á transformação social, ou
fixidez em que entravam os estados da Europa; emquanto esta acção não
chegou a Portugal, a Cantilena gotica não se perdeu completamente.
Nem do outro modo se explica a existencia dos cantares historicos de
que se serviu Affonso o Sabio na sua Chronica. Alguns d’esses typos se
recompõem nos versos da _Cronica rimada do Cid_; no Cancioneiro
da Vaticana acha-se um romance: _Desfiar enviarom_, assignado por
João Ayras, que nos aproxima do typo da Cantilena. O romance de _Don
Favila_, colligido da tradição popular na Republica Argentina, é uma
prova d’esta elaboração poetica anterior aos cantares da Gesta.[60]
O romance do _Figueiral figueiredo_, que Miguel Leitão ouvira a
uma velha de muita edade no ultimo quartel do seculo XVI, pelo seu
conteúdo, é um vestigio da Cantilena, que se ia apagando, da mesma
fórma que os romances se modernisaram no seculo XVI.
Depois que a poesia dos jograes e _trouvères_ se espalhou pelo
Occidente, o que por colonias francezas, casamentos de princepes
e romarias provocadas pelas santificações locaes, se tornaram as
communicações affectivas mais directas entre os diversos povos,
as Cantilenas, que haviam recebido pelo genio gallo-franko uma
transformação profunda, formando as grandes Canções de _Gesta_,
vieram já em uma época historica fecundar as Aravias, que conservaram
sempre a fórma breve e anonyma, que se continua no _Romance_
popular. Na antiga poesia hespanhola falla-se na _Maestria de
França_; em Portugal achamos empregado o titulo de _Gesta_ em
uma composição satyrica em verso alexandrino por D. Affonso Lopes de
Baião, imitando a _neuma_ tradicional dos recitadores. A palavra
_Francias_ designou os contos facetos dos Fabliaux, em parte
derivados de cantos poeticos, como vêmos ainda na poesia popular da
Madeira, no romance do _Boi Rabil_, que é um conto na _Gesta
Romanorum_.
_Transformação erudita do Romance popular._--Cansados de esgotar
os innumeros artificios do lyrismo trobadoresco, que em Portugal
se manteve por todo o seculo XV, os cavalleiros, condemnados pela
organisação social em que a Realeza caminhava para o predominio da
dictadura monarchica, a viverem a vida parasita de _cortezãos_
e a divertirem os serões do paço, lançaram-se á imitação dos cantos
populares; as fórmas lyricas subsistem nos _Cantares d’Amigo_,
nos cancioneiros aristocraticos, mas as fórmas narrativas não se
conservaram com o mesmo esmero. Affonso Sabio só admittia que esses
cantos fossem de feitos de armas; e mais tarde o Marquez de Santillana
condemnava-os ao desprezo pela inferioridade da sua origem. Mas no
seculo XV os Romances conseguiram vencer esse desdem dos latinistas e
aristocratas. O que havia de profundamente humano e pittoresco n’esses
cantos tradicionaes, em que o mosarabe alludia ainda aos seus Symbolos
já sem os comprehender por extranhos á legislação codificada, não
deixou de impressionar os Poetas palacianos. D. João Manoel adoptára
esses _cantares-romances_, e impuzera-se a moda; a rainha D.
Joanna, filha do rei Dom Duarte, casada com Henrique IV de Castella,
pedia aos cavalleiros da sua côrte que lhe glosassem Romances, como o
que começa: _Nunca fue pena mayor_, tambem glosado em Portugal
por Pedro Homem, estribeiro-mór, e referido em Gil Vicente. Garcia de
Resende tambem glosou o romance _Tiempo bueno_, Sá de Miranda e
Gil Vicente, o romance da _Bella mal maridada_. Colligindo-se
todas as referencias a romances velhos nos escriptores quinhentistas,
vê-se a sua vivissima vulgarisação oral, antes da primeira collecção
formada e impressa em Sevilha em 1551.
Quando no seculo XV a erudição latina tomou um ascendente no gosto,
fazendo decahir os elementos medievaes das litteraturas, os dialectos
populares chamados _romance_ continuaram a empregar-se na poesia
popular, vindo este nome a designar esta fórma épica tradicional.
Bernardim Ribeiro usa-o com este duplo sentido: «não soube inteiramente
mais que por um _cantar-romance_, que d’aquelle tempo ficou.»
E em um verso do _Cancioneiro geral_: «mais ande _cantar
romance_.» (t. III, 358.) O povo ficou empregando a palavra
_Estoria_ no mesmo sentido de narrativa poetica, como a usava
Fernão Lopes no sentido de tradição, e que Bernardim Ribeiro emprega:
«ouvi-a já então contar a meu pae por _estoria_.» Quando a
erudição, para variar as fórmas poeticas, teve de contrafazer a poesia
popular narrativa no seculo XV, perdeu a noção da sua origem, e mais
ainda a sua comprehensão. A fecundidade do povo, que se fixa entre
o seculo XII e XIV, acabou em resultado da extincção das liberdades
locaes ou foraleiras pela dictadura monarchica, e com a liberdade
de consciencia pela intolerancia catholica a pretexto de combater a
Reforma. Ambos estes poderes fizeram reviver e prevalecer a cultura
latina nas letras o na politica.
A reacção clerical contra a Reforma, matava a alegria entre o povo; os
romances sacros ou ao divino foram considerados peccados de bocca, como
anteriormente o dissera o rei D. Duarte, e os Indices Expurgatorios de
1564, 1581, 1597 e 1624 condemnaram com excommunhões todos os romances
populares em geral. Gil Vicente consigna essa depressão de tristeza
produzida pelo estabelecimento da Inquisição em Portugal, quando
no Auto do _Triumpho do Inverno_, diz ser: «Jeremias o nosso
tamborileiro.» Os romances populares foram parodiados ridiculamente,
e a sua fórma applicada ás narrativas historicas, recebeu fórma
litteraria em Lorenzo de Sepulveda, Lasso de La Vega, Timoneda, Juan de
la Cueva, em Hespanha, e em Portugal por Gil Vicente, Jorge Ferreira e
Balthazar Dias, que traduziu na _Imperatriz Porcina_ as lendas de
Crescencia, tiradas do _Speculum historiale_ de Beauvais.
No fim do seculo XVI os romances populares reflectiram o estado da
sociedade civil: estava acabada a cavalleria, e como as Gestas feudaes
tinham caído na _faulse Geste_, ou idealisação dos traidores, assim os
Romances celebraram os facinoras e contrabandistas, os _Valentones_,
os _Guapos_ e os _Xaques_. Appareceu o genero meio popular meio
litterario das _Xácaras_ ou _Xacarandinas_, metrificadas por Quevedo
e entre nós egualmente seguido por Dom Francisco Manoel de Mello, que
falla d’este genero: «um rascão musico, que a poder de _rácaras_ e
seguidilhas a trazia martelada (a uma escrava da casa).» Imitaram-se
tambem os romances _mouriscos_ e granadinos em um monotono prurido
litterario, dissolvendo-se por fim no gosto allegorico e subjectivo.
D’aqui em diante a poesia épica do povo perde-se totalmente: a
dominação castelhana, obscurantismo religioso, restauração bragantina,
tudo conspirou para fazer esquecer-se a tradição nacional, a ponto
de chegarmos a ser conhecidos na Europa como o povo mais escravisado
e embrutecido, como o referiu o P.^e Theodoro de Almeida na Oração
inaugural da Academia das Sciencias em 1779. Só muito tarde, na
renovação das Litteraturas pelo Romantismo é que se tornou a achar este
veio riquissimo da Tradição.
_c_) DAS FÓRMAS DRAMATICAS
Como manifestação da vida social o theatro attingiu nas civilisações
antigas e nas raças vigorosas o caracter de uma instituição. O
Drama, a fórma de arte em que o homem apresenta a consciencia da
sua personalidade, comprehendeu primitivamente elementos do Lyrismo
e da Epopêa; as mais vetustas composições dramaticas começam pelo
_Côro_, puramente lyrico, d’onde se destaca um personagem que narra
incidentalmente; mas a necessidade de figurar e desenvolver as
tradições épicas, de as tornar vivas diante da multidão, reduziu o
_Côro_ á rubrica explicativa, á decoração material, vindo o dialogo
dos personagens (de _persona_, a mascara com que o _som_ da voz era
reforçado) a constituir a tragedia. Deu-se isto na Grecia de um modo
natural e logico, por que ali o theatro tomou o caracter de uma
instituição nacional. O theatro indiano derivou-se tambem da Epopêa. E
assim como nas civilisações rudimentares o theatro é uma continuação
dos actos liturgicos, como o _Mitote_, no Mexico, os _Ludi_, nas festas
christãs, os _Mysterios_ francezes, as _Reprezentazioni_ italianas,
na Edade media, em nossos dias repete-se este processo generativo, em
que dos côros lyricos e elegiacos sobre as desgraças da familia de
Oly, entre os Persas modernos, se formam os grandes dramas chamados
_taziéhs_, a que a multidão assiste com fervor commentando pela acção
scenica as doutrinas do Babysmo.
Recebe o theatro a importancia de instituição quando se torna para um
povo a sua satisfação moral, uma fórma de protesto, uma manifestação
da--opinião publica. É por isso que o theatro attinge a sua maior
vitalidade nas épocas burguezas. Os dogmas religiosos e civicos
foram pela primeira vez discutidos n’esse tribunal, como se vê pelas
tragedias de Eschylo e pelas comedias de Aristophanes; assim foi tambem
comprehendido na fórma hieratica da Edade media, em que o Velho e o
Novo Testamento eram postos em acção debaixo das abobadas da Cathedral
popular; em que os actos respeitaveis da Bazilica eram parodiados
pela _Bazoche_, nas farças mordentes em que os papas e os reis
figuravam no conflicto dos dois poderes. O renascimento das fórmas
classicas greco-romanas veiu desviar esta creação das Litteraturas
romanicas dos seus germens organicos ou tradicionaes. Esses germens
tinham vigor bastante para efflorescerem, se não tivessem apparecido
outros meios mais faceis para manifestar-se a Opinião publica, taes
como a Imprensa.
Assim como as fórmas do _Lyrismo_ e da _Epopêa_ apresentam
nos povos meridionaes a persistencia de typos tradicionaes que
se ligam a uma communhão ethnica de raça, tambem existiu uma
forma de _Drama_, com egual origem, e que ainda persiste nos
costumes populares na Italia, Hespanha e Portugal. Os criticos não
comprehenderam ainda o seu valor; mas esse typo dramatico hade merecer
o interesse dos eruditos como a _Pastorella_ e o _Romance_.
Já vimos que a antiga raça italica tinha a comedia mimica e improvisada
das _Atellanas_ oscas, com os seus personagens typicos e
invariaveis o Macus, o Pappus, o Casnar, o Sannio, o Manducus.
Esta fórma pertencia evidentemente a essa raça que constituiu o
fundo popular das nações occidentaes: na Italia resistiu sempre aos
dramas classicos ou litterarios, em todas as épocas, com o nome de
_Commedia dell’Arte_, e de _Commedia a soggeto_. O assumpto
era previamente definido, o _canevaccio_, os dialogos é que eram
improvisados em scena pelos typos immutaveis de Arlechino, Brighella,
Zanni, Pantalone, Truffaldino e Dottore. Emquanto a comedia litteraria
ou _sostenuta_ se mostrava sem interesse, o povo preferia
a comedia improvisada, na qual os varios dialectos da Italia se
unificavam, por isso que eram empregados pelos diversos typos comicos
segundo os caracteres que representavam. A linguagem dialectal fornecia
as vivas graças e chascos que ha sempre de terra para terra; e as
mascaras tinham a expressão dos traços provinciaes. Quando fallava
o typo amoroso, empregava a lingua culta da Toscana; se era o pae
tyranno, era o dialecto de Bolonha; se conversavam a criada ladina ou
serigaita com o criado dialogavam em bergamasco. Em Gil Vicente tambem
se encontra esta necessidade de mudarem de linguagem os seus typos,
chegando a dizer que--o castelhano é bom para fingir, e empregando por
vezes o cigano e o creoulo.
A vitalidade da _commedia dell’Arte_ resistiu ás reformas do gosto
dramatico tentadas por Goldoni no seculo XVIII, e chegou a influir no
desenvolvimento do theatro francez; os antigos typos apresentam novos
nomes, como Scaramouche, Scapin, Tartaglia, e chamava-se _commedia
a braccio_, pela gesticulação exagerada. Quando Goldoni tentou a
comedia do género menandrino, os actores não se queriam sujeitar ao
estudo de papeis definidos, e o publico preferiu a improvisação dos
representantes, que ás vezes pelos seus repentes felizes adquiriam
uma grande celebridade, a ponto de Biancolelli receber de Luiz XIV
o tratamento de amigo, e Cecchini cartas de nobreza pelo imperador
Mathias.[61]
Este mesmo genero improvisado encontra-se em Andalusia, com o nome
de _Juegos de cortijo_, usados ao terminar os trabalhos das
colheitas, e especialmente nas bodas. Lafuente y Alcantara, no prologo
do seu Cancioneiro popular descreve esta forma da _Encortijada_,
e dá alguns themas comicos, eguaes ás _Atellanas_ oscas e ás
_commedias dell’Arte_: «Começa este jogo por uma especie de
introducção ou scena preliminar, reduzida a um breve dialogo que
hade terminar com algum chiste, já mettendo a ridiculo qualquer dos
presentes com allusões grotescas, ou simplesmente algum conceito mais
ou menos opportuno, ou alguma sandice inesperada. Chama-se a isto
_entrada de juego_, e geralmente não tem connexão alguma com
a scena que se representa depois. Nesta ultima _só é premeditado
e convencionado o assumpto principal e o desenlace; o dialogo e
demais incidentes são improvisados pelos actores_.»[62] Lafuente y
Alcantara apresenta alguns dos themas usuaes, quasi sempre descambando
nas facecias desenvoltas, como o _Juego del galan_, e o _del
Jalapago_, e _del Licenciado_.
Comprehende-se que os latinistas ecclesiasticos condemnassem a forma
dramatica conservada tradicionalmente nas classes populares; nas obras
de Isidoro de Sevilha, lê-se: «O theatro é um verdadeiro prostibulo,
porque terminados os Jogos, ali se prostram as meretrizes...»
(_Etym._, l. 18 e 39.) Continúa o erudito bispo hispalense:
«Entram os histriões nos espectaculos com a face coberta, pintam o
rosto de azul e de roxo sem se esquecerem dos demais arrebiques; e
levando ás vezes por simulacro um lenço sujo e manchado de varias
côres, untam com elle todo o pescoço e mãos de grêda para egualar a côr
da careta e enganar a multidão emquanto se representam as farças; umas
vezes apparecem em figura de homem, outras de mulher; ora tosquiados,
ora com grande cabelleira; umas vezes de velha, outras do virgem, e em
todos os aspectos, com diversa edade e sexo, a fim de enganarem o povo
emquanto representam.» Recommendando como se devem cantar os psalmos,
o bispo prohibe que a voz tenha effeitos theatraes. D’este texto se
deprehende a existencia do theatro popular na baixa Edade media, e
que apezar de todas as condemnações da Egreja persistiu nas fórmas
elementares dos _Jogos_ dialogados, e _Dansas_ figuradas.
Do theatro primitivo da peninsula iberica falla Marcial: _antiqua
patria theatra_ (_Epigr._, IV, 55) referindo-se a um scenario natural
em um valle, a que concorria a gente de Rigas, ou como diz um glosador
lendo Ripas: «_quod prisci juxta ripas ederent spectacula..._» A estes
theatros naturaes alludo Juvenal (_Sat._ III, p. 172) em relação á
Italia, _herbosa theatra_. A Dansa guerreira dos Gallegos acompanhada
de canto, descripta por Silio Italico (_Pun._, III, 353), ainda nos
apparece na _Dansa dos Espingardeiros_, e as Dansas coreadas religiosas
dos Celtiberos, persistiram até ao seculo XVIII nas procissões
portuguezas. Da mesma fórma diz D. Juaquin Costa, a quem seguimos
aqui: «Los _Dances_[63], con sus representaciones scenicas, ora
historicas, ora religiosas, ora pastoriles, como, por ejemplo, el
_Baile de la inconstancia_, de Benabarre, la _Marisca_, de Ainsa, la
_Pastorada_, de la Fueba, etc, que son una verdadera juris continuatio
del teatro indigena, conservado mas tenazmente que en ninguna otra
region, en los escondidos valles del Pireneo, tanto en la vertiente
española (Aragon) como en la franceza.»
A fórma improvisada do theatro acha-se tambem na tradição portugueza
conservada no Brazil, e usada nas festas chamadas _Reinados_
e _Cheganças_. Celso de Magalhães viu representar na Bahia o
_Auto dos Marujos_, e descreve-o assim: «Um grupo vestido á maruja
conduzia um pequeno navio armado de ponto em branco, com velas de
seda e cordame de linha, montado sobre quatro rodas, embandeirado em
arco e puchado por rodas. Cantavam versos da _Náo Catherineta_,
_Fado do marujo_ e _lupas_ (cantigas de levantar ferro).
Outro grupo apparecia mascarado. Na frente um individuo montava um
cavallo de pasta vistosamente ajaezado do galões falsos e fazia-o
dansar ao som da musica e do canto aspero e acompanhado de pandeiros
e pratos.» E Roméro acrescenta: «Depois fingem uma lucta, vão coser o
panno, no fim do que ha o episodio do Gageiro, cantando-se os versos
da _Náo Catherineta_...»[64] São muito curiosos os especimens
d’este genero, como _Os Marujos_, os _Mouros_, o _Cavallo
Marinho_,[65] conservados na antiga colonisação brazileira. Nas
aldeias ainda hoje se conservam dansas dialogadas hieraticas, elemento
consuetudinario a que Gil Vicente deu a fórma litteraria.
O primeiro vestigio theatral que nos apparece é a representação
_mimica_, de que a Sicilia era o fóco que mais sortia Roma; é
o _Arremedilho_ do jogral Bon-Amis, coadjuvado por outro a que se
chamava Acompaniado. É provavel que _Bon-Amis_ seja já nome comico,
como o de _bonifrate_. Foram depois regulamentados os costumes
do _Tamo_, ou das festas do casamento(_Epithalamio_) a que pertenciam
os _Jueyos de cortijo_ na Andalusia. O uso popular dos _Clamores_
e _Endexas dos mortos_ era tambem dramatico, havendo banquetes sobre
as sepulturas. A parte representada acha-se nas cantigas com Voz e
Côro acompanhadas de dansa, sobre a sepultura do Condestavel, pela
paschoa florida; os banquetes ainda ha muito pouco tempo deixaram de
usar-se nos cemiterios de Lisboa. Estes ritos eram tambem usados pelos
Belgas sob o nome de
_Dadsila_ ou festim sobre a sepultura das pessoas cuja memoria era cara;
o touro, o bode eram as victimas regularmente immoladas; na primitiva
egreja conservou-se este costume, como se vê pela recommendação de
Santo Agostinho acerca d’esses banquetes: «_Non sint sumptuosae._»
Muitos dos elementos dramaticos dos costumes populares foram
incorporados na grande festa de Corpus Christi; D. João II,
para celebrar a victoria da batalha do Toro, mandou organisar a
Procissão em que figuravam os officios com os jogos que lhes eram
peculiares e emblematicos. No Regimento da procissão, dado por D.
João III, encontram-se esses rudimentos tradicionaes: «Dois Diabos,
e a _representação da Dama e Galante_; dois _Diabos e um
Princepe_; o _Gigante e o Anjo_.» Da figuração do Sam Jorge
matando o Dragão para salvar a Donzella que ia ser devorada, vemos a
persistencia no alto Minho com o nome de _Santa Coca_ como parte
obrigada da procissão. Nos costumes actuaes, na procissão do Carmo
em Vianna, figurava o _Rei da Mourama_, e entre lôas á Virgem
jogavam-se as mais desbragadas chufas á mourisma; a _Dansa dos
Pretos_ em Arcozello da Serra, na festa da Senhora da Assumpção,
em que crianças de nove a dez annos em trajo de negrinhos fingem
de escravos, e queixam-se á Senhora com ditos pela maior parte
indecentissimos para os libertar. A _Dansa das Donzellas_ consta
de um côro de meninas, que pedem para ser baptisadas ao Anjo que
as acompanha, e elle exhorta-as em um monologo final, dando-lhes o
baptismo. A _Dansa dos Espingardeiros_,[66] é um thema inspirado
pela resistencia nacional contra a absorpção castelhana; consta de
oito ou dez rapazes, marchando ao som de tambores, divididos em dois
bandos, simulando o exercito castelhano e o portuguez; postam-se
diante uns dos outros, vão parlamentarios lançar os ditos, trava-se o
combate, e vence o general portuguez, que concede a vida ao inimigo
depois de lhe ajoelhar aos pés. Além d’estes themas ha outros ligados
aos trabalhos do campo ou da industria, como o _Enterro das
Séstas_, as _Malhadas do centeio_ e as _Azeitoneiras_; e
os divertimentos domesticos, taes como o _Jogo da Condessa_, o
da _Almolina_, o de _Villão do cabo_, em que ha dialogos e
movimento scenico.
O typo nacional do gracioso da comedia popular era designado o
_Ratinho_, que Miguel Leitão diz ser tomado do caracter broma
dos moradores da aldeia de Rates. Gil Vicente que teve perfeito
conhecimento de todos estes elementos tradicionaes, allude ao typo
comico nacional:
Muitos _ratinhos_ vão lá
De cá da serra a ganhar;
E lá os vemos cantar,
E bailar bem como cá. (II, 443.)
E no mais triste _ratinho_
S’enxergava uma alegria
Que agora não tem caminho. (II, 417.)
_Ratinho_ és de má casta (II, 211.)
E deixas lavrar _ratinhos_ (_ib._, 220.)
Que eu era _ratinho_, senhor. (_ib._, 237.)
Todos os que seguiram as fórmas estabelecidas por Gil Vicente
aproveitaram-se d’este typo do _Ratinho_, como António Prestes e
o Chiado. Muitos d’estes costumes populares foram condemnados nas
Constituições dos Bispados, principalmente os _Autos_, _Colloquios_
e _Lapinhas_, nas trez grandes festas a que o povo deu relevo com
as figurações dramaticas--o Natal, os Reis e a Paixão. Era a grande
trilogia, em que o povo continuava a sua creação poetica depois de
terminado o cyclo de formação dos Evangelhos apocryphos. O trabalho
de Gil Vicente, como se deprehende da tragicomedia do _Triumpho de
Inverno_, foi rehabilitar pela litteratura as tradições populares,
condemnadas pela Egreja, e este esforço do genio foi para a época da
Renascença como o de Garrett, na restauração do theatro portuguez, na
época do Romantismo.
Profundos accidentes historicos separaram da unidade politica
portugueza paizes que pela lingua e tradição pertencem ainda a um mesmo
todo moral. Pelo estudo d’estes documentos ethnicos se reconstitue a
_indole_ de um povo; por isso dizia Gregorovius: «As leis, as
instituições, _separam_, mas a lingua, na qual o povo falla e
canta, é um elemento de _aproximação_; ahi se encontra o que os
latinos chamavam _indoles_.»
A tradição nacional e popular, verdadeiro germen de toda a
efflorescencia artistica, e que era a base de todas as creações
originaes das litteraturas da Edade media, achou-se depois do seculo
XII abandonada ou combatida pelo prestigio da Antiguidade preferida
pelos eruditos latino-ecclesiasticos. Formada n’este começo da grande
crise da dissolução catholico-feudal, a nacionalidade portugueza foi
desviada das sympathias da _Tradição_; a separação dos interesses
e gosto da classe popular, ou a _praça_, e da aristocracia e alto
clero, ou a _côrte_, torna-se um caracter commum ás recentes
nacionalidades europêas, e exprime-se claramente esse antagonismo nas
Litteraturas novo latinas.
Em Portugal encontramos este antagonismo reflectindo-se na Religião
pelo abandono do _culto mosarabe_ ou Egreja nacional substituido
pelo catholicismo romano; no Direito, pela absorpção das instituições
locaes ou autonomia foraleira na codificação real das Ordenações: na
Arte, como a architectura especialmente, e a poesia, pela imitação dos
modelos classicos.
As fórmas cultuaes e crenças religiosas no meio de uma população
que tendia a unificar-se politicamente era um esboço de integração
affectiva. Tal foi o christianismo durante a occupação arabe. O godo
lite ou aldius, meio lembrado do seu velho culto odinico, abraçára o
Christianismo pelo que elle tinha de sentimental; não comprehendia as
abstracções dos mysterios dogmaticos, e seguiu por instincto natural
a doutrina de Ario: acreditava na _humanidade de Jesus_, e
repugnava-lhe a consubstanciação e a sempiternidade do Verbo. É n’este
ponto que se dá a dissidencia entre a classe popular e a sociedade
aristocratica convertida ao catholicismo romano sob Rekáredo. As
crenças, usos e tradições populares são combatidas pelo clero como
superstições, e começa a preponderancia do clero na sociedade politica,
predominando os Bispos nas Côrtes, nos conflictos dynasticos e em
todas as fórmas de intolerancia.
Para o godo ao contacto com o arabe dominador, era a religião de
seus paes o sentimento mais energico e vital; adoptára a cultura, os
costumes, em parte a linguagem do vencedor, pelos cruzamentos ajuntára
ao instincto de independencia das raças do norte a paixão meridional,
mas permanecera sempre hispano-godo no seu afferro ao christianismo.
O culto dos _mosarabes_ deve considerar-se como uma fórma pura
do Christianismo independente da Egreja de Roma, viciada pelo intuito
da auctoridade temporal a que ambicionava. Como a Egreja da Bretanha
e da França, que se attribuiam uma origem _proto-cathedrica_, a
Egreja hispanica ou mosarabe considerava-se fundada expressamente por
um Apostolo; procurava derivar a sua origem da missão immediata do
apostolo Sam Thiago; não tinha por tanto de reconhecer a supremacia
papal. No culto _mosarabe_ o christianismo achava-se desligado das
affectadas fórmas liturgicas; não existia n’elle a confissão auricular,
com que o catholicismo romano adquiriu o imperio nas consciencias;
na sagração não se partia a hostia; o povo tomava parte nos officios
ecclesiasticos com as suas _Prosas_ e Sequencias, fecundando com a
emoção religiosa a sua sensibilidade poetica e animando a abstracção; a
linguagem vulgar era a que se empregava nas cerimonias liturgicas, com
exclusão completa do latim, costume que determinou ainda nos seculos
XII e XIII as traducções _vernaculas_ do Velho e Novo Testamento
e de alguns hymnos da Egreja. O catholicismo romano reconheceu os
perigos que para a sua disciplina tinha a simplicidade do _culto
mosarabe_, e combateu-o de frente, apoiando-se no poder real para o
extinguir completamente na peninsula. O christianismo-mosarabe tinha
a riqueza do sentimento poetico de uma forte raça; Roma banindo-o com
as censuras dos seus legados, impunha-lhe uma religião cuja força não
residia na santidade da crença, mas na auctoridade do padre. Quando
Affonso o Sabio escrevia a _Historia geral de Hespanha_, existiam
apenas seis egrejas em Toledo do culto mosarabe; a lucta continuou-se
lenta e insensivel a ponto de, no tempo do Cardeal Ximenez, restar
sómente uma capella em que se celebrava pelo missal mosarabico; era
uma opulencia cardinalesca conservada não como crença, mas com o
intuito archeologico de uma tradição da Egreja primitiva. É tambem
como lembrança historica, que na sua Cronica falla o rei Affonso o
Sabio: «Depoys que a cidade de Toledo foy metida em poder dos mouros
per preytesia ... todos aquelles que hy quyzesem vyver so o senhoryo
dos mouros era contheudo no trauto que tevessen sua ley, e vivessem
segundo o que ela mandasse e ouvessem clerigos de myssa e bispos e
outras ordeens. Estes christaãos teveram das entom ataagora ho officio
de Santo Ysidro e de San Leamdre. E oie em dia o mantem seys Igrejas
em Toledo, e chamansse os crerygos d’estas Igrejas _moçarves_.
E vyverom os christãos de ssuum com os mouros e so seu poder teendo
sua ley e guardandoa ataa o tempo dos Almoades que começaram em
tempo do emperador dom Afonso no tempo que era dom biuam arcebispo de
Toledo.»[67]
D’este missal e breviario composto por ordem do Concilio toledano
em 633 para uso geral da egreja de Hespanha, falla o bispo D.
Rodrigo da Cunha, referindo-se á hostilidade com que era combatido o
_mosarabismo_: «D’este Missal e Breviario usaram muitos annos as
egrejas de Hespanha, por confirmação da sé apostolica, que por varias
vezes os approvou, _pretendendo seus legados o contrario_, como se
póde vêr em Ambrosio de Morales.» (Lib. 12, c. 19.)[68]
Desde que o catholicismo imperou absolutamente na peninsula, o povo não
tornou a crêr, mas a temer, submisso pelos Autos de fé ante o terror
dos inquizidores; o christianismo que fôra sob o dominio dos arabes um
consolo, tornára-se no tempo dos reis catholicos um pezadello.
Quando a fé era sentida, a sua exaltação e fervor inspirava as obras de
arte; por isso, escrevia Herculano ácerca da população _mosarabe_:
«cuja especial influencia na organisação da monarchia portugueza não
tem sido apreciada.»[69] Sob a emoção ingenua do christianismo, ella
cria as fórmas da architectura das bellas cathedraes, e a fixação do
seu direito no estatuto territorial. Se a população mosarabe tem sido
desconhecida na organisação politica da nacionalidade, mesmo para o
historiador que descreveu essa influencia, mais desconhecido foi o seu
genio artistico manifestado na Arte. Os grandes terrores do fim do
mundo despertaram o fervor da fundação de templos por toda a Europa
no seculo X; foi quando a immobilidade pezada do acanhado estylo
byzantino, de origem erudita, se quebrou para sempre para dar logar
a esplendidas creações ogivaes. Os christãos que viviam por toda a
peninsula em contacto com os sarracenos, obedeceram a esse impulso,
e deram começo ás grandes cathedraes pela tolerancia illustrada dos
invasores. Quer do norte da França (_Ars francigena_) como
hoje se reconhece, ou da Allemanha, o gotico ogival só entrou na
peninsula quando ia na sua phase secundaria; os _Mosarabes_
ao construirem os seus templos reformaram a sombria architectura
byzantina, tiraram-lhe o aspecto de refugio e deram-lhe a largueza da
futura assembleia politica. Fundada ao lado da mesquita arabe, a egreja
imitava naturalmente a elegancia da architectura oriental, n’esta
efflorescencia do ornato, apparentemente caprichoso, mas dominado por
uma lei geometrica constante. Os escriptores coévos da invasão, ao
fallarem da reedificação dos templos accusam essa elegancia arabe;
tal é o documento apresentado por Herculano: «quicquid novo cultu in
antiquis basilicis splendebat, fuerat que, _temporibus arabum_,
rudi formationi adjectum.»[70] Nas antigas basilicas resplandeciam
os ornatos accrescentados no tempo dos arabes á rude fabrica; assim
interpreta Herculano esse texto, pela rudeza da architectura visigotica
comparada com o esplendor da architectura arabe. Mais tarde, quando
pela reacção neo-gotica os arabes foram submettidos, os cativos eram
obrigados a trabalhar nas construcções dos mosteiros, obliterando-se os
ultimos restos do byzantinismo. Sousa Loureiro, director da Academia de
Bellas Artes em 1843, dizia dos primeiros monumentos architectonicos de
Portugal, como Santa Cruz de Coimbra, Sam Vicente de Fóra e Alcobaça:
«N’estes edificios não ha o estylo gotico d’aquelle tempo; nem o estylo
arabe da Hespanha no seculo XI se reconhece ali; tem um typo, um
_caracter luzitano_, porque a Luzitania existiu sempre como uma
região, como uma nação, como um povo particular e separado da união
geral, mesmo no tempo que a Hespanha foi successivamente invadida por
potencias estrangeiras...»[71] E considerando anteriores á monarchia,
a fundação da capella de Nossa Senhora da Oliveira, de Guimarães, e
de Santa Maria de Almacave, de Lamego, classifica-as juntamente com
as egrejas de Santa Maria de Tarquere e Santa Cruz de Coimbra como
_luzitanas, cuja architectura é ainda bastante simples_.
Se alguma feição _luzitana_ apparece na cathedral antiga é simplesmente
a reunião do gotico-byzantino com o estylo arabe, por effeito dos
mouros cativos e alvenéres que trabalhavam então nas construcções; e a
fusão da raça goda e sarracena produzindo essa nova população
_mosarabe_, com o seu direito proprio nos Foraes e Concelhos,
com o seu culto religioso proto-cathédrico, com uma poesia lyrica e
narrativa fecunda, que se authentica nos Cancioneiros e Romanceiros,
tambem formou uma architectura nova, pondo em accordo na egreja christã
o byzantino-gotico com a arte arabe. Escrevia o Conde do Raczynscky com
a sua alta competencia: «Os Portuguezes, no meu entender, deixaram
provas do seu gosto constante pelas obras de architectura. A perfeição
dos seus monumentos, sob o ponto de vista da execução, bem prova
que _esta arte era verdadeiramente nacional_.» E accrescenta: «Uma
circumstancia que prova mais fortemente ainda, que a architectura,
mesmo nas épocas mais remotas, devia até um certo ponto ser filha do
paiz, é a perfeição com que a pedra foi sempre trabalhada e
esculpturada aqui, e o gosto, a nitidez com que todos os
_ornamentos_ foram e são ainda hoje executados.»[72]
Sustentando a prioridade da civilisação hispanica em frente do dominio
arabe, escreve Simonet em relação á architectura dos Arabes em
Hespanha: «que a maior parte das construcções que se levaram a cabo sob
o seu dominio, tanto em Hespanha, como na Africa e no Oriente, foram
obra de _artifices christãos e indigenas_, ora _Mosarabes_,
ora _Mulladies_, ora captivos.»[73] Em uma nota fundamenta o asserto
com o facto citado pelo historiador arabe Annowairi, que Abderahman
III, ao tratar as pazes com os christãos do norte da peninsula exigiu
doze mil operarios para lhe construirem o alcazar de Medina Azzahrá.
Este mesmo trabalho dos operarios christãos se nota nas construcções
arabes do Egypto, como observou Stanley Lane Pool.[74] O historiador
tunesino Ibn Jaldon, considera que a perfeição das artes na Hespanha
sarracenica era devida a uma tradição da edade visigotica; Simonet
recuando-a até á edade romana, accrescenta: «Semelhante tradição
deveram transmittil-a os indigenas; assim os _Mosarabes_, que
conservaram a sua fé christã e com ella os mais elementos da sua
civilisação, como os _Mulladies_, isto é, os hespanhoes renegados, que
ao arabisarem-se e fazer-se mussulmanos mantiveram da sua antiga
cultura hispano-romana tudo aquillo que era compativel com o islamismo,
e ainda uma não pequena parte do espirito christão e nacional.»[75]
Este elemento indigena ou hispanico vem citado nos poemas e leis antigas
com o nome de _Mosarabe_; nos cantos populares ha uma referencia
importante aos _Mulladies_, sob o nome de _Malados_:
Eu sou filha de um _malado_
Da maior _malatararia_.
Homem que me a mim tocar
_Malato_ se tornaria.
O desprezo que se ligava a este nome não era por nenhuma doença
asquerosa, mas pela degradação de terem renegado a religião christã. E
esta classe era tanto ou mais importante do que a dos _Mosarabes_;
era maior o seu numero, mais intelligente e activa essa população,
possuindo em si mais familias nobres, e pela sua preponderancia tomavam
parte entre todas as discordias dos Arabes desde a segunda metade do
seculo IX, como o observam Dozy e Simonet.[76] Muitos _Mosarabes_
se tornaram _Mulladies_, especialmente em Granada, para se
eximirem aos fortes tributos, e principalmente a gente dos campos: «la
poblacion agricola, que aqui abundaba mucho, merced á la feracidad
del suelo, aprovachándo-se de las franquezas y beneficios que la
ley mahometana concede á los islamizados habia logrado por este
medio conseguir su libertad y librarse del odioso impuesto de la
capitacion.»[77] A maior parte da população de Granada no principio do
seculo XIV, como o affirmam Zurita e Marianna, eram _Mulladies_.
É pois este fundo de população hispanica, que se conservou inalteravel
entre os dominadores Arabes, e a que se deu o nome de _Mosarabes_
e _Mulladies_, que persiste nas suas tradições tanto poeticas como
artisticas. Arte mosarabe, como chama Garret á Architectura, Epopêas
mosarabes, como chamámos aos Romanceiros, são designações verdadeiras
emquanto d’este elemento persistente sob a dominação arabe se transita
para o reconhecimento da população iberica.
O nome que deve ter esta architectura, filha do genio do povo
portuguez, não seremos nós que o imporemos; tomamos a designação que
lhe deu um poeta que teve mais do que ninguem a intuição das cousas
bellas, e que suppria a falta de sciencia por um tino raro e gosto
aprimoradissimo; escrevia Garret: «E aqui a proposito, por que se não
hade adoptar na nossa Peninsula esta designação de _mosarabe_
para caracterisar e classificar o genero architectonico especial
nosso, em que o severo pensamento christão da architectura da Meia
Edade se sente relaxar pelo contacto e exemplo dos habitos sensuaes
moirescos e de uma luxuosa elegancia.»[78] O portuguez tem o genio
architectonico; o artista Roquemont reconheceu-lhe essa capacidade
ingenita. É a influencia exterior da natureza que fez este povo
architecto, como o fez tambem navegador. O norte de Portugal abunda em
excellente pedra para construcções grandiosas, tem o granito duro para
as fórmas eternas; de facto é ao norte de Portugal aonde se encontram
os primeiros e mais venerandos trabalhos de architectura, não tão
delicados como os rendilhados lavores da pedra calcárea do sul, mas em
maior numero e em todas as edades como productos de uma necessidade
vital. Este genio artistico acha-se reflectido na technologia do povo,
apresentando uma riqueza de vocabulos ainda na linguagem do mais
humilde alvenér.
As Constituições apostolicas mandavam que a Egreja fosse edificada
em fórma de uma náo (_ad instar navis_) voltada para o Oriente.
Comprehendeu Portugal o symbolismo no sentimento aventureiro e
maritimo com que no seu christianismo transpoz os mares, no meio das
invasões dos Turcos na Europa, levando a _Fé e o Imperio_ ao
Oriente, sem se preoccupar com o antagonismo das _Duas Espadas_.
Foi Portugal o unico povo que soube fazer a mirifica alliança da
Architectura e do sentimento maritimo; e emquanto se inspirava da
simplicidade evangelica, propriamente _mosarabe_, este povo era
creador, edificava a Batalha e Belem, que já não pôde acabar depois
que o catholicismo romano, pela repressão do Concilio de Trento,
mandado observar em Portugal como lei vigente, e pela acção dirigente
dos Jesuitas na instrucção e na politica, levou este povo a uma
esterilidade de morte, a uma indifferença diante da perda da sua
autonomia.
Participando da fecundidade germanica e da sensibilidade do arabe, o
_mosarabe_ mostrou a espontaneidade do seu genio creador, além
da Religião e da Arte, tambem no Direito. N’este campo a depressão
é exercida pela monarchia na sua absorpção temporal, fazendo em
quanto á vontade o que a Egreja fez em relação á consciencia. Para o
_Mosarabe_ o direito não era uma imitação dos Codigos romanos,
como o Codigo visigotico privativo da classe aristocratica; não era uma
fórmula ambiciosa da theocracia imposta nos Concilios nacionaes; era a
realidade da vida prática em uma fórma consuetudinaria e não escripta;
a lei em vez de ser uma prohibição validada com penas atrozes era uma
garantia commum, mantida pela consciencia, sanccionada pela transmissão
tradicional.
No momento em que o godo não pertencente á _banda guerreira_,
e que decahira na condição do _lite_, se viu desassombrado da
nobreza que se refugiou nas Asturias, ficou entregue á liberdade franca
tolerada pelos invasores e foi reconstituindo as suas primitivas
instituições livres. É por isso que o _Symbolismo_ germanico
dos codigos barbaros floresceu de novo; o _Mallum_ antigo, ao
ár livre, ou á sombra da arvore secular torna-se a assembleia, o
_Malhom_, em que se allega o costume; a individualidade germanica
reapparece na prova dos _Juratores_; as cerimonias juridicas
supprem a magestade das fórmulas abstractas romanas; a prova faz-se
pelo _Ordalio_, perante o testemunho da natureza, pelo _Duello
judiciario_; a pena é a banição da terra, o _Wargus_, sem
tecto, lar, nem agua. Todos estes caracteres são privativos do Direito
dos mosarabes, que vigorou sem ser escripto no periodo da tolerancia
arabe, e que ainda transparecem nos textos escriptos das Cartas de
Foral, quando a restauração senhorial e o poder monarchico procuraram
submetter ou alliarem a si, conforme os tempos, esse elemento popular,
que constitue as nacionalidades peninsulares. Nunca os Foraes poderão
ser comprehendidos senão como a antithese do Codigo visigotico. O
momento em que este direito começou a ter fórma escripta coincide
com o da formação do _Terceiro estado_ na Europa; em nenhuma
legislação se proclama com mais clareza a independencia do trabalho, a
liberdade territorial, a remissão do homem por contribuições ou resgate
do colono. Quem se lembrou de vêr nos Foraes uma liberalidade régia?
Os jurisconsultos que seguiram este erro eram romanistas, ou melhor
cesáreos, que ignoravam as instituições da Edade media e a organisação
da sociedade portugueza. Mas a vida local que exigia estes Codigos foi
extincta diante da lei geral das _Ordenações_, redigidas pelos
jurisconsultos romanistas ao serviço da auctoridade monarchica. Já
no seculo XVI e quando a dictadura monarchica tendia para o egoismo
dynastico, a pretexto de reformar as palavras obsoletas dos Foraes e
do reduzir as moedas antigas ao dinheiro corrente, o rei D. Manoel
substituiu esses textos, tirando-lhes as garantias e deixando-lhes a
contribuição ou prestação do fôro. Desnaturou-se a propriedade com
a fórma romana da _Emphyteose_. As descobertas favoreceram o
centralismo da capital e da côrte; as liberdades locaes decahiram, e
o povo já depremido pela intolerancia do catholicismo, deixou desde a
reforma manoelina esquecer as suas tradições juridicas, o seu energico
symbolismo, e alheio aos interesses publicos, alheio ficou á occupação
castelhana.
O povo portuguez ainda hoje allude nos cantos tradicionaes aos costumes
do tempo das Cartas de Foral; o estado de _Malado_ é lembrado no
romance da _Filha do rei de França_; a _Sylvaninha_, como
mulher é desherdada pelo pae, segundo o costume germanico; o adulterio
é castigado com a pena de fogo, no _Dom Claros de alem-mar_;
a expulsão do fidalgo do burgo, como nos Foraes do Porto, Coimbra
e Santarem, subsiste no romance do _Santa Iria_. Os romances
ou _Aravias_ alludem ao instrumento a que são cantados, a
_quitára_ arabe; é tambem pela influencia bondosa da mulher,
segundo o costume arabe, que o prisioneiro Virgilios recobra a
liberdade; vê-se em tudo isto a alliança do genio germanico e arabe. A
bella e sentidissima efflorescencia dos Romances sacros, ou ao divino,
em que o Velho e Novo Testamentos se acham dramatisados com a maior
audacia, sem attenções pela versão canonica, que outra origem tem na
rhapsodia popular da peninsula se não uma origem arabe? É do genio
arabe que lhe veiu esta liberdade da creação poetica, que tambem por
egual impulso apparece em velhos poemas provençaes: «É em arabe que se
encontram os primeiros exemplos d’estas falsificações romanescas das
narrativas venerandas da Biblia e do Novo Testamento.»[79]
Sobre o elemento vital da Edade media a tradição das raças, que
actuavam no desabrochar das instituições sociaes e da poesia,
prevaleceu o principio da auctoridade, em quanto á consciencia
religiosa pelo canonismo catholico, em quanto á liberdade pelos codigos
monarchicos, e em quanto ao ideal pelo prurido da erudição classica.
A decadencia do culto ou rito _mosarabe_ coincide com a extinção
das garantias foraleiras; no mesmo seculo em que entrava em Portugal a
legislação imperial romana, que renascia nas Universidades, triumphava
tambem o rito romano. Dom Diniz ressuscita os direitos imperiaes com o
ensino das leis romanas na sua nascente Universidade, ao mesmo tempo
que admittia o rito da Egreja de Roma na sua Capella. Applicavam-se
as _Leis de Partidas_; e o povo era excluido da participação da
liturgia. O papa Eugenio IV impoz-nos o rito romano, que Dom João
II e Dom Manoel acceitaram; e com as _Ordenações manoelinas_
acabaram os ultimos restos da vida das instituições locaes. Para
completar esta obra da cretinisação de um povo, Dom João III deu
entrada em Portugal á Inquisição com o seu queimadeiro, distrahindo a
multidão fanatisada com os espectaculos de cannibalismo, e entregou as
intelligencias á perversão do ensino jesuitico. Gil Vicente conheceu
este primeiro golpe na tristeza das cantigas do povo: «_Todas tem som
lamentado_--carregado de fadigas--longe do tempo passado.» Camões
sentiu esse segundo golpe já reflectido no estado geral da nação: «De
uma austera, apagada e vil tristeza.»
Para fazer revivescer o genio _mosarabe_ ou nacional, era preciso
descobrir-lhe a sua tradição em uma poesia tantos seculos obliterada
sob o desdem dos eruditos que a julgavam _desprezivel_, pela
Egreja, que a perseguia pelas Constituições dos Bispados e pelos
Indices expurgatorios; e ao mesmo tempo a sua liberdade e autonomia,
debaixo de um unitarismo politico que a monarchia parodiava copiando o
direito imperial romano. O renascimento dos dialectos peninsulares e o
estudo das tradições são o prenuncio de uma vindoura revindicação.
=§ 3.--A Linguagem oral e escripta=
O que distingue a obra litteraria original, da Tradição que é do
dominio de todos, é o cunho da individualidade, o caracter. É por isso
que um thema commum, como se observa com a fabula, póde ser original,
recebendo successivamente a fórma litteraria de Esopo, de Phedro ou
de Lafontaine. O mesmo acontece com a lingua nacional, que é fallada
por todas as classes, destacando-se a feição individual do escriptor
que lhe imprime o seu _estylo_. A linguagem, que é um phenomeno
natural e social independente da intervenção directa do individuo,
torna-se pela expressão esthetica a materia prima da elaboração das
Litteraturas; e o _estylo_, que tanto destaca um escriptor
de outro escriptor, conserva, como diz Fontenelle, _son tour
d’ésprit_ de cada seculo, apezar da supremacia do genio individual.
Ha na creação da linguagem dois trabalhos, o da espontaneidade
_oral_, em que apparecem os elementos radicaes que se transformam
por meio de themas e flexões até constituirem a palavra, e uma
fixação pela _escripta_, que vae systematisando e regularisando
o apparelho grammatologico. Se a lingua não é escripta, tende a uma
exuberancia synonymica e dispersão dialectal; se o seu uso escripto
começa prematuramente, cáe em uma immobilidade de fórmas definitivas,
que não avançam para se não quebrar a regularidade constituida.
É sobretudo o facto historico da nacionalidade e da sua cultura,
que actúam na fórma _escripta_ da linguagem, imprimindo-lhe
pela concentração das energias associativas em uma capital um typo
linguistico, que se impõe e prevalece sobre as differenciações
dialectaes. A linguagem _oral_ continúa no seu originario poder
de creação, mas apoia-se principalmente na auctoridade conservadora
do passado, e mantém fórmas do _Archaismo_ no vocabulario, no
vocalismo e construcções populares; a linguagem _escripta_,
exprimindo necessidades do espirito amplia os seus meios de expressão
pelo _Neologismo_, abandonando fórmas desconnexas do vulgo para
sustentar uma determinada regularidade. São variadissimas as relações
entre estas duas funcções _oral_ e _escripta_ da linguagem;
se se separam completamente uma da outra, a linguagem fallada torna-se
um patois variavel de burgo para burgo, e a fórma escripta obedece a
um aperfeiçoamento racional e artificioso, ficando privativa da classe
culta, como aconteceu com o sanskrito e com o latim classico; se porém
as duas fórmas de expressão se aproximam e se fecundam mutuamente, os
escriptores encontrarão na linguagem do povo bellos elementos para
enriquecerem o estylo com modismos pittorescos (como acontece com a
obra esthetica em relação ás tradições anonymas), e o povo fallará
com a perfeição da cultura social que reflecte, como se viu com o
predominio do dialecto attico na Grecia. Em Portugal a separação da
linguagem _oral_ da _escripta_, deu-se desde que por effeito
da corrente da civilisação preponderou a cultura latino-ecclesiastica,
e chegou a ponto tal essa differenciação, que os velhos documentos
juridicos tiveram de ser traduzidos para _leitura nova_ em tempo
de Dom João II; porém, desde os fins do seculo XVI até hoje tem-se
operado a identificação entre estes dois modos de linguagem, e o poema
de Camões é lido e entendido geralmente como se fosse escripto na
actualidade.
Da observação d’este facto de transformação progressiva que exerce
a _escripta_ na linguagem, resultam explicações essenciaes de
grandes phenomenos linguisticos accusados na historia. É assim que
sendo a Linguagem congenita com a Raça, apparece muitas vezes o
caracter da linguagem em contradicção com os dados anthropologicos,
como notou Paul Broca. Basta a linguagem ser a consequencia de
um estado elevado de civilisação, para ser facilmente admittida
por um povo mais atrazado em relação áquelle que o absorveu ou
subjugou. Vê-se que a linguagem é um importantissimo documento de
paleontologia ethnica, mas um inseguro recurso para as classificações
anthropologicas. Pelo desenvolvimento _escripto_ do Latim na sua
vasta legislação civil e administrativa, e continuado pelo catholicismo
nas constituições apostolicas e doutrinação moral, tinha forçosamente
esta lingua de dominar sobre as vastas populações prevalecendo sobre os
dialectos celticos da Italia, das Gallias e da Hespanha, vulgarisando
por meio da sua legislação uma linguagem cultivada artificialmente
por escriptores barbaros, gaulezes, hispanicos e italiotas. Foi este
facto que deu origem ao erro de se imaginar que as Linguas romanicas
tinham sido formadas pela corrupção do Latim em uma _vulgaria_,
como normas _rusticas_ ou _sermo pedestris_. O uso do Latim
entre os povos do occidente foi um artificio, uma educação, a ponto
das provincias da Africa, Hespanha, Gallias e Italia cisalpina darem
magnificos escriptores a Roma. Vêmos em Osca fundar Sertorio um
centro de estudos classicos; continuam em Roma a litteratura latina
os _cordovezes_ Sextilio Henna, Lucano, Porcio Latro, os dois
Senecas, Anneo Mella; os _gaditanos_ Cornelio Balbo e Columella,
Marcial, natural de Calatayud e o rhetorico Quintiliano, natural
de Calahorra; á Hespanha pertencem os _escriptores_ Claudio
Apollinario, Felix, Marco Licinio, Pomponio Mela, Lucio de Tuy, Allio
Januario, Cordio Sinforo, Silio Italico, Floro e Julio Higino, os
imperadores Trajano e Adriano. Tambem a propagação do christianismo no
segundo seculo, pelo emprego do latim na liturgia, fez que a classe
sacerdotal concentrasse uma certa cultura e se imitassem as fórmas
do Latim urbano; e ainda no ultimo seculo do Imperio empregavam
o latim classico na litteratura ecclesiastica os bispos, Osio, de
Cordova, Paciano e Olympio, de Barcelona, Gregorio Betico, de Granada,
Potamio, de Lisboa, o papa S. Damaso, Dextro, Juvenco, Idacio, Paulo
Osorio, Prudencio, Elpidio. É escusado ampliar este ponto de vista
com escriptores latinos da França; egual phenomeno se dera com o
grego transformado no dialecto commum, que os padres da Egreja, os
Chrysostomos e os Basilios empregavam com o esmero de reproduzirem
ou restaurarem o puro atticismo. Por certo que a lingua latina não
penetrou nas populações sertanejas, os _Pagi_ e _Vici_, as
aldêas e os concelhos, para ahi se corromper. A par da Lingua latina
existia a linguagem _oral_ com riquezas proprias e differenças da
fórma _escripta_. É essa lingua oral o fundo primitivo, que no
Occidente constituiu o ramo complexo denominado no seu syncretismo,
por Schleicher, _Lingua Greco-Itala-Celtica_, contrapondo-se no
norte da Europa o outro ramo _Slavo-Tudesco_. Não admira, que ao
destacar-se o Latim dos dialectos italicos pela fórma _escripta_
e pela preponderancia historica, muitos dos seus elementos superiores
fossem facilmente assimilados pelas populações occidentaes que recebiam
o impulso da civilisação romana; o mesmo se póde inferir sobre a
apropriação de elementos das linguas germanicas na França, Italia
e Hespanha. Desde que se descobriu a unidade das linguas áricas ou
indo-europêas, melhor se comprehende esta linguagem, de que se destacou
o Latim classico, que coexistiu com as linguas _falladas_ em todo
o Occidente.
Esta coexistencia e duplicidade encontra-se expressa na designação de
_Latino_ e _Ladino_, contrapondo-se a _Romance_. São abundantes os
trechos francezes, castelhanos o portuguezes, em que o termo _Latino_
significa o espirito culto, o que falla bem, o arguto e ardiloso;
_romance_ significava a linguagem popular, a que se falla de visinho a
visinho, como diz Berceo, a tradição oral, e já em épocas adiantadas
da historia, o vernaculo ou nacional. Esta lingua syncretica estava
diffundida em uma infinidade de dialectos, que foram desapparecendo á
medida que a lingua escripta, pela absorpção nacional, se foi impondo
ao uso das povoações ruraes. Raynouard cahira na illusão da unidade
plena d’este fundo linguistico, chamando-lhe _Lingua romance_, e
fazendo derivar da sua dissolução durante a Edade media as novas
linguas meridionaes.
A coexistencia da linguagem oral com o Latim classico ou escripto
acha-se notada no vocabulario pelos proprios escriptores latinos,
taes como Festus, Vegecio, Palladio, Ennio, Terencio, Pacuvio,
Lucrecio, Varrão, Aulo Gellio, Plauto, Columella, Cicero, Suetonio,
Apuleio, Theodosio, Justiniano, Plinio, Vitruvio, Celso, Lactancio
e todos os Padres da Egreja e escriptores latinos das provincias
conquistadas. Ao passo que nas Gallias ás fórmas litterarias _urbs_,
_iter_, _os_, _hebdoma_, _osculare_, se sobrepunham as fórmas vulgares
_ville_, _voyage_, _bouche_, _semaine_, _baiser_, as quaes egualmente
prevaleceram na Hispania, vêmos tambem na peninsula prevalecerem
sobre os vocabulos latinos esses outros vulgares _Burgo_, _Batalha_,
_Camisa_, _Carregar_, _Cabana_, _Cafua_ e muitissimos outros apontados
por Isidoro de Sevilha, nas suas _Etymologias_. Poder-se-ha contrapôr
um vasto vocabulario da linguagem oral ao vocabulario classico latino,
mas não é esse phenomeno ainda o que explica a formação das Linguas
romanicas; o processo organico ou formativo operou-se intimamente,
avançando essa lingua oral para a expressão _analytica_, que é
verdadeiramente um progresso; e quando Plauto ou Cicero, e muitos
escriptores classicos esclareceram os _casos_ com _preposições_, ou as
fórmas verbaes com _auxiliares_, não se deve entender que transigiam
com a futura decadencia do latim, mas que sentiam a necessidade do
processo analytico. Desde que o latim escripto deixou de exercer uma
missão social pela queda do Imperio, e pelas invasões germanicas
no Occidente, essas linguagens falladas na Italia, nas Gallias e
na Hespanha, sem a disciplina imposta pelos cultos, procederam na
transformação em que iam, desenvolvendo as fórmas analyticas e
periphrasticas. Olhou-se mesmo com certo desdem para o Latim classico:
no quarto Concilio de Carthago, no IV seculo, prohibiu-se a leitura dos
livros profanos, que eram latinos; o papa Gregorio Magno, desprezava
intencionalmente o emprego dos _casos_, dizia elle para não submetter
as palavras divinas ás regras de Donato. A importancia das linguagens
vulgares era tal, que em 230 Alexandre Severo promulgou uma lei
permittindo fazer-se ou _redigir-se_ fideicommissos n’ellas. Não era
pois uma decadencia, que trazia essas linguas á fórma _escripta_.
O proprio clero catholico, como se vê pela auctoridade de Licinio,
bispo de Carthagena, e de Gregorio de Tours, tinha cahido em um certo
analphabetismo, relaxando-se assim a preponderancia exclusiva do
latim escripto. As linguas _falladas_, que tinham existencia propria,
avançaram quando os fócos nacionaes as impulsionaram, e sem se moldarem
no latim chegaram á _accentuação_ e á _rima_, a uma fórma de poesia
nova, a que o proprio Latim foi submettido na hymnologia da Egreja.
Vê-se quanto é absurdo explicar a formação das linguas romanicas por
meio de degenerações phoneticas operadas no vocabulario do latim
classico. As modificações do _vocalismo_ e _consonantismo_ romanico são
as mesmas que dominam todo o organismo das linguas indo-europêas, de
que ellas são um producto.
Combatendo a theoria da escóla philologica que deriva as linguas e os
dialectos romanicos immediatamente do Latim, já em quanto á estructura
e mesmo ao vocabulario por processos de modificações phoneticas,
Gubernatis oppõe-lhe os seguintes factos historicos: «porque é que
os Romanos tendo penetrado na Grecia mais do que na Hespanha, não
fizeram fallar latim aos gregos, como querem que o fizeram aos
hespanhoes?--Porque é que uma colonia militar romana que occupou
poucos seculos a Engadina, devia introduzir entre os Alpes suissos
o dialecto latino, ao passo que numerosas colonias romanas fixadas
na Illyria não conseguiram submetter os Slavos ao Romanismo?--Por
que é que os Italianos da Italia superior fallando o Celtico, e os
povos da França fallando Celtico, e os Bretãos fallando Celtico,
o Celtico desapparece da Italia e quasi inteiramente da França, e
sobrevive na Bretanha? e comtudo, os Romanos não occuparam certos
remotos valles alpinos, certas provincias remotas da França, tanto
como tinham occupado a Bretanha.»[80] Gubernatis reconhece a grande
importancia do latim _escripto_ e das leis promulgadas em latim
pelo Imperio sobre os dialectos dos povos occidentaes, mas estabelece
como principio historico que essas linguas vulgares não derivaram do
latim, coexistiram com elle como irmãs: «contemporaneamente ao latim
fallado em Hespanha e França, na Italia pela pluralidade das gentes
pertencentes á mesma raça que os Latinos; Roma tendo predominado, a
lingua romana prevaleceu e exerceu aquella mesma influencia que agora
vêmos exercer-se da lingua italiana sobre os dialectos italianos, dos
quaes o fundo é sempre italico...» E procurando o typo d’esta linguagem
dos povos occidentaes, exemplifica: «De facto, quem de Genova se metter
em viagem pelos Pyreneos, as variedades da linguagem modificam-se
com um modo tão progressivo e espontaneo, que os dialectos da França
meridional ficam como laço natural entre os da Italia e da Iberia,
onde se os Bascos dominaram foram com o andar do tempo reduzidos como
os Celtas...» E conclue: «Se não existisse um fundo italico nas
populações e na sua linguagem, Roma teria triumphado com o seu latim no
valle do Pó, provavelmente da mesma maneira negativa com que triumphou
na Grecia e na Bretanha.»[81]
Como se vê, esta doutrina vae de encontro á escóla de Diez, que
deriva as linguas romanicas do latim, principalmente por processos de
degenerescencia phonetica, embora sustente ao mesmo tempo que ellas não
provieram de um latim corrompido, mas sim de um _latim vulgar_
coexistente com o latim escripto: «Ao lado do latim litterario,
existia effectivamente uma lingua latina correntemente fallada, que
os Legionarios e colonos levaram para a Iberia, para as Gallias,
para a Dacia. Foi esta lingua popular que se transformou lentamente,
tornando-se aqui o Hespanhol, ali o Francez, além o Roumenio, do mesmo
modo que em Italia se tornou o Italiano.»[82]
É verdadeiramente maravilhosa esta explicação do metamorphismo do
Latim vulgar, identificando-se nos seus resultados com os d’essa outra
theoria tão combatida de Raynouard, da _Lingoa Romance_, cuja unidade
quebrada produzira as linguas modernas meridionaes.[83] Nas linguas
romanicas operou-se um trabalho de transformação de progresso, e não
de decadencia; se o Latim como lingua flexional é synthetico na sua
expressão, estas tornam-se essencialmente _analyticas_, pelo desprezo
das _flexões casuaes_, e pela simplificação da _Conjugação_ pelos
_verbos auxiliares_. Alguma cousa de fecundo se passou n’esse periodo
de elaboração analytica, tal como a substituição da _quantidade_ pelo
_accento_, que conduziu as linguas modernas á creação da mais bella
poesia, e á construcção syntactica directa, actuando na nitidez do
pensamento. A _quantidade_, ou o prolongamento ou abreviação do som
vocalico de uma syllaba, liga-se á origem primitiva da _raiz_, breve na
sua formação, longa, na sua derivação; o _accento_ é o ponto de apoio
em uma syllaba dominante, quando modificações profundas se operam na
palavra por meio de _flexões_ e de _suffixos_, para exprimirem varios
pensamentos, mas sempre conservando a ideia primaria. Como observam
Weil e Benloew, nas linguas mais antigas predomina a _quantidade_, que
domina e determina o _accento_, ao passo que nas que mais avançam para
a civilisação o _accento_ prevalece sobre a _quantidade_.[84]
O predominio da _accentuação_ representa historicamente o
prevalecimento do espirito _logico_ actuando sobre todas as
fórmas da linguagem, como conclue Benloew, dominando a sua ordem ou
disposição e a sua versificação.
O velho Latim anterior (treze seculos antes da nossa éra) ao Latim
classico, só differia d’este em ter diphtongos, que o litterario
reduziu a vogaes simples;[85] vê-se pois que o chamado latim vulgar
não estava em decadencia, e se se differenciou do latim tornando-se
analytico é por que avançava para uma expressão logica. Mesmo nos
escriptores classicos apparecem _preposições_ junto dos _casos_, e
vozes de _auxiliares_ simplificando fórmas verbaes, no periodo do
esplendor de Roma. A lingua latina, empregada na Jurisprudencia e nos
Editos administrativos, tornou-se quasi hieratica ou sacramental: _Uti
lingua nuncupassit ita jus esto_; e a sua versificação retrogradou para
a _quantidade_. Os outros povos occidentaes eram vivos e progrediam,
sem precisarem do estimulo da conquista romana; estavam no periodo da
_accentuação_, e foi esse o principio fundamental das Linguas chamadas
romanicas, por meio do qual adaptaram ao seu vocabulario palavras
latinas, celticas, germanicas e arabes com um rigor inalteravel como
uma lei natural: _a persistencia do accento tonico_.
A primeira condição para o estudo scientifico das Linguas romanicas foi
a descoberta da unidade das Linguas indo-europêas, de cuja filiação
se veiu a descobrir uma grammatica geral a esse grupo de linguas;
successivamente a analyse comparativa dos seus sons e fórmas, o
consequentemente o mesmo methodo proseguido no exame dos seus varios
dialectos e derivações.
A unidade linguistica indo-europêa foi entrevista em 1786 por William
Jones, e em 1808, Schlegel formulava com toda a nitidez essa intuição:
«O antigo indiano, _sanskrito_, isto é, culto ou perfeito,
designado _Gronthon_, quer dizer, escripto ou dos livros, tem
grandissima affinidade com a lingua grega, com a latina, com a
germanica e persa. A semelhança consiste não tanto no grande numero
de vozes communs a esta lingua, mas principalmente no que pertence á
intima estructura e á grammatica. Não se trata de uma concordancia
casual, que possa explicar-se por mestiçagem de povos: é concordancia
organica, que denuncia uma origem commum.» A comprovação d’este ponto
de vista produziu uma revolução scientifica, na creação da Glottologia,
da Mythographia e no criterio da Historia, por um conhecimento mais
profundo das civilisações áricas.
Começou a ser estudada esta familia linguistica no seu conjuncto, e
pela applicação dos novos methodos por Jacob Grimm á Grammatica allemã,
começada em 1819, descobriu este erudito genial a lei das modificações
e equivalencia dos sons nas linguas germanicas, _Umlaut_ e
_Ablaut_, que constituem o desenvolvimento historico da lingua
allemã. Os sons modificam-se em uma escala constante, de _fortes_,
_brandos_ e _aspirados_, de modo que na situação em que se
fixaram pela fórma escripta as palavras, se póde deduzir qual seria
a sua fórma anterior. Esta grande lei, que torna a Phonetica uma
sciencia natural, applicou-se a um exame mais vasto e verificou-se que
dirigia todas as linguas indo-europêas. Existe hoje reduzida a quadro
essa escala de sons no sanskrito, zend, grego, latim, erse, esclavonio,
lithuanio, gotico e alto-medio allemão. É maravilhoso o resultado da
sua applicação ao vocabulario indo-europeu, e as deducções das mutuas
similaridades para a chronologia da sua formação, e para a recomposição
da lingua árica,[86] de que ellas por circumstancias sociaes e
historicas se differenciaram.
Esta lei da permutação dos sons foi tambem applicada ás linguas
romanicas tomando por ponto de partida o Latim, e seguindo as suas
modificações no Italiano, Valachio, Hespanhol, Portuguez, Provençal
e Francez; é a continuação do phenomeno que se patentêa nas linguas
flexionaes indo-europêas. Não são pois na sua formação moderna uma
decomposição, mas um processo reconstructivo, em que pela modificação
de certos sons deixam de ser notadas fórmas que vão desapparecendo.
Foi em 1816 que Bopp, na sua _Theoria da Conjugação_, estabeleceu
o processo da analyse da palavra, tomando o Verbo como aquella que
na sua fórma fundamental agrupava a maior somma de differenças
desinenciaes, taes como as _flexões_ pessoaes, temporaes,
numeraes e modaes. Foi por este processo que chegou a determinar as
_raizes_ attributivas, a isolar as raizes pronominaes, a achar
a formação dos _themas_, em volta dos quaes pelos suffixos,
prefixos, affixos e infixos se organisa esse corpo complexo e
adiantadissimo da palavra. A exposição completa d’este methodo
constitue na sua applicação o assombroso trabalho da _Grammatica
geral das Linguas indo-europêas_.
Levada a sciencia da Glottologia a esta perfeição, foi depois o
methodo applicado por Frederico Diez á familia das Linguas romanicas,
organisando tambem a sua grammatica comparativa. Cahiram por terra as
theorias imaginosas de Maffei, Ciampi, Aldrete, Court de Gebelin, La
Tour d’Auvergue, Raynouard e Ribeiro dos Santos, formadas a proposito
de cada uma das linguas romanicas isoladamente. Pelo estudo dos
documentos litterarios provençaes, é que em 1827, Frederico Diez,
no seu livro _Da Poesia dos Trovadores_, lançou as bases da
philologia romanica, que depois systematisou na _Grammatica das
Linguas romanicas_, publicada de 1836 a 1844. Tomando o Latim como
ponto de partida, por ser _escripto_ ao tempo em que as linguas
romanicas ainda eram _oraes_, determina-lhes as modificações dos
seus _sons_ e particularidades prosodicas, as suas similhanças
_morphologicas_, e a identidade syntaxica.
No exame dos sons, chega-se á lei fundamental das linguas romanicas:
_A persistencia do accento tonico ou vogal accentuada_. Mil accidentes
podem obliterar o vocabulo, como acontece sendo fallado por boccas
estrangeiras, e n’este caso estão os vocabularios romanicos que
soffreram a influencia dos povos germanicos, arabes e ainda de eruditos
greco-romanos; porém a _vogal accentuada_ conserva-se inalteravel,
como o eixo em que se apoia a palavra. É á custa d’esta segurança, que
a palavra se abrevia no uso, perdendo uma grande parte do seu corpo.
Exemplifiquemos: _Episcopus_, Bispo; _Ecclipse_, Cris; _Dominus_, Dono,
Dom; _Presbyterus_, Preste (ainda em _Arcipreste_) Prètre; _Ungula_,
Unha; _Quadragesima_, Carême; _Genuculum_, Joelho; _Rotundus_, Rond.
Forçosamente, uma lei phonetica assim tão exclusiva deveria actuar no
desprezo pelas inflexões da _quantidade_, e pelo abandono das
flexões casuaes, e da grande variedade das desinencias verbaes. Foi a
consequencia d’essa outra lei phonetica das linguas romanicas: _A
suppressão das vogaes breves não accentuadas_. N’este processo a
palavra tende a contrahir-se, como em _Trifolium_ (trèfle, trevo),
mas tambem se duplica, conservando-se inconscientemente a fórma do
caso obliquo, como em _Pulvis_ (pó) e _Pulverem_ (pólvora),
_Index_ (endes e indice).
A terceira lei phonetica fundamental é a da: _Queda de certas
consoantes mediaes_, a qual tambem actuou na fórma contrahida das
palavras nas linguas romanicas, sendo essa usura referente á sua
chronologia. Sirva de exemplo o adverbio _Semeptissimus_; no provençal
encontra-se na fórma _semetessme_, na lingua d’oc _metesme_; no
italiano _medesimo_; em lingua d’oc, _medesme_, _meseyme_, _meisme_; no
portuguez antigo, _medes_, _meesmo_, e em francez _même_. Com certeza
estas contracções mais ou menos intensas representam um trabalho de
usura, ligado a causas historicas e sociaes.
Todos os outros sons consonantaes, quer sejam iniciaes ou mediaes,
soffrem modificações especiaes em cada uma das linguas romanicas, e é
isto o que as differencia umas das outras, por isso que a glotte de
cada um d’esses povos não emitte os mesmos sons. Em quanto ao systema
vocalico, tambem por elle se fixam as differenças na familia romanica:
«Na vocalisação do hespanhol (sc. castelhano) acha-se muitas vezes o
A puro, em quanto que o U, que recebeu do latim, é em geral attenuado
e mudado em O; d’este modo a lingua recebeu o caracter de uma lingua
artificial, e as durezas são substituidas por sons mais euphonicos.
Depois do A, ou antes concorrentemente com elle, o O é a vogal que mais
caracterisa o hespanhol.--A lingua franceza, pelo emprego exagerado
da vogal E, renunciou á custa da sua euphonia á vocalisação latina;
é sobretudo uma lingua artificial, admiravelmente propria para a
conversação, mas em geral pouco propria para a poesia, por que a vogal
intermediaria E que intervem a cada instante prejudica a vocalisação
pura, e além d’isso nunca produz uma elevação e um abaixamento
completos. Quanto ao Italiano, de todas as linguas romanicas é a que
guardou mais harmonia, por que sustenta a elevação e o abaixamento
produzido por A e por U transformado em O pela intervenção do I
agudo.»[87]
Na vocalisação da lingua gallega Helfferich e de Clermont, acham o
emprego do U, exemplificando com um documento de 1255; em que vem
as palavras _cunuzuda_, _tudos_, _escritu_, _julgadigu_, _razues_,
_consellu_, _buus_, etc.[88] Tambem na sua these da _Origem da Lingua
portugueza_, Soromenho nota o mesmo caracter: «No norte de Portugal,
na provincia de Entre Douro e Minho, predomina o U na terminação
dos nomes. N’um só documento de 936 encontramos _reirigu_, _agru_,
_conclusu_, _ipsu_, _dublatu_, _tolinu_, _sasarigu_, _ermegildu_,
_fagildu_, _sesuldo_.»[89] D’Ovidio observa tambem no portuguez «que
o _e_ e _o_ finaes não accentuados pronunciam-se como _i_ e _u_,
como no nosso dialecto calabrez, siculo, leccez, sardo meridional e
septentrional, e ainda, quanto ao _u_, sardo central, corso, genovez,
com outros dialectos sardo-italicos.»[90]
Aqui temos já uma caracteristica que assimila as duas linguas
congenitas o Gallego e o Portuguez, que tanto se differenciaram por
causas historicas. A lingua portugueza não é um dialecto do castelhano,
como se julgou inscientificamente, é um organismo autonomo como a
sua nacionalidade; faltam-lhe os sons castelhanos _c_ palatal, a
spirante guttural tenue _j_ e _g_, o que influe na maior suavidade da
pronunciação portugueza, e possue sons que faltam ao castelhano, como o
_s_ doce, o _sh_ e o _sg_ (ex.: ro_s_a, campo_s_, _j_aspe) e distingue
com uma grande delicadeza, que se reflecte nas vozes verbaes, as vogaes
fechadas _a_, _e_, _o_ das abertas (and_a_mos, andámos), e possue as
vogaes nasaes.
Em toda a Europa meridional, as linguas romanicas receberam a fórma
_escripta_, e a disciplina grammatical pela circumstancia da
formação das novas nacionalidades; mas a par do Francez (dialecto da
ilha de Paris), do Italiano (o toscano), do Hespanhol (o castelhano),
do Portuguez (destacando-se do gallego), subsistiram numerosos
dialectos, muitos dos quaes conservam preciosos vestigios archaicos de
fórmas que revelam o processo formativo. Na Hespanha esses dialectos
representam pela sua vitalidade invencivel o vigor dos organismos
nacionaes, que ainda luctam através de todas as imposições do
centralismo politico.
Mas se a vida historica ou nacional actuou pela fórma _escripta_
no desenvolvimento das linguas romanicas, nem por isso a parte
_oral_ deixou de cooperar no seu vocabulario. O estudo do lexico,
não se faz simplesmente para determinar os elementos contributivos
dos varios povos celticos, latinos, germanicos e arabes, que
occuparam o occidente, onde se formaram as linguas romanicas; elle
apresenta-nos esse phenomeno do _Polymorphismo_, em que as leis
phoneticas determinam o desdobramento ou duplicidade de palavras,
que vão exprimir uma riqueza ideologica. Assim, quando de _Plano_
pelo processo phonetico popular se fez _chão_ e _lhano_, adquirimos
novos vocabulos para designar outras relações materiaes e moraes.
São uma das grandes riquezas das linguas romanicas essas _Derivações
divergentes_, que se produzem por varias causas: já como resto da
declinação conservada no caso obliquo, como _Serpe_ e _Serpente_,
_Chantre_ e _Cantor_, _Animal_, _Almalho_ e _Alimaria_, _Pyrame_ e
_Pyramide_, _Calix_ e _Calice_; já pela fórma dupla do participio, como
_Matado_, _Morto_, _Confessado_, _Confesso_, _Teudo_, _Tido_; já pela
apropriação phonetica vulgar, como _Cadencia_ e _Chança_, _Calido_ e
_Caldo_, _Clave_ e _Chave_, _Palacio_ e _Paço_, _Glandula_ e _Landra_,
_Decano_ e _Deão_. Muitas vezes regressa-se a uma fórma litteraria,
pela necessidade de um neologismo scientifico, como: _Amendoa_
e _Amygdala_; _Coitar_ e _Cuidar_, _Cogitar_; _Obra_ e _Opera_;
_Conselho_ e _Concilio_; outras vezes pela differença de significação
ou semeiologia, como: _Tradição_ e _Traição_, _Bodega_ e _Botica_ (de
_Apotheca_), _Rêlha_ e _Regra_, _Macula_ e _Malha_, _Medula_ e _Meolo_;
algumas vezes por abreviação popular, como: _Cem_ e _Cento_, _São_
e _Santo_, _Gram_ e _Grande_, _Tão_ e _Tanto_, _Galam_ e _Galante_,
_Rol_, _Rolo_ e _Rótulo_.
N’este processo de abreviação popular toca-se um phenomeno de origem
etymologica, quando a palavra é a contracção de uma phrase, como
em _Bacharel_, que é uma abreviação de _Bas chevallier_ (d’onde no
velho francez _Bacheleur_); como em _Freguez_, contracção de _Filius
ecclesiae_ (d’onde a fórma _Feligres_). A palavra _Sengo_ e _Senga_,
significando intelligente, astuto, experimentado, a que na linguagem
popular corresponde, _lá dizia a velha_; é, como observa Diez, a fórma
_Senectus_ do latim vulgar, modificada no castelhano em _Senecho_
(_senechas_, no Canc. de Baena, e no anexim castelhano: _Al buen callar
llaman Sancho_) e _Sengo_ nos autos populares portuguezes do seculo XVI.
Ao mesmo processo de divergencia obedecem os nomes proprios, como
vêmos em _Benedicto_, _Benito_, _Beneyto_, _Bieito_, _Benoit_, _Bento_
e _Vieito_; em _Didacus_, _Thiago_, _Iago_, _Diogo_; em _Dominicus_,
_Domingos_, _Mingo_ e _Mengo_.
Frederico Diez considera os varios elementos ethnicos que cooperaram
para a creação das linguas romanicas; fallando do _germanico_, diz
que este systema do linguas: «não soffreu nenhuma perturbação essencial
do seu organismo; o _grupo romanico escapou quasi completamente
á influencia da grammatica allemã_. Não se póde negar, que haja
na formação das suas palavras algumas derivações e composições
germanicas, achando-se tambem vestigios germanicos na syntaxe; porém
estas particularidades perdem-se na totalidade da lingua.»[91] Se a
lingua popular resistiu, manteve-se a par, e por ultimo se impoz
ao Latim classico, como não havia de resistir aos incoherentes
dialectos germanicos? O proprio Diez reconhece que a sua influencia
era insufficiente para differenciarem entre si as diversas linguas
romanicas.
O elemento arabe nas linguas romanicas manifesta-se tambem no
vocabulario, mas sem influencia directa no regimen phonetico ou
morphologico; tem sido esse elemento estudado em quanto á Italia por
Narducci, em relação á França por Marcel Devic, em relação a Portugal
por Fr. João de Sousa, por Dozy e Engelmann, e em relação á Hespanha
por Yanguas e Simonet. Os Arabes representavam uma aristocracia militar
incommunicavel; as communicações da população hispanica fizeram-se
entre Berberes e Mouros, e a _Aravia_ era um dialecto indistincto
tanto de romanico como de arabe com que se entendiam com elles os
_Mosarabes_ e os _Mulladies_, isto é, os que se conservaram
christãos e os que apostataram. Quando se pôde examinar nas linguas
peninsulares as palavras arabes, escriptas nos documentos mais antigos,
reconheceu-se que eram palavras romanicas modificadas pelos arabes e
recebidas d’elles por segunda via. E o que se verifica na Architectura
arabe, o caracter dos operarios _mosarabes_, tambem se observa
na linguagem, que exprimia a riqueza de uma civilisação de que os
arabes se apropriaram. Tal tem sido a revindicação laboriosamente
fundamentada por Simonet. A civilisação occidental não teve por unico
fóco Roma; e se ella se lhe impoz pelas Gallias e pela Hispania,
tambem se impoz aos Arabes como se vae reconhecendo. Um certo sentido
pejorativo se ligava a grande numero de palavras arabes, taes como
o nome de _Caschich_, dado ao sacerdote christão, e que é uma
interjeição popular _Cachicha!_ com que se exprime a repugnancia
pela porcaria; _Azambrado_, _Madraço_, _Léria_, exprimem
tambem ideias de chasco e descompostura em contraposição ao seu sentido
natural; a injuria _Safardana_ era o titulo de gloria dos Judeus
de Hespanha que a si se chamam _Sephardin_, para se distinguirem
dos outros elementos da raça. Devem apparecer nomes arabes designativos
de funcções sociaes, cargos administrativos, da mesma fórma que das
palavras germanicas apparecem os termos que designam instituições
feudaes e material de guerra.
Na longa lucta da reconquista, as povoações sedentarias ficavam
indifferentes á sorte das batalhas; os _Mulladies_ voltavam
ao seu culto primitivo, e a _Aravia_, que os _Mosarabes_
fallavam eram os dialectos vulgares ou _Ladinha christenga_, que
em breve se iam desenvolver como linguas nacionaes. A designação de
_Aravia_ passava a significar o cantar-romance, que veiu a servir
de primeiro elemento tradicional da historia.
Se causas sociaes profundas, como a dissolução do Imperio romano e
invasões germanicas, actuaram no desenvolvimento dos dialectos ou
Linguas romanicas, eguaes causas, como o fim das invasões dos Saxões
do norte da Europa e o combate successivo contra o dominio dos Arabes
no sul, determinaram a estabilidade necessaria para o estabelecimento
de novas nacionalidades, em que as Linguas romanicas attingiram a sua
fórma e perfeição litteraria.
Essas linguas, assimilando por uma fórma viva elementos latinos,
germanicos, gregos e arabes, tornam-se orgãos importantes para a
continuação da Civilisação occidental, de que cada nação foi um activo
factor, cabendo durante toda a Edade media essa hegemonia á França.
Na peninsula hispanica a constituição das novas nacionalidades depois
da reconquista christã está intimamente ligada aos seus dialectos;
aquelles territorios que alcançaram autonomia ou que a souberam
sustentar desenvolveram com a cultura litteraria os seus dialectos
locaes. Muitas d’essas nacionalidades, como a Galliza, a Catalunha e
Aragão foram incorporadas na unidade politica de Castella, mas o seu
espirito autonomista ou regionalista sobreviveu e luctou sempre com a
vitalidade dos seus dialectos _gallego_, _catalão_, _aragonez_, contra
o uso official do castelhano. No _Poema de Alexandre_ e no _Poema do
Cid_ esboçam-se as fórmas linguisticas que se fixam no castelhano;
nos poemas de Gonzalo de Berceo, em que se reflecte a influencia dos
trovadores, destaca-se já a feição peculiar do catalão; o rei Affonso o
Sabio escrevendo a prosa em castelhano, prefere de um modo exclusivo o
_gallego_ para a poesia.
A cultura litteraria da região gallega que escapára ás invasões
arabes, fez com que essa lingua fosse muito cedo escripta, de modo
que ella conserva ainda hoje fórmas archaicas já modificadas no
portuguez, ou que em Portugal ficaram plebeismos. A lingua gallega e
a portugueza constituem um grupo homogeneo, que tenderia a unificar-se
em um centro nacional, se o territorio da Galliza até ao Mondego ou
até ao Tejo se não desmembrasse pela creação de dois Condados; mas
conservariam sempre differenças dialectaes, como se vê no gallego
septemtrional e no meridional. A lingua portugueza, como observa Diez,
tem caracteres originaes proprios. Conforme porém os centros de cultura
preponderassem, assim seria exercida a influencia, do _gallego_
sobre o portuguez, como primeiramente se deu, ou do portuguez sobre o
gallego, como se vê impresso na lingua.
A primitiva unidade territorial já fôra reconhecida pelos geographos
antigos; Strabão chamava Gallaicos aos Luzitanos. Quando o Marquez
de Santillana considerava os gallegos e portuguezes os primeiros que
exerceram na Hespanha a arte de trovar, mal sabia que essa região
pertencia áquelle elemento ethnico que creou o lyrismo trobadoresco.
Desde 863 existia a Galliza como um Condado independente, luctando
fortemente pela sua autonomia contra a annexação leoneza em 885, que
desfez ao fim de vinte e cinco annos, e vindo por ultimo a cahir
na unificação dos outros estados peninsulares, abafada a revolta
separatista de 981. Bastava esta energia social para que a Lingua
se desenvolvesse; deu-se o facto; tinha uma côrte, e ahi se educára
Affonso o Sabio, que nas _Cantigas de Nossa Senhora_ empregou a
lingua que melhor lhe exprimia os seus sentimentos. Forçosamente a
lingua gallega devia actuar nas fórmas do _portuguez_, que ainda não
tinha uso litterario. E esse cunho gallego, como o pronome _che_ por
_te_, _douche_ por _dou-te_, chegou a reflectir-se nos escriptores
portuguezes dramaticos do seculo XVI.
Quando, porém, Affonso VI desmembrou da Galliza o Condado de Portugal,
que em breve tempo se tornou um estado livre, a lingua portugueza
começou a ter um desenvolvimento proprio, devido a esta circumstancia,
por que incorporada a Galliza desde 1073 na unidade castelhana,
Portugal foi estendendo o seu dominio para o sul, abrangendo as
populações mosarabes da Beira, e recebendo uma certa cultura dos bispos
francezes chamados para as dioceses recem-estabelecidas. Na marcha
successiva da organisação da nacionalidade portugueza, a sua côrte
torna-se um centro de convergencia de trovadores occitanicos, e por
seu turno a lingua portugueza actúa sobre o _gallego_. Em grande parte
o vocabulario portuguez é egual ao gallego mascarado com ortographia
castelhana; mas a situação politica da Galliza, entre Portugal autonomo
e Castella, de que é uma provincia, reflecte-se fundamentalmente na
sua lingua. Exemplificando: _soubo_, analogo ao portuguez _soube_,
muda o _e_ em _o_ pela influencia do _supo_ castelhano; o mesmo
nas palavras derivadas com o suffixo em _ouro_ no portuguez, que o
gallego conserva em _oiro_ (_sumidoiro_, _dobadoira_), modificado
pela influencia do castelhano, _sumidero_, _devanadera_. D’Ovidio
synthetisa esta dupla influencia sobre a lingua gallega nos nomes dos
dias da semana, parte tirados do castelhano como _lunes_ (_lues_),
_martes_, e parte do portuguez, como _corta feira_ (quarta-feira).
A lingua gallega conserva, além das suas fórmas originaes, outras
archaicas do portuguez e mesmo populares nas nossas provincias;
estes phenomenos ajudam a penetrar o processo de formação da lingua
portugueza supprindo a falta de documentos. Desde Fernando o Magno o
territorio portucalense formava parte da Galliza, cujas fronteiras em
1065 se estendiam até ao Mondego, e depois de 1093 até ao Tejo, apoz a
tomada de Santarem, Lisboa e Cintra. A vinda dos cavalleiros frankos
á peninsula, que ajudaram o monarcha leonez na batalha de Zalaka em
1086, influiu no acto de desmembração de Portugal, por que as cidades
livres ou _Behetrias_ esparsas n’este territorio e a sua situação na
proximidade do mar, provocavam á creação d’esse organismo nacional.
Á medida que a vida de _côrte_ actuava no desenvolvimento da lingua
portugueza, a paixão pela poesia trobadoresca forçava a imitar essas
novas fórmas lyricas, apropriando-se de elementos provençaes, e creando
um dialecto em parte artificial, o _galleziano_, em que versejavam
todos os jograes que vinham a Portugal de Aragão, Valencia, Castella,
Galliza e mesmo do Béarn. Certos provençalismos e italianismos dos
antigos Cancioneiros portuguezes são consequencia de uma necessidade
do artificio prosódico. Pela situação da Galliza como provincia
submissa, a lingua _gallega_ deixou de ser _escripta_, cahindo assim
com o tempo na espontaneidade popular, e na sua immobilidade archaica.
Muitas das suas palavras alteraram-se por metateses negligentes,
como _drento_ (dentro), _prubico_ (publico), _prove_ (pobre); a sua
conjugação conserva certos tempos já transformados no portuguez, como:
_Falades_ (fallaes), _faledes_ (falleis), _falariades_ (fallarieis).
Em consequencia da actividade de um organismo politico nacionalista, o
portuguez torna-se _escripto_, e este facto determina o processo de um
constante _neologismo_ no seu lexico, já pelas traducções latinas das
obras ecclesiasticas, já pela cultura juridica das escólas, já pela
communicação dos poemas e novellas francezas, e pela fórma escripta foi
continuamente a separar-se da corrente popular ou das fórmas vulgares,
por um excesso tal que chegou a ser reconhecido.
Na época da constituição da nacionalidade portugueza foi grande a
influencia da cultura franceza; o Conde D. Henrique, cavalleiro
borgonhez, chama para o territorio sobre que governa cavalleiros
francezes, a quem reconhece um certo numero de costumes feudaes; dá ás
novas colonias frankas privilegios especiaes chamados _franquias_;
muitos bispos, como S. Geraldo, D. Mauricio, D. Hugo, D. Bernardo, eram
francezes, e em _letra franceza_ foram trasladados os Evangelhos,
segundo ordenava o Concilio de Leão de 1090. Continuou a corrente sob
D. Affonso Henriques, concedendo as terras de Athouguia a Guilherme
des Cornes, para as povoar com francezes e gallegos. Iam estudantes
portuguezes estudar a Paris a theologia e a medicina, como vêmos com D.
João Peculiar e Frei Gil Rodrigues. É natural que os poemas carlingios
aqui tivessem écco na passagem dos jograes vagabundos, sobretudo sendo
as romagens a Sam Thiago bastante populares em França no seculo XII e
XIII. É certo que a lingua franceza deixou numerosos vestigios no velho
lexico portuguez, como se encontra nos textos das versões do Velho
e Novo Testamento; mas poder-se-ha attribuir-lhe os sons nasaes tão
caracteristicos da lingua portugueza? Esses sons nasaes já tinham sido
explicados por Helfferich et De Clermont como provenientes do contacto
com os Suevos, mas sem demonstração. A influencia do francez foi nas
classes cultas, e nas fórmas litterarias da linguagem, mas não no seu
organismo intimo, nem no povo, em cuja loquela estacionou.
A vida nacional, com côrte, egreja e escólas, leis escriptas,
processos judiciarios e regulamentos de administração, provocava
um desenvolvimento artificial da lingua portugueza; debaixo das
fórmas alatinadas dos escribas e tabelliães existem as palavras
vulgares, que mais tarde appareceram em uma graphia nacional, como
se verifica no _Livro dos Testamentos_ de Lorvão, no _Livro
Preto_ da Sé de Coimbra, e nos _Diplomatae et Chartae_. João
Pedro Ribeiro publicou documentos em portuguez de 1192, redigidos
no reinado de D. Sancho I; reconhece que o seu emprego se tornou
mais frequente por 1293, e de um uso geral e exclusivo de 1334 em
diante. Não provam estes factos a crescente ignorancia do latim, que
pelo contrario começava a estudar-se a sério pelo renascimento das
leis romanas, canones ecclesiasticos e livros sagrados da Vulgata;
a lingua fallada é que entrava em um periodo de fecundidade, como
idioma nacional. As traducções em vulgar, tão numerosas, representam
um esforço para transportar o pensamento de uma lingua classica para
uma dicção pobre, e vacillante nas suas fórmas e construcções; por
isso as traducções portuguezas dos seculos XIII, XIV e XV encheram
o portuguez de neologismos do vocabulario classico, dando logar aos
_duplos divergentes_, á imitação da morphologia dos superlativos
em _issimo_, e a grande numero de themas que só serviram para
as derivações de novas palavras. Era natural a illusão, por effeito
d’estas aproximações litterarias, de considerar a lingua portugueza
a mais proxima da latina do que todas as outras romanicas; pensou-o
assim a Renascença erudita, quando Fernão de Oliveira e João de Barros
fundaram a Grammatica portugueza nas regras da latina, e quando
Camões synthetisava poeticamente esse sonho de uma missão historica
universalista: «_Com pouca corrupção crê que é a latina._» Os
philologos do seculo XVII, como Alvaro Ferreira de Vera e Manoel
Severim de Faria, chegaram pacientemente a _escrever_ trechos
em prosa que se podiam lêr simultaneamente em portuguez ou em latim,
segundo as inflexões da voz. Causas vitaes actuaram ao mesmo tempo no
vigor da linguagem fallada.
A lingua portugueza, pela intensidade da vida provincial,
primeiramente, e mais tarde pela expansão da actividade nacional
na Africa, Archipelagos atlanticos, Brazil e India, desdobrou-se
em differentes _dialectos_. As differenças ethnicas das provincias
portuguezas já tinham sido notadas pelo grammatico quinhentista
Fernão de Oliveira, fallando das dicções populares: «Algumas d’estas
ficaram já de muito tempo: ha tanto, que lhe não sabemos seu principio
particular ... tambem se faz em terras esta particularidade, por que
os da _Beira_ tem umas fallas, e os _d’Alemtejo_ outras; e os homens
da _Extremadura_ são differentes _d’Antre Douro_.»[92] A linguagem
da Beira já no seculo XVI apresentava aos grammaticos um caracter
archaico; continúa Fernão de Oliveira: «muitas vezes algumas dicções
que ha pouco são passadas, são já agora muito aborrecidas, como:
_abem_, _ajuso_, _acajuso_, a _suso_, e _hogano_, _algorrem_ e muitas
outras; e porém se estas e quaesquer outras semelhantes se metterem em
mão de um homem velho da _Beira_ ou aldeão, não lhe parecerão mal.»[93]
Estas differenças que Fernão de Oliveira notava como grammatico
encontram-se observadas por Gil Vicente como poeta; duas farças e uma
tragicomedia versam sobre os costumes mosarabes da Beira, o _Clerigo
da Beira_, o _Juiz da Beira_ e tragicomedia da _Serra da Estrella_. Os
_bailos da Beira_, a que allude Gil Vicente, e o typo comico beirão do
_Ratinho_, bem como a persistencia dos cantos tradicionaes, provocavam
este desenvolvimento dialectal. Quando a vida local se atrophiou
pela concentração da dictadura monarchica (_Ordenações_) e pela
absorpção da capital, os dialectos portuguezes ficaram méras fórmas
archaicas. Em consequencia da expansão historica em um vastissimo
dominio colonial, o individualismo portuguez manteve-se tambem pela
linguagem, e dando logar não só a cruzamentos de raça mas á creação
de numerosos e importantes _dialectos_. Citaremos o _Creoulo_, nas
populações de Africa e Cabo Verde, o _Matuto_, no Brazil, o _Reinol_
ou _Indo-portuguez_ em Columbo, capital de Ceylão, em Malaca, em
Cochim, e o _Macaista_. Alguns d’estes dialectos têm sido estudados;
o da Guiné portugueza por Bocandé, os da India por Hugo Shuchartt, e
outros varios philologos. São estudos que revelam intimos processos
psychologicos formativos no phenomeno da linguagem. E referindo-se a
esta acção fecunda dos portuguezes, escrevia João de Barros no seculo
XVI: «As armas e os Padrões portuguezes póstos em Africa e Asia, e em
tantas mil Ilhas fóra da repartiçam das trez partes da Terra, materias
são e pode-as o tempo gastar; pero, não gastará doutrina, costumes,
_linguagem_, _que os portuguezes n’estas terras deixaram_.»[94] E o que
se dava com a expansão maritima, repetia-se em circumstancias muitas
vezes transitorias, como na _frandunagem_, a que allude Filinto Elysio:
«_lingua franduna_--a que trouxeram os soldados portuguezes das guerras
dos Paizes Baixos.»[95] No dialecto brazileiro encontra-se o diminutivo
do participio, (ex. _dormindinho_) que no gallego é ainda um phenomeno
primitivo (ex. _correndinho_.)
Mas assim como a uma grande dispersão nas expedições maritimas e na
occupação territorial, se tornava mais profundo o sentimento da patria
portugueza, affirmada conscientemente no facto da Nacionalidade,
tambem a Lingua portugueza, disciplinada grammaticalmente e escripta
pelos Quinhentistas, elevou-se a esse typo unitario que uniformisou
a linguagem _fallada_ com a _escripta_, phenomeno digno de
consideração e caracteristico da evolução da lingua do seculo XVI a
XIX. Causas profundas determinaram esta unificação, e não o contacto
dos escriptores com o povo, nem a elevação da cultura popular, ou a
retrogradação dos homens de letras. A lingua foi um sustentaculo da
Nacionalidade, como o foi ainda uma outra vez de 1580 a 1640 sob a
incorporação castelhana. É pela sobrevivencia e resistencia das suas
linguas, que actualmente resistem as nacionalidades peninsulares.
Como um phenomeno que se continúa no tempo, a Lingua, como qualquer
outra creação social tem tambem a sua historia; basta evolucionar e
acompanhar a psychologia humana para merecer esse estudo. É por isso
que aqui esboçamos a historia da Lingua portugueza, nos seguintes
quatro periodos:
I. _Elaboração popular_, antes do seculo X, até á unificação
nacional no seculo XIII. Comprehende as modificações dos sons
celtibericos, romanos, germanos e arabes, constituindo o vocalismo e
consonantismo, de que resultaram o _Gallego_ e simultaneamente o
Portuguez.--Influencia do Gallego pelo seu mais rapido desenvolvimento
sobre o portuguez fallado, até que pela perda da autonomia nacional o
Gallego estaciona, sendo ulteriormente influenciado pelo Portuguez.
Cria-se o vocabulario vulgar com todos os materiaes de um passado
historico importante.
II. _Divergencia erudita_, durante o seculo XIV e XV: Fazem-se
numerosas traducções latino-ecclesiasticas e juridicas, ampliando o
vocabulario pelos neologismos latinos, italianos e francezes. Fazem-se
derivações de themas que nunca entraram na linguagem fallada, e
empregam-se fórmas exclusivamente classicas. Separam-se os escriptores
das relações com o povo, e da antinomia entre a linguagem fallada e a
escripta apparece a necessidade de unificar a linguagem, fazendo-se sob
D. João II e D. Manoel a reforma dos velhos textos dos Foraes.
III. _Disciplina grammatical_, estabelecida na primeira metade
do seculo XVI, no momento mais activo e exclusivo da Renascença
humanista ou greco-romana. Preponderam as classes cultas, a Côrte e a
Egreja; Fernão de Oliveira e João de Barros explicam o portuguez pela
grammatica latina, e os Jesuitas impõem o latim com exclusão completa
da Grammatica nacional.
IV. _Unificação da lingua fallada com a escripta_, operada desde
o seculo XVII a XIX. Começa o estudo da lingua pelo criterio historico
em Duarte Nunes de Leão; ainda subordinado ao latim, Bluteau realisa
a grande obra do Vocabulario portuguez, mas consultando sempre a
linguagem fallada, de que extrae inauditas riquezas. A Arcadia de
Lisboa sustenta a necessidade dos archaismos, impondo a norma classica
da linguagem dos Quinhentistas, combatendo os _latiniparla_ e os
_gallicistas_ ou o Neologismo. E como a tradição é um vinculo do
individualismo nacional, n’este vasto concurso da civilisação moderna,
a lingua escripta tendo de acceitar novas nomenclaturas de sciencias,
de artes e de instituições, tinha de manter a sua feição ampliando-se
com os recursos sempre pittorescos da linguagem fallada. O Romantismo
sympathisou bastante com o portuguez archaico renovando o vocabulario
medieval; mas, pelo criterio do naturalismo na Litteratura, veiu a
reconhecer-se como belleza do estylo a espontaneidade e a variedade
pittoresca da linguagem fallada em todo o dominio portuguez.
=§ 4.--Patria e Nacionalidade=
As gerações que se succedem sobre o mesmo territorio, organisando a sua
synthese activa ou a Industria na coexistencia da liberdade de todos
e no accordo dos interesses pelo direito, quando se elevam á synthese
affectiva pelo aperfeiçoamento dos costumes de menos em menos egoistas,
pela intuição do sentimento subordinam-se á noção moral, e criam
pela arte e poesia a expressão da sua collectividade, que sobrevive
a cada individuo no tempo. Eis o ideal de _Patria_, que é uma
grande familia; é esse sentimento unificador que inspira os membros de
uma mesma sociedade a uma acção commum, a uma impulsão progressiva,
que constitue a sua vida historica de _Nacionalidade_. Quanto
mais profundo fôr o sentimento de _Patria_, mais intensa é a
consciencia da _Nacionalidade_, para resistir aos accidentes das
edades. É esta relação affectiva que faz com que a Arte e a Litteratura
sejam a estampa do caracter nacional.
Quando se constituiu no seculo XII o estado de Portugal, já existiam
todos os rudimentos de _patrias_ hispanicas que vieram a formar
as _nacionalidades_ peninsulares. Como porém essas nacionalidades
eram violentamente agrupadas pela audacia de um chefe militar, que
se tornára prestigioso na reconquista christã, foi o sentimento de
patria que fez resistir a estas incorporações dos pequenos estados,
revindicando as suas autonomias locaes. A formação da Nacionalidade
portugueza é um facto resultante d’esse movimento de _unificação_
e de _desmembração_ que constitue a trama da historia da Hespanha
da Edade media aos tempos modernos. Póde-se definir este phenomeno como
uma oscillação, em periodico vae-vem, a cujo impulso obedeceram mesmo
todas as raças que occuparam o solo hispanico.
As raças iberica, celtica, phenicia e carthagineza só chegaram aqui á
_unidade_ politica sob o dominio dos Romanos: facto que originou
a illusão de attribuirem-se todas as fórmas da civilisação peninsular
á influencia de um povo sem numero material para actuar directamente
na modificação ethnica, como o notára Erasmo. A _unidade_ romana,
que levára dois seculos a radicar-se, dissolveu-se repentinamente,
ao primeiro choque da invasão dos povos germanicos. O que se deu
na Hespanha succedeu egualmente nas Gallias e na Italia, como
observa Guizot: «O Imperio retirou-se d’estes paizes, e os Barbaros
occuparam-os sem que a totalidade dos habitantes exercesse alguma
acção, fizesse sentir em alguma cousa o seu logar nos acontecimentos,
que a entregavam a tantos flagellos.» Remontamo-nos a este facto,
por que a influencia romana que mais tarde apparece nas instituições
politicas e nas Litteraturas, determina-se por uma reproducção
artificial das monarchias avançando para a dictadura e ás quaes
interessava o apoio da unidade catholica, que pela cultura latina
aspirava ao imperio theocratico. Os vestigios de uma civilisação
romana, estradas, aqueductos, circos, templos e inscripções lapidares,
são documentos de um facto moral, a superioridade de Roma, mas
attestam principalmente a existencia de uma população obreira explorada
pelo vencedor. Diz Guizot, com a sua habitual segurança, que o Imperio
se dissolveu _por falta de uma classe media_. O que existia na
peninsula capaz de assimilar a cultura romana fugia para Roma, como
vêmos com Quintiliano, com os Senecas, com Lucano, com Marcial. A
tradição da unidade romana manteve-se pelo catholicismo, quando ainda
na lucta dos Romanos da peninsula com os Carthaginezes da Africa, aqui
entraram os sectarios da nova religião. Na futura constituição da
unidade hespanhola, as monarchias centralistas virão a receber a sua
principal força da unidade catholica, dando-lhe em paga a destruição
das egrejas nacionaes ou do culto mosarabe.
Para a peninsula a historia começa propriamente no dominio romano,
mas segundo Hallam: «A historia da Hespanha durante a Edade
media devia começar pela dynastia dos Visigodos.»[96] Carece de
explicação este asserto. Com a invasão germanica deu-se o facto
contraposto á _unificação_ realisada pelos Romanos, sendo pela
_desmembração_ a Hespanha repartida entre Alanos, Suevos e
Vandalos. Foram depois os Visigodos, que submetteram estes elementos
outra vez a uma _unidade_ politica pelo regimen da força; por
dissensões internas vieram do arianismo ao catholicismo, e pelo
desenvolvimento da fórma monarchica, fizeram renascer os Codigos
romanos, como as aristocracias clericaes e militares imitaram os
costumes romanos. Assim a unidade visigoda manteve-se á custa de
abusos, que embaraçavam a creação de uma classe media, sendo quebrada
repentinamente por uma incursão de Arabes. Á medida que a unidade
germanica se funda na imitação do Imperio romano e na intolerancia
catholica, foram decahindo os homens-livres, confundindo-se com
o colonato romano, e com outras classes servas, que, diante da
invasão dos Arabes, reconhecem o novo dominio com uma facilidade
extraordinaria, regendo-se pelos seus costumes, seguindo a sua crença,
e pagando apenas uma capitação. Tal é o elemento _mosarabe_,
em que se fórma uma activa classe media; n’ella entraram o
_aldius_, que trabalhava nos campos e se reunia nas pobras
ruraes; o _mesteiral_, que exercia os officios mechanicos; o
_burguez_, que vivia nas cidades muradas, que se confederavam na
_Behetria_; o _cavalleiro-villão_, em quem revivia o antigo
homem-livre decahido na servidão; e ainda o _clerigo_ adscripto
á egreja local, que é como uma especie de propriedade feudal. Fóra
da _unificação_ visigotica tinham ficado pelo seu espirito
_separatista_ os Asturos, os Cantabros e os Bascos; e foram tambem
estes povos os que pelo seu natural instincto autonomico reagiram
contra os Arabes, sendo o primeiro germen de uma terceira desmembração.
Não conseguiram os Arabes realisar a _unificação_ politica
da Peninsula; pelo seu genio semita e pelo caracter das povoações
preexistentes, _desmembraram-se_ nos reinos de Toledo, Badajoz,
Sevilha, Granada, Malaga, Almeria, Murcia, Valencia, Denia e Baleares.
Pelo seu lado a reconquista do territorio hispanico inicia-se pelo
impulso da unidade catholica, e pela _unificação_ politica das
Asturias e de Leão, que comprehendia a Galliza, Portugal, Castella,
e da parte da Navarra o Aragão. Se por um lado a unidade catholica
coadjuvava esta convergencia social, a ambição dos chefes militares,
explorando o espirito separatista da autonomia local, procedia á
_desmembração_, como se verifica na constituição independente dos
reinos de Castella, de Aragão, de Portugal, dos Condados de Galliza e
de Barcelona.
D’esta corrente separatista é que se _desmembra_ o estado de
Portugal, que, pelo apoio da colonisação franceza, e aproveitando-se da
acção catholica da reconquista para engrandecer-se para o sul, soube
tirar da visinhança do mar as condições de resistencia. A oscillação
politica dos outros estados peninsulares coadjuvou a consolidação lenta
da unidade nacional portugueza; Sancho o Magno _unifica_ pela
força Navarra, Castella e parte de Leão, e _desmembra_ o novo
estado em testamento pelos seus quatro filhos; tambem Affonso VII,
imperador de Leão, _unifica_ Castella, Leão, Aragão, Navarra e
varios Condados, _desmembrando-os_ depois por seus filhos; o mesmo
se dá com Fernando, com a usurpação de Sancho, com todos os outros
monarchas, até á _unificação_ castelhana em Fernando e Isabel,
no ultimo quartel do seculo XV, quando Portugal, tendo passado a
estabelecer possessões em Africa explorava já as ilhas do Atlantico, e
se occupava no empenho da passagem do Cabo Bojador. Foi esta actividade
maritima que tornou Portugal mais do que um simples _appendice da
Hespanha_, e suscitou na sua maxima intensidade o sentimento de
Patria, que brilhara pela primeira vez na victoria do Salado, que se
impuzera em Aljubarrota, e que agora ia resistir contra todos os planos
de _unificação_ ensaiados pelos casamentos dynasticos da Casa de
Austria em Hespanha. Pelo casamento de Dom Affonso V, com Dona Joanna
(a Excellente Senhora) foi elle jurado em 1471 rei de Castella e de
Leão, sendo esta _unificação_ do monarcha portuguez embaraçada por
Fernando e Isabel que trabalhavam pela _unificação_ castelhana.
Os casamentos do princepe Dom Affonso e de Dom Manoel com as filhas
de Fernando e Isabel; o de Carlos v com uma filha do rei Dom Manoel,
foram sempre planeados no intuito da _unificação_ de Portugal
com a monarchia hespanhola. Escrevia Resende, na _Miscellanea_,
consignando o facto:
Vimos Portugal, Castella
Quatro vezes ajuntados,
Por casamentos liados; etc.
Pelo casamento do princepe Dom João, pae de Dom Sebastião, continuou
Carlos V insistindo no pensamento do _unificação_, empregando
todos os seus meios politicos para ser jurado herdeiro de Portugal o
princepe Dom Carlos seu neto. Foi este pensamento realisado, pela
morte de Dom Sebastião em Africa, por um neto de Dom Manoel, o terrivel
Philippe II, em 1580, quando a fidalguia portugueza desnaturada do
seu sentimento de Patria entendeu que servia a causa da _unidade
catholica_, então representada pela Casa de Austria, entregando
Portugal á soberania do Demonio do Meio Dia.
Aqui deixamos tracejada em breves linhas a evolução da ideia
_iberica_, ou da unidade monarchica da Hespanha á custa da
extincção das nacionalidades peninsulares. Quando porém a politica
de Richelieu procurou enfraquecer o colosso da Casa de Austria, foi
aproveitado o instincto _separatista_ no levantamento simultaneo
da Catalunha e da Revolução de Portugal em 1640. Restaurou-se a
nacionalidade portugueza, mas não a sua autonomia; a nova dynastia dos
Braganças só tratou de fixar o seu throno, e tendo esgotado todos os
meios de por casamentos na dynastia hespanhola reunir as duas corôas,
entregou-se á alliança da Inglaterra, comprando-lhe o apoio com a
cedencia de Bombaim e com os mais ruinosos tratados, como o de Methwen,
o de 1810, emfim com essa abdicação tacita que tornou Portugal uma
feitoria ingleza.
Collocada entre a Hespanha e o mar, a nacionalidade portugueza achou
e comprehendeu o seu destino historico: Pelo mar vieram as armadas
dos Cruzados coadjuvar a conquista de Lisboa e do Algarve; d’essa
comitiva de cavalleiros fixaram-se no solo portuguez muitos barões,
que eram outras tantas forças interessadas na sua independencia. A
comprehensão da proximidade do mar, fez que muito cedo começassem os
reis a desenvolver a marinha portuguesa; D. Sancho II mandava comprar
nos estaleiros de Italia os galeões com que ia atacar os Mouros
invadindo as costas do Algarve; D. Diniz chama de Italia Micer Passagno
para servir de almirante portuguez, e mandava assoldadar marinheiros
genovezes, que attrahia com privilegios para capitanearem as nossas
caravelas; o rei D. Fernando rehabilita-se na historia pelo impulso
que deu á marinha. E descontando o que ha de ficticio na lenda do
Infante D. Henrique, forjada por Azurara, é certo que aproveitando-se
da iniciativa dos armadores portuguezes, pela exploração do Mar
Tenebroso começa esse estupendo cyclo de navegações desde Zarco a
Vasco da Gama e Fernão de Magalhães, que tornaram Portugal o iniciador
da civilisação moderna. A vida historica de Portugal coincide com o
periodo das expedições e descobertas maritimas; então comprehendia-se a
nossa situação junto do mar, reagindo contra a pressão do continente.
Fomos um povo de mareantes; o sentimento de Patria n’esta phase da
vida nacional, as incertezas da navegação, o acaso das descobertas,
as qualidades moraes da coragem exercendo-se por um ideal superior, a
riqueza fecundando a collectividade social, tudo isto se reflectiu na
nossa pequena Litteratura, convergindo para produzir uma obra unica, em
que mais accentuadamente foi expresso o espirito da nacionalidade, os
_Lusiadas_, esse poema, que apesar da sua origem individual teve e
terá sempre o dom de influir uma unidade sympathica. Extingam-se todos
os monumentos da civilisação portugueza, todos os vestigios do nosso
vasto dominio no mundo, qualquer intelligencia clara irá recompôr a
vida historica dos portuguezes pelos _Lusiadas_, como o fizeram um
naturalista, um philosopho e um litterato, Humboldt, Schlegel e Quinet.
Esta alma apaixonada, tão celebrada pelo amor, será comprehendida no
seu genio aventureiro nas Relações dos naufragios, nos seus romances e
na architectura.
Desde que Portugal se achou collocado entre a Hespanha e a alliança
ingleza, o mar foi-se tornando uma fronteira isolada; perdemos a India,
e foram-se á custa do nosso espolio enriquecendo duas novas potencias
colonisadoras, a Hollanda e a Inglaterra. A historia de Portugal desde
1640 até ao presente é unicamente o processo de uma longa decadencia.
Cultivou-se o terror da conquista hespanhola, para nos lançarmos
incondicionalmente como servos da politica, e da absorpção industrial
e economica da Inglaterra. A dynastia de Bragança, contentando-se com
todos os apparatos theatraes da soberania, tornou-se um kedivato da
Inglaterra, que lhe dava em paga a segurança do throno. Conseguido
isto, poderam os reis d’esta dynastia praticar todos os attentados
contra a nacionalidade portugueza, esgotar-lhe as suas riquezas,
abandonal-a á invasão inimiga, desmembral-a em interesse proprio,
chamar contra ella intervenções armadas estrangeiras, por que nada
d’isto lhe poderia abalar o throno. Para esta segurança bastou ir
minando dia a dia o sentimento de Patria, e comprar aos _fieis
alliados_ o apoio com tratados que ou matavam as nossas industrias
como o de 1810, ou que lhes entregavam os nossos territorios, como o de
Gôa. O amortecimento do sentimento de Patria, deu essa decomposição dos
caracteres dos homens publicos, e deixou correr a affrontosa mentira de
que a dynastia dos Braganças era o penhor da autonomia de Portugal. Se
a educação jesuitica, desde 1555 até 1759, foi apagando constantemente
nas gerações o sentimento da _patria_ portugueza, o final d’esta
decomposição acha-se ligado aos sophismas liberaes do regimen da Carta
outorgada, em mais de meio seculo de depressão moral, intellectual e
social.
Foi das tendencias separatistas dos estados peninsulares que se
constituiu Portugal em uma nação livre; é d’esse separatismo tornado
consciente e scientifico, na fórma politica da Federação, que Portugal
tirará a condição digna e estavel da sua independencia. É esse o grande
futuro historico da peninsula hispanica.
Na Litteratura portugueza reflectem-se todos os aspectos da expansão
da nacionalidade. Logo que acabou a conquista do territorio portuguez,
a côrte de Dom Diniz, torna-se o centro de convergencia dos trovadores
e jograes castelhanos, catalães, leonezes, gallegos e asturianos, e
pela sua poesia lyrica Portugal exerceu uma verdadeira hegemonia na
Hespanha, como o confessa Santillana. A brilhante expedição do Salado
inspira a primeira pagina escripta de narrativa historica, que se
encontra intercalada no Nobiliario. Manifestada a soberania da nação
em 1380, pela revolução que leva ao throno D. João I, e iniciadas as
descobertas maritimas, a litteratura portugueza enriquece-se com as
mais importantes producções da historia por Fernão Lopes, Azurara
e Ruy de Pina, que rivalisam com os mais pittorescos historiadores
europeus do seculo XV. Escrevia Schlegel uma phrase que nos explica
a importancia d’esta creação litteraria: «Feitos memoraveis, grandes
successos e largos destinos não bastam para captivar-nos a attenção
e determinar o juizo da posteridade. Para que um povo tenha este
privilegio _é preciso que elle possa dar conta das suas acções e dos
seus destinos_.» Eis um caracter nacional bem accentuado. Camões,
que idealisou de um modo immortal a patria portugueza, synthetisou-a
no verso em que se retratava: «N’uma mão sempre a espada, e na
outra a penna.» Poetas, como Heitor da Silveira, Christovam Falcão,
Camões, batem-se nos cêrcos indianos; e chronistas, como Diogo do
Couto, Gaspar Corrêa, Fernão Lopes de Castanheda e Antonio Galvão,
nos rapidos descansos da lucta militar e das tempestades maritimas
escrevem a historia dos feitos portuguezes no Oriente. Depois da
leitura da primeira _Decada da Asia_ de João de Barros, Camões
sente o valor do verdadeiro argumento para a epopêa das navegações
portuguezas; e outros tentam essa empreza de glorificação nacional,
como Jorge de Montemór e Pero da Costa Perestrello, embora não
conseguissem realisal-a. Desde o apparecimento dos _Lusiadas_ as
suas immediatas traducções em castelhano tornaram Camões o princepe dos
poetas da Hespanha; era a verdadeira unificação affectiva e esthetica
das nacionalidades peninsulares; mas foram sempre os _Lusiadas_,
nos seculos mais decahidos da nossa historia, que mantiveram nos
espiritos sempre vivo o sentimento nacional. O successo da revolução
de 1640 não deixou écco na litteratura seiscentista, mas os
_Lusiadas_ prepararam-no; tambem já no nosso seculo os patriotas
que fugiram por 1818 das forças de Beresford que assim sustentava o
protectorado inglez em Portugal, e os que em 1823 fugiram para França
ás alçadas do restaurado despotismo bragantino, taes como o Morgado
de Matheus, Domingos Antonio Sequeira, Bomtempo e Almeida Garrett,
idealisaram por todas as fórmas da arte a obra de Camões, como o melhor
estimulo para uma revivescencia nacional.
A influencia dos litteratos que no seculo XVIII vulgarisaram as ideias
politicas, reflectiu-se em Portugal principalmente pelas traducções
das tragedias philosophicas de Voltaire, como a _Alzira_, a
_Merope_, a _Semiramis_ e _Mahomet_. Já na transformação
politica da nação portugueza, do absolutismo para o constitucionalismo,
foram tambem os litteratos que cooperaram n’essa renovação social os
que melhor comprehenderam a renovação esthetica ou sentimental do
Romantismo, de que foram os iniciadores, como Garrett e Herculano. Era
uma éra nova destinada a crear uma geração fecunda; porém a obliteração
do sentimento de patria, nas reacções palacianas de 1842, de 1847
e 1851, e nos successivos ministerios de resistencia desde 1890,
explica sufficientemente a degradação dos caracteres e o imperio das
mediocridades. Todos estes phenomenos staticos são solidarios, e embora
independentes da vontade individual podem ser perturbados dando em
resultado todas as fórmas mais ou menos patentes da decadencia de uma
civilisação.
NOTAS DE RODAPÉ:
[1] _Primeiros principios_, § 72.
[2] _Historia da Litteratura grega_, cap. I, p. 16. (Trad. Hillebrand.)
[3] _Ibid._, p. 20.
[4] J. J. Ampère, _Grèce, Rome et Dante_, onde abundam factos d’esta
natureza.
[5] _Journal des Savants_, 1864.
[6] Émile Chasles, _Hist. de la Litterature française_, p. 38 e 39.
[7] Du Méril, _Poésies populaires latines antérieures au XII^{me}
siècle_, p. 103 a 116.
[8] Michelet, _Introduction à l’Histoire universelle_, p. 61, 211 e
seg. Ed. 1843.
[9] Stendhal, _Histoire de la Peinture en Italie_, p. 50.
[10] _Ibid._, p. 37.
[11] Michelet, _op. cit._, p. 208.
[12] _Histoire nationale de la Litterature française._ Paris, 1870.
[13] _Mem. d’Anthropologie_, t. I, p. 282.
[14] _Hist. nationale de la Litterature française_, p. 427.
[15] Este prospecto anthropologico acha-se desenvolvido na _Patria
portugueza_, I, p. 55 a 128.
[16] _Op. cit._, p. 127.
[17] _Op. cit._, p. 46.
[18] _Hist. de la Litterature allemande_, p. 302.
[19] Traducção de Henry et Apffel, p. 9. Paris, 1839.
[20] Grimm, _Traditions allemandes_, trad. de L’Heretier, p. XXVI do t.
I.
[21] _Ibid._, t. II, p. 442.
[22] _Ibid._, t. I, p. 201.
[23] _Ibid._, t. II, p. 175.
[24] _Ibid._, t. II, p. 135.
[25] _Ibid._, t. II, p. 107.
[26] Tacito, _Vida de Agricola_, cap. 28.
[27] Grimm, _Ibid._, t. I, p. 410.
[28] _Historia do Direito portuguez_--Os Foraes--cap. IV. Não admira
que nos nossos primeiros estudos fixassemos n’esta camada ethnica
todas as investigações sobre as origens tradicionaes da Litteratura
portugueza.
[29] _Romancero general_, t. II, p. 663, col. 3, nota 24.
[30] _Hist. de Portugal_, t. I, p. 76.
[31] _Ibid._, t. III, p. 191.
[32]
_Muçarabes_ nos llamamos,
Por que entre Arabes mezclados,
Los mandamientos sagrados
De nuestra Ley verdadera
Con valor y fé sincera
Han sido siempre guardados.
[33] _Hist. de Portugal_, t. III, p. 195.
[34] _Ibid._, p. 199.
[35] Avelar Severino, _Estudos sobre os Roteamentos e Colonias
agricolas_.
[36] _Histoire de la Peinture en Italie_, p. 236.
[37] _Ibid._, p. 237.
[38] Justino (lib. LXIV, 3) refere que as mulheres luzitanas
trabalhavam nos campos, como ainda hoje as mulheres do Minho;
confirma-o o Dr. Rebello de Carvalho: «as mulheres (do Gerez) robustas
e trabalhadoras, dadas ao trabalho das suas fazendas.» _Notic.
topographica do Gerez_, p. 16. Dos costumes de Andalusia, escreve
Lafuente y Alcantara: «no puedo menos de recordar la extraña impresion
que me produjo no ha mucho tiempo la lectura de una obra (Layard,
_Discoveries in the ruins of Nineveh and Babilon_), en la cual,
referiendo el autor una viaje por la Armenia, describe minuciosamente
el arado, los carros y otros instrumentos de labranza que usan los
Curdos, admirándose mucho de que aun estuviesen en este punto casi
como en los tiempos biblicos. _Los carros y el arado descritos son
exactamente iguales á los que se usan en Andalucia..._» (_Cancionero
popular_, t. I, p. XXXVII.)
[39] Transcrevemos as palavras de Paul Meyer, na _Romania_, em uma
noticia bibliographica dos _Canti antichi portoghesi_: «Je remarque
que plusieurs des pièces editées par M. Monaci (n.^{os} III, IV, IX)
sont fort analogues, pour le fonds comme par la forme, à nos anciennes
_ballettes_ (voir celles que j’ai publiées dans mes Rapports, p.
236-9), ou aux balades provençales. Je n’en conclus pas que les poésies
portugaises qui ont cette forme soient imitées du français ou du
provençal, mais qu’elles sont conçues d’après un type traditionel qui
a dû être commun à diverses populations romanes, sans qu’on puisse
déterminer chez laquelle il a été crée.» _Romania_, n.^o 6, p. 265.
[40] Desprez, _La Russie et le Slavisme_ (Rev. des Deux Mondes, 1850,
II, 538.)
[41] «La poésie populaire et purement naturelle a des naïfvtez et
graces, par où elle se compare à la principale beauté de la poésie
parfaicte, selon art; comme il se veoid ez _villanelles_ de Gascoigne
et aux chansons qui n’ont cognoissance d’aulcune science, ny mesme
d’escripture.» _Essais_, liv. I, cap. 55.
[42] _Les origines de la Poésie lyrique, en France au Moyen-Age_, p.
259.
[43] _Ibid._, p. 260.
[44] _Mem. cit._, p. 238. Aos cantos das mulheres de Cadiz referem-se
Juvenal (_Satyra_ IX, v. 162.) e Martial (_Epigram._, lib. V, n.^o 78.)
[45] Fallando da musica inventada pelas mulheres do Minho, escrevia
no seculo XVII o Marquez de Montebello: «Con gran destreza se
exercita la musica, que es tan natural en sus moradores esta arte,
que succede muchas vezes a los forasteros que passan por las calles,
particularmente en las tardes del verano, parar y suspender-se,
escuchando los tonos, que a coros cantan, con fugas y repeticiones las
moçuelas, que para exercitar la labor de que viveu les es permitido,
por tomar el fresco, hazerla en la calle. Al que ignora la musica
engañan, pensando que la saben, y al que es diestro en ella, desengañan
que de todas las artes es naturaleza la maior mestra.» _Vida de Manoel
Machado de Azevedo_, cap. V, p. 44.
[46] _Les origines de la Poésie lyrique_, p. 445.
[47] _Ibid._, p. 446.
[48] Em um trabalho especial a _Historia da Poesia popular portugueza_,
que refundimos para uma nova edição, fica tratado amplamente este
problema.
[49] _Op. cit._, p. XVII.
[50] _Op. cit._, p. XVII.
[51] «Le canzoni italiane sono tutte domestiche, pochissime
romanzesche, ancor meno istoriche.» Gregorovius, na _Siciliana_, 1861.
[52] _Op. cit._, t. I, p. 131. (Trad. franc.)
[53] _Voyage à travers l’Amerique du Sud_, t. I, p. 231.
[54] _Geograph._, liv. III, cap. II, § 13.
[55] These sustentada pelo Dr. Francisco Martins Sarmento na obra _Os
Argonautas_.
[56] Nas _Lendas christãs_, p. 275 a 279, deixámos expostos estes
factos, examinando a estructura strophica da Canção do _Figueiral_.
[57] _Os Foraes_, cap. III e IV. (1868.)
[58] Amplamente desenvolvido no livro _O Povo portuguez nos seus
Costumes, Crenças e Tradições_.
[59] _Études germaniques_, p. 234.
[60] Publicado por Eduardo de la Barra, no folheto _El Endecasilabo
dactilico_, p. 83; diz ter colligido muitos outros romances anteriores
ao seculo XIII.
[61] Etienne, _Histoire de la Litterature italienne_, p. 537.
[62] _Cancionero popular_, t. I, p. L.
[63] _Poesia popular española, y Mythologia y Litt. celto-hispanas_, p.
444.
[64] _Cantos populares do Brazil_, t. II, p. 216.
[65] _Ibid._, n.^o 69, 70 e 77 do t. I.
[66] Strabão falla dos simulacros de guerra dos Luzitanos.
[67] _Historia geral de Hespanha_, mandada traduzir pelo rei D. Diniz.
Ed. de Coimbra (incompleta), cap. 198.
[68] _Catalogo dos Bispos do Porto_, p. 150. Ed. 1742.
[69] _Historia de Portugal_, t. III, p. 167.
[70] _Memoriale Sanct._, lib. III, cap. 3.--_Hist. de Port._, t. III,
p. 174.
[71] Citado em Raczynscky, _Lett._, VI, App. B, p. 106.
[72] _Lettres_, XXVII, p. 458.
[73] _Influencia del elemento indigena en la cultura de los Moros de
Granada_, p. 16.
[74] _Ibid._, p. 63.
[75] _Ibid._, p. 35.
[76] _Op. cit._, p. 36.
[77] _Ibid._, p. 37.
[78] _Viagens na minha Terra_, t. II, p. 55.
[79] Fauriel, _Histoire de la Poésie provençale_, t. III, p. 340.
[80] _Piccola Enciclopedia indiana_, p. 109.
[81] _Ibid._, p. 111.
[82] Hovelacque, _La Linguistique_, p. 256.
[83] O facto do dialecto romanico creado na Dacia por uma colonia
militar de soldados italianos, gaulezes e hespanhóes, ali fixada pelo
Imperio romano, não é comparavel á creação linguistica de povos com
individualidade ethnica e vida nacional, como na Italia, Gallias e
Hispania. É um phenomeno de hybridismo, reflectindo a desconnexão dos
elementos que o formaram, como observa Gubernatis.
[84] Terrien Poncel, _Des Mots et de leur Étude_, § 31.
[85] Hovelacque, _Linguistique_, p. 245.
[86] Exemplifiquemos com algumas palavras: PAE ou PADRE: No sk.
_Pitri_; gr. _Patër_; sax. _Vater_; got. _Fadar_; ant.-alt.-all.
_Fater_, _Vatar_; din. e velho sax. _Fader_; angl. sax. _Faeder_; ing.
_Father_; holl. _Vader_; suec. _Fader_; isl. _Fader_, _Foedr_; lat.
_Pater_; v. franc. _Pair_; ital., hesp. _Padre_; port. ant. _Pare_;
_Pae_, _Padre_; val. _Pärinte_; pers. _Pader_. (Ap. Poncel, _Des Mots_,
§ 55.)
FRADE (irmão): sk. _Bhrâtar_; gr. _Fratër_; ant.-alt.-all. _Pruodar_,
_Bruader_; got. _Brothar_; angl. sax. _Brothor_, _Brether_; ingl.
_Brother_; holl. _Broeder_; sax. _Broder_; din. _Broder_; isl.
_Brodur_; kymr. bret. _Brawd_; gael. _Brathair_; pers. _Brader_; lat.
_Frater_; v. franc. _Fraire_; mod. fr. _Frère_; ital. _Fratel-(lo)_;
sl. _Brat_; _Fraile_ e _Fray_; _Freire_, _Frei_ e _Frade_, no hespanhol
e portuguez, significando a _confraternidade_ religiosa. (_Ibid._)
[87] _Aperçu de l’Histoire des Langues neo-latines en Espagne_, p. 21.
[88] _Ibid._, p. 37.
[89] _Orig._, p. 24.
[90] _Grammatica portoghese_, p. 6.
[91] _Grammatica das Linguas romanicas_, t. I, p. 65. Trad. franceza.
[92] _Gramm._, p. 85.
[93] _Ibid._, p. 81.
[94] _Dialog._, p. 229.--Como comprovando esta affirmação escrevia
Radau, referindo-se a Malaca, ao fim de trez seculos de decadencia do
nosso poder: «O idioma que ahi se falla hoje ao lado do inglez é uma
especie de phenomeno philologico: _é o portuguez despojado das suas
terminações_, e por assim dizer, reduzido a raizes. Os verbos não têm
tempos nem modos, nem numeros, nem pessoas; os adjectivos perderam o
feminino e o plural. _Eu vai_, significa _eu vou_, _eu tenho ido_, _eu
irei_, segundo as circumstancias. Algumas palavras do malaio completam
esta lingua que representa um curioso exemplo de retrocesso ao estado
primitivo.» (_Un Naturaliste dans l’Archipel Malais_, Rev. des Deux
Mondes, vol. 83, p. 679.)
[95] _Obras_, t. I, p. 64.
[96] _Europa na Edade media_, t. I, p. 347.
II
Elementos dynamicos da Litteratura
As instituições sociaes no seu funccionamento normal, transformando-se
e acompanhando o progresso humano nas varias cathegorias da evolução
economica, politica e moral, e do seu desenvolvimento esthetico,
scientifico e philosophico, são como uma energia ou um organismo em
estado dynamico. As Litteraturas como expressão da affectividade,
reflectem todos os impulsos d’estes varios factores do progresso
social, e modificam-se continuamente obedecendo a esse dynamismo.
Costumes estaveis e opiniões conscientes criam uma sociabilidade que
se alarga pelo sentimento de patria; sentimentos collectivos é que
determinam pela necessidade da sua expressão a elaboração esthetica
de uma litteratura e de uma arte nacional. A Edade media é o grande
campo historico em que as raças barbaras da Europa, depois da ruina do
Imperio romano, foram espontaneamente estabelecendo as suas bases de
ordem, e organisando-se em novas nacionalidades, que se tornaram por um
concurso successivo instrumentos de progresso, como continuadoras da
Civilisação occidental. Essas novas nacionalidades foram remodelando
os antigos poderes temporal e espiritual no Feudalismo e na Egreja;
reconstituindo a familia pela elevação moral da mulher; nobilitando
o trabalho pela emancipação das classes servas no proletariado que
se tornou o terceiro-estado; creando as linguas romanicas, e uma
arte original, sobretudo a architectura e a poesia, para exprimirem
este espantoso concurso de sociabilidade. As nacionalidades modernas
ao cooperarem n’este movimento, exerceram uma acção hegemonica umas
sobre as outras, as mais adiantadas, como a França, sobre as mais
rudimentares ou mais remotas. As Litteraturas meridionaes, franceza,
italiana, hespanhola e portugueza foram a consequencia d’esta vasta
organisação do Occidente, actuando sobre o desenvolvimento das
linguas romanicas, e tornando-as aptas para exprimirem poeticamente
os sentimentos d’esta mais ampla sociabilidade, e logicamente os
pensamentos de uma mais profunda capacidade intellectual. Uma mesma
noção, como observou Littré, rege a historia politica e a historia
litteraria das nações occidentaes; é impossivel conhecer uma sem a
outra. N’este longo periodo de transição entre o mundo antigo e a edade
moderna, a Edade media apparece como uma éra de transição; n’ella se
criam as condições staticas do futuro progresso humano. É na Edade
media que existem todos os germens tradicionaes e estheticos, que
receberam ulteriores fórmas conscientes de Arte e de Litteraturas;
mas esse mesmo caracter de transição, tirou á estabilidade das
instituições, das opiniões e dos interesses sociaes uma continuidade
necessaria para serem idealisados lentamente e generalisarem-se como
thema de obras bellas. Comte notou admiravelmente esta caracteristica
da Edade media, que veiu a influir na vacilação das Litteraturas
modernas; bellos germens para uma larga e fecunda elaboração
esthetica, e transformações rapidas, ou crises revolucionarias na
sociedade europêa alterando as sympathias pelo passado, e fazendo
cahir na indifferença os themas da idealisação. O que é o caracter
_satyrico_, predominante nas Litteraturas romanicas, como
observou J. J. Ampère, senão a consequencia do desprezo dos velhos
themas religiosos e heroicos, quando os dois Poderes espiritual e
temporal entraram em uma dissolução no seculo XII? O que é o prurido
da imitação classica das Litteraturas greco-romanas, da Renascença
humanista até ao pseudo classicismo francez, senão a desorientação
d’essa instabilidade social, que procura novas bases de ordem? É
d’esta instabilidade que resultou o antagonismo que Frederico Schlegel
definiu nas litteraturas modernas, entre os seus germens medievaes
espontaneos e a auctoridade dos modelos classicos impostos pela
imitação erudita. Comte penetrou a essencia do problema, deduzindo-o
do phenomeno da dissolução do regimen catholico-feudal com que termina
a Edade media. A evolução esthetica medieval inspirára-se de todos
os elementos sociaes existentes: do militar ou _feudal_, na
idealisação das epopêas ou Gestas heroicas; do _theologico_ ou
sacerdotal, na hymnologia, na arte architectonica, na musica e nas
riquissimas lendas populares; do _industrial_, na coordenação
dos cantos lyricos, das Festas civicas e dramaticas; e por ultimo
d’esse estado mental do _positividade_ ou de criterio de bom
senso, que reage contra os preconceitos e avança para a comprehensão
scientifica e philosophica, que tanto transparece nas satyras e nos
contos. Alterados estes elementos sociaes, toda essa riqueza esthetica
da Edade media ficou prejudicada, justamente quando o novo grupo das
Linguas romanicas estava apto para dar-lhes expressão na elaboração
das Litteraturas modernas occidentaes. Observemos pois o processo, em
que as Litteraturas acompanham a intensa crise social e mental d’esta
longa phase revolucionaria que vae do seculo XII até ao seculo XIX,
reflectindo os seus principaes movimentos.
=§ 1.--A Edade media=
(HEGEMONIA DA FRANÇA)
A Edade media é a origem de todas as fórmas da evolução esthetica
moderna; n’essa grande época de elaboração fecunda, as manifestações
dos sentimentos _pessoaes_, _domesticos_ e _sociaes_, que correspondem
ao lyrismo, ao drama e á epopêa, acham na transformação da vida
collectiva estimulos para se desenvolverem estes caracteres do
individualismo humano. Comte esboça com nitidez esta evolução
esthetica, que se alarga idealisando as emoções de cada um dos
elementos sociaes que se debatem, o feudal ou militar, o theologico
ou sacerdotal, o industrial ou proletario, e o positivo ou esse
estado mental tendendo a julgar pela observação: «Sendo as faculdades
estheticas por sua natureza, essencialmente destinadas á ideal
representação sympathica dos sentimentos que caracterisam a natureza
humana, pessoal, domestica ou social, o seu desabrochamento especial,
seja qual fôr o ascendente que se lhe attribua, não bastava para
definir na realidade a civilisação correspondente.» E continúa
deduzindo da Edade media as condições para a grande expansão esthetica
moderna: «um estado social tão fortemente pronunciado como o da
Edade media--verdadeira fonte necessaria da evolução esthetica das
sociedades modernas.--Os costumes feudaes tinham desde logo impresso
aos sentimentos de independencia _pessoal_ uma energia habitual até
então desconhecida; ao mesmo tempo a vida _domestica_ fôra sobretudo
commumente embellezada e alargada, muito além do que fôra possivel aos
antigos, principalmente em virtude das felizes mudanças effectuadas
na condição da mulher; finalmente, a actividade collectiva, quando
ella pôde então ser convenientemente exercida, deveria com certeza
constituir uma fonte não menos poderosa de inspirações poeticas e
artisticas, segundo a nova convergencia moral que devia apresentar o
grande systema das guerras defensivas peculiar a esta memoravel phase
da humanidade.»[97]
Apesar de toda esta riqueza de elementos, as Litteraturas modernas
permaneceram longo tempo estacionarias, por que dependiam da creação
de uma linguagem apta a exprimir um novo estado de consciencia e
sentimentos apropriados a uma mais ampla sociabilidade, em que
tanto cooperára o espirito da confraternidade christã. O phenomeno
da creação ou derivação d’esse systema de linguas era em si já uma
elaboração esthetica; basta vêr como ellas se tornam mais fecundas
pelo desdobramento morphologico e semeiologico dos _duplos_ ou
vocabulos divergentes, e caminham pelos seus recursos analyticos das
preposições e dos verbos auxiliares e variedades pronominaes para uma
maior clareza logica. Por certo que a lingua que primeiro exprimisse
toda esta riqueza poetica seria aquella que se universalisaria por vir
no momento em que satisfazia uma necessidade da sociabilidade europêa,
como aconteceu com o francez.
O desenvolvimento tardio das manifestações litterarias e artisticas
do genio moderno é explicado por Comte pela necessidade de um
trabalho prévio, e da creação das linguas modernas. Mas esta mesma
elaboração é considerada pelo eminente philosopho como um producto
das faculdades estheticas: A creação das Litteraturas modernas esteve
estacionaria durante «uma lenta e difficil operação preliminar, cuja
indispensavel realisação devia preceder, por absoluta necessidade,
a expansão directa do genio poetico; comprehende-se que se trata
da elaboração fundamental das linguas modernas, nas quaes, em meu
entender, deve vêr-se uma primeira intervenção universal das faculdades
estheticas.»[98] E mostrando como estas faculdades são as menos inertes
na maior parte das intelligencias, verifica o seu exercicio no facto
do aperfeiçoamento da lingua vulgar: «Esta propriedade necessaria
tornou-se ainda mais evidente quando se exerceu, não na creação
espontanea de uma lingua original, mas na transformação radical de
uma lingua anterior, era consequencia de uma nova ordem social.» É
n’este ponto que o philosopho mostra como n’esta creação das linguas
romanicas, já se deu o antagonismo entre a evolução organica da Edade
media e o espirito classico e auctoritario da antiguidade: «Apezar
da actividade que o genio philosophico e o genio scientifico puderam
manifestar na Edade media,--seguramente muito pouco contribuiram um e o
outro para a fundação geral das linguas modernas. Apezar das vantagens
essenciaes que cada um d’elles ulteriormente tirou da superioridade
logica propria dos novos idiomas, _o longo uso que ambos fizeram do
latim_, depois que cessára inteiramente de ser vulgar, confirma bem
a repugnancia e a sua inaptidão naturaes para dirigirem a elaboração
da linguagem usual. Era então a faculdades menos abstractas, menos
geraes e menos eminentes, mas tambem mais intimas, mais populares e
mais activas, que devia necessariamente pertencer esta indispensavel
operação. Essencialmente destinada á representação universal e energica
dos pensamentos e dos affectos inherentes á vida real e commum, nunca
o genio esthetico pôde convenientemente fallar uma lingua morta,
nem mesmo estrangeira apezar de todas as facilidades excepcionaes
obtidas por habitos artificiaes.»[99] A lingua franceza exerceu um
extraordinario perstigio nos espiritos: «_cor parmi le monde_, et
est la plus detilable _à lire et à oir, que nulle autre_,» como
affirmava Martin de Carrale, justificando-se de escrever em francez
a sua Historia de Veneza; Bruneto Latini, o mestre de Dante, escreve
tambem em francez, Marco Polo, Rusticiano de Pisa, Fazio d’egli Uberti,
e tantos, contra o que levado pelo espirito nacionalista protestava
Benvenuto de Immola.
Sonhando a independencia do territorio que fôra dado em dote a
sua mulher D. Thereza, o Conde D. Henrique chamou para Portugal
colonias francezas, as quaes radicando-se no solo o coadjuvassem no
plano da autonomia territorial. A vinda de cavalleiros francezes ás
guerras das Cruzadas, e a sua passagem por Portugal, contribuiram
para a disseminação das tradições poeticas do cyclo carlingio, que
percorriam a Europa, e das canções lyricas trobadorescas; assim,
além da influencia ecclesiastica, se estabelecia a hegemonia franceza
nos primordios da cultura portugueza, quer sob o aspecto social como
sob o mental. No seu estudo _Les Communes françaises en Espagne et
en Portugal_, escrevem Helfrich et Clermont: «quasi que não ha
provincia ou districto em Hespanha, em que não penetrassem francezes,
ou costumes francezes.»[100] Atouguia, Lourinhã, Villaverde,
Azambuja, Cezimbra foram fundadas por colonias frankas. Reconhecendo
a influencia da lingua franceza no gallego e no portuguez, continuam
os mesmos auctores: «Mas a verdadeira influencia, influencia duravel
e preponderante que a França exerceu na Hespanha, deve ser procurada
no espirito das suas leis.--O ponto de partida, o fóco, por assim
dizer da propaganda politica que emanava da França, foi a Abbadia
de Cluny, uma das mais grandiosas creações do seculo X, e o centro
das ideias religiosas de que mais tarde Gregorio VII se tornou o
representante.--Em Hespanha os monges de Cluny fizeram supprimir o
ritual gothico para o substituirem pelo ritual gallicano. Em vez da
escriptura gallicana introduziram a lettra franceza, esforçando-se
para que prevalecesse em Castella a legislação da Bourgogne.» Por
esta influencia se estabeleceram em Portugal os monges de Cistér, que
segundo Victor Le Clerc substituiram o rito isidoriano (mosarabe) pela
liturgia gallicana. Esta ordem religiosa, pelo seu caracter austero
anti-artistico repellindo systematicamente o bello (a ornamentação era
o caracteristico do estylo arabe), teve uma forte preponderancia nos
primeiros seculos da monarchia, obstando em certa fórma á manifestação
do genio portuguez. As Cartas de Foral têm grandes analogias de
redacção e de garantias ou _frankias_ politicas com as das
communas francezas. Na reforma judicial do tempo de D. Affonso III, os
Corregedores imitam os _Missi dominici_ dos _Capitulares_ de
Carlos Magno. Não só bispos francezes regem as sés de Portugal, como os
bispos portuguezes D. Geraldo, D. Mauricio, D. Hugo, D. João Peculiar,
D. Bernardo, fizeram a sua educação em França. Obedecendo ainda a esta
corrente civilisadora, teve o rei D. Diniz por mestre o francez Aymeric
d’Ebrard, a quem fez bispo.
Condições particulares favoreciam a França para esta hegemonia europêa;
herdeira da cultura grega em Marselha, e da romana em Tolosa, tinha
conservado o impulso como continuadora da Civilisação occidental. Pela
região da Aquitania, propagava-se ethnicamente o seu influxo á Italia,
em Hespanha, em Portugal, além das relações politicas estabelecidas
desde Carlos Magno. Os dialectos da França meridional, do Languedoc,
da Provença, do Delphinado, do Lyonez, do Auvergne, do Limousin
e da Gasconha, facilitavam a communicação da nova poesia lyrica
trobadoresca, que veiu exercitar as linguas romanicas litterariamente.
Pelo seu elemento franko podia a França exercer sobre as raças
germanicas da Allemanha e da Inglaterra egual hegemonia, propagando
até lá as suas Gestas épicas e cantos lyricos, e a cultura mental das
Universidades. Assim, pelos dialectos da França septemtrional, taes
como o Normando, o Picardo, o Flamengo e o Wallon tornava-se facil e
natural a communicação com populações que fallassem qualquer dialecto
teutonico. Na Inglaterra essa influencia primeiramente exercida pela
conquista normanda, subsiste nas leis promulgadas por Guilherme o
Bastardo em lingua franceza, que era tambem obrigatoria para as
resas e sermões ecclesiasticos, e ainda em 1328 eram os estudantes
da Universidade de Oxford obrigados a exprimirem-se em lingua
franceza. É esta importante hegemonia o que mais claramente explica o
desenvolvimento de todas as Litteraturas romanicas que tiraram d’ella
os germens fundamentaes com que elaboraram as suas creações estheticas,
na Edade media. Para bem julgar este imponente phenomeno artistico
importa conhecer o caracter social ou politico d’essa grande época
historica.
Dois poderes preponderaram na reorganisação social da Europa, depois da
queda do Imperio: o poder _espiritual_ ou da Egreja catholica e o
poder _temporal_ dos chefes militares ou Feudalismo. Em relação
ao mundo antigo representam estes dois Poderes um alto progresso, por
que se separaram, e nunca mais, apezar das suas mutuas usurpações,
conseguiram confundir-se. É este antagonismo intimo que constitue os
grandes conflictos symbolisados nas _Duas Espadas_, ou luctas
entre o Sacerdocio e o Imperio. Mas o principal phenomeno social que
resultou d’este antagonismo, foi a transformação d’esses mesmos
Poderes: avançando para a affirmação da intelligencia humana, a rasão
procura pela critica, pela observação e experiencia um novo poder
espiritual na sciencia; por outro lado, a liberdade humana firmando-se
na actividade pacifica da industria e mutua regularisação dos
interesses tornou cada vez menos necessaria a actividade militar e os
chefes feudaes foram fatalmente cahir sob a dictadura ou concentração
do poder temporal da Monarchia. Foi pois a Monarchia uma transformação
coadjuvada pelas classes industriaes, agricolas e mercantis, por que se
absorvia em si todos os poderes era como garantia de tornar a lei egual
para todos. Comte formulou esta noção tão clara de toda essa Edade
tempestuosa: «Sob qualquer aspecto que se examine o regimen proprio da
Edade media, vê-se sempre emanar da _separação dos dois Poderes_,
ou _da transformação da actividade militar_.»[101]
O Feudalismo e a Egreja organisaram-se á imitação um do outro, nas suas
hierarchias, na mutua dependencia dos seus membros; n’este esforço de
se confundirem, desnaturaram-se explorando a sociedade. A Egreja
dominava pelo terror moral, o Feudalismo pela compressão material,
ambos pelo obscurantismo. Uma tinha a _servidão voluntaria_(oblatos), o
outro a _servidão hereditaria_ (os da gleba); a humildade evangelica e
a fidelidade do homem-ligio levavam á mesma negação da dignidade do
homem. O papa comparava-se ao sol, como Gregorio VII, considerando os
imperantes como a lua, corpos opacos que só podiam receber a luz ou a
investidura soberana de Roma. O papado tornára os reinos da Europa seus
feudatarios, cobrando alcavalas em paga das graças espirituaes. Em vez
das terriveis pestes, cahiam sobre os estados as tremendas maldições e
interdictos da Egreja, que absorvia em si todas as capacidades
intellectuaes, tornando inconciliaveis o _clericus_ e o _laicus_. Tal
era a antinomia expressa pelo symbolismo medieval das _Duas Cidades_. É
pois natural que aos primeiros lampejos da rasão, as cousas religiosas
decahissem de respeito, sendo parodiadas sarcasticamente pelo povo nas
festas grotescas (_Missa do Asno_, _Festa dos Tolos_), e pelos cultos
nas satyras pungentes e desenvoltas dos _Goliardos_.
O Feudalismo, apezar de todas as eminentes qualidades da cavalleria
e da heroicidade, tornava-se odioso pela intervenção arbitraria da
força. Falhando-lhe os motivos da actividade militar pela estabilidade
social da Europa sustadas as duas correntes de invasão do norte e do
sul, o Feudalismo foi seduzido pela proclamação das guerras religiosas
da Cruzada. A Egreja que temia esse rival, pela absorpção das grandes
propriedades, lisongeou-lhe o instincto da guerra, soprou-lhe um
delirio de fervor religioso lançando-o para a Palestina. É no momento
em que o Feudalismo se dissolve, que mais deslumbrante se espalha
a sua poesia heroica. Os Barões longe dos seus solares, sujeitos á
_prescripção_ adoptada do Direito romano pelos jurisconsultos
ao serviço da Realeza, feridos na sua nobreza pelo registo dos
_Livros de Linhagens_, privados dos seus direitos immemoriaes
pela _revogabilidade_ das doações regias, ouviam soar o sino da
communa, que era como a trompa de Gedeão, que fazia cahir por terra
os seus castellos. É o sentimento da revolta que inspira as Canções
de Gesta celebrando a lucta dos Barões contra o poder monarchico;
_Carlos Magno_ foi a figura em volta da qual se centralisaram
as lendas das revoltas dos grandes vassallos. N’esta dissolução do
Feudalismo, e descredito do ideal guerreiro, as Gestas heroicas
tornaram-se satyricas; na Italia cantava-se de preferencia as derrotas
de Carlos Magno, e as infamias de seus filhos; em França decahiam na
prosa novellesca, e desenvolviam-se os episodios da fabula complexa do
_Renard_. Comte tira nitidamente as deducções d’esta crise social:
«Se o estado catholico e feudal tivesse podido persistir realmente,
é indubitavel, a meus olhos, que a expansão esthetica dos seculos
XII e XIII, teria adquirido pela sua eminente homogeneidade, uma
importancia e uma profundidade muito superiores a tudo o que pôde
existir depois, sobretudo quanto á efficacidade popular, verdadeiro
criterio das bellas artes. Pela transição rapida, e muitas vezes
violenta, que devia realisar-se no curso d’este grande periodo
revolucionario, e para a qual a progressão industrial tão poderosamente
concorreu, o genio esthetico ficou falho de direcção geral e de destino
social. Entre a antiga sociabilidade moribunda e a nova muito pouco
caracterisada ainda, elle não pôde bem nitidamente sentir, nem o
que sobretudo devia idealisar, nem sobre que sympathias universaes
devia principalmente repousar. Tal é, no fundo, a causa progressiva
d’esta especialidade exclusiva, que tem até hoje caracterisado a arte
moderna, como a industria e como a sciencia tambem, por falta de uma
generalidade realmente preponderante. Bem longe de estar degenerado,
o genio esthetico tornou-se com certeza mais extenso, mais variado e
mais completo mesmo, como nunca o conseguira na antiguidade; porém,
apezar das suas eminentes propriedades intrinsecas, a sua efficacidade
devia então ser muito menor, em um meio social que lhe não podia
offerecer nem a nitidez, nem a fixidez indispensavel para o seu livre
desenvolvimento. Obrigado a reproduzir as emoções religiosas ao
passo que a fé se extinguia, e a representar os costumes guerreiros
a populações cada vez mais entregues a uma actividade pacifica, a
sua situação radicalmente contradictoria devia prejudicar-lhe a
realidade fundamental dos seus effeitos exteriores, mas tambem a
das proprias impressões interiores, até aos tempos ainda remotos em
que a regeneração final da humanidade virá offerecer-lhe um meio
mais favoravel ao seu pleno desenvolvimento, em consequencia de uma
homogeneidade e de uma estabilidade, que nunca puderam existir no mesmo
gráo...»[102]
Contra o poder _espiritual_ da Egreja, a Realeza torna-se
protectora de um ensino geral nas Universidades; e contra os arbitrios
feudaes estabelece os _Ordenamentos_ e fixa a esphera dos direitos
reaes pela restauração da jurisprudencia romana; os _Feudos_ são
equiparados á Emphyteuse e ao Usufructo dos romanos. Por outro lado,
este começo de renascimento _humanista_ ataca a idealisação
épica medieval, á qual tambem se tornavam hostis os _moralistas_
catholicos. É n’esta instabilidade, que caracterisa o fim da Edade
media, que as linguas romanicas se acham aptas para as obras
litterarias, mas os themas da idealisação religiosa e heroica acham-se
insignificativos para o sentimento.
Comte explica como: «o estado social da Edade media constitue sob todos
os pontos de vista, o berço necessario da grande evolução esthetica
das sociedades modernas.» E observa como esta longa crise de transição
historica, pela instabilidade social não deixou chegar á perfeição
os themas artisticos idealisados na poesia moderna: «A expansão
esthetica não faz suppôr sómente um estado social bem fortemente
caracterisado para comportar uma idealisação energica: exige, além
d’isso, que qualquer que fôr esse estado seja bastante estavel para
permittir espontaneamente, entre o interprete e o espectador, esta
intima harmonia prévia, sem a qual a acção das bellas-artes não
conseguiria obter habitualmente uma plena efficacidade. Ora estas duas
condições fundamentaes, naturalmente reunidas entre os antigos, nunca
mais puderam sêl-o depois em um gráo sufficiente, mesmo na Edade
media,...»[103] «Assim a fonte essencial d’esta singular hesitação
social que caracterisa a arte moderna, e que tanto neutralisou até hoje
a universalidade necessaria da sua influencia contínua, depois da sua
primeira evolução tão firme, tão original e tão popular na Edade media,
deve ser directamente procurada na inevitavel instabilidade do estado
social correspondente, suscitando sempre novas transições successivas.
Uma profunda e perseverante elaboração esthetica era certamente
impossivel entre populações em que cada seculo, e algumas vezes mesmo
cada geração modificava mui notavelmente a sociabilidade anterior para
que cada geração determinada tivesse já essencialmente cessado antes
que o poeta ou o artista podessem n’ella contrahir sufficientemente a
intima penetração espontanea indispensavel á acção das bellas artes.
É assim, por exemplo, que o espirito das Cruzadas, tão favoravel á
mais poderosa poesia, tinha irrevogavelmente desapparecido quando as
linguas modernas puderam achar-se assás formadas para permittir-lhe a
plena idealisação; ao passo que entre os antigos, cada modo effectivo
de sociabilidade tinha sido de tal modo duravel, que o genio esthetico
podia tornar a sentir e tornar a achar, depois de muitos seculos,
paixões e affectos populares essencialmente identicos áquelles de que
queria representar o imperio anterior.»[104]
Conhecidos os caracteres da evolução historica da Edade media, a
separação dos Poderes e a sua transformação, que ainda se exerce na
determinação das fórmas compativeis do Poder _espiritual_ e do
_temporal_ com a consciencia e liberdade do homem moderno, por um
tal processo de dissolução do regimen catholico-feudal se explica a
evolução e as vacillações de todas as Litteraturas romanicas. Vejamos
agora os themas poeticos com que a França exerceu a hegemonia esthetica
sobre essas litteraturas:
_a_) INFLUENCIA GALLO-ROMANA
(_Lyrismo trobadoresco_)
No meio da confusão das raças e das invasões dos povos, em que se
elaboraram as novas instituições religiosas e politicas que deram á
Europa a estabilidade, foram-se creando costumes e as relações de uma
pacifica sociabilidade. É então que se quebra esse mutismo, e as novas
linguas se exercem no canto, celebrando pela poesia o amor, a
galanteria e a confraternidade. A partir do seculo X espalham-se pela
Europa esses cantores vagabundos, sahindo da França meridional, do fóco
da Provença, levando a todos os povos a boa nova do amor; póde-se dizer
que as canções jogralescas vieram desenvolver pela _accentuação_ as
linguas romanicas, tornal-as communicativas e escriptas. Tambem nas
linguas germanicas esta ideia de que a linguagem começa pelo canto
exprime-se em _Singuen_ e _saguen_, synonimos como o _cantar_
e _decir_, nos romances hespanhoes. A situação da Provença favorecera
esta influencia esthetica impulsiva. Durante o periodo das invasões dos
barbaros do norte, permaneceu quieta a Provença, apenas alvoroçada pela
passagem dos Visigodos, que se precipitaram sobre a Peninsula, e pelos
Burguinhões então já polidos pela permanencia na Italia. Flor bafejada
pela amenidade do meio dia da França, recebendo os restos da cultura
grega e da paixão arabe, ella foi como o nectario em que se formou o
mel da poesia, que encantou a primeira sociabilidade dos povos da
Europa, e que determinou as fórmas do moderno lyrismo. Da lingua usada
nas canções dos trovadores, dizia Raymond Vidal: «_La parladura ... de
Lemosin val mais per far vers et cansons et serventes._» Esta região
comprehendia um centro de irradiação commum intermediaria, entre a zona
oriental que formam o Auvergne e Velay, e a zona occidental de Poitou,
de Saintonge e de Guienne.[105] Escreve Fortoul, fazendo notar a
importancia d’este fóco de cultura trobadoresca, em que a burguezia do
Limousin, do Périgord e de Quercy, rivalisava com a nobreza na
composição das canções amorosas: «No Limousin, em quanto o terrivel
Bertrand de Born canta as guerras, que elle ateia constantemente,
Giraud de Berneil sáe da condição mais infima para fazer as mais bellas
canções de amor, e Bernard de Ventadour aprende ao pé do forno de seu
pae a lingua que o faz brilhar na côrte dos seus senhores, na Hespanha,
na Italia; de um lado os senhores de Uisel reunem-se para compôrem as
arias e os versos dos cantos que tornam a sua nobre familia celebre; do
outro, os joviaes burguezes de Uzerche, Gaucelm Faydit e Hugues de la
Bezelaria, espalham na sua cidade e até á Lombardia a fórma do seu
espirito cortez e agradavel. O Périgord, mesmo, que com o gentilhomem
Arnaud Daniel, leva ao suprasummo as difficuldades e os artificios da
versificação meridional, produz operarios como Elias Cairel, bastante
feliz para fazer brilhar até na Grecia o esplendor da poesia que elles
aprendiam nas lojas de Sarlat.»
No seculo XI acodem os provençaes á côrte de França por occasião do
casamento de Constança com Roberto; cento e cincoenta annos mais tarde,
já se acham diffundidos pelo territorio francez o mesmo gosto poetico
e galanteria provençalesca; usavam-se esses certames poeticos a que
concorriam com as suas trovas e canções para celebrarem o casamento
dos princepes, ou o gráo de cavalleria que recebiam. Em Italia,
segundo Folgore de San Geminiano era do estylo: «Cantar, danzar alla
provenzalesca.»[106] Dante, no _Convito_, queixa-se do emprego
immoderado do provençal: «Questi fanne vile lo parlare italico, e
prezioso quello de Provenza.» E tão precioso era este modo de fallar
provençal, que no _Purgatorio_, Dante obedeceu á corrente da
época pondo na bocca de Arnaldo Daniello trez tercetos em provençal.
Na Allemanha não era menos conhecida a lingua e a poesia provençal: no
poema do _Parzival_, lê-se que as verdadeiras tradições foram da
Provença para a Allemanha.[107] Os trovadores achavam as linguas do
norte sem melodia; e Peire Vidal compara-as a ladrar de cães: «E lor
parlars sembla lairar de cans.»
Vejamos a irradiação d’este lyrismo para a peninsula hispanica. O
governo suave da Provença continuado na mesma familia por mais de
duzentos annos, aprimorou a galanteria cortezã, que tanto distingue as
canções dos seus trovadores; quando se extinguiu o herdeiro masculino,
em 1092, a corôa de Provença passou para o Conde de Barcellona, pelo
casamento com a unica herdeira da familia de Borgonha. Os poetas
acompanharam a côrte que transpoz os Pyreneos e veiu fixar-se na
Hespanha. Um facto semelhante se deu com o casamento dos Condes de
Barcellona, que lhes fez pertencer o reino de Aragão. Os reis, que
tambem poetisavam em lingua limosina, abriram nas suas côrtes azylo
aos poetas provençaes, principalmente depois da cruzada de exterminio
contra os Albigenses. O maior elogio que se póde fazer do sentimento
e elevação moral dos trovadores é vêl-os abraçarem o partido dos
perseguidos. A cruzada contra os Albigenses recebeu um caracter
religioso para lhe imprimirem mais ferocidade, mas era a pressão brutal
da França feudal e monarchica do norte contra a França meridional
municipalista e semi-republicana.[108] Muitos trovadores se refugiaram
na Hespanha, no tempo de Pedro II de Aragão, que morreu em 1213,
defendendo a causa d’elles na batalha de Moret. Entre esses foragidos
citam-se os trovadores Hugues de Saint-Cyr, Azémar le Noir, Pons Barba,
Raimond de Miraval e Perdrigon.
É durante a sua educação na Galliza, que o rei Affonso o Sabio estuda
a nova poesia provençal, adoptando o dialecto gallego para as suas
_Cantigas_, por que essa linguagem se achava exercitada na
expressão dos mais delicados sentimentos. Em volta de Affonso o Sabio
reunem-se os trovadores mais distinctos, sendo elle o mais generoso
impulsor da propagação do novo lyrismo. Conforme os centros d’onde
irradiava essa poesia, assim ella tinha um caracter mais ou menos
aristocratico, mais ou menos popular. Os trovadores da Gasconha,
Cercamons, Marcabrun e Peire de Valeira, e por tanto predominando o
elemento popular, foram conhecidos em Portugal, prevalecendo o seu
gosto nas serranilhas. Marcabrun em uma das suas canções pede a Deus
que vele pelo rei de Portugal. De todos os trovadores o que dá prova
de ter frequentado a côrte portugueza é Peire Vidal. Estas relações
cortezãs explicam-se pelos casamentos reaes; D. Sancho I foi casado
com D. Dulce, filha de Raymundo Berengar, quarto conde de Provença
e rei de Aragão. No Nobiliario do Conde D. Pedro citam-se muitos
fidalgos com a indicação, _foi trobador_, e que _trobou bem_;
pertencem a esse numero dos partidarios de Affonso III, que antes
da deposição de D. Sancho II se refugiram na côrte de S. Luiz, como
os Baiões, os Cogominhos, os Valladares, os Porto-Carreros. O rei
D. Diniz, um dos mais fecundos e talentosos trovadores portuguezes
estudou conscienciosamente a arte do _gai-saber_, e, affirmando
a superioridade do seu ideal, escrevia: «Quero eu _em maneira de
Proençal_--fazer agora um cantar de amor.» O grande apreço que tanto
na Galliza como em Portugal se ligava á nova poesia «esta arte que
mayor se llama» como escreve o Marquez de Santillana, fez com que a sua
influencia se exercesse sobre toda a Hespanha: «en tanto grado, que
no ha mucho tiempo quatesquier Decidores ò Trovadores destas partes,
agora fuesen Castellanos, Andaluçes e de la Extremadura todas sus obras
componian en lengua _gallega_ ó _portugueza_.»[109] Esta
poesia começa a florir justamente quando os nossos cavalleiros traziam
accesas as almenaras dos castellos roqueiros, e faziam investidas,
correrias nas terras dos sarracenos.
Na côrte de D. Sancho I e D. Affonso II os duros guerreiros neo-godos
brilhavam com a graça das canções, algumas das quaes se acham no
_Cancioneiro da Ajuda_. Em uma d’essas canções um cavalleiro
allude ao grito de guerra na tomada de Santarem por D. Affonso
Henriques. Ajuntára o monarcha alguns cavalleiros, indo com altas
escadas atacar o castello de Santarem; era ao quarto de alva e as
roldas dormitavam; o rei dividiu a sua comitiva em dois troços, um
que investia pelo lado do monte _Alphão_, e outro que atacava
pelas bandas da ribeira ou parte baixa (_sesserigo_). Ao lançar
as escadas, o ruido despertou as roldas do somno, tocaram alarme, e
a mourisma deu de repente sobre os poucos cavalleiros que confiavam
no seu ardil. N’aquelle transe desesperado foi preciso levar tudo á
viva força; os poucos portuguezes venceram. D’ahi o grito de guerra
conservado na canção:
Ay Sentirigo! ay Sentirigo,
Al e _Alphão_ e al _sesserigo_.
Era dever de todo o homem de guerra, como bom cavalleiro, saber
brandir uma espada e discretear galantemente com damas; mas n’estes
tempos de luctas como a da facção que depoz D. Sancho II, prevalecia
principalmente a satyra, como se vê nas coplas contra os Alcaides
que entregaram _como não deviam_ os castellos a D. Affonso III.
Fallando do _Cancioneiro da Ajuda_ (publicado por lord Stuart
em 1823), Frédéric Diez caracterisava as obras d’esta collecção e a
época a que pertence: «Se as fórmas poeticas são rigorosamente as dos
trovadores, _de longe em longe accusam a nacionalidade_, mas não
deixam suppôr o conhecimento familiar da fórma provençal. Os _versos
de dez syllabas_ predominam nas estrophes, que se correspondem
pela rima... Ha uma analogia surprehendente na contextura, e em
nenhuma das canções pudemos descobrir vestigios de traducção.»[110]
Esta caracteristica de metro define-nos a influencia _limosina_,
que seguiram os nossos trovadores fidalgos. Ainda não imperava a
galanteria e o requinte da sensibilidade; só começou com a imitação
directa da Provença, na côrte de Dom Diniz, que empregou todos os
recursos da arte para exprimir a paixão. As canções provençalescas
ou _em maneira de proençal_ dobravam-se a todos os caprichos
de uma poetica artificiosa, aos segredos do _leixapren_ e do
_mansobre_, ás exigencias da rima encadeada, aos córtes do verso
nos seus hemistichios, para corresponderem ás finas allegorias do
sentimento. Depois do direito feudal ter aberto um abysmo inaccessivel
entre a castellã e o servo, a canção trobadoresca veiu estabelecer
a _egualdade perante o amor_, conforme a bella phrase de
Quinet. O artificio provençalesco não consistia apenas em alardear
a plasticidade da lingua rude amoldando-se a todos os requebros, em
achar (_trouver_) os melhores recursos da rima e das combinações
estrophicas, mas principalmente em velar ou encobrir o sentimento que
fazia com que o apaixonado cantor erguesse os olhos para a castellã
orgulhosa. Um compassivo olhar, um leve sorriso precipitava o
scismador em um enlevo ou melancholia eterna, em uma louca inspiração.
Todas as emoções estão ali descriptas: o sentimento da propria
inferioridade, o olhar generoso que o levantou da terra, a anesthesia
das dores por um simples relance descuidado, o receio ou terror de que
adivinhem por quem é a absorpção do seu espirito, que o traz de longe,
a esperança de a vêr mais de perto e a lembrança angustiosa de uma
ausencia forçada, tudo isto vibra na canção provençalesca. Avançava-se
para o idealismo neo-platonico, que ia suscitar o superior lyrismo
italiano.
No _Cancioneiro da Ajuda_, imita-se toda essa ordem de sentimentos;
não só a lingua, como as fórmas poeticas notadas por Diez, como a
natureza dos sentimentos, provam a antiguidade e o valor d’este
monumento. Os nossos trovadores tambem se apaixonam por castellãs,
sem attenderem ao abysmo que os separava; João Soares de Paiva morreu
em Galliza por amores de uma infanta. Na côrte de D. Diniz impera já
esta metaphysica amorosa, que elle idealisa artificialmente, fallando
do temor do seu segredo amoroso, apezar de ter numerosos bastardos. E
levado pela necessidade de variar e vivificar com realidade as fórmas
poeticas, é que o rei D. Diniz, seguindo o estylo das pastorellas
da eschola de Gasconha, imita as serranilhas populares portuguezas
e gallegas, dando assim protecção a todos os jograes das côrtes
de Hespanha, que vinham a Portugal como ao centro da mais activa
elaboração poetica do seculo XIV. Pela poesia trobadoresca se fazia
a unificação affectiva dos Estados livres peninsulares, e Portugal,
como o confessa o erudito Marquez de Santillana, exerceu então pela
primeira vez a sua hegemonia. Durante este periodo a poesia provençal
recebeu uma transformação profunda na sua essencia; suffocado o
esplendor da Provença pela terrivel cruzada contra os Albigenses,
esse lyrismo desceu ás classes populares, d’onde primeiro sahira
(_son veill antic_), convertendo-se-lhe agora em um mister lucrativo
(os _jocistae_, _joculatores_ ou _jograes_, e os _ministralles_ ou
_menestreis_). O jogral substituia o desinteressado trovador: ia de
terra em terra acompanhando o cantor apaixonado, apanhando de memoria
as canções que lhe ouvia, e repetindo-as depois nas praças, ou nas
côrtes, recebendo da multidão a pequena moeda (a _poitevine_) e da
fidalguia pannos e cintos. É _frequente_ encontrarem-se protestos dos
trovadores contra esta exploração jogralesca; Astorga, no seu _Poema
de Alexandre_, tem medo que o tomem por um jogral, e diz: «Mester
trago fermoso, no es de _ioglaria_.» Em uma das suas canções o rei
Dom Diniz confessa que celebra os seus amores sem se parecer em nada
com esses que «troban no tempo da frol.» Mas a invasão jogralesca era
uma consequencia da vitalidade esthetica acordada na alma moderna. No
_Cancioneiro da Vaticana_ encontram-se a par de reis, de infantes e
fidalgos, numerosos jograes; taes são Affonso Gomes _jograr_ de Sarria,
Ayres Paes _jograr_, Diogo Pezelho _jograr_, Lopo _jograr_, que se
destacam tambem d’entre clerigos e burguezes. A casuistica amorosa
vae encontrar nas fórmas jogralescas moldadas sobre o typo da canção
popular, extraordinarias bellezas de simplicidade natural e de riquezas
tradicionaes. Assim no momento em que o lyrismo moderno ia receber
na Italia a sua fórma litteraria, tocava as fontes vivas da tradição
poetica occidental.
O apparecimento da poesia dos trovadores e a sua rapida diffusão
nas Litteraturas romanicas e germanicas, só se torna claro pelo
conhecimento de um _fundo commum tradicional_, que já está achado.
Circumstancias accidentaes, como a commoção social provocada pelas
Cruzadas, n’isso influiram tambem, despertando a curiosidade das
classes elevadas, que fixaram essa poesia na fórma _escripta_.
Em quanto duraram as expedições da Palestina, (1095 a 1290) a
poesia trobadoresca attingiu o seu maximo esplendor; n’este periodo
expandia-se a vida burgueza ou propriamente a classe media, que se
tornou a base estavel da sociedade moderna. Terminadas as Cruzadas,
e tendo por tanto a Realeza de concentrar em si a dictadura pela
decadencia necessaria do poder senhorial, envolveu tambem n’essa
absorpção muitas garantias locaes. A França do norte abafando o
municipalismo do sul, a poesia provençal extinguiu-se, voltou outra vez
para o coração do povo, levando-a os jograes por todas as côrtes da
Europa. Podem-se determinar trez periodos a esta efflorescencia lyrica:
_Tradição e Nacionalidade_, em que a poesia é conservada oralmente,
nos antigos cantos populares gaulezes, no centro ethnico da Aquitania,
com relações intimas com as _pastorellas_ italianas, com as _baladas_
provençaes e com as _serranilhas_ portuguezas. O caracter de
nacionalidade chegou a accentuar-se no uso que d’esta poesia fizeram os
trovadores, defendendo a liberdade municipal e proclamando a revolta.
A sua _diffusão_ penetrou como corrente de distincção aristocratica em
todas as côrtes da Europa, chegando até á Inglaterra e á Allemanha;
porém no Meio Dia volvia outra vez para o povo, e pela exploração
jogralesca se aproximava por simplificação do primitivo typo
tradicional.
_Uso e imitação_, nos divertimentos litterarios palacianos; os
proprios monarchas a reproduziam e a protegiam como uma distracção
culta, como um pretexto de galanteria. Pela necessidade de renovar
os artificios da metrica trobadoresca, de que se havia codificado
numerosas regras, o desejo da novidade levou á imitação de todos
os segredos technicos e por fim á renovação inconsciente do typo
tradicional, que transparece na fórma litteraria dos Cancioneiros
aristocraticos.
Na Italia foi outra a corrente; da casuistica sentimental dos
trovadores o genio italiano transitou para um desenvolvimento
subjectivo, fecundando-o pela abstracção philosophica; as Litteraturas
romanicas pela influencia do _dolce stil nuovo_ fixaram sobre os
rudimentos trobadorescos as fórmas definitivas do lyrismo moderno.
_b_) INFLUENCIA GALLO-FRANKA
(_Gestas ou Epopêas medievaes_)
As condições de ordem e estabilidade na Europa datam do apparecimento
e acção historica de Carlos Magno; sustaram-se as invasões, e o
Feudalismo foi gradualmente cahindo diante da crescente dictadura
monarchica. É essa lucta dos grandes vassallos contra a realeza, que
se torna o thema fundamental das Epopêas ou Canções de Gesta, que se
produziram depois da completa fusão do elemento gallo-franko, como
synthese da nova nacionalidade--a França. O typo lendario de Carlos
Magno centralisou na imaginação poetica esta lucta da realeza, que
durou seculos. A fórma cyclica d’essas composições narrativas e a
independencia e superioridade politica do franko, bem mostram que essas
epopêas, ainda não totalmente individuaes, são as _Cantilenas_
germanicas agrupadas em torno de um mesmo vulto historico, pelo
syncretismo dos factos e das épocas, que é um dos processos espontaneos
da tradição. Segundo os medievistas Paulin Paris e Léon Gautier, nas
_Gestas_ francezas é germanica a ideia da guerra, da realeza, do
feudalismo, dos symbolos juridicos, da mulher e da divindade. Os textos
de Tacito e de Eghinard provam a primitiva commoção historica do modo
mais completo, e ao mesmo tempo a persistencia das _Cantilenas_
germanicas durante a primeira raça, cantadas em lingua vulgar, como
vêmos pelo principal monumento, a _Vie de Saint Faron_, do seculo
VII. A figura imponente de Carlos Magno syncretisando em si todas as
individualidades heroicas, que se manifestaram ainda depois d’elle,
veiu imprimir a essas Cantilenas um caracter historico, dar-lhes um
agrupamento cyclico e uma expressão nacional.
As primeiras Gestas que circularam na Europa foram a _Chanson de
Roland_, a de _Girard de Rousillon_, a de _Ogier le Danois_, a de
_Raoul de Cambrais_ e de _Aliscamps_. Este periodo de assombrosa
elaboração épica deu-se do principio do seculo XII até 1328. Estas
datas são capitaes para nós, por que abrangem o periodo organico da
nacionalidade portugueza. Era impossivel que n’estes annos de aspiração
autonomica, em que o conde francez D. Henrique imitava as instituições
carlingias, como os _Missi dominici_, em que buscára apoiar-se
em colonias frankas, em que os Bispos, que representavam então o
maximo poder espiritual e eram os _defensores civitatum_, vinham
tambem de França, impossivel seria que não chegasse a Portugal essa
floração poetica das Gestas heroicas. O nome de _Gesta_ e _Estorea_,
significando a poesia épica na Peninsula, e a referencia á _maestria
de Francia_, indicam-nos, que se deu uma intercorrencia da poesia
narrativa dos troveiros com a subjectiva dos trovadores. Emquanto estes
cantavam nas côrtes e solares feudaes, os troveiros recitavam nas
praças, d’onde muitas vezes a auctoridade os repellia ou obrigava a
pagarem um imposto.
As tradições épicas do norte da França espalharam-se em Portugal no
tempo de D. Affonso Henriques, pela passagem dos cavalleiros que iam
por mar á Palestina. Esses cavalleiros, ávidos de aventuras heroicas, o
ajudaram a conquistar Lisboa, e no descanso do arraial se desenfadavam
com as suas tradições guerreiras.[111] Na _Chronica Gothorum_,
as phrases referentes a D. Affonso Henriques _clarus ingenio_
e _lingua eruditus_, coadjuvam em parte a tradição de que este
primeiro rei portuguez fôra poeta. A sua côrte, apezar dos continuos
trabalhos da guerra, foi abrilhantada pelos costumes da galanteria
provençal; casado com uma princeza italiana (Mahaut) não nos admira que
as canções de Sordello de Mantua e de Bonifacio Calvo fossem conhecidas
em Portugal. Mas sobretudo as suas preferencias deviam de ser pelos
cantos épicos; as epopêas heroicas desenvolvidas pelo genio francez
não puderam encontrar na Peninsula condições para se implantarem, por
lhe faltarem uma classe feudal independentemente organisada, e por ser
excessiva a admiração pela cultura latina, que se tornou uma distincção
na aristocracia e alto clero.
A tradição épica da Edade media não foi extranha a Portugal; na
_Chronica_ de Turpin, acha-se citado o nome de Portugal.[112]
Infeliz lembrança teve o pseudo-chronista, por que pretendendo dar-se
como contemporaneo de Carlos Magno, a designação _Portugal_
desconhecida em todos os documentos anteriores a 1069, descobre
o intuito da falsificação.[113] Segundo Fauriel, na gesta de
_Fier-à-bras_ ha o retrato allegorico da rainha D. Thereza.
Na analyse do poema, escreve: «Creio entrevêr em algumas
particularidades e no desfecho do romance de _Fierabras_, uma
allusão romanesca á creação do reino de Portugal. Affonso VI, rei de
Castella, conquistou em 1093 aos Arabes uma parte dos territorios
entre o Douro e o Tejo, e d’elles fez um Condado, que deu com uma de
suas filhas a Henrique de Borgonha, joven e valente senhor que viera
em seu auxilio d’além dos Pyreneos; este Condado chamado Porto-Cale,
do nome da sua capital, engrandecido pelas conquistas do seu primeiro
senhor, veiu a ser o reino de Portugal. Entre a fundação d’este Reino e
o desenlace do _Fierabras_, não ha, é verdade, relação alguma de
datas ou de pessoas; mas cumpre considerar, que para os romancistas dos
seculos XII e XIII, toda a historia tanto nacional como estrangeira,
se reduz a algumas tradições cada vez mais alteradas e falsificadas,
sobre as quaes bordaram sem escrupulo, sem outro designio mais do que
o de exaltar as imaginações contemporaneas. Fazer de Portugal um reino
de Agramene; de um Henrique um Gui de Borgonha; de uma filha de Affonso
VI uma princeza sarracena convertida; transportar para o VIII seculo um
acontecimento do seculo XI, tudo isto é quasi historico para qualquer
d’estes romancistas.»[114] O caracter altivo de D. Thereza, tal como
se conserva na historia, está em harmonia com o retrato de Floripar
feito no poema; isto comprova o juizo de Fauriel: «que não ha epopêa
primitiva que não seja por algum ponto a expressão de um acontecimento
ou de uma ideia.»
Em uma citação do _Livro de Linhagens_, em que se allude aos _Doze
Pares_, encontra-se o vestigio das Gestas francezas: «muitos
ricos-homeens que iam para lhes acorrerem disseram a elrey dom
Fernando, que nunca virom cavalleiros nem ouviram falar que tam
soffredores fossem e pozeram-nos em par dos _Doze Pares_.»[115] A
creação dos Doze Pares apparece nas mais antigas Canções de gesta
franceza, taes como a _Chanson de Roland_, a _Viagem a Jerusalem_ e em
_Renaud de Montauban_.[116] O texto em que se faz a referencia aos Doze
Pares é do principio do seculo XIV; por tanto é natural, que qualquer
d’essas trez epopêas fosse conhecida em Portugal. Nos _Karlamagnus
Saga_, _Gui de Bourgogne_, _Otinel_, _Fierabras_, _Simon de Pouille_,
_Ogier le Danois_, _Huon de Bourdeaux_, _Galien Restoré_, cita-se
a instituição dos Doze Pares; estes poemas como mais modernos pouco
teriam influido para a vulgarisação da lenda carlingia em Portugal, em
um tempo em que começava o perstigio dos poemas da _Tavola-Redonda_.
Na sepultura do cavalleiro Rodrigo Sanches, morto na _Lide do
Porto_ em 1245, batendo-se a favor de D. Sancho II, gravaram-lhe um
epitaphio, comparando-o a _Roland_:
Belliger insignis fuit hic cunctis et amandus,
Laudibus ex dignis, alter fuit hic _Rotulandus_.[117]
Eghinard escrevera este nome _Hruodland_, e Radulphus Tortarius
_Rutlandus_, e acha-se na canção de Guerau de Cabrera na fórma
_Rotlon_ (_Roldão_ na linguagem popular portugueza, como
synonimo de valentão.) Ainda na côrte de D. Diniz eram lembradas as
Gestas carlingias, como se vê pela canção de João Baveca:
e ora per _Roncesvales_ passou
e tornou-se do Poio de _Roldan_.
(_Canc. Vat._, n.^o 1066.)
Reflectiu-se este cyclo épico nos cantos populares portuguezes; nos
romances que fallam da derrota de Roncesvalles, allude-se a uma
expressão franceza: «Nos _portos_ de mal passar.»[118] N’este sentido
de desfiladeiro, fauce entre dous montes, significando a passagem
dos Pyreneos, usa-a a Chronica de Turpin, e vem no _Roman de Garin_:
«As _ports_ d’Espagne s’en est entrez Roland.» A influencia popular
conhece-se principalmente como foram aportuguezados os nomes dos heróes
épicos francezes: _Roland_ é Roldão, _Renaud de Montauban_, Reinaldo de
Montalvão; _Ogier le Danois_, Dones Ogeiro e Ogeiro o Dão; _Olivier_,
Oliveiros; _Bauduin de Vannes_, Valdevinos (na giria popular,
vagabundo, tunante); _Richer_, Ricardo; _Garin de Monglave_, Garinos;
_Naimes le Bavarois_, Duque Maime; _Gaifier de Bordeaux_, Gaifeiros;
_Didier_, Dirlos; _Huon_, Dudão; _Eghinard_, Eginaldo, Gerinaldo e
Reginaldo; _Aude_, a namorada de Roland, Alda; _Floripar_, Floripes;
_Fierabras_, Ferrabraz (valentão roncador).
O rei D. Affonso III, que residira quando princepe alguns annos na côrte
de França, imitou na sua côrte as festas poeticas que lá admirára. Nos
festejos que se fizeram em Melun, quando D. Affonso foi armado
cavalleiro, o rei S. Luiz deu cincoenta libras aos menestreis que a
elles assistiram; vinte menestreis se acham inscriptos nos Documentos
para a historia de França.[119] É evidente que a influencia da poesia
franceza se havia de reflectir na côrte de Portugal; assim
no _Regimento_ da Casa real manda D. Affonso III, que estejam sempre
trez jograes ao serviço da côrte, e prescreve o numero dos
_jograes_ e dos _segreis_ que venham de longe aos quaes se dará
agasalho. As Canções de Gesta caminhavam para a inevitavel decadencia,
e este mesmo reflexo vêmos em Portugal na parodia feita por D. Affonso
Lopes de Baião de uma Gesta franceza em uma metrificação de doze
syllabas, em longas tiradas monorrimas, e com a celebre _neuma_ AOI
(seculorum amen) com que terminavam as estrophes longas da _Chanson de
Roland_. No Cancioneiro da Vaticana foi colligida essa composição
singular da _Gesta de Maldizer_, em que o fidalgo Baião, da côrte de
D. Affonso III, ridicularisa um cavalleiro Dom Velpelho
(de _Vulpecula_, a raposa), talvez um dos vencidos do partido de D.
Sancho II. Aqui o que nos interessa é a prova clara do conhecimento da
fórma litteraria das Canções de Gesta.
Na descripção da batalha do Salado, de Rodrigo Yanes, alludem-se aos
personagens do cyclo franko:
Nin fue mejor cavallero
El arçobispo _Don Turpin_,
Ni el cortés _Olivero_,
Ni el _Roldan_ paladin.
(St. 1739.)
A çanfonha era o instrumento que acompanhava a recitação das Gestas;
o seu uso, peculiar aos primeiros seculos da monarchia, e ainda
hoje popular na Galliza, leva-nos a inferir que tambem as Gestas
seriam cantadas por esse tempo. Em um manuscripto da Edade media,
descreve-se a Çanfonha: «Chama-se em França Cymphonie um instrumento
que _os cegos tocam cantando a Canção de Gesta_, e tem este bello
instrumento doce som, e mui agradavel de ouvir.»[120] Quando o rei D.
Pedro I prohibiu os instrumentos musicos que não fossem a trompa ou a
corneta, para não se effeminarem os animos, seguia as disposições da
Egreja exaradas nas Summas do seculo XII. Escrevia Guillaume Perrauld,
na _Summa Vitiis_: «O ouvir Canções é muito para se temer...
Tambem são muito para se temer os instrumentos musicos, pois tocam e
amolecem os corações humanos.»[121] Em uma _Summa de Penitencia_
prega-se a maior complacencia para os jograes que cantam Canções de
Gesta, e condemnam-se os que cantam cantilenas lascivas. Tambem nas
_Leis de Partidas_, que estavam em vigor em Portugal, prohibe-se a
todo o bom cavalleiro o ouvir canções quando ellas não forem de feitos
de armas.
No seculo XV as Gestas dissolviam-se em chronicas historicas; ainda
assim, acha-se citada por Azurara a Gesta sobre o _Duque Jehan de
Lanson_, «ca sem embargo de se em todollos regnos fazerem geeraaes
cronicas dos rex d’elles, nom se deixa porem de screver apartadamente
os feitos dalguns seus vassalos, quando o grandor he assy natural de
que se com razom deve fazer apartada scriptura; assy como se fez em
França do _duc Joham de Lançam_.»[122] Azurara alludia a uma Gesta
carolina do seculo XIII pensando que se referia a uma chronica; o mesmo
succedeu a Philippe de Mouskes, na sua _Chronica rimada_, que
resumiu essa gesta attribuindo-lhe valor historico. Foi talvez Portugal
o unico paiz que ouviu fallar da _Chanson de Jehan de Lanson_,
apezar do que d’ella diz Léon Gautier: «Poucas canções ha que tenham
tido popularidade menos vasta e menos duravel. As nações estrangeiras
não parecem tel-a conhecido, e não existe d’ella versão em prosa.»[123]
Mas não bastou a Azurara o cahir no mesmo erro de Philippe de Mouskes;
comparou esta Gesta que idealisa um traidor, e em que é Carlos Magno
exposto ao mais pungente sarcasmo, á bella _Chronica anonyma do
Condestavel_, identificando-o com o typo do heroe-santo.
Não admira; no seculo XV começava o perstigio da erudição latina, e
o desprezo pela Edade media; e na época da Renascença os heróes das
Gestas são conhecidos em Portugal através da corrente italiana, pelos
poemas de Pulci, Boiardo e Ariosto. Esta influencia italiana é evidente
em Sá de Miranda, que cita _Turpin_, _Roland_ e _Ogier le
Danois_, pela leitura d’esses poetas:
Grandes cosas se cuentan de como a escuras
D’aquelles tiempos de vista _Turpino_
A estranos cuentos orejas seguras.
El hadado _Roldan_, Reynaldo, _Dino_,
Que le fuera fortuna mas cortés
De sus riquezas, un tal Paladino.
_Rogel_, del ingenioso ferrarez,
Tanto alabado en tan sabroso estillo,
Astolpho aventurero y vano ingles.
Camões tambem conhecia esse cyclo épico das Gestas francezas através
da influencia italiana, desprezando diante da sublimidade dos
factos historicos dos portuguezes as façanhas do vão Rogeiro,--«E
_Orlando_, inda que fôra verdadeiro.» Era corrente entre os
eruditos da Renascença, como vêmos em Luis Vives, desprezar os poemas
da Edade media.
A propria França chegára ao esquecimento total das Gestas, depois
de uma decadencia successiva, já pelo agrupamento cyclico, já pelo
syncretismo com os poemas de aventuras, e finalmente pela sua
dissolução em prosa com pretenções a chronica. D’onde proveiu esta
decadencia, não já entre os povos romanicos, mas n’aquella mesma nação
que elaborou toda a poesia das Gestas? Comte viu claro, quando esboçou
a dissolução do regimen catholico-feudal, e explicou o desprezo em
que ficaram os themas poeticos de uma edade que desapparecia; o juizo
do philosopho foi mais tarde confirmado pelos eruditos. D’Héricault,
no seu _Essai sur l’origine de l’Épopée française_, accentua
a mesma causa: «A nossa epopêa nacional fôra engendrada por uma
série de factos, de personagens de uma ordem particular, que tinha
desapparecido no seculo XIII. As circumstancias politicas, o estado
da sociedade, as tendencias das ideias e dos costumes, a fusão das
raças, as victorias alcançadas pelo espirito do catholicismo sobre os
restos da barbarie, todo o conjuncto da vida da França tinha tirado
a estes factos e a estas individualidades o seu vivo interesse. Já
não tinham mais razão de ser, não eram comprehendidos e não podiam
por consequencia vir renovar incessantemente a fonte da poesia a
que elles tinham dado nascimento.» E mostrando como um outro estado
de consciencia, em uma nova éra social, exigia outras fórmas de
idealisação, continúa o mesmo critico: «Mas, á medida que se afastavam
d’este periodo barbaro, os caracteres humanisaram-se, os espiritos
educados em outro meio social, admittiram outras bellezas. Do seu lado,
a memoria esquecia a significação precisa d’estes acontecimentos de
outra edade. O poema puramente militar teve de desapparecer e com elle
a invenção ingenua dos typos unicamente guerreiros, dos caracteres
selvagens e grandiosos, personalidades simples, sem meias tintas e sem
flexibilidade. As feridas, as ondas de sangue, todas as peripecias
de uma batalha ou de um combate singular tornavam-se insufficientes
emquanto a interesse, desde que já se não via nos heroes em acção mais
do que titeres de ferro.» Por esta falta de interesse, consequencia
de um outro estado social, as Gestas guerreiras foram substituidas
pelos poemas das aventuras de amor. D’Héricault explica o advento
d’esta corrente poetica: «Afastando-se dos factos creadores da poesia,
e não ligando seriedade ao papel de chronistas, os troveiros viam-se
desapossados d’esta fórma naturalmente dramatica, d’esta acção
ingenuamente interessante, d’esta marcha viva que a Canção de Gesta
devia á sua preoccupação de imitar os aspectos da historia. O cyclo
carlingio estava então exposto a perder o sôpro épico, e accumulava,
para o substituir, logares communs, declamações que lhe eram indicadas
pelo seu genero, duello entre guerreiros, injurias contra Carlos
Magno, exposição da doutrina christã a um sarraceno, confusão geral
entre christãos e pagãos, etc. Foi n’este declive que o valente _Rei
Arthur_ e os seus cavalleiros vieram suster os guerreiros do
Imperador da branca barba. O cyclo da _Tavola Redonda_ acordou
a imaginação dos troveiros francezes, e lançou a epopêa em uma via
nova, em que a dirigiu impondo-lhe as suas sympathias, a sua arte e
as suas fórmulas. Foi principalmente por meio d’estes dois perstigios
de predilecção--a mulher e o maravilhoso, que elle revolucionou o
nosso genio, triumphou da Canção de Gesta e poz em debandada os
Doze Pares.--A poesia do amor tendia assim a substituir a poesia da
guerra.»[124]
Quando em França se dava esta decadencia das epopêas feudaes, muito
mais profunda foi ella entre os povos que tiveram heróes nacionaes
a idealisar, como o _Cid_ em Hespanha, ou que desconheceram o
feudalismo, como a Italia e Portugal. Os poemas de amor exerceram uma
acção profunda nos costumes das classes elevadas, foram lidos com
encanto e deram origem ás Novellas cavalheirescas, que luctaram com
vantagem contra a corrente classica.
_c_) INFLUENCIA GALLO-BRETÃ
(_Poemas e Novellas da Tavola Redonda_)
A grande raça celtica que occupou todo o Occidente, possuia como
as outras raças com que se fusionou, profundos elementos de poesia
tradicional. Porém esta poesia só nos apresenta vestigios depois do
seculo VI, em um pequeno grupo celtico, que escapou á conquista e
absorpção dos Romanos e dos Saxões, e até certo ponto resistiu ás
doutrinas do christianismo. Esse grupo celtico, que veiu enriquecer
as litteraturas da Europa com novas tradições poeticas, que seduziram
todas as imaginações depois do seculo XII com as encantadoras ficções
da _Tavola Redonda_ e do _Santo Graal_, compõe-se dos habitantes do
paiz de Galles ou Cambria e da peninsula de Cornwall (os antigos
_Kymris_), dos da Bretanha franceza (a _Armorica_), dos Gaëls do norte
da Escossia, e ainda da Irlanda. Do isolamento que este grupo celtico
conservou diante da conflagração dos povos desde as conquistas dos
Romanos até ao fim das invasões germanicas, escreve Renan: «Nunca
familia humana viveu mais isolada do mundo e mais pura de toda a
mestiçagem estrangeira. Confinada pela conquista em ilhas e peninsulas
esquecidas, ella oppoz uma barreira inaccessivel ás influencias
exteriores; tirou tudo de si propria, e viveu com os seus recursos.
D’aqui esta potente individualidade, este odio ao estrangeiro, que
até hoje, tem accentuado o traço caracteristico dos povos celticos. A
civilisação de Roma apenas os attingiu, deixando entre elles poucos
vestigios. A invasão germanica repelliu-os diante de si, mas não os
penetrou.»[125] É natural que o elemento kymrico, na Bretanha insular,
conservasse mais intensa a memoria das suas tradições; e que a Bretanha
continental, ou a Armorica, as renovasse mais tarde, pela relação entre
os dois paizes, dando-lhes esse relêvo poetico com que deslumbraram
a Europa no seculo XII. Dois periodos de elaboração se destacam
historicamente; um, que começa no seculo VI da nossa éra, quando se
vulgarisam os cantos dos bardos Taliesin, Aneurin e Liwarc’h-Hen,
e se escutam as melodias da _chrota britana_, os _Lais_ amorosos,
e os Contos maravilhosos do _Mabinogion_; o outro é principalmente
litterario, idealisando as aventuras guerreiras de _Arthur_, os amores
de _Tristão_, de _Lancelot_, de _Merlin_, creando por effeito da
propaganda christã o cyclo dos poemas do _Santo Graal_. Se o elemento
tradicional foi principalmente elaborado na Bretanha insular, na
Bretanha franceza é que esses themas tiveram o seu desenvolvimento
artistico, espalhando-se pelos menestreis normandos por toda a Europa.
Renan define essa primeira época de revivescencia poetica da raça
celtica: «O sexto seculo foi para as raças celticas esse momento
poetico do despertar, e da sua primeira actividade. O christianismo,
recente ainda entre ellas, não tinha completamente abafado o culto
nacional; o druidismo defende-se em suas escholas e nos seus logares
consagrados; a lucta com o estrangeiro, sem a qual um povo nunca chega
á plena consciencia de si proprio, attinge o seu mais alto gráo de
vivacidade.--O sexto seculo, é effectivamente, para os povos bretãos
um seculo perfeitamente historico.»[126] Basta-nos fixar esta época
para determinar desde quando se espalham os cantos lyricos bretãos,
que adquiriram um certo interesse até ao ponto de se desenvolverem
em poemas de aventuras. As melodias e instrumentos musicos bretãos,
como a _rhota britana_, citada nos versos de Venancio Fortunato, são
levados por todas as côrtes da Europa por cantores vagabundos, desde
o seculo VI até ao XII seculo. Falla-se no poema de _Guillaume au
Court-nez_, no prazer de ouvir _cantos bretãos_ entre os prazeres do
vinho e da caça. Eram esses cantos os _Lais_, principalmente agradaveis
ás mulheres, como o revela Denys Pyramus: «_Lais_ soulent as dames
plaire.» Juntamente se espalhavam os cantos narrativos, a que se
chamava _Bairtni_, designação que se encontra no Arcipreste de Hita
como nome de um instrumento musico, e que o rei Dom Duarte, no _Leal
Conselheiro_ emprega como o narrador de contos: «em tal maneira que
não pareça que os _albardões_ tem mais sabedoria que nós, por que
elles nom se trabalhom d’arremedar as _estorias_ melhores, mas que
lhe som mais convenientes.»[127] A palavra _albardeiro_, empregada
por Gil Vicente como exprimindo a sua vêa comica parece ligar-se a
esta funcção narrativa; assim como as palavras _Fatiste_ no tempo
de Francisco I significando compositor «de jeux et novalités»[128]
e o portuguez _Fadista_, cantor de narrativas, se ligam ao nome de
_Faith_, dado na Irlanda aos cantores ou vates. O bardismo, perdido
já o seu caracter sacerdotal, conservou-se como um mister de cantores
vagabundos: «instituição que atravessou seculos e tornou-se uma feição
caracteristica dos costumes gaulezes e irlandezes da Edade media,»[129]
como o affirma Belloguet. Ao colligir as leis consuetudinarias
cambrianas, no seculo X, estatuia Hoel o Bom ácerca d’estes Bardos:
«Quando a rainha quizer ouvir um canto, o bardo domestico será obrigado
a cantar um á sua escolha, _mas em voz baixa_, ao ouvido para que a
côrte não seja perturbada.» Com o nome de _Segrel_ (de _Secretela_, na
baixa latinidade) encontra-se nas côrtes peninsulares uma classe de
cantores que não são nem jograes, nem trovadores. Pela caracteristica
do canto modulado em voz baixa, como se exige nas _Leges Walliae_,
e pela frequencia dos _Lais_, que achamos citados nos Cancioneiros
portuguezes, este nome de _Segrel_ designa o cantor das melodias
bretãs. Já no seculo XII o trovador Geraud de Riquier fallava d’esta
classe de cantores da côrte: «E ditz als trobadors--_Segriers_ por
totas corts.» E no Regimento da Casa de D. Affonso III, de 1245,
acha-se estabelecido: «Elrei aia trez jograres em sa casa e nom mais,
e o jogral que veher de cavallo d’outra terra, ou _segrel_, lhe dê
elrei ataa cem (maravedis?) ao que chus der, e nom mais, se lhe dar
quizer.»[130] Muitos trovadores portuguezes alludem a este nome; como
Affonso Eanes de Coton:
a todo o escudeyro que pede don
as mays das gentes lhe chamam _segrel_...
(Canç. 556)
Abril Peres, satyrisando Bernal de Bonaval, refere-se á situação de
dependencia do _segrel_ (Canção n.^o 663); e o jogral Picandon,
respondendo a um apodo de João Soares Coelho, exalta a sua categoria
dizendo:
gram dereyt’ey de ganhar dões,
e de seer en corte tan preçado
como _segrel_...........
A estas melodias bretãs refere-se o trovador catalão Guerau de Cabrera,
como um talento distinctivo: _á tempradura de Breton_; e no
romance de _Raoul de Cambrai_ aponta-se os musicos bretãos como os
melhores: «_Harpent Bretons_ et viellent jougler.» E no _Lai de
l’Épine_, de Marie de France, cita-se o lai d’Aielis cantado por um
irlandez ao som da _rota_ bretã:
Le _lais_ d’Aielis
Que uns _Yrois_ doucement note
Mont le sonne ens sa _rote_.
Vê-se que a fórma lyrica bretã do _Lai_, que encantava a Europa,
tinha tambem de reflectir-se em Portugal; o trovador Gonçalo Eannes do
Vinhal allude á imitação constante de cantares:
senon aquestes de _Cornualha_,
mays estes seguidos ben sem falha,
e nom vi trobador per tantos logares.
(Canç. 1007.)
Em uma canção de Fernão Rodrigues Redondo, (n.^o 1147) refere tambem
esta fórma: «Muy ledo seend’hu cantara seus _lays_...» O lay
tornou-se narrativo, vindo a desenvolver-se nos longos e interessantes
poemas de aventuras e amores. No _Cancioneiro Calocci-Brancuti_
foram colligidos cinco Lais, dos que estavam mais em voga na côrte de
D. Diniz; são o _Lai de Elis o Baço_, trez de _Don Tristan_,
e o _Lai das Quatro Donzellas_. No _Poema de Alfonso Onzeno_,
do seculo XIV, falla-se em: «_la farpa de Don Tristan_.»
O enthuziasmo pelos cantos lyricos provocou o seu desenvolvimento em
poemas narrativos da Bretanha; assim, figuras quasi sem realidade
historica, como o rei Arthur, servem de thema ás ficções da _Tavola
Redonda_, e ás reminiscencias das luctas da nacionalidade celtica
contra os Romanos e Saxões; e Merlim, ultimo vestigio da resistencia
do druidismo contra o christianismo, não achando mais interesse nas
prophecias, torna-se o amante da fada Viviana; os amores de _Tristão
e de Yseult_, de _Flores e Brancaflor_ fascinam todos os povos
da Europa, e para satisfazer esse interesse, desenvolvem-se em extensas
novellas. É na Bretanha continental que estes assumptos são elaborados
no seculo XII, e propagados pelos Normandos: «Cousa estranha! foram os
Normandos, isto é, de todos os povos o menos sympathico aos Bretãos,
que espalharam a fama das fabulas bretãs. Espirituoso e imitador, o
Normando tornou-se por toda a parte o representante eminente da nação á
qual anteriormente se impuzera pela força. Francez em França, inglez em
Inglaterra, italiano na Italia, russo em Novegorod, o normando esqueceu
a sua propria lingua para fallar a lingua do povo que elle tinha
vencido e tornar-se o interprete do seu genio. O caracter vivamente
accentuado dos romances gaulezes não podia deixar de ferir homens tão
promptos a apanhar e assimilar as ideias do estrangeiro. A primeira
revelação das fabulas bretãs, a Chronica latina de Geoffroy de
Monmouth, appareceu por 1137, sob os auspicios de Robert de Glocester,
filho natural de Henrique I. Por estas mesmas narrativas se apaixonou
Henrique II, e a seu pedido Robert Wace escreveu em francez, em 1155,
a primeira historia de Arthur, e abriu a marcha a que se arrojou uma
multidão de poetas ou de imitadores francezes, provençaes, italianos,
hespanhóes, inglezes, scandinavos, gregos, georgianos, etc.»[131]
Os elementos d’estes poemas são vagos dados historicos, que pela sua
obscuridade foram desenvolvidos em lendas, que se ampliaram depois
em phantasias poeticas; esses dados historicos resumem-se em dois
factos, um _politico_, que se refere ás luctas com que o rei Arthur
sustentou a liberdade nacional da Bretanha contra a invasão dos
Saxões; o outro é _religioso_, consagrando a resistencia com que a
Bretanha se considerava christã pela doutrinação evangelica de Joseph
ab Arimathia, e por tanto independente da Egreja de Roma á qual se
tinham convertido os Saxões. Tal é o dado essencial dos poemas do
_Santo Graal_ e da Cavalleria celeste, que deriva d’essa autonomia
das Egrejas nacionaes da Francia meridional e da Hespanha, que se
consideravam proto-cathedricas. Foram os Normandos que se apropriaram
d’estes germens épicos da Bretanha insular e lhe deram o brilhantismo
com que seduziram o mundo; e por isso mesmo que essas tradições não
eram suas, mais as diluiram no vago, no maravilhoso, fazendo o
syncretismo de todas as ficções provenientes de varios povos pelo
encontro das Cruzadas, pelas relações com os Arabes, pela leitura da
Biblia e dos escriptos dos rabbinos convertidos e já pela erudição
da Antiguidade classica.[132] Os Normandos, occupando a Inglaterra,
pareciam aos Bretãos como que os seus vingadores sobre os seus antigos
dominadores Saxões: «os Bretãos não estiveram longe, se dermos credito
a algumas indicações contemporaneas, de vêrem no vencedor de Harold
um libertador, quasi uma incarnação do rei Arthur. Os companheiros de
Guillaume podiam então acceitar, como cantos de sua propria gloria,
as tradições poeticas creadas pelo odio ao Saxão que elles acabavam
de vencer pelas armas, mas que não estavam ainda subjugados nem
socialmente, nem politica, nem religiosamente. Qualquer que fosse a
sympathia que os novos conquistadores pudessem sentir pela poesia das
populações indigenas, qualquer que fosse a relação que taes lendas
pudessem ter com o seu proprio genio, elles eram sempre estrangeiros,
estrangeiros orgulhosos, e arrogando-se o direito de tratarem como
senhores a litteratura bretã. A lingua empregada n’esta litteratura
não lhes era familiar, a significação d’estas tradições era para elles
obscura, e não comprehendiam bem o alcance philosophico e patriotico;
não penetravam todo o conjuncto dos cantos dos bardos, e o vago que
era inherente a estes cantos tornava-os mais obscuros, e para elles
os fazia ainda mais ideaes.»[133] Era esta situação que dava aos
troveiros normandos a liberdade de crearem sobre vagos nomes de heroes
e de symbolos nacionaes essa riqueza phantastica dos poemas da _Tavola
Redonda_ e do _Santo Graal_, confundindo com figuras historicas fadas,
gigantes, anões e adivinhos, animaes monstruosos, dragões, bebidas
magicas e philtros amorosos, encantamentos, e poderes talismanicos das
espadas invenciveis. Compondo especialmente para as côrtes, exaltavam
a galanteria e tornavam-n’a o culto da mulher, aproveitando assim a
tendencia iniciada pela idealisação dos trovadores. O symbolismo da
Cavalleria, dos passos de armas, dos torneios, dos votos denodados,
lisongeava a paixão dos Barões feudaes, que iam decahindo diante
da crescente dictadura monarchica. E como as Cruzadas acabavam, a
imaginação dos nobres precisava de uma outra cruzada, a da Cavalleria
celeste em procura do _Santo Graal_, vindo assim a confundirem-se
os dois cyclos poeticos, mais mysticos nos poemas dos minnesingers
allemães, mais guerreiros e amorosos entre os troveiros francezes. Essa
fecundissima actividade poetica que veiu sobrepôr-se á imitação das
Canções dos trovadores e á attenção pelas Gestas frankas, espalhava por
toda a parte os romances da Tavola Redonda, em prosa: o _Santo Graal_ e
_Demanda do Santo Graal_, o _Tristão_, _Lancelot_, _Merlin_, _Morte de
Arthur_, _Giron le Courtois_, _Palamedes_, _Meliadus_; e em verso os
romances do _Perceval le Gallois_, _La Charrette_, _Chevalier au Lion_,
_Erec et Enide_, _Cliges_, _Loucura de Tristão_, _Frejus_, _Jaufre_,
_Atre périleux_, _Claris et Laris_, _Chevalier à l’Epée_ e _La Dame à
la licorne_.
Todas estas ficções lidas e escutadas nas côrtes tendiam a confundir-se
na imaginação produzindo situações romanescas, que vieram depois a
constituir uma nova fórma de idealisação--a Novella de Cavalleria, de
que o typo fundamental é o _Amadis de Gaula_. Os nomes dos personagens
d’estes poemas foram adoptados na sociedade civil em Portugal, e é
frequente encontrarem-se nos Nobiliarios as _Viviana_, _Iseu_, _Ausea_
ou _Ausenda_ (de Yseult), as _Ginebra_ (de _Gwenivar_), as _Briolanja_
(Brengienne), os _Arthur_, _Percival_, _Lisuarte_, _Lançarote_,
_Tristão_, desde o seculo XIV até ao fim do seculo XV. Que prova mais
evidente do interesse que produziram em Portugal os poemas da Tavola
Redonda.
Esta nova corrente litteraria e erudita veiu interromper a elaboração
e a propagação das Gestas frankas: em 1155 estavam as Gestas no seu
esplendor e fecundidade, quando appareceu o _Roman de Brut_, de
Robert Wace, d’onde diffluiram depois todos os romances da Tavola
Redonda. A Bretanha insular e a Armorica provindo de uma mesma origem,
collaboraram diversamente n’estes poemas que tiveram por centro o rei
Arthur; as tradições bardicas e mesmo christianisadas conservaram-se
nas populações insulares, mas só foram desenvolvidas litterariamente
pelos troveiros normandos ou continentaes. Foi assim que a Inglaterra
recebeu a sua materia poetica elaborada artisticamente pelo genio
gallo-bretão. Paul Meyer fundamentou este facto: «que o francez
tendo-se implantado em Inglaterra depois da conquista, a litteratura
das classes elevadas foi, durante mais de dois seculos, inteiramente
franceza, não só pela origem, como pela lingua.»[134]
O _Roman de Brut_, de Robert Wace, acha-se aproveitado como
documento historico pelo Conde Dom Pedro no seu _Nobiliario_,
fazendo a genealogia e contando o nascimento do rei Arthur:
«E hum dia teue corte (o rei Uterpandragon) e forom hi todos seus ricos
homeens com sas molheres. E veo hi hum Conde de Cornoalha e trouve hi
sua molher que avia nome Ygerna, e veo muy bem afeitada e muy ricamente
aparelhada, e ella era a mais fermosa molher de toda a terra. E quando
vieerom aa mesa hu se assentou elrrey a comer oolhoua elrrey e nom
pode mais comer, tanto se pagou d’ella, e nom fazia all senon oolhala
dos olhos. E pensou em seu coraçom que se com ella nom jouvesse que
morria. Este Conde seu marido soubeoo e levantou-se da mesa com sa
molher e foysse para huum seu castello que avia nome Tinteol. E elrrey
foyo cercar com toda sua oste, e emviou por _Merlin_ e veo a
elle por seu comsselho e ouve elrrey por molher esta dona, e ouve
della huum filho que ouve nome _Artur_ o que disserom _Artur
de Bretanha_, onde ouvistes fallar que foy muy boo.»--«Morreu
Uterpandragom e rreynou seu filho Artur de Bretanha, e foy boo rey e
leal, e conquereu todollos seus emmiigos e passou por muytas aventuras
e fez muytas bondades que todollos tempos do mundo fallarom delle. Este
rrey Artur fez huum dia em Chergeliom (Caerleon) sa cidade cortes. E
estas cortes forom muy boas e muy altas. A estas cortes veerom doze
cavalleiros messageiros que lhe enuiaua Luçius Liber que era emperador
de Roma que sse fezesse seu vassallo rey Artur e que teuesse aquella
terra de sua mãao. E se esto não fezesse que lhe mandaria tolher a
terra por força e que faria justiça de seu corpo. Quando esto ouviu
o rrey Artur foy muito irado e mandou chamar toda sa gente que armas
podiam levar. E quando foy a Sam Miguel em monte Gargano combateosse
com o gigante que era argulhoso e vençeo e matou; o Luçius Liber
quando soube que rey Artur hia sobre elle chamou sa oste e toda sa
gente e sayolhe ao caminho. E lidarom ambos e vençeo elrrey Artur foy
arrancando ho emperador. E elrrey Artur quando moveu da Bretanha por
hir a esta guerra leixou a sa terra a huum seu sobrinho que havia nome
Mordech.»--«Este Mordech que avia a terra em guarda do rrey Artur e a
molher quando elrrey foy fóra da terra, alçousse com ella e quislhe
jazer com a molher. E elrrey quando o soube tornousse com sa oste o
veo sobre Mordech. E Mordech quando o soube filhou toda sa companha e
sayo a ella aa batalha. E elles tiinham as aazes paradas para lidar
no monte Cambelet, e acordousse Mordech que avia feito grande traiçom
e se entrasse na batalha seria vençido. E enviou a elrrey que saysse a
departe e falaria com elle, e elrrey assy o fez. E elles que estavam
assy em esta falla sayo huma gram serpente do freo a elrrey Artur, e
quando a vyo meteo mãao aa espada e começou a encalçalla e Mordech
outrossi. E as gentes que estavam longe viram que hia huum apos ho
outro, e foramsse ferir humas aazes com as outras e foy grande batalha,
e morreu Galuam (_Gauvain_) o filho do rrey Artur, e huma espadada
que trazia sobressada, que lhe dera _Lançarote do Lago_ quando
entrara em reto ante a cidade de Ganes. Aqui morreu Mordech e todollos
boos caualleiros de huma parte e de outra. Elrrey Artur teue o campo e
foy mal ferido de trez lançadas e de huma espadada que lhe deu Mordech,
e fezesse levar a _Islaualon_ (ilha de Avalon) por saar. D’aqui
em diante nom fallemos d’el se he vivo se he morto, nem _Merlin_
nom disse del mais, nem eu nom sey ende mais. _Os bretões dizem que
ainda he vivo._»[135] Vê-se por este trecho, que o Conde D. Pedro
estava ao facto da litteratura da Tavola Redonda seguindo o _Roman
de Brut_, de Robert Wace, e referindo-se ás outras composições dos
troveiros normandos, _Merlin_ e _Lançarote do Lago_, que
ainda no seculo XV citava o chronista Azurara. Estava esta litteratura
artificiosa em harmonia com os habitos da côrte do rei Dom Diniz,
e facilmente se apoderou da predilecção dos trovadores portuguezes;
Estevam da Guarda, favorito de Dom Affonso III, falla em uma canção dos
amores de Merlin com a fada Viviana:
Como aveo a _Merlin_ de morrer
per seu gram saber, que el foy mostrar
a tal molher, que o soub’enganar...
.........................................
E o que lhe é muyto grave de teer
por aquelo que lh’el foy mostrar,
en estar com quem sabe que o pod’ensarrar
en tal logar hu convem d’atender
a tal morte da qual morreu _Merlin_
hu dará vozes fazendo ssa fin,
ca non pode el tal morte escaecer.
(Canção n.^o 930.)
O conhecimento das prophecias e aventuras de _Merlin_ transparece
no Poema de Affonso Onzeno, e na livraria do rei D. Duarte vem
catalogado o livro de _Merli_ (do bretão _Myrdhinn_.) No
_Cancioneiro geral_, de Resende, falla Diogo de Pedrosa na lenda
dos amores do propheta bretão:
O que foy d’esse _Merlyn_
E d’outros antes d’aguora,
Ysso ade ser de mym
Por vossa filha senhora.
(Fl. 57.)
As allegorias do _Leão dormente_ e do _Porco selvagem_, que
das prophecias de Merlin passaram para o poema da batalha do Salado,
tambem se reflectem nas prophecias de Bandarra no seculo XVI, da mesma
fórma que a lenda da immortalidade e vinda do rei Arthur para vingar
a raça bretã, se personificou em D. Sebastião, vivendo em uma ilha
encantada para vir fazer de Portugal o _Quinto Imperio_ do mundo.
Junto com o livro de _Merlin_ andava tambem o poema de _Tristão_, nos
manuscriptos da Edade media. Na côrte de Dom Diniz era _Tristão_
considerado o typo ideal do namorado, e o proprio monarcha trovador diz
que o excede:
Qual mayor poss’e o muy namorado
_Tristã_, sey ben que non amou _Iseu_,
Quant’eu vos amo, certo sey eu...
(Canç. n.^o 115.)
E compara-se tambem a outro modelo dos amantes exaltados, idealisado no
romance de _Flores e Brancaflor_, que se liga pelo encadeamento
cyclico ás gestas carlingias. Os trovadores provençaes citavam esse
typo do namorado:
Quar plus m’en mi abellida
Non fis _Floris_ de _Brancaflor_[136]
E o rei Dom Diniz empregava a mesma comparação:
Qual mayor poss’e o mays encoberto
que eu poss’e sey de _Brancha frol_,
que lhi non ouve _Flores_ tal amor
qual vos eu ey;..............
O thema da fidelidade no amor tornou-se quasi exclusivo nos poemas de
aventuras, em que degeneraram os da Tavola Redonda; sobre o sentimento
de _fidelidade_ se elaboraram os poemas _Meliadus de Leonys_, _Frejus
et Galienne_, _Claris et Laris_, _Helias_, _Chevalier de la Charrette_,
_Partenopeus de Blois_, destacando-se d’entre todos elles pelo seu
exagero vertiginoso os poemas de _Amadas et Ydoine_, conhecidos na
Hollanda, Allemanha, Borgonha, Inglaterra, Hespanha e Portugal já nos
fins do seculo XIII. Em varios fableaux apparece frequentemente citado
o nome de _Amadas_, como o ideal da fidelidade em amores; não admira
que sobre este rudimento novellesco, se agrupassem todas as aventuras
da fidelidade amorosa dos poemas conhecidos na côrte de D. Diniz,
dando a novella em prosa do _Amadis de Gaula_. De toda essa elaboração
poetica dos troveiros normandos, conhece-se hoje apenas dois poemas,
o _Amadas et Ydoine_, por Jean de Mados, e _Sir Amadace_; mas além
d’estas versões franceza e ingleza, é crivel que existissem pelo menos
uma outra neerlandeza anterior a 1290, e uma allemã. De uma versão
que chegou á côrte de Dom Diniz é que Lobeira (João, antes de Vasco)
elaborou por amplificação e syncretismo a novella de _Amadis de Gaula_,
que por seu turno conquistou todas as imaginações na Europa, mesmo na
época da Renascença. O phenomeno litterario de um poema em verso, quer
seja _Amadas et Ydoine_, _Sir Amadace_, ou qualquer outra redacção
passar á prosa de uma extensa novella como o _Amadis de Gaula_, era
frequente na Edade media. O poema de _Blanchefleur_ converteu-se na
mão de Boccacio no _Filicopo_, novella desenvolvida largamente á custa
da simplicidade primitiva do poema. D’este facto conclue Du Méril: «Os
habitos litterarios da Edade media complicam desgraçadamente todas as
questões de origens com difficuldades insoluveis, se se não deixar ao
sentimento o tirar as conclusões, quando escaceando os dados precisos,
o raciocinio se dá por incompetente.»[137] Quem escreveu a Novella
tinha presente na imaginação as situações dos romances que então mais
lisongeavam o gosto da aristocracia no seculo XIV; poz em prosa as
aventuras cavalheirescas mais conhecidas e sympathicas, e attribuiu-as
a um mesmo typo, tambem já conhecido e idealisado em varios poemas
em verso. Originalidade poetica, nenhuma litteratura da Edade media
a tem, nem mesmo a franceza: os themas tradicionaes são communs a
este syncretismo das raças. O que interessa na novella do _Amadis de
Gaula_ é a fórma em prosa, e essa é um producto que mais caracterisa a
litteratura medieval portugueza.
Na discussão da origem do _Amadis_ o sabio Victor Le Clerc
assentou o problema definitivamente: «a primeira redacção do famoso
_Amadis de Gaula_, que todavia não é, como se vê pelo texto mais
antigo hoje conhecido o hespanhol, senão uma imitação prolixa dos
poemas da Tavola Redonda e dos Romances de aventuras, taes como o nosso
romance de _Amadas_.»[138] N’este monumental Discurso, escreve:
«Nos _Amadises_, os quaes são _derivados dos Lancelot e dos
Tristãos_, e aonde se tem querido vêr o ideal do amor cavalheiresco,
a bella Oriana concede tudo antes do tempo tanto esperado em que os
imperadores e os reis hão de vir assistir ás nupcias.»[139] E apresenta
o problema da origem litteraria com toda a segurança:
«Quando o poema francez de _Amadas_, que em 1365 fazia parte
dos livros de um conego de Langres e que ainda subsiste, tiver sido
vulgarisado; quando o poderem comparar ao _Amadace_ inglez,
áquelle bravo, que os fragmentos publicados em 1840 e 1842, segundo
differentes textos manuscriptos, concordam em represental-o como o mais
brilhante modelo de lealdade, de bravura e de respeito cavalheiresco;
quando principalmente se fizer uma ideia mais justa e mais completa
da alluvião de romances em prosa que, nos primeiros cento e cincoenta
annos da imprensa, para corresponder, tanto em Hespanha como em França,
ao enthuziasmo da moda, multiplicaram á compita os nossos antigos
poemas, alongando-os com digressões importunas, conversas alambicadas,
com uma ampla brigada de gigantes, fadas, encantadores, será então
occasião de perguntar, se foi sem fundamento ou se com rasão que o
velho traductor francez do _Amadis_ hespanhol, Herberay des
Essarts, nos disse que descobrira _alguns fragmentos escriptos á mão
em lingua picarda_, e de decidir se este romance de aventuras, cujo
plano pouco se prestava aos embelecos do perfeito amor, por isso que
começa por onde outros acabam, nasceu em Portugal, em Hespanha ou em
outra qualquer parte.»[140] Du Tréssan, já no seculo XVIII, resumindo
esta novella do _Amadis de Gaula_, tambem declara ter visto
na Bibliotheca do Vaticano, o antigo poema no fundo que pertencera
á rainha da Suecia, cujo exame lhe fôra facultado pelo cardeal
Querini.[141] Da mesma opinião de Le Clerc é Littré: «_Amadas_
lembra o cyclo dos _Amadises_, que certamente hespanhol no
seculo XV, tem por ventura ligações com mais antigas composições
francezas.»[142]
Dando-se a transformação de um poema versificado para prosa dramatica e
descriptiva, com o intuito de ampliar um thema favorito, as analogias
entre as duas composições não devem ser procuradas na fórma mas no
pensamento e situações que o desenvolvem. A novella de _Amadis de
Gaula_ foi lida e admirada durante toda a Edade media pelo vigor do
thema da fidelidade dos dois amantes _Amadis e Oriana_; o romance de
_Amadas et Ydoine_ foi egualmente inspirado pelo mesmo sentimento
de fidelidade. Identidade completa de thema: tanto _Amadas_ como
o _Amadis_ servem na côrte de um rei, por cuja filha _Ydoine_ ou
_Oriana_ (temos a fórma _Idana_) se apaixonam, e para merecerem-a vão
nobilitar-se nas armas para serem primeiramente armados cavalleiros.
É durante as longas e arriscadas aventuras que tanto o donzel como a
filha do rei se mostram animados de uma sublime fidelidade, terminando
a acção por se unirem como sonhavam. Na redacção em prosa, tanto pelo
seu caracter como pelo gosto do tempo, os innumeros episodios, as
historias genealogicas e os longos discursos fazem esquecer a simples
trama, que facilmente se aproximaria da versão poetica d’onde tirou os
elementos originarios. _Amadis_, apezar da nobreza do seu nascimento,
teve uma infancia obscura, e sómente pelo seu garbo e gentileza é que
foi tomado pelo rei Languinés de Escossia para a sua côrte; _Amadas_
tambem occupava na côrte do Duque de Borgonha um logar secundario
como filho do senescal. _Oriana_ é filha do rei Lisuarte, e na côrte
de Languinés é que _Amadis_ a encontrou na festa á sua chegada da
Dinamarca. Foi n’esta situação que nasceu o amor de _Amadis_, do mesmo
modo que o de _Amadas_ por _Ydoine_: «Amadis tinha então doze annos,
mas pelo seu corpo e pelos seus membros bem parecia ter quinze; servia
a rainha e era muito amado d’ella e de todas as damas e donzellas; mas
logo que ali chegou _Oriana_, filha do rei Lisuarte, a rainha lhe deu o
Donzel do mar para a servir, dizendo:--Amiga, eis aqui o garção que vos
servirá. Respondeu ella: Que era do seu agrado. Esta palavra penetrou
por tal fórma o coração do donzel, que d’ali em diante nunca mais lhe
saiu da lembrança. E nunca, como esta historia o conta, em dias de sua
vida se enfadou de a servir, e seu coração lhe foi sempre dedicado, e
este amor durou tanto quanto ambos viveram.»[143]
No romance de _Amadas_ repete-se esta situação; o senescal n’esse
dia veiu servil-o á meza, como lhe competia, e a seu lado seu filho
_Amadas_ ia-o ajudando; foi então que o Duque mandou o donzel
servir a sua filha _Ydoine_.[144]
Nas referencias que alguns poetas castelhanos do seculo XIV fazem do
_Amadis_, como Pero Ferrus, Fray Miguel, Micer Francisco Imperial e
outros, tudo leva a crêr que alludiam á _fórma poetica_ do romance
assim conhecido em Hespanha. Ferrus cita o _Amadis_ junto com o _Rei
Arthur_, _Dom Galaaz_, _Lançarote_, _Carlos Magno_, _Tristão_ e
_Roland_, que eram escriptos em verso. As allusões constantes que
se encontram no _Amadis_ aos romances do cyclo da Tavola Redonda e a
outros de origem franceza, mostram claramente que esse thema não é uma
invenção do genio portuguez, mas que foi em Portugal que essa ficção
recebeu a fórma em prosa com que se universalisou.[145] No texto da
versão hespanhola de Montalbo, e no Cancioneiro Colocci-Brancuti estão
as provas irrefragaveis da primitiva redacção portugueza: são a rubrica
ácerca da emenda do episodio de Briolanja, e a canção de João Lobeira,
_Leonoreta_, que o traductor castelhano deturpou não conhecendo a fórma
estrophica.
Os romances da Tavola Redonda fizeram decahir de interesse as Gestas
carlingias, exclusivamente guerreiras, e actuaram tambem para que a
poesia lyrica trobadoresca bastante subjectiva fosse substituida pelas
narrativas apaixonadas das novellas de aventuras. Com o falecimento do
rei D. Diniz decahiu na côrte a lyrica trobadoresca; a sua paixão pela
eschola provençal, causára essa exuberante actividade poetica da sua
côrte, centro a que convergiam os jograes da Galliza, Catalunha, Leão,
Aragão e Castella, e até os seus bastardos, D. Affonso Sanches e D.
Pedro o lisongeavam metrificando com esforço, ou colligindo canções. Em
uma canção de Joham jogral, fixa-se esta decadencia pela morte do rei:
Os trobadores que poys ficarom
En o seu regno e no de Leon,
No de Castella, no de Aragon
Nunca poys de sa morte trobarom.
(Canção n.^o 708.)
Por morte do Conde D. Pedro, elle deixou o seu _Livro das Cantigas_ a
Affonso XI, de Castella, por que em Portugal Affonso IV não apreciava
as manifestações do lyrismo trobadoresco. E este desprezo continuou-se
nos successivos reinados, persistindo cada vez mais o enthuziasmo pelas
novellas de Cavalleria, como vêmos nas côrtes de D. João I, D. Duarte
e D. João II, em que se lêem a _Demanda do Santo Graal_, _Merlin_,
_José Ab Arimathia_, _Cavalleiro do Cysne_, _Galaaz_, e outras muitas
novellas. A poesia lyrica, revelada tão brilhantemente na côrte de
D. Diniz, tornou-se um pallido reflexo da castelhana no seculo XV,
e só tornou a reflorir depois do primeiro quartel do seculo XVI, em
consequencia de Sá de Miranda trazer a Portugal a nova Eschola italiana.
A nova phase do perstigio das Novellas da Tavola Redonda não
corresponde a uma realidade, isto é, aos habitos sociaes da época;
entravamos no seculo XV, na corrente da burguezia e da prosa, na
creação da historia e da legislação sem symbolos, sob a dictadura do
poder real. Não havia pois logar para a cultura do individualismo
heroico da Cavalleria; a justiça do rei, como o revela o grito popular
_Aqui d’Elrei_, não permittia a intervenção generosa de qualquer
senhor. E é precisamente na côrte de D. João I que se encontra o mais
exaltado prurido pela leitura e imitação das novellas da Tavola Redonda
e dos seus heroes, chegando os seus nomes a serem reproduzidos nas
familias aristocraticas. Explica-se esta antinomia; primeiramente D.
João I era um bastardo, que achando-se no throno, quiz cercar-se de
todos os symbolismos da soberania e do fausto cavalheiresco; depois
pelo casamento com D. Philippa de Lencastre imita o cerimonial da
côrte ingleza e toma conhecimento dos livros ahi mais predilectos
entre a nobreza. O francez era então usual na côrte de Inglaterra.
Convinha mais á côrte portugueza a leitura das novellas com aventuras e
situações ficticias; o cyclo do _Santo Graal_, em que se preconisa
a fidelidade á Egreja, harmonisava-se pelo seu maravilhoso com o nosso
genio celtico. E essas aventuras, como a da Descida aos infernos, a da
descoberta do _Preste João_ (o christianismo entre os Bretãos foi
propagado por discipulos de Sam João) e _Viagens de Sam Brendan_,
influiram no genio aventureiro que levou os portuguezes ás descobertas
maritimas.
Imitava-se o viver idealisado nas novellas de Cavalleria; na
_Chronica de D. João I_ conta Fernão Lopes, que este rei no cêrco
de Coria, se queixára de lhe faltarem cavalleiros como os da Tavola
Redonda, e que agastado Mem Rodrigues de Vasconcellos fôra comparando
os cavalleiros presentes a _Galaaz_, a _Lançarote_, a _D.
Quêa_, allegando pelo seu lado que lhes faltava um bom _rei
Arthur_, flor de liz, que sabia conhecer o valor. Esta anecdota já
andava repetida desde o seculo XIII, em nome do rei Philippe, que se
lamentava de não haver já cavalleiros tão bons como _Roland_ e
_Olivier_. O Condestavel Nun’Alvres queria imitar a virgindade
de _Galaaz_, para manter a pureza da Cavalleria: e faziam-se
votos denodados, como os _Cavalleiros da Madre Silva_, _Ala
dos Namorados_ e _Doze de Inglaterra_. Até nas instituições
sociaes penetrava a imitação artificial das cerimonias e symbolismos
cavalheirescos; basta abrir o _Regimento de Guerra portuguez_,
codificado pelo Infante Dom Pedro, o que correu as Sete Partidas
do mundo, para vêr como debaixo da esquadria logica e unitaria da
codificação romana estabelecida pelos jurisconsultos burguezes,
irrompe o cerimonial novellesco com que um escudeiro devia de ser
armado cavalleiro. E sóbe de interesse esse confronto com o cerimonial
do poema _Ordene de Chevallerie_, de Hugues de Tabarie. As
explicações symbolicas do troveiro francez coincidem com os paragraphos
da _Ordenação affonsina_. É com rasão que se considera o
_Regimento de Guerra_ como o necrologio da cavalleria portugueza;
este ultimo lampejo de vida foi-lhe communicado pela leitura dos
poemas anglo-normandos da Tavola Redonda, que figuravam nas livrarias
régias.
É hoje conhecida a novella portugueza da _Demanda do Santo Graal_, que
possuia D. João I, bem como a rainha Isabel a Catholica e o princepe
de Viana; é uma livre paraphrase da novella franceza _La tierce partie
de Lancelot du lac avec la Queste du Saint Graal et de la dernière
partie de la Table Ronde_. No seu texto fazem-se referencias á redacção
franceza de Robert de Boron, que seguira o paraphrasta portuguez.
D’este manuscripto, a que falta o principio, ha já uma grande parte
publicada pelo Dr. Reinhardsttoetner, que o copiou na bibliotheca
imperial de Vienna. É tambem da época de Dom João I a novella _Livro
de Joseph ab Arimathia intitulado a primeira parte da Demanda do Santo
Graal_; allude a este livro uma passagem do Cancioneiro de Resende em
que falla do Mestre Eschola e da novella (João Sanches, Mestre Eschola
de Astorga, que a mandára escrever.) Tambem no tempo de D. João I foi
lido em Portugal o poema inglez de John Gower, _A Confissão do Amante_,
que Roberto Payno traduziu para portuguez; formado de uma selecção
de contos francezes, de imitações de Jean de Meung, de extractos de
_Lancelot_, de _Amadas_, _Tristan_, _Partenopeus de Blois_, era mais
um vehiculo para nos relacionar com a vigorosa poesia da Edade media
franceza. Na Livraria do rei Dom Duarte, continuou a prevalecer a
sympathia por estes poemas, apesar de ir despontando já a admiração
pelos escriptores classicos. Ali se guardava o _Livro de Tristam_,
por ventura a redacção de Luce de Gast e de Helie de Boron; _Merli_,
que é uma das partes da Tavola Redonda, como se deprehende do exemplar
descripto no catalogo da livraria de Isabel a Catholica; o _Livro de
Galaaz_, que era a leitura favorita do Condestavel; a _Conquista de
Ultramar_, em que uma parte é imitada das aventuras do _Cavalleiro do
Cysne_. Ruy de Pina mostra a influencia d’esta novella na côrte de D.
João II: «antre os quaes ElRei para desafiar as justas que havia de
manter, veeo primeiro momo, envencionado _Cavalleiro do Cisne_ com
muita riqueza, graça e gentileza.»[146] Esta novella começada por Jehan
de Renault e terminada por Graindor, exalta Godofredo de Buillon entre
complicadas scenas de encantamentos e duellos.
As viagens dos monges bretãos, as narrativas do claustro de Cruenferl,
as lendas monasticas de Kadock, Barontus, e de _S. Brendan_
devassando as regiões do norte, contemplando as auroras dos polos e
vendo á superficie dos mares as magnificencias do creador, muitas
o muitas vezes seduziram a imaginação dos primeiros navegadores
portuguezes, attrahidos pelo maravilhoso da geographia antiga. É
admiravel a Odyssea monachal das viagens de _San Brendan_; na
_Chronica da Conquista de Guiné_ cita-as Azurara: «Bem he que
alguns deziam, que passara per ally _san Brandam..._»[147]
As _Ilhas encantadas_, da tradição celtica, surgem vagamente
na imaginação do povo portuguez, que se arroja ás descobertas. E
Camões, profundamente nacional, quando, representando no seu poema o
genio d’este povo, quer consolar os cansados navegantes recorre ao
sonho deleitoso da antiga geographia das Ilhas Fortunatas, Antilia
e Atlantida, no episodio da _Ilha dos Amores_. Egual seducção
com as lendas do _Preste João das Indias_, cuja Epistola desde
o seculo XII circulava na Europa entre as relações apocryphas de
Merlin e de Sam Brendan. Quando a nacionalidade portugueza esteve a
ponto de extinguir-se na incorporação castelhana, foram os sonhos
deliciosos do genio celtico que fortificaram no seu desalento este
povo atraiçoado pelo clero e pela aristocracia. O rei D. Sebastião,
que vivia emballado em sonhos novellescos de imaginarias conquistas,
ao precipitar-se para a catastrophe de Alcacer-kibir, fazia-se
acompanhar pela mesma fórma como os antigos monarchas saxões, que
entravam em combate seguidos pelos seus menestreis. O povo sympathisou
com este typo do hallucinado cavalleiro, idealisou-o na sua tradição,
guardou-o, á similhança do rei Arthur, tambem em uma ilha encantada,
d’onde o seu Merlin, Bandarra o sapateiro de Trancoso, prophetisou que
viria tornar Portugal liberto o _Quinto Imperio do Mundo_.[148]
O elemento celtico, que desde muito cedo differenciou Portugal
das populações hispanicas, manifestou-se pela sympathia por estas
ficções gallo-romanas, tornando-as como um dos estimulos da sua acção
historica.
_d_) A CULTURA LATINO-ECCLESIASTICA E HUMANISTA
O conhecimento das obras litterarias da civilisação greco-romana não se
obliterou completamente mesmo nos seculos mais perturbados da Edade
media; mas esta continuidade não contrariou as manifestações do genio
esthetico das raças que entravam na corrente historica. É certo que
quanto mais avançavam para a civilisação, mais se accentuava entre as
novas nacionalidades o antagonismo dos dois espiritos,--o _classico_,
reflexivo, disciplinado e harmonico, e o _romantico_ ou _medieval_,
espontaneo, pessoal e impetuoso. Magnin observa este facto: «de se não
poder encontrar na Europa um lapso de tempo de qualquer extensão em que
tivesse havido uma solução total de continuidade e de esquecimento
completo das tradições antigas. No emtanto, a verdade é, que durante
mais de dez seculos, um espirito novo, violento, inculto, posto que
subtil e delicado á sua maneira, o espirito do norte, emfim, prevaleceu
sobro o genio esgotado de Athenas e de Roma; mas, graças á Egreja, esta
vida potente e nova nunca abafou inteiramente a antiga.»[149] A Egreja
adoptando o latim para a sua liturgia e para a chancellaria papal, e
recebendo da patrologia grega os elementos dogmaticos da sua doutrina,
via-se forçada a manter diante da espontanea actividade dos espiritos
da Edade media o respeito pela civilisação polytheica, que ella
combatia. Nos varios seculos da éra medieval foram conhecidas as
tradições homericas, os poemas de Virgilio e de Ovidio, os tratados
philosophicos de Seneca, e mesmo algumas comedias de Terencio; mas a
Edade media apropriou-se d’elles, imprimindo-lhes o seu caracter,
assimilando-os como productos proprios. O _Renascimento_ ou renascença
do mundo classico, nos fins do seculo XIII com Petrarcha e Boccacio, e
que se continúa com deslumbramento no seculo XV, é esse phenomeno de
erudição e de critica que leva a descobrir o verdadeiro caracter da
civilisação greco-romana. É então que se estabelece o antagonismo dos
dois espiritos. Magnin descreve esse conflicto, que se observa nos
costumes, nas instituições e nas litteraturas: «Desde a sua nascença,
isto é, desde o fim do seculo V, a civilisação moderna foi submettida a
duas influencias em sentido contrario, a influencia do genio romano e a
do espirito do norte, dois elementos cuja opposição, bem que temperada
por um laço commum, o Christianismo, ainda hoje se faz sentir em todas
as controversias que nos agitam.» E conclue d’este dualismo
historico: «se a sociedade europêa existe ainda potente e vivaz depois
de mais de treze seculos, é por que ella preenche a condição a mais
indispensavel aos phenomenos da vida, a de ser o resultado de duas
forças, de dois elementos combinados. Depois da dissolução do Imperio
do Occidente até ao meado do seculo XV, quer dizer, durante o
intervallo ainda imperfeitamente estudado a que se chama _Edade media_,
a influencia da barbarie germanica augmentada, sob os ultimos
Carlingios, com a barbarie scandinava, dominou tudo. Depois do meado do
seculo XV, inversamente, o genio mais clemente da Grecia e da Italia
prevaleceu por toda a parte, mas desegualmente, e são estas
desegualdades mesmo que, mais do que o velho caracter indigena,
constituem a originalidade nacional da França, da Hespanha, da Italia,
da Inglaterra. Seria vantajoso levar até aos seus extremos a eliminação
de um d’estes dois elementos? A ter de optar, qual d’estes nossos dois
troncos originaes o menos esgotado e o mais rico ainda de seiva e de
futuro?--Ha, effectivamente, na sociedade moderna, homens e cousas que
mantêm a dupla e desegual feição da sua complexa origem. Ha homens de
natureza romana, e homens de natureza septemtrional. As letras e a
historia têm em todas as épocas apresentado energicos representantes
d’estas duas familias, estes leaes campeões dos instinctos do
septemtrião, aquelles fieis clientes da policia e da urbanidade
romanas.»[150] A alternancia d’estes dois elementos está ligada á
marcha da civilisação europêa, e acompanha a lucta dos dois Poderes. O
papado inicia as escholas das Collegiadas e chega á fundação do _Estudo
Geral_ para o ensino das Sete Artes. O nome de _latino_ é synonimo de
letrado, de culto e intelligente, d’onde se conserva ainda a expressão
vulgar de _ladino_; o _clericus_ destacou-se do leigo pelo uso do
latim, a linguagem da sciencia, dos altos dignatarios da Egreja, dos
embaixadores e dos homens de côrte, em contraposição com a linguagem do
vulgo, a que chamavam _romance_, como se vê em Benoit de Saint More,
na _Historia de Troya_:
Qui du _latin_ ou je la truis
se j’ai le sens e je le puis
je voudrai ci en _romans_ mettre...
Quando a linguagem vulgar passou a ser escripta, por essa nobilitação
litteraria foi chamada _ladina_; vêmos no _Leal Conselheiro_, do rei
D. Duarte: «e nom screvo esto per maneira scollastica, mas o que leeo
per livros de latym e de toda _lingua ladinha_, do que algũa parte
se me entende, concordo com a pratica cortezã na mais conveniente
maneira que me parece.» (p. 168.) A mesma ideia em Hespanha, como se
vê em Covarruvias: «la gente barbara de España llamava _latinos_ en
tiempo de los romanos á los que hablaban la lengua romana: e como
estos generalmente eran mas sabios que los naturales espanoles, quedó
el nombre de _latinos_ para los que entre elles eran menos bozales, e
de _latino_ se corrompiò facilmente en _ladinho_.»[151] O Poder real
tambem desenvolveu a cultura latina, pela restauração do Direito romano
e pelo estabelecimento das Universidades no seculo XIII. Assim como o
clerigo, o escholar tambem cultiva a lingua latina, e obedecendo ao
espirito sarcastico do seculo faz a parodia das orações e hymnos da
Egreja e dos processos das basilicas ou Curias; fórma-se uma classe
intermedia aos eruditos latinistas e ao povo, a dos _Goliardos_,
que vagam pelas tabernas e empregam as fórmas da poesia popular,
como se vê nas _Carmina Burana_. Existem Pastorellas latinas que são
moldadas nos typos populares occidentaes. A elaboração épica tambem se
apropriou dos themas greco-romanos para as Gestas heroicas; o troveiro
Jean Bodel, define esta classe de assumptos épicos: «De _France_, de
_Bretagne_ et de _Rome la grand_.» Apparecem-nos gestas germanicas sob
as fórmas latinas como o _Waltharius_, e os poemas homericos acham-se
transformados segundo a concepção medieval no _Roman de Troye_, de
Benoit de Sainte More. No romance de _Flamenca_, enumeram-se os
principaes assumptos eruditos que celebravam os jograes: «Um canta de
_Priamo_, outro de _Piramo_; outro da bella _Helena_, como Paris foi
á sua procura e depois a trouxe; outro canta de _Ulysses_, outro de
_Heitor_ e de _Achilles_. Outro canta de _Eneas_ e de _Dido_, como
ella ficou por elle triste e desolada; outro cantava de _Lavinia_
... de _Apollonice_, de _Tideu_, de _Etidiocles_... Um canta do
rei _Alexandre_, outro de _Ero_ e de _Leandro_. Um diz de _Cadmo_ e
sua fuga, e de _Thebas_ como se edificou. Outro cantava de _Jason_
e do _Dragão_; outro de _Philis_ como attenta contra si por amor de
_Demophonte_. Um diz como o bello _Narciso_ se afogou na fonte em
que se mirava. Um diz de _Plutão_ como roubou a _Orpheo_ a sua bella
esposa... Um canta de _Julio Cesar_ como passou sósinho o mar sem
implorar nosso Senhor, por que não conhecia o medo.»[152] Muitos
d’estes poemas existem manuscriptos: na Livraria do rei Dom Duarte
guardava-se a _Historia de Troya_, o _Alexandre_ e _Julio Cesar_.
As lendas de Troya, conhecidas no seculo IX por Macelas, no X por
Constantino Prophyrogeneta; por Suidas no seculo XI, e no XIII por
Constantino Manassés, João e Isac Tzetzés, entraram na corrente das
Escholas Geraes, vulgarisando-se d’ahi para os troveiros. Tambem os
chronistas das novas nacionalidades iam entroncar em Troya a origem
dos povos e estados que historiavam. Os Francezes attribuiam as suas
origens aos Troyanos, como affirmam os chronistas Fredegario, Roricon,
Paulo Warnfried, chegando Dagoberto a declarar em um documento: «_Ex
nobilissimo et antiquo Trojanorum reliquarum sanguine nati._» Luiz
XII na batalha de Ravena usa a divisa: _Ultus avos Trojae_. Tambem
para mostrar a superioridade da Inglaterra sobre a Escossia, Eduardo
III allega ao Papa a sua origem troyana; Veneza, como outr’ora Roma,
considerava um dos seus bairros povoado por foragidos troyanos.
A historia de Portugal tambem se fundou por muito tempo sobre as lendas
de Troya, de varios heroes gregos e patriarchas biblicos; era corrente
a ideia de que _Tubal_ viera ás Hespanhas e fundára Setubal, e _Elysa_,
neta de Noé, fundára Lisboa. Transcrevemos uma pagina caracteristica
d’este systema de historia: «na mais bem apurada chronologia, a _Elysa_
e não a _Luso_, filho ou companheiro de _Baccho_, nem a _Ulysses_, se
deve verdadeiramente attribuir a primeira fundação d’aquelle celebre
emporio do mundo, e a primeira origem dos Luzitanos; pois tudo o mais
que dos outros fundadores posteriores se escreve, dado que assim
succedesse, foi reedificação e augmento e não primeira origem.»[153]
N’esta citação se alludem a todas as lendas greco-romanas, sendo a que
teve mais voga e chegou á transmissão popular a da vinda de _Ulysses_ á
Luzitania e a sua fundação de Lisboa. A fundação da cidade do Porto foi
attribuida por Fr. Bernardo de Brito a _Diomedes_, que veiu á Hespanha
depois de incendiada Troya; e Salgado de Araujo attribuia a mesma
fundação a _Meneláo_, firmado no dizer de Virgilio, de ter-se Meneláo
desterrado depois da guerra troyana para as columnas de Pretheo. A
aldêa de Fão era attribuida á fundação de Phano, rei da ilha de Chio;
um outro erudito, do seculo XVIII, dava como fundador do Porto o
princepe _Callais_, filho de Boreas, rei da Thracia e um dos mais
celebres argonautas. Para os jograes e troveiros por certo influiram as
obras dos pseudo-Dares, pseudo-Ditys e pseudo-Calisthenes; mas para os
chronistas deve essa série de explicações phantasmagoricas derivar-se
dos tratados e dissertações do imaginoso dominicano Anio de Viterbo.
É curioso o reflexo d’este syncretismo na epopêa dos _Lusiadas_, que
tambem diz de _Ulysses_: «se lá na Asia _Troya_ insigne abrasa,--Cá na
Europa _Lisboa ingente funda_.»
O poema de _Alexandre_ era uma das joias da livraria do rei
D. Duarte; no seculo XI um medico de Constantinopla, Simeão Seth,
traduziu para grego a _Historia Alexandri magni regis Macedoniae, de
Proeliís_, que n’esta fórma latina veiu acordar a imaginação dos
troveiros, já como o primeiro modelo da _Vida de Carlos Magno_
attribuida a Turpin, já como norma da chronica do rei Arthur de
Geoffroy de Monmouth e do poema francez _Alexandre_ de Lambert li
Cort. No seculo XVI foi conhecido em Portugal na sua fórma originaria,
em lingua persa; D. João de Castro pedira a Aleixo de Carvalho em 1546,
que lhe procurasse uma _Historia de Alexandre_; dirigiu-se este a
Luiz Falcão, que a obteve do goazil Hemires.[154] Fallando das origens
orientaes da _Historia de Alexandre_, diz Berger de Xivrey,
nas _Traditions Tératologiques_: «além da descripção de muitos
paizes, uns tratavam da viagem ao paraiso, outros da correspondencia
com a rainha das Amazonas, com Didimus ou Lyndimus, rei dos Brachmanas;
digressões de antigos textos gregos e orientaes.»[155] Na livraria de
Jehan de Bourgogne, conde d’Estampes, guardava-se tambem uma _Guerra
de Macedonia_, escripta por Jehan Nanquelin «selon ce que je l’ai
trouvet en ung _livre rimet_, dout je ne sais pas le nom de
l’aucteur, fors qu’il est intitulé _histoire Alixandre_.»[156]
Producto do perstigio das tradições greco-romanas na Edade media é a
_Historia do Imperador Vespasiano_, que Herculano classificou
como o monumento mais curioso da arte typographica em Portugal no
fim do seculo XV; descreve-a da seguinte fórma: «A _Historia de
Vespasiano_ consta de vinte e nove capitulos, nos quaes se tratam
varios feitos d’aquelle imperador e de seu filho Tito e outros que
dizem respeito ao christianismo e á morte de Archeláo e Pilatos.--Fecha
a obra por uma subscripção em que se diz ser impressa por Valentim de
Moravia em Lisboa, no anno de 1496.»[157] E em outro logar desenvolve:
«Esta _Historia de Vespasiano_ não é senão uma novella de
cavalleria pertencente ao cyclo greco-romano. Ha ahi, na verdade,
alguns factos historicos; mas os costumes e as particularidades da
narração não passam de meras ficções. Que a obra seja uma traducção
não nos parece duvidoso. Na subscripção d’ella se diz que fôra ordenada
por Jacob e Joseph ab Arimathia, que a todas aquellas cousas foram
presentes. Isto indica bastantemente a origem estrangeira do livro.
Se, porém, nos lembrarmos de que José de Arimathea figura nos romances
do _Santo Graal_, como tendo recebido o sangue de Christo n’esse
celebre Vaso, é naturalissimo que o novelleiro, auctor da _Historia
de Vespasiano_ se lembrasse de lhe attribuir a propria composição,
tanto mais que era quasi como lei entre os romancistas, dar uma origem
mysteriosa ou ao menos remota ao fructo de suas imaginações. Accresce
para mais fundamentar a nossa opinião, que M. Fauriel menciona uma
_historia-romance_ da destruição de Jerusalem por Vespasiano
escripta em provençal, e que elle classifica como livro connexo com o
cyclo das novellas do _Santo Graal_.»[158]
No celebre manuscripto da _Corte Imperial_, capitulo IX, cita-se
um poema erudito o _Ovidio da Velha_, escripto no seculo XIV
em latim com o titulo _De Vetula_, por Richard de Fournival, e
traduzido para verso francez pelo mesmo tempo por João Lefèvre. Ovidio
e Virgilio foram os dois poetas queridos da Edade media; Virgilio era
tido como o oraculo de toda a sciencia, vendo os theologos n’elle um
propheta, e os jurisconsultos um interprete das leis; Ovidio foi mais
popular, por que as suas _Metamorphoses_ seduziam as imaginações,
e os prégadores moralisavam sobre os seus versos. A predilecção extrema
por Ovidio deu causa a uma immensidade de obras apocryphas, das quaes
o poema _De Vetula_ é um d’esses contos attribuidos no seculo XIV
e XV ao poeta. Eis o trecho da _Corte Imperial_: «bem sabedes que
hun grande poeta muy genhoso e muy sotil ante os outros poetas foy o
que ouve o nome _Ouvidio Naso_ e foi gintil. E este fez muitos
livros antre os quaes antes da sua morte compos hun livro que chama
_Ouvidio da velha_, e este livro foy achado em no seu muymento
cõ os seus ossos en hua cansela de marfim.»--«todas estas cousas
sobreditas que dise o poeta Ouvidio Naso som scriptas em aquele seu
livro que chamam _Ouvidio da Velha_, o qual vós diviades a saber
pelas quaes cousas bem parece que este poeta gintil asás profetizou de
Jehsus xpõ e da sua ley e rraramente segundo avedes ouvido.» No canto
III do poema é que se encontra a referencia da _Corte Imperial_
relativa á influencia dos planetas no apparecimento das religiões. Como
viria para este paiz o poema de Richard de Fournival?
Na côrte do rei D. Duarte já predominava a paixão pelas obras da
antiguidade; no _Leal Conselheiro_ conta as boas conversas que
elle e seus irmãos tinham com o rei seu pae; discutia as regras para
se traduzirem bem as obras classicas; o infante D. Pedro traduziu
para portuguez o livro _De Officiis_ de Cicero, e compilava na
_Virtuosa Bemfeituria_ trechos dos moralistas romanos e dos padres
da egreja. As tragedias de Seneca eram lidas por Azurara, na livraria
de D. Affonso V, herdada de D. Duarte. Essa erudição apparatosa
apparece na encyclopedia moral chamada o _Leal Conselheiro_; o
rei D. Duarte falla já com certo desdem da leitura das novellas: «cá
se o leeren ryjo, e muito juntamente, _como livro de estorias_,
logo desprazerá, e se enfadarom del, por o nom poderem entender nem
renembrar...» (p. 500.) Dos Contos da Edade media ou _Exemplos_,
de que a _Gesta Romanorum_ era a mais afamada collecção, falla
tambem com desdem o rei D. Duarte: «E daquesta guysa erramos per
este desassessego: se no tempo de orar e ouvir oficios divinos,
nos conselhos proveitosos, fallamentos ou desembargos, levantamos
_estorias_ recontando longos _exempros_.» (p. 192.) E falla
das novellas como simples diversão: «para despender tempo ou se
desenfadar com o livro _d’estorias_ em que o entendimento pouco
trabalha por entender ou nembrar.» (p. 7.) No _Leal Conselheiro_
encontra-se o exemplo das _Duas barcas_, (p. 447) e o do _Filho
prodigo_ (p. 61) tão vulgarisado em todas as fórmas da arte da
Edade media. A norma do _Exemplo_ é o conto popular introduzido
nos sermões a pretexto de pela lisonja do gosto tradicional incutir
uma noção de moralidade. A Reforma acabou com os _Exemplos_ nos
sermões; Calvino, na Epistola a Sadoleto, diz que uma parte dos sermões
se gastava: «_em fabulas divertidas_ e especulações recreativas
para excitar e mover o coração do povo á jovialidade.»
Só no seculo XVI é que Gonçalo Fernandes Trancoso, deu redacção
litteraria a Exemplos e Contos da Edade media, não com o espirito
secular e revolucionario de Boccacio, Sacchetti ou Fiorentino, mas com
um intuito catholico de moralisação. Foi principalmente das fontes dos
novellistas italianos que elle se serviu.
Tanto na litteratura hespanhola como na portugueza os ramos
interminaveis do _Roman du Renart_ não chegaram a lançar a sua
efflorescencia; o rigorismo catholico e auctoritario n’estes dois
paizes, não deixaria elaborar esse poema de revolta; escreve Du Méril:
«Nos poemas do _Renart_ não podia haver outra superioridade real senão a
argucia e a força, d’onde resultavam tendencias democraticas e
anti-clericaes, que os impediriam de adquirir uma grande popularidade
nos paizes aristocraticos ou profundamente catholicos. Tambem os
inglezes, os hespanhóes e os italianos não tiveram poemas do
_Renart_.»[159] Em Hespanha o _Renart_ é conhecido com o nome de
_Guinarda_, e em Portugal com o de _Golpelha_(de Vulpecula), e em um
Auto de Jeronymo Ribeiro falla-se em _Raposias_, no sentido de logro
e de argucia.
O cyclo immenso da epopêa burgueza de _Renart_ divulgou entre o
povo um grande numero de anexins, já pela antiga fórma metrica, já
pelas situações comicas a que alludem; encontramos nos escriptores do
seculo XV, e mais frequentemente do seculo XVI:
O Lobo e a _Golpelha_
Fizeram uma Conselha.
A _Golpelha_ (diminutivo de vulpes) é a pequena raposa ladina; na
linguagem castelhana a _Conseja_ ou Conselha é a designação vulgar
do conto tradicional. Um outro anexim:
Da pele alhea
Grande corrêa,
que é commum a Portugal e aos poemas francezes da Edade media, deriva
de um episodio do _Roman du Renart_: «O Leão, diz Fleury de
Bellingen, achando-se afflicto com uma grande febre, mandou chamar a
Raposa, para saber se no seu conselho poderia ter remedio a sua doença;
a Raposa fingindo de medico, lhe disse, que para sua cura precisava
cingir os rins com uma larga cinta tirada de fresco da pele de um Lobo.
Seguindo esta receita, o Leão doente mandou chamar um Lobo, ao qual a
Raposa cortou ao longo do dorso uma comprida e larga corrêa. O Lobo com
as dores uivava desesperado, clamando: Ah, senhora Raposa, da pele que
não é vossa tiraes larga corrêa.--D’aqui ficou o proverbio.»[160] Este
antagonismo entre o Lobo (_Ysengrin_) e a Raposa (_Trigaudin le
Renart_) apparece bem accentuado em outro anexim portuguez: «Com
cabeça de lobo ganha a raposa.» E na farça do _Clerigo da Beira_,
diz tambem Gil Vicente:
Mas são _Lobos_ para mochos,
E _Raposas_ de nação.
(II, 236.)
Uma variedade ou segunda elaboração do _Renart_ é o _Roman de
Fauvel_, em que ha um intuito moral: _Fauvel_ representava as
vaidades do mundo; todos vinham para elle com intuito de o montarem,
mas cahiam estatelados; d’aqui a acção resumida no anexim do seculo
XV: _Tel estrille Faveau, qui puis le mort_, e tambem o titulo
abreviado _Estrille-Fauvel_. Dois anexins portuguezes parecem
derivar-se d’este poema medieval, alludindo á difficuldade de montar o
cavallo-_Fauvel_: «Cavallo-_fouveiro_, á porta do alveitar,
ou de bom cavalleiro.» A locução: «_Montar o cavallinho_,» exprime
o conseguir uma cousa difficil. Tambem em francez: _Piquer le
Renart_, significando beber em jejum, é um modismo ultima diluição
dos episodios da grande epopêa burgueza.
Os jurisconsultos da Europa cavaram a ruina da Edade media; serviram-se
da esquadria da rasão contra os impulsos espontaneos da cavalleria
feudal. Defendendo o povo contra os barões, abafaram a liberdade
popular tirando-lhe as garantias das _instituições locaes_,
unificando-as nos codigos reaes ou _Ordenações_ formados segundo o
espirito do Direito romano ao serviço da dictadura monarchica. Isto se
repetia em Portugal, em contacto com a corrente da civilisação europêa:
ao lado de um Condestavel que imitava no seu heroismo a virgindade
cavalheiresca de _Galaaz_, prepondera o chanceller Dr. João
das Regras, o homem da toga, armado com os textos legaes, com o pezo
da burguezia derruindo o feudalismo. O desembargador Ruy Fernandes
codificando o _Regimento de Guerra portuguez_, como bom legista,
propõe para modelos os feitos dos gregos e romanos. Fallando do cargo
de Alferes, formúla a _Ordenação affonsina_: «Os Gregos e Romanos
forom homeens, que usaram muito de guerrear, e emquanto o fezerom
com siso e entendimento vencerom e acabarom o que quizerom; e elles
forom os primeiros, que fezerom em como fossem conhicidos os grandes
senhores nas Côrtes dos Princepes e nas batalhas, e nos outros feitos
de grande façanha.» E com a preoccupação da antiguidade, transcreve-se
extensamente no _Regimento de Guerra_ a auctoridade de Seneca e de
Aristoteles.
Já para o fim do seculo XVI prevalecia a admiração da antiguidade, que
influia na fórma litteraria da Historia. Villani, ainda no seculo XIV,
confessava que a sua visita a Roma e a leitura dos seus escriptores
lhe revelára o modo de escrever a historia. Em Portugal escreve-se em
latim a historia de Ceuta, por Matheus Pisano, e de Italia é mandado
vir o humanista Justo Baldino, para traduzir para latim as chronicas
do reino. Os costumes palacianos exigem aos fidalgos a cultura do
latim; vive-se em _signo de latim_, como a apoda graciosamente
Ayres Telles. A Edade media ainda sobrevive vagamente em uma ou outra
serodia novella de cavalleria; a antiguidade greco-romana impõe-se
triumphantemente d’entre a crise intellectual do seculo XVI.
=§ 2.--A Renascença=
(HEGEMONIA DA ITALIA)
A França precedeu a Italia na iniciativa e influencia do genio
esthetico na Edade media, como o proclamou Dante com toda a
superioridade do seu espirito; Comte, consignando o facto, explica-o:
«ora esta incontestavel diversidade historica parece-me dever ser
sobretudo attribuida á menor consistencia da ordem feudal na Italia,
apezar da acção mais especialmente favoravel que o catholicismo ali
devia exercer sobre o desenvolvimento inicial das bellas-artes.»[161]
Poderia a Egreja provocar o desenvolvimento da architectura e artes
ornamentaes, mas bastava sustentar o principio de que a sociabilidade
polytheica era inferior á christã, para desviar os espiritos da
admiração das obras da antiguidade. A queda do regimen feudal
envolvendo a do regimen catholico alterou a estabilidade da Edade
media, e deixou as capacidades estheticas sem elementos sérios de
idealisação; tal foi a causa de se procurar na civilisação polytheica
greco-romana, já o typo ideal para a imitação artistica, já as fórmas
sociaes para o estabelecimento de um regimen politico, como se vê no
esforço laborioso dos Humanistas e dos Jurisconsultos. Comte propõe
com a maxima clareza a causa da Renascença: «Se o estado catholico
e feudal tivesse podido persistir realmente, não é duvidoso, a meu
vêr, que a expansão esthetica dos seculos XII e XIII teria adquirido,
pela sua eminente homogeneidade, uma importancia e uma profundidade
muito superiores a tudo o que tivesse podido existir depois, sobretudo
quanto á efficacidade popular, verdadeiro criterio das bellas-artes.
Pela transição rapida, e muitas vezes violenta, que com frequencia
tinha de effectuar-se no decurso d’este grande periodo revolucionario,
e ao qual a progressão industrial tão poderosamente contribuiu, o
genio esthetico teve necessariamente falta de direcção geral e de
destino social. Entre a antiga sociabilidade expirante, e a nova pouco
caracterisada ainda, não pôde bem nitidamente sentir o que devia
sobretudo idealisar, nem sobre que sympathias universaes elle devia
principalmente repousar.»[162] É d’esta instabilidade social que deduz
Comte a «alteração notavel, vãmente qualificada de regeneração das
Bellas-Artes, e que sob muitos aspectos, constituia mais de que tudo
uma tendencia retrograda, inspirando uma admiração muito servil e muito
exclusiva pelas obras primas da antiguidade relativas a um systema
inteiramente differente de sociabilidade.»[163]
Na grande crise revolucionaria, em que á vida guerreira do Feudalismo
se contrapõe a actividade pacifica do proletariado e da elevação da
vida domestica, a expansão industrial vem espontaneamente estimular
as capacidades estheticas. E como a Italia era entre os orgãos da
Republica occidental, a que pela sua separação do feudalismo e regimen
municipalista mais avançava para a liberdade civil da burguezia,
achou muito cedo novos elementos de idealisação, quer na autonomia
critica, como em Dante com a _Divina Comedia_, quer no sentimento
do amor como na _Vita Nuova_ e em Petrarcha nos _Sonetos_
e _Canções_, quer nos quadros da vida domestica, como Boccacio
conseguiu representar nos Contos e Novellas, rudimentos essenciaes
que precederam a caracteristica creação moderna do Romance. Mas a
instabilidade não era simplesmente social; era essencialmente mental,
e foi sob este aspecto que se manifestou o espirito critico contra a
Egreja, e a necessidade de construir uma nova synthese especulativa.
A antiguidade classica apresentava profundos philosophos, para serem
consultados na formação de uma tal synthese, e incomparaveis poetas
e artistas, para fornecerem typos estheticos para a imitação. Assim
a Italia que avançava para o estabelecimento das fórmas definitivas
da litteratura moderna, como se vê pelo lyrismo petrarchista e pelas
narrativas novellescas, ao entrar no seculo XV, e mesmo no esplendor
do seculo XVI, não tornou a appresentar uma pleiada como Dante,
Petrarcha e Boccacio. A imitação da antiguidade classica tornou-se
uma necessidade, uma como disciplina do gosto, na instabilidade das
emoções abaladas pelas alterações do meio social. Observa-o Comte:
«Uma apreciação mal aprofundada, conduz mesmo, ao que me parece, que
a imitação mais ou menos servil da arte antiga, deveu desde logo, por
uma reacção necessaria, tornar-se para a arte moderna um meio facticio
de supprir provisoriamente, ainda que de uma maneira imperfeitissima,
a esta lacuna fundamental, que o progresso da transição revolucionaria
devia tornar cada vez mais funesta á marcha das bellas-artes... Não
podendo achar em volta de si uma sociabilidade bem caracterisada e
assás fixa, a arte moderna imbuiu-se naturalmente da sociabilidade
antiga, tanto quanto podia permittil-o uma ideal contemplação, guiada
pelo conjuncto de monumentos de todos os generos, etc.»[164]
O abandono ou desprezo pelas obras classicas greco-romanas durante a
Edade media, facilitára em certa fórma a espontaneidade e originalidade
do genio esthetico moderno; mas um tal abandono era a consequencia do
desdem com que esse passado e edade polytheica eram considerados pelo
catholicismo em relação ã nova sociabilidade europêa:
«Convém notar, que uma tal tendencia era, na Edade media, intimamente
ligada ao preconceito universal, tão justamente estabelecido pelo
catholicismo, sobre a preeminencia fundamental do novo estado social
comparado ao antigo.»[165] A época da Renascença caracterisa-se por
uma profunda admiração pelas obras e até pela constituição social
d’esse passado polytheico; como se deu uma alteração tão profunda no
gosto e no criterio, apparecendo a Edade media como barbara, como uma
edade de trevas? Desde que a Egreja deixou de acompanhar o progresso
da sociedade europêa, e o Poder espiritual se materialisou nas fórmas
de uma soberania terrena, estabeleceu-se uma reacção nos espiritos,
levando os que eram crentes para a preoccupação de uma Reforma,
dentro da propria orthodoxia da Egreja, e os que se emancipavam da
credulidade, a acharem no estado de consciencia do mundo antigo
greco-romano manifestações mais bellas em quanto á situação moral e
social. A revivescencia das obras primas da antiguidade obedecia a um
certo espirito revolucionario, já contra a Egreja, e mesmo contra as
Monarchias, como se observa no Humanismo francez e no hollandez. Comte
notou um d’estes aspectos revolucionarios: «Esta relação natural, mesmo
ulteriormente contribuiu, em sentido inverso, para a resurreição da
litteratura antiga, na qual tantos espiritos cultivados procuravam,
máo grado seu, uma especie de protesto indirecto contra o espirito
catholico, desde que elle deixou de ser sufficientemente progressivo.»
Causas especiaes actuavam na Italia para que ella se apaixonasse pelo
esplendor da civilisação antiga, exercendo a sua hegemonia litteraria
e artistica desde o seculo XV. Não foram os eruditos exilados de
Byzancio que trouxeram á Italia o conhecimento dos monumentos da
antiguidade classica; essa tradição não perdera ali a continuidade.
Dante tomando Virgilio como mestre e guia (_tu duca, tu maestro_) e
proclamando Homero _poeta soverano_, define com mais clareza do que
qualquer prova historica essa relação entre as duas edades. A cultura
da Jurisprudencia romana, fazendo convergir ás Escholas de Italia
todos os estudiosos da Europa, preparava para essa cultura humanista,
que servia de alivio suave aos espiritos no meio da instabilidade
politica de uma sociedade, que aspirava debalde á vida nacional no
meio das absorpções e traições dos Papas, da pressão semi-barbara dos
Imperadores germanicos, e da indifferença de uma burguezia preoccupada
exclusivamente do goso egoista das riquezas do seu trafico. O mundo
ideal da Arte era um refugio para as almas mais puras; não podendo
estabelecer uma relação com o meio social, fugiram da realidade,
procurando nas litteraturas antigas as normas que mais encantavam, e
cultivando a expressão esthetica (a arte pela arte) pelo instincto vago
da perfeição e não pelo seu destino social. Philarète Chasles accentúa
esta situação: «Na Italia, ao contrario do que succedia no norte, as
molas da sociedade politica estavam gastas; a galanteria dos costumes,
o brilho das artes, o encanto do estudo consolava o paiz d’esta divisão
intestina que lhe não permittia ter esperança em uma grande vida
nacional. Por confissão dos pensadores e dos escriptores philosophos
da Italia, Machiavelli, Bentivoglio e Tasso, a época do seu esplendor
intellectual é simultanea com a da decadencia moral. O genio das artes,
da belleza do estylo e da fórma attingiram uma perfeição admiravel, sem
que a sociedade se elevasse.»--«Tinham surgido á luz Dante, Petrarcha,
Boccacio; as republicas tinham cumprido o seu ruidoso destino; a fé
politica e religiosa tinham desapparecido; tudo se dissolvia na ardente
voluptuosidade dos costumes, no luxo das festas principescas e no culto
physico das paixões, da belleza e das artes.»[166] Reflectia-se este
estado social nas manifestações dos espiritos, em que a inspiração era
um phenomeno psychico de tensão encephalgica, de erectismo nervoso.
O genio sobresaía no meio das luctas, n’essa atmosphera de revolução
em que respiram os grandes homens. No conflicto constante dos dois
poderes o Sacerdocio e o Imperio, a Italia géra os organismos mais
extraordinarios da humanidade, como Dante e Francisco de Assis, Miguel
Angelo e Machievelli, Petrarcha e Raphael. As impressões vivas dão
mais intensidade á existencia; vive-se muito em breves momentos. As
melhores épocas da arte italiana coincidem com o veneno dos Borgias;
o desterro abre a Dante a _selva oscura_ da sua trilogia épica; a
_balia_ de Florença embala o nascimento de Miguel Angelo; a tortura
policial ou inquisitorial dá a revelação das leis sociologicas a
Machiavelli, e confirma em Galileo a ideia do movimento da terra; a
perseguição leva Campanella a conceber a utopia da _Cidade do Sol_,
e a Palestrina a concepção da musica religiosa. Cimarosa, o sonhador
divino do _Matrimonio secreto_, cria um mundo novo de harmonia sob
a pressão do despotismo austriaco que lhe deu a morte. A situação
historica da Italia, na sua longa aspiração de nacionalidade,
explica-nos o caracter e successão dos seus grandes homens. Era-lhe
sympathica a sociedade antiga, sob o aspecto da liberdade. Em épocas
em que as garantias politicas se acham distribuidas em um justo
equilibrio, em que a esphera da acção individual está descripta nos
codigos, quando o interesse e o egoismo generalisam virtudes negativas
e impõem uma moral chata de um concreto bom senso, o homem de genio
acha-se asphyxiado, ridiculo, e para resistir procura confundir-se
com a multidão e mascarar-se com o vulgarismo das mediocridades.
Pelo contrario, as sociedades antigas favoreciam mais a livre
manifestação do bello; na vida do _Ágora_, do _Forum_, faziam que o
homem se possuisse do respeito do si mesmo; fallava como um deus,
não conhecia o ridiculo, determinando-se pelas proprias impressões
sem contraste entre si os outros concidadãos. A cada passo tinha de
recorrer á revolta, para supplantar as tyrannias; nas festas civicas
competia com os mais esbeltos, com os mais ligeiros e os mais fortes.
A individualidade italiana lisongeava-se na idealisação da sociedade
antiga, e nas suas crises sentia identificar-se n’esse mundo não pela
erudição mas pela realidade. A Renascença não era para a Italia uma
reconstrucção archeologica, nem uma imitação banal; os eruditos da
Egreja e da Curia chegavam á illusão de se crêrem na sociabilidade
greco-romana, e de quasi tentarem a substituição do catholicismo, que
atravessava a crise de uma reforma, pela alegria exterior e fraternal
dos cultos polytheicos. Pela acção dos seus genios individuaes na
fórma deslumbrante da arte e poesia, a Italia exerceu uma plena
hegemonia em toda a Europa; mas essas manifestações de superioridade
não a elevaram, por que a cultura esthetica era exclusiva, absorvente,
e independente da disciplina intellectual e de toda a acção prática
ou destinação social. É por isso que esse influxo da Renascença se
torna entre as outras nações um artificio rhetorico, que se prolonga
até ao seculo XVIII, sob as fórmas do _Culteranismo_ e do _Arcadismo_
pseudo-classicos.
D’esta preponderancia do ideal classico na Renascença, escreve Comte
com notavel segurança: «Concebe-se facilmente com effeito, que a um
systema de composição tão facticio, era preciso egualmente preparar,
durante algumas gerações, um publico que o não fosse menos; por que,
perdendo a sua originalidade da Edade media, a arte perdia egualmente,
e inevitavelmente, a ingenua popularidade que era a recompensa
espontanea, e que não se tornou a achar em um tal gráo, mesmo nos casos
mais favoraveis. Ainda que a sua natureza geral a destina sobretudo
ás multidões, a arte moderna era então forçada, por uma excepção
inevitavel, de se dirigir especialmente a ouvintes privilegiados, que
uma laboriosa educação tivesse préviamente collocado assim, ainda que
em um menor gráo, nas condições estheticas analogas á dos proprios
artistas, e sem os quaes não poderia existir, entre o estado passivo
de uns e o activo de outros, esta harmonia indispensavel a toda a
acção das bellas-artes. Na ordem plenamente normal, uma tal harmonia
estabelece-se geralmente sem esforço, de uma maneira muito mais
intima, segundo a preponderancia commum do meio social que penetra
constantemente e ao mesmo tempo o interprete e o espectador; mas sob
esta anomalia provisoria, devia pelo contrario exigir uma longa e
difficil preparação.»[167] Comte referia-se ao phenomeno, que tanto
actuou na decadencia das litteraturas romanicas pela separação entre
os escriptores e o povo, e á laboriosa educação classica europêa, que
tornou possivel destacar da imitação antiga algumas obras primas.
_a_) O HUMANISMO QUINHENTISTA
O phenomeno tão complexo da Renascença, na Europa, abrange segundo o
auctor da _Historia do Materialismo_, dois seculos de actividade,
desde o meado do seculo XV até aos fins do seculo XVII. Segundo Comte,
que analysou assombrosamente a marcha da sociedade moderna partindo
da dissolução do regimen catholico-feudal, esta longa phase da
Renascença caracterisa-se por uma revolução mais mental do que social.
A Renascença apresenta-se com dois aspectos, um _litterario_,
que leva á imitação das obras primas da antiguidade com desprezo
systematico da Edade media, separando a idealisação esthetica dos
interesses da sociedade moderna; o outro é _scientifico_,
retomando os conhecimentos que a Grecia nos legou sobre Mathematica
e Astronomia, caminhando assim a intelligencia europêa para a
creação das sciencias experimentaes, para a elaboração da Physica, e
particularmente para a formação de uma nova synthese philosophica.
Vê-se que d’estes aspectos um é inorganico, renovando o ideal
polytheico, e o outro é impulsivo, restabelecendo a hierarchia theorica
dos conhecimentos humanos, partindo da renovação da Mathematica e
da Astronomia para a Physica e Chimica. Assim póde-se determinar na
successão da Renascença na Europa, os seguintes periodos:
_Philologico_ e _artistico_, em que prevalece a Italia como
impulsora do estudo das litteraturas da antiguidade classica, ou
propriamente o Humanismo:
_Theologico_ e _critico_, resultante do estudo philologico
dos livros sagrados, e pelo seu exame conduzindo ás ideias da
Reforma religiosa, sendo a Allemanha a impulsora d’este movimento
insurreccional dos espiritos:
_Scientifico_ e _philosophico_, em que cooperam a Italia,
a Inglaterra e a França, pela acção de sabios experimentalistas como
Galileo, e espiritos syntheticos como Bacon e Descartes.
A Italia creava a philologia, renovando os perdidos estudos dos
Alexandrinos, e levando a luz da critica e do gosto aos trabalhos
confinados dos eruditos byzantinos. A paixão pela nova sciencia
occupava todos os espiritos, desde a cathedra pontifical até ao humilde
typographo. Era uma revolução em que a humanidade tomava conhecimento
de si mesma; toda a Italia era uma eschola, e de todos os paizes
convergiam ali os espiritos ávidos de luz, destacando-se como novos
pedagogos Victorino de Feltre e Angelo Policiano.
A corrente humanistica do seculo XV, sob o influxo da Italia
reflectiu-se muito cedo em Portugal; vêmol-o pela preoccupação de
traduzir-se em latim as chronicas portuguezas, como pelo empenho
que levava a realeza e a aristocracia a enviarem estudantes para as
escholas italianas. Azurara, que escrevia no reinado de D. Affonso V,
falla na sua _Chronica da Conquista de Guiné_, como reconhecendo
os caracteres dos elementos da Republica occidental, «da grandeza dos
Allemães, e da gentileza da França, e da fortaleza da Inglaterra, e
da _sabedoria da Italia_.» No primeiro quartel do seculo XVI,
Portugal, pela extrema actividade das navegações e colonisações na
India e Brazil, não acompanhou a marcha da Renascença; por este
atrazo, conta André de Resende que viajou pela Italia e Flandres,
que n’esses paizes Portugal era pouco considerado: «quibus Lusitanum
nomen gratiosum non est.» Na Oração recitada em 1534 na Universidade
de Lisboa, o sabio humanista chama a attenção das intelligencias para
a direcção mental da Renascença, apresentando o exemplo da Italia,
da Allemanha, da França, da Inglaterra e Polonia.[168] Em Portugal
estava-se um pouco afastado d’este movimento litterario, mas o nome
portuguez resoava gloriosamente na Europa dominando nas principaes
escholas. Os Gouvêas, como pedagogos quer em Paris ou em Bordeus,
tinham por discipulos homens como Rabelais e Calvino, Montaigne e
Ignacio de Loyola; e Erasmo contava entre os seus principaes amigos
a Damião de Góes. Em breve destacaram-se da activa phalange dos
humanistas do seculo XVI, na Europa, os portuguezes André, Antonio,
Diogo e Marçal de Gouvêa (uma dynastia de pedagogos), Achilles Estaço,
Ayres Barbosa, André de Resende, Aleixo de Sequeira, Diogo de Teive,
Damião de Góes, Francisco de Fontes, Antonio Luiz, D. Francisco de
Mello, D. Fructuoso de Sam João, Jeronymo Cardoso, Jorge Coelho,
Henrique Caiado.
O humanismo italiano decaiu depois da tomada de Florença, appresentando
a França o esplendor dos estudos philologicos, pela acção que os
jurisconsultos como Cujacio, Hotman e Pithou exerceram pela analyse
dos textos do direito romano, tratando de recompôr a vida social
através da interpretação das leis. Era a applicação do methodo
juridico, exacto e severo, ás obras da litteratura para revelarem o
meio social. Como na Italia, o humanismo francez decahiu por causa
das guerras religiosas, e pelo empirismo secco e improgressivo
do ensino jesuitico. Esta situação do Humanismo, que se tornára
critico exercendo-se sobre os Livros biblicos, cooperou n’esse outro
phenomeno social da regeneração do christianismo tentada sob o titulo
de Reforma. Os humanistas, principalmente os da eschola hollandeza,
eram chamados _erasmistas_, para significar a sympathia que
sentiam pela revolução religiosa, tornando-os responsaveis das finas e
livres ironias de Erasmo. Assim como Ayres Barbosa e André de Resende
representam o humanismo italiano em Portugal, e Antonio de Gouvêa
e Diogo de Teive representam o Humanismo francez, o nosso grande
chronista Damião de Góes é o representante d’esse outro humanismo,
que desde Erasmo a Heinsius e Grotius, pela vida prática de uma san
democracia se identifica completamente com a comprehensão historica da
civilisação antiga.
A ideia e aspiração de uma reforma na Egreja, que se manifestou na
Allemanha pela simples aspiração a uma remodelação da hierarchia
sacerdotal, apparece no seculo XVI agitando muitos espiritos dentro da
orthodoxia: e assim um rei _catholico_ e outro _fidelissimo_
intervêm pedindo ao papa que tome essa iniciativa. É frequente
encontrar-se nos escriptores do principio do seculo XVI uma nota
satyrica contra a Egreja e o theologismo que se agarrava ás argucias
do scholasticismo medieval. E assim como Luciano, na dissolução do
polytheismo hellenico satyrisava os deuses, em França Rabelais dissolve
os velhos preconceitos do regimen catholico-feudal pelos sarcasmos
do _Pantagruel_ e de _Gargantua_, e o cavalleiro de Hutten
na _Epistolae Obscurorum Virorum_, abala o carcomido throno da
escholastica e da esteril theologia que atrophiavam a rasão humana.
Em Portugal é Gil Vicente o escriptor que se inspira com toda a decisão
no espirito critico d’esta primeira phase da Reforma. É sublime esta
grande alma, rebaixando-se á situação de actor (_auctor et actor_)
para dizer diante da realeza quanto era necessario actuar sobre a
hierarchia religiosa moralisando-a. São de uma audacia extrema os
seus versos contra Roma. Os eruditos da Renascença em Portugal eram
contrarios a Gil Vicente; mas ninguem como elle representou nos seus
Autos e Farças a vida nacional, e se inspirou mais ingenuamente d’essa
espontaneidade popular para exprimir a aspiração da sua época--a
reforma da Egreja, iniciada por ella propria.
Um outro humanista, que citava Gil Vicente como auctoridade
philologica, o grammatico Fernão de Oliveira, tambem seguiu as
ideias da Reforma, porém na phase mais adiantada da transformação
da disciplina. Os estudos criticos dos exemplares da litteratura
antiga abriam aos eruditos do seculo XVI um horisonte mais vasto do
que a rotina das escholas monachaes com a sua _Arte velha_ de
Pastrana ou de Alexandre Villa Dei. Os habitos da exploração dos textos
desenvolvia o espirito de livre-exame; a intelligencia avesada a
interpretar palimpsestos, a restituir a lição dos auctores classicos,
a restabelecer os textos truncados, a compenetrar-se do sentimento da
antiguidade, não podia abnegar da sua supremacia, e applicára o mesmo
processo á Biblia e aos Evangelhos. Foram os humanistas e os philologos
que mais concorreram para a obra da Reforma; por isso os Jesuitas,
reagindo contra o Protestantismo, tornaram-se essencialmente pedagogos
apoderando-se do humanismo. Em Portugal vieram contraminar a obra do
renascimento litterario superiormente dirigida por André de Gouvêa e
por Diogo de Teive. Antes de ter cahido na illaqueação jesuitica, D.
João III tentára attrahir para a reforma da Universidade de Coimbra a
Erasmo. Damião de Góes é o que representa em Portugal a corrente da
Reforma, não pela manifestação das ideias, por que elle confessa-se
sempre orthodoxo, mas pelo seu martyrio, por ser amigo pessoal de
Erasmo, por ter tratado com Luthero, quando esteve na Allemanha, e com
Melanchton. Em uma confissão no Santo Officio declara: «Depois que vim
a Portugal ... El Rei ... e os Infantes seus irmãos, e outros senhores
do reino, me perguntaram com muito gosto e mui particularmente pelo
discurso de minhas peregrinações, fallando-me em Luthero e nas cousas
da Allemanha ... e por El Rei saber que vira eu já Erasmo Rotherodamo
e que eramos amigos, me perguntou algumas vezes se o poderia eu fazer
vir a este regno pera se d’elle servir em Coimbra.» Por intervenção de
André de Resende é que viera tambem para Portugal o celebre humanista
Nicoláo Clenardo.
Uma certa sympathia pessoal e litteraria existia entre Damião de Góes e
Gil Vicente; fallando em humanidades com Erasmo _inter pocula_,
teve occasião de lhe inspirar curiosidade pela obra dramatica de Gil
Vicente, que elle vira representar na sua mocidade na côrte de D.
Manoel. Na relação das festas feitas em Bruxellas pelo embaixador D.
Pedro de Mascarenhas pelo nascimento do princepe D. Manoel, em 1532,
vem o nome de Damião de Góes como um dos que assistiu á representação
do _Auto da Lusitania_, escripto n’esse anno por Gil Vicente, e
repetido n’aquella côrte.
Uma das grandes influencias da Reforma, que a ligam ao movimento do
humanismo da Renascença foi a summa importancia que se deu ao estudo
do hebreu e do grego; as polemicas religiosas, as traducções da
Biblia em vulgar, a leitura dos padres da egreja para a controversia,
exigiam conhecimentos d’essas duas linguas, que estimulavam o criterio
philologico. Melanchton recommendava aos seus discipulos Homero e S.
Paulo; é tambem um sectario da Reforma, Fernão de Oliveira, que em 1537
publica a primeira _Grammatica portugueza_, plagiada por João de
Barros para auxiliar a catechese de uns princepes indianos que vieram a
Portugal. André de Resende recommendava aos alumnos da Universidade de
Lisboa a alliança do grego com o latim; na reforma da Universidade em
1547, vieram de Paris para mestres de grego o Dr. Fabricio e Buchanan,
para hebraico Rosetto. Pouco depois tiveram de fugir de Portugal, ao
terror inquisitorial que os perseguia pela mão occulta dos jesuitas,
para se apoderar da disciplina humanista. Em Jorge Ferreira de
Vasconcellos, Dr. Antonio Ferreira, Sá de Miranda e Garcia de Resende,
acham-se referencias ao nome de Luthero, e á injuria terrivel da
accusação de lutherano. Na epopêa de Camões, em que está implicito todo
o espirito da Renascença, ha uma nota de aversão contra o movimento da
Reforma:
Vêdel-os _Allemães_, soberbo gado
Que por tão largos campos se apascenta,
Do successor de Pedro rebelado,
Novo pastor e nova seita inventa...
Vêdel-o duro _Inglez_..........
Entre as boraes neves se recreia,
Nova maneira faz de Christandade...
Pois de ti, _Gallo_ indigno, que direi?
Que o nome christianissimo quizeste,
Não para defendel-o, nem guardal-o,
Mas para ser contra elle e derrubal-o.
Pois que direi d’aquelles, que em delicias
Que o vil ocio no mundo traz comsigo,
Gastam as vidas, logram as divicias
Esquecidos do seu valor antigo?...
Comtigo _Italia_ fallo, já submersa
Em vicios mil, e de ti mesmo adversa.
(_Lus._, VII, 4, 5, 6, 8.)
Camões sentia aqui a solidariedade d’estes elementos da Republica
occidental, que quebravam a sua unidade catholica; mas as reacções
provocadas pelo Concilio de Trento para restabelecel-a, levaram á
depressão intellectual suscitando a fórma _social_ da revolução
moderna, desde a monstruosa revogação do Edito de Nantes. Já quando
em 24 de Agosto de 1572 chegou a Portugal a noticia da matança da
noite de Saint-Barthelemy, celebrou-se esse crime da religião com
repiques de sinos e luminarias, e um Te-Deum cantado na egreja de S.
Domingos, com sermão do mystico Frei Luiz de Granada. Já nos estudos
imperava o espirito que ditára a D. João III, que os estudantes da
Universidade fossem «_mais catholicos e menos latinos_.» Pelo
sacrificio á unidade catholica, em 1580, a aristocracia e o povo
portuguez sacrificaram a propria nacionalidade. Nos paizes catholicos
os Jesuitas mataram o Humanismo pelos seus cursos de Artes, e preparam
essas gerações que na litteratura desconheceram o sentimento preferindo
á verdade natural o conceito affectado e a figura de rhetorica.
O duplo elemento classico e medieval das Litteraturas romanicas,
manifesta-se pela influencia que na portugueza exerceram as
litteraturas italiana e castelhana.
I. _Antagonismo dos dois elementos classico e medieval._--Em
todas as manifestações estheticas do genio moderno, na architectura
e na pintura, na poesia como na arte ornamental, appresenta sempre a
Renascença uma duplicidade nos meios da expressão do bello: umas vezes
o artista conserva-se alheio ao movimento da Renascença idealisando a
vida medieval (Gil Vicente), outras vezes desprezando tudo quanto possa
recordar o obscurantismo d’essa edade (Dr. Antonio Ferreira e Sá de
Miranda) e tambem fazendo o syncretismo dos dois espiritos, como vêmos
em Camões confundindo nos _Lusiadas_ as divindades do polytheismo
como symbolos poeticos da indole dos symbolos christãos.
Van Bemmel, no seu livro _De la Langue et de la Poésie provençales_,
caracterisa essa duplicidade das Litteraturas da Edade media:
«A actividade intellectual, na Edade media, formava dois mundos
inteiramente differentes, tendo cada um seu povo, sua lingua e sua
litteratura. De um lado era o elemento novo, espontaneo, essencialmente
popular, cheio de vida e de futuro; do outro, o elemento conservador,
não tendo mais do que uma existencia facticia, fóra do movimento
social, inabalavel e sempre o mesmo ao lado da marcha rapida das
ideias. De um lado estava a poesia e a lingua que se chamava vulgar ou
romana, espalhadas entre o povo; do outro lado a sciencia e as linguas
latina e grega, habitando os claustros, as escholas e as Universidades.
E por longo tempo estas duas sociedades tão dissimilhantes viveram uma
ao lado da outra, sem se conhecerem, sem se verem.» (p. 6.)
Basta observar o antagonismo entre a civilisação e o poder imperial
de Roma, e as raças barbaras da Europa, que vieram a prevalecer
na reorganisação social moderna depois das invasões das tribus
barbaras da Germania, para se notar que estes dois elementos não
podendo unificar-se tinham de alternar-se na sua influencia. Entre a
civilisação da Antiguidade classica e o mundo medieval, apparece a
religião universalista do Christianismo; no periodo proselytico da
sua constituição e da lucta apoiou-se a nova religião nas classes
servas, na plebe, adaptando-se ao elemento popular; quando ligada
ao poder politico se fortificou pela hierarchia, ou Egreja, a nova
religião tentou apoderar-se da missão da unidade de Roma, e tornar-se
cultora e depositaria da litteratura latina. O antagonismo entre o
_clericus_ e o _laicus_ reflecte-se em toda a vida mental
da Edade media. Escreve Gaston Paris, sobre este antagonismo: «A
Egreja conservou officialmente a lingua do imperio romano, ao qual
se tinha associado intimamente com Constantino; em quanto, na época
das suas luctas ella tinha favorecido o desenvolvimento da lingua e
da poesia populares, a partir do periodo barbaro, procurou conservar
a unidade romana, sequer pelo menos na ordem espiritual, acima de
todas as variantes nacionaes. A tentativa de renascença feita por
Carlos Magno apoiou-se então essencialmente na Egreja, e desde ahi
até aos tempos modernos, a lingua da Egreja foi a da sciencia e a da
litteratura elevada. Este estado de cousas creou entre o _clerigo_
e o _leigo_ uma separação profunda que domina toda a historia das
litteraturas da Edade media. A poesia popular desenvolveu-se com uma
grande espontaneidade e uma liberdade completa; mas ficou privada, pela
abstenção dos espiritos superiores e mais cultivados, da perfeição da
fórma e da seriedade de fundo, que sem duvida com o seu concurso teria
podido attingir. Por outro lado, os _clercs_ fechados nas suas
fórmulas tradicionaes e herdeiros muito fieis, dispenderam durante
seculos esterilmente uma actividade intellectual consideravel.»[169]
«Na Renascença o _clericus_ e o erudito confundem-se em um mesmo
typo, o humanista, que detesta a rudeza medieval e só visa a attingir
a perfeição da fórma pela imitação da belleza classica. Póde-se
seguir esta predilecção exclusiva através de todas as fórmas geraes
da Arte. Na Architectura, á efflorescencia gotica, desenvolvida pelos
sentimentos da sociedade catholico-feudal, oppõe-se a reproducção das
ordens gregas, propagando esse estylo Bramante, Raphael, Peruzzi,
Geminiano de San Gallo. O estylo classico foi propagado em Portugal
por Sansovino, de Florença. O conflicto entre os dois estylos, deu
logar a uma manifestação architectonica encantadora o gotico florido,
chamado _manoelino_, no qual como nos generos que o antecederam
existe, como observou o artista Roquemont alguma cousa de privativo,
que pertence unicamente a Portugal.»[170] No _Auto da Ave Maria_,
de Antonio Prestes, escripto por 1529, esboça-se a lucta do estylo
classico e do gotico:
MESTRE: E a que vem a esta terra?
DIABO: Mostrar mi saber, mis manos;
suena allá _que Luzitanos_
_su gusto aora se encierra_
_en edificios romanos_.
CAVALL: Eu sou dos que estão postos
n’esse gosto;
que não vi melhor composto,
hei-o por gosto dos gostos,
jamais lhe virarei rosto.
As doutrinas estheticas de Bastiano de Sangallo (1481-1551) tambem
apparecem citadas n’este Auto do Prestes: «el gran Sebastiano--fué la
tinta, yo la pluma...» A corrente classica foi sustentada em Portugal
por Francisco de Hollanda, que viajou pela Italia e se educou em Roma,
vivendo na intimidade dos grandes artistas da Renascença.
Na Pintura reflecte-se o mesmo antagonismo; o chamado estylo gotico
ou propriamente a influencia flamenga e allemã, representada em Gram
Vasco, é substituida pelo gosto italiano, revolução determinada pelo
sabio Raczynski na época de D. João III, entre 1530 e 1550, sendo os
principaes renovadores Gaspar Dias, Fernando Gomes, Manoel Campello
e Francisco Vanegas. Na Esculptura e Ourivesaria, o erudito Garcia
de Resende, na _Miscellanea_, mostra um grande desprezo pelos
artistas nacionaes, talvez mesmo com intenção de ferir o auctor da
_Custodia de Belem_, dando a palma aos italianos:
_Ourivisis e Escultores_
São mais sotis e melhores.
A mesma preoccupação erudita fazia com que se não estudassem as
chamadas leis do reino na Universidade, e todo o ensino incidisse
exclusivamente no Direito romano. E como os Poetas eram geralmente
jurisconsultos, como Sá de Miranda, Ferreira, Gabriel Pereira de
Castro, André Falcão de Resende, Mousinho de Quevedo, era natural
tenderem para a imitação da poesia classica, Gil Vicente, eminentemente
nacional, satyrisa esta corrente juridica:
vereys com quanta graveza
busca leys de gentileza
no lindo estylo romano.
(_Canc. ger._)
É nas fórmas da Poesia que mais nos interessa observar esta corrente do
classicismo pela imitação da litteratura italiana.
O genio sensual da Renascença fizera do estudo litterario um passatempo
epicurista; o culto dos exemplares gregos era objecto de um fanatismo
e de vaidade pessoal; os Cardeaes entregavam-se a este culto de
predilecção, a ponto de resarem odes gregas em vez dos canones da
missa, como fazia o cardeal Bembo, ou de representarem comedias
classicas como o cardeal Bibiena. Á imitação da academia alexandrina,
os eruditos italianos, com o vinculo do mesmo amor pela Antiguidade,
reuniam-se em palacios esplendidos, ora em jardins magnificos,
terminando regularmente as palestras litterarias com musicas e opiparos
banquetes. Este empenho da arte pela arte levou á fundação de innumeras
Academias italianas no seculo XVI, com os titulos heteroclitos
de _Intronati_, (1525) _Infiammati_, (1540) _Innominati_, (1549)
_Insensati_, (1560) _Animosi_, (1576) _Illuminati_, (1598) etc.
A influencia italiana estendeu-se a Portugal tambem em relação ao
estabelecimento de Academias. Na côrte de D. João III, a Infanta
D. Maria, a ultima filha do rei D. Manoel, fundou uma Academia de
mulheres, a que pertenceram Luiza Sigêa e Angela Sigêa, Joanna Vaz,
e Paula Vicente filha do fundador do theatro nacional. Era estylo
comparar as damas formosas e cultas á celebre Victoria Colonna. João
de Barros descreve a Infanta aproveitando o tempo que lhe restava das
suas resas em aprender latim. Nos versos feitos por André de Resende á
morte de Luiza Sigêa, vêmol-a retratada como uma assombrosa polyglota,
versada no latim, grego, hebraico, chaldeo, e correspondendo-se com
o Papa Paulo III, a quem dedicou o seu poema _Cintra_. No livro
das Moradias da Casa da Rainha D. Catherina, Anna Vaz apparece com
o ordenado de 6$000 réis com verba de _latinas_, provavelmente
mestra das outras damas. Falla dos seus conhecimentos de letras
humanas o Dr. João de Barros no _Espelho de Casados_. No citado
livro das Moradias, Paula Vicente, tambem auctora de uma grammatica
e collaboradora nos Autos de seu pae, apparece com o assentamento de
_tangedora_. D’entre a pleiada academica distinguia-se então D.
Leonor de Noronha, que traduzira do latim as _Eneadas_ de Marco
Antonio Sabellico. Vê-se como a moda da erudição abafava a natural
sympathia feminina pela Edade media.
_a_) O LYRISMO PETRARCHISTA
A influencia da poesia trobadoresca irradiou da Sicilia para a Italia
continental, empregando-se o dialecto toscano, fallado em Florença e
preferido para a linguagem escripta, para propagar as canções amorosas,
em que se manifestaram as mais delicadas e ideaes emoções dos _Fieis
do Amor_. Dante falla com encanto d’esse «_dolce stil nuovo_
ch’io odo,»[171] e no _De vulgare Eloquio_, diz que as composições
poeticas em linguagem vulgar se consideram de gosto _siciliano_.
D’esta corrente poetica nasceram as fórmas definitivas do lyrismo
moderno, levadas á perfeição por Petrarcha. Em Portugal foram
conhecidos os principaes trovadores chamados _sicilianos_,
Bonifazio Calvo, de Genova, e Sordello, de Mantua, mas a sua influencia
decahiu com a eschola provençalesca desde o tempo de D. Affonso IV.
A Hespanha começou a renovação do seu lyrismo desde Micer Francisco
Imperial e chegou ao esplendor da eschola de Sevilha; em Portugal essa
influencia manifesta só se determina depois da viagem de Sá de Miranda
á Italia em 1521, quando tambem se operava egual transformação do gosto
em Hespanha por Boscan, Cetina e Garcilasso. Sá de Miranda, que teve
uma clara comprehensão do _dolce stil nuovo_, conhecia-lhe a sua
origem litteraria, e mostra a relação entre os rudimentos poeticos dos
trovadores provençaes e o bello lyrismo italiano:
Entrando o tempo mais, entrou mais lume,
Suspirou-se melhor, veiu outra gente,
De que o _Petrarcha_ fez tão rico ordume:
Eu digo os _Proençaes_, que inda se sente
O som dos brandos versos que entoaram
As suas musas brandas, brandamente.[172]
Parece que tambem allude aqui ao gosto allegorico, que apparece
no Cancioneiro de Resende, recebido da communicação com o lyrismo
aragonez. Abrindo os livros das poesias de Sá de Miranda, de Bernardes,
de Camões, depara-se logo com dois estylos, no systema de metrificação
em octonarios e em endecasyllabos, e na galanteria palaciana differente
da expressão de emoções intimas subjectivas. Em um dos generos a
estrophe é a quintilha, a decima, as voltas e esparsas que se empregam;
no outro é a quadra, o terceto, a sextilha, a outava, com a variação
de hemistichios. Ha poetas que nunca metrificaram em endecasyllabos,
caracteristico do gosto italiano, como Christovam Falcão, e outros que
detestaram o gosto de Cancioneiro, ou castelhano de redondilha, como
o Dr. Antonio Ferreira. Houve effectivamente uma alteração do gosto
no lyrismo, e uma lucta de implantação, que se observa na historia
litteraria de Hespanha e de Portugal, deduzida das proprias composições
dos poetas.
A poesia castelhana ficára no mesmo estado em que a deixára João de
Mena, sendo estafada nos cancioneiros palacianos; por 1526, Andrea
Navagero, embaixador veneziano em Hespanha, fez sentir a Boscan o
atrazo d’essa poesia, revelando-lhe as bellezas do lyrismo italiano, do
_dolce stil nuovo_. Por este tempo viaja Sá de Miranda na Italia
(Roma, Veneza e Milão) e pelas suas relações litterarias com Ruscellai
e Lactancio Tolomei tomou conhecimento das composições dos grandes
lyricos italianos; logo no seu regresso a Portugal tentou implantar
o novo gosto. Seguiram-no D. Manoel de Portugal, Diogo Bernardes,
Pero de Andrade Caminha, o Dr. Antonio Ferreira, Francisco de Sá de
Menezes, Frei Agostinho da Cruz. Na ecloga _Aleixo_, referindo-se
á situação de Bernardim Ribeiro, Sá de Miranda dá a entender que o
encantador bucolico tambem tentára o endecasyllabo italiano. A este
tempo Garcilasso alliára-se com Boscan contra Castillejos e os mais
poetas que sustentavam a preponderancia da poetica da _medida
velha_; Sá de Miranda tambem se queixa de uns _pontosos_,
que reprovavam a sua generosa tentativa. A lucta azedava-se de parte
a parte, por que não viam no lyrismo italiano mais do que o uso
dos versos grandes, sem comprehenderem a expressão do sentimento
philosophico do platonismo, que elevava esse lyrismo. Mas o resultado
das questões de eschola entre metreficadores de redondilhas ou de
endecasyllabos foi bom: leram-se os mais perfeitos modelos da excelsa
poesia italiana, e começou-se a dar preferencia á lingua nacional,
que d’antes era abandonada versejando-se em castelhano ou em latim.
Ferreira escrevia de si com orgulho: «Ah, Ferreira, dirão, da lingua
amigo.» Da mesma imitação italiana tira a auctoridade, referindo-se á
Hespanha e á _Pléiade_ franceza:
Garcilasso e Boscão, que graça e spritos
Destes á vossa lingua, que princeza
Parece, já de todas na arte e ditos!
E quem livrou assy a lingua franceza
Senão os seus _francezes_ curiosos,
Com diligencia de honra e amor acceza?
E vós, oh namorados e engenhosos
_Italianos_, quanto trabalhastes
Por serdes entre nós n’isto formosos!
Assi enriquecestes e apurastes
Vosso toscano, que será já tido
Por tal, qual para sempre vós deixastes.
Nas suas _Cartas_, Sá de Miranda descreve o prazer intimo com que
lia na quinta da Tapada, junto da fonte da Barroca, a _Arcadia_ de
Sanazzaro, o _Orlando_ de Ariosto, as odes e sonetos de Garcilasso
e de Boscan, e como ia passo a passo implantando o novo gosto. Em
Bernardes tambem apparecem citados os poetas italianos, que mais se
admiravam, em uma Carta ao Conde de Monsanto:
E o vosso sobre todos mais mimoso
Ahi conversareis mais de contino,
Digo o suave auctor do _Furioso_.
Torquato, que sugeito achou divino,
Para mostrar os seus altos conceitos,
Cantando _Godofredo_ e de Aladino.
Petrarcha e Sanazzaro, cujos peitos
O douto Apollo encheu de alta doutrina,
O Bembo e o Lasso, ao mesmo Apollo acceitos.
Veronica com Laura Terracina,
E aquella formosissima Vittoria
Que sobre o nosso sol o seu empina.
(_Carta_, XXXVIII.)
A edição que se fez em Lisboa das Obras de Garcilasso em 1543
revela-nos o triumpho indiscutivel do novo gosto lyrico. Sá de Miranda
tornou-se um chefe espiritual da nova geração de poetas que o saudavam
em bellas epistolas no seu retiro da quinta da Tapada, no alto Minho.
O lyrismo da eschola italiana já tão perfeito em Diogo Bernardes,
attingiu a sua maior belleza em Camões, que pelo poder do genio
harmonisou as duas escholas, escrevendo em ambos os generos, dando-lhes
a eterna belleza da realidade da paixão.
_b_) A EPOPEA CLASSICA
Aos grandes factos do mundo economico e politico, como a propagação
da Imprensa, a vulgarisação das obras litterarias e scientificas da
antiguidade classica, as descobertas maritimas de Colombo, Vasco
da Gama e Magalhães, a Reforma religiosa de Luthero, e a fórma da
dictadura temporal aspirando á Monarchia universal, corresponde na
litteratura do seculo XVI o esforço para a idealisação da Epopêa
historica nacional. Absorta diante da _Iliada_ e da _Eneida_,
irracionalmente equiparadas, a imaginação dos poetas acha-se sem
audacia para descobrir o thema da Epopêa nova, em harmonia com a
corrente positiva do maior seculo da historia; as tentativas infelizes
conhecem-se logo pelo assumpto, já consagrando os typos menos dignos
da dictadura monarchica, já retomando successos que dependiam da
credulidade, que estava extincta. A França absorvida no culto da
antiguidade classica chegou a desprezar e esquecer completamente as
Gestas heroicas dos seus paladinos do periodo feudal; e sendo ella a
creadora das modernas epopêas cyclicas, os seus criticos formularam a
deploravel phrase: _La France n’a pas la tête épique_.
O genio italiano acceitou a epopêa feudal como um elemento de
distracção, tornando-a compativel com a vida burgueza, com as
resalvas da ironia e das caprichosas digressões. A saudade das bellas
tradições da cavalleria que se iam perdendo, levou-o a reconstruil-a
poeticamente, encobrindo com uma graça faceta o contraste entre
a sociedade real na lucta dos interesses e as ingenuas aventuras
galantes. A Epopêa cavalheiresca como a renovaram Pulci, Berni,
Boiardo, Alamani, Trissino e Ariosto é um mixto de enthuziasmo
guerreiro em indoles pacificas, que se interrompem para sorrir
amigavelmente. A novella do _Amadis_, que recebera a fórma da
prosa em Portugal, entrou através da traducção franceza na elaboração
italiana, dando-lhe Bernardo Tasso a fórma poetica classica egual á que
receberam as Gestas francezas.
Apezar de se resuscitar na vida palaciana o symbolismo e práticas
da Cavalleria, no seculo XV, tudo isso estava fóra dos costumes, e
caía em um ridiculo quixotismo, como vêmos na côrte de D. João I,
em que cavalleiros e damas se baptisavam com os nomes dos heroes da
Tavola-Redonda. Em França, Francisco I tambem quiz galvanisar a morta
instituição da Cavalleria, facto que, segundo Rathery, despertou o
genio de Ariosto e de Tasso. É natural que a Edade media, quando se
extinguia como organisação social, lançasse os ultimos lampejos como
reminiscencia poetica. As outras Litteraturas romanicas foram apoz
as normas italianas da epopêa. Du Bellay suspirava por um assumpto
nacional; levanta-se Ronsard com a _Pléiade_, mas a imitação
grega e latina levada ao exagero não conseguiu mais do que o poema
morto da _Franciade_. Os poetas da _Pléiade_ eram discipulos
dos grandes eruditos da Renascença franceza Danès, Turnèbe e Domat,
e como taes detestavam a Edade media; Du Bellay chega a aconselhar
aos poetas: «folheae com mão nocturna e diurna os exemplares gregos e
latinos, e deixae-me todas essas velhas poesias francezas aos Jogos
Floraes de Tolosa, e ao Puy de Rouan, esses rondós, balladas, virelais,
cantos reaes, canções e outras taes confecções, que corrompem o gosto
da nossa lingua e não servem senão para prestar testemunho da nossa
ignorancia.»[173] É evidente o antagonismo entre as duas correntes do
gosto.
Em Hespanha a imitação da poesia épica não encontrou a sympathia
com que foi assimilado o _dolce stil nuovo_, ou o lyrismo
italiano. Havia um laço commum da Sicilia tanto para a Italia como
para a Hespanha, era a _pastorella_, apta a receber a perfeição
individual do subjectivismo amoroso. A classe culta que seguia o
humanismo da Renascença despreza os romances populares e as Novellas
de cavalleria, fórmas organicas ou derivadas da epopêa; a elaboração
poetica dispendia-se em Eclogas, que se ampliavam em Pastoraes. Os
poetas de Hespanha desejavam uma epopêa séria, nacional, e com os olhos
fitos em Homero e Virgilio caíam no genero hybrido da epopêa academica;
querendo um heróe nacional, cegaram-se com o brilho das intrigas
politicas de Carlos V, e sobre este chefe da dictadura monarchica,
Zapata compõe o _Carlos famoso_, Urrea o _Carlos victorioso_,
e Samper a _Carolêa_. A corrente erudita chegou quasi a fazer
perder ao genio hespanhol o sentimento épico, que lhe fez pôr em
Romances as tradições heroicas que supplantaram os cyclos das Gestas e
poemas francezes.
Como todos os outros povos romanicos, Portugal tambem seguiu a
influencia italiana da Renascença; o reflexo d’esse brilhante periodo
litterario e artistico começou no tempo de D. João II, até se impôr á
admiração nos reinados de D. Manoel e D. João III. Correspondendo-se
directamente com Angelo Poliziano, D. João II não encobre a emulação
que tem por Lourenço de Medicis, ao qual procura imitar no grande
movimento philologico e artistico que prepara o seculo XVI. No
_Cancioneiro geral_, os dois pequenos poemas á morte de D. João
II e á tomada de Azamor, têm certas analogias com o genero a que os
italianos chamaram _poemetti_, que Lourenço de Medicis e Angelo
Poliziano iniciaram.
Na litteratura portugueza tambem se reconhecia a necessidade de
uma epopêa culta. Desde que começou a dominar o espirito classico,
conheceram-se desde logo os épicos antigos; Azurara cita frequentes
vezes Lucano, o creador da epopêa historica; o texto de Homero era
explicado na Universidade com pasmo dos estrangeiros. O syncretismo
erudito levava as imaginações para a mythificação etymologica dos nomes
de Luso e Lisboa ou Ulyssêa; o sentimento da realidade impellia-nos
para o facto das grandes navegações. Tinhamos descoberto o caminho
maritimo da India; João de Barros no Panegyrico recitado diante de D.
João III em 1533, sentia que se não ligasse á poesia épica o interesse
que provocavam as canções lyricas: «ás mezas dos princepes e grandes
senhores se cantavam antigamente em metro os feitos notaveis dos
grandes homens, d’onde primeiro nasceu a poesia heroica, e segundo
eu tenho ouvido ainda n’este tempo os Turcos em suas cantigas louvam
feitos de armas de seus Capitães, o que se fosse usado em Hespanha
e toda a Europa, se me eu não engano, mais proveito de tal musica
naceria, do que de saudosas cantigas e trovas namoradas.» Fallava
contra a preoccupação exclusiva dos lyricos petrarchistas e bembistas
de Hespanha e Portugal; elle queria a epopêa historica, chegando a
metrificar algumas outavas de fórma castelhana para amostra. No fim
da Oração recitada por André de Resende na Universidade de Lisboa
em 1534, vem um poemeto latino sobre a fundação de Lisboa, no qual
o antiquario eborense deixou em um hexametro a designação épica de
_Lusiadas_, segundo o patronimico heroico: «Inter _Lusiadas_
nisi amor revocasset amatae.» N’esse poemeto falla dos vastos
dominios de Portugal, cita a _Taprobana_ e muitos outros nomes
com colorido poetico. Os eruditos faziam sentir a necessidade de uma
epopêa nacional, mas séria e em contraposição á italiana, que era
phantasmagorica. Sá de Miranda fallando d’esses poemas recommenda: «A
estraños cuentos orejas seguras;» o que equivale ao rifão: A palavras
loucas, orelhas moucas. Camões contrapõe ao--_Orlando_, ainda
que fôra verdadeiro, e ao _Rogeiro vão_, a realidade dos factos
historicos, mas acceita da epopêa italiana a magnifica e incomparavel
_Outava rima_ esboçada por Boccacio e universalisada por Ariosto.
Os nossos poetas quinhentistas eram sugeridos pela realidade historica
para a idealisação épica; em uma Carta a Caminha, o Dr. Antonio
Ferreira incita-o, por 1554, para que se entregue ao labor de uma
epopêa nacional:
O Portuguez Imperio que assim toma
Senhorio por mar de toda a gente,
Tanto barbaro ensina, vence e doma,
Por que assi ficará tão baixamente
Sem Musas, sem sprito, que cantando
O vá do Tejo seu ao Oriente?
O vaticinio de Ferreira, desejando que o filho do princepe D. João
protegesse o futuro épico, foi realisado por Camões. Mas nem João de
Barros, nem Antonio Ferreira chegaram a vêr os _Lusiadas_; o
chronista expirou quando Camões chegou a Lisboa, e n’esse mesmo anno
Ferreira succumbia á _Peste grande_. Na gigante epopêa de Camões
apparecem os dois espiritos antagonicos, conciliados pela intuição
do seu genio esthetico: a mythologia, posta em moda pela Renascença,
e as lendas do Christianismo medieval cooperam na mesma estructura.
Qualquer d’estes preconceitos de eschola ou de crença era bastante
para lhe imprimir o sello da mediocridade, se as impressões directas
da viagem da India, e as saudades da Patria ditosa sua amada, o
não temperassem com a verdadeira emoção poetica. Assim através das
correntes contradictorias da erudição humanista, como bacharel latino,
e da crença catholica que se transformava no Jesuitismo, Camões teve o
dom de realisar nos _Lusiadas_ a epopêa nacional simultaneamente
europêa e moderna.
_c_) A COMEDIA E A TRAGEDIA CLASSICAS
A imitação do theatro classico na Renascença atacou a obra organica
da fundação do Theatro _nacional_, inaugurado por Gil Vicente
sobre modelos tradicionaes e populares. Já no seculo XV apparecem
citadas por Azurara varias tragedias de Seneca, que existiriam por
certo na Livraria de D. Affonso V. Em 1534 mestre André de Resende
citava as comedias de Menandro e as tragedias de Euripides pelos textos
gregos. Imitámos, porém, os modelos da antiguidade com os olhos fitos
na Italia, como aconteceu com as outras litteraturas romanicas. Nas
principaes côrtes da Europa, e nas Universidades, entregavam-se aos
divertimentos dramaticos; os cardeaes e grandes senhores pisavam os
palcos, como Bibiena, e o sacerdote Torres de Naharro abrilhantava
com as suas comedias lubricas as noites de Leão X. D. Manoel queria
hombrear com a pompa da côrte pontifical, e tambem celebra as festas
do paço com um Auto ou Farça; á maneira italiana tivemos muito cedo
o theatro particular nas casas nobres. Manoel Machado de Azevedo
quando deixou a côrte e regressou á sua quinta de Entre Homem e
Cavado, celebrou o nascimento de seu primeiro filho com divertimentos
dramaticos, para honrar os princepes que foram de Lisboa á festa do
baptisado. Por 1528 leu Jorge Ferreira de Vasconcellos nos serões do
paço a Comedia _Eufrosina_, antepondo a prosa ao verso, segundo o
gosto italiano. Reagia-se contra o theatro nacional ou medieval, como
se descobre pela rubrica da farça de _Inez Pereira_, em que Gil
Vicente reage contra os humanistas (homens de bom saber). Gil Vicente
não foi vencido, mas a corrente erudita continuou a lisongear um
publico restricto de eruditos, que desprezavam os Autos hieraticos.
Sá de Miranda que tinha iniciado o novo estylo italiano na poesia
lyrica, tambem ensaiou a mesma reforma na poesia dramatica; no prologo
da sua primeira comedia, representa a tradição da Arte classica
theatral contando as suas peregrinações desde a antiguidade hellenica
até ao seculo XVI, queixando-se de que os barbaros lhe tivessem
pervertido o nome de _Comedia_ em _Auto_, e a obrigassem
a deixar a prosa para fallar em verso. A allusão feria directamente
Gil Vicente, que pelo seu lado parece visal-o no Francisco filho do
_Clerigo da Beira_ (segundo Camillo, o conego Gonçalo Mendes
de Sá.) A feição italiana da Comedia é inferior á ingenuidade do
Auto medieval: n’este ha o typo popular, com as suas superstições,
locuções, costumes, interesses, emfim todo elle é um documento ethnico
e historico; na comedia imitada do italiano a acção nem mesmo se
passa em Portugal, é em Palermo, com costumes sensuaes de cortezãs,
com intrigas não comprehendidas, sem realidade. O cardeal D. Henrique
mandava representar as Comedias de Sá de Miranda; foram imitadas nos
divertimentos da Universidade, nos Collegios, e, quando prevaleceu o
humanismo jesuitico, volveu a fórma da comedia ao texto latino.
Nos divertimentos da vida escholar escreveu Antonio Ferreira as
comedias de _Cioso_ e _Bristo_ nos moldes italianos; entre os
cinceiraes de Coimbra nasceu a comedia _Eufrosina_, como declara
Jorge Ferreira de Vasconcellos; a comedia dos _Amphytriões_
escreveu-a Camões á imitação de Plauto, quando seguia o curso de
Artes. Os divertimentos dramaticos adquiriram um maior desenvolvimento
quando veiu para Coimbra o Collegio de Mestre André, ou o _Collegio
real_, de que os jesuitas se apoderaram.
A renascença da tragedia não foi devida á imitação directa dos
tragicos gregos, mas ao perstigio de um poeta da decadencia latina,
Seneca, imitado por Albertino Mussato, por Angelo Poliziano, Trissino,
Rucellai, Alamani, Cintio e Dolce. Em Portugal, já no seculo XV eram
conhecidas as tragedias de Seneca; mas na Universidade de Lisboa
nos principios do seculo XVI liam-se as tragedias de Sophocles e
de Euripides, e o Dr. Antonio Ferreira conhecedor da lingua grega,
ao escrever a tragedia _Castro_, seguiu os modelos gregos.
Antes de Ferreira, em 1555, Ayres Victoria imprimia uma traducção
do _Agamemnon_ de Sophocles. O merecimento da _Castro_ de
Ferreira não está sómente no lyrismo dos córos, accentua-se no senso
artistico com que soube fixar um assumpto _nacional_, sendo o
primeiro que na Europa iniciou a tragedia fundada sobre um facto
historico da civilisação moderna; por que a _Sophonisba_ de
Trissino representada em 1520, embora em lingua vulgar, não lhe derroga
a prioridade, por falta de nacionalismo. Ferreira morreu em 1569
deixando manuscripta a sua tragedia, que appareceu imitada na _Nise
lastimosa_ de Jeronymo Bermudez, em Madrid em 1577, assumpto que
desenvolveu na _Nise laureada_, em que se dramatisa a vingança
da que «depois de morta foi rainha.» Depois de Ferreira nunca mais
os poetas abandonaram o thema tragico de Ignez de Castro, ao qual
imprimiram a galanteria de capa e espada do seculo XVII, o imbroglio do
seculo XVIII, e mesmo o sentimentalismo romantico do nosso seculo. A
tragedia classica não progrediu; pela cultura humanista decaíu na fórma
allegorica das Tragicomedias dos jesuitas.
A Comedia popular, como Gil Vicente a creára continuou a ser apreciada
na côrte, como vêmos pela declaração de Luiz Vicente, dizendo que
Dom Sebastião se recreiava com os autos de seu pae na meninice.
E por que constituia eschola, o Auto foi atacado com prohibições
severas nos Indices Expurgatorios. No meio d’estas duas correntes
classica e medieval, Camões pela sua intuição de artista concilia os
dois espiritos; elle adopta a fórma popular do Auto para dramatisar
assumptos da mythologia e da tradição hellenica.
II. _Sympathia pela Edade media na Eschola da medida
velha._--Caracterisando a revolução occidental, Comte precisa-lhe os
aspectos essenciaes por onde ella se manifestou: «a transição moderna
abrangeu simultaneamente a _intelligencia_ e a _actividade_, mas
deixando de parte sempre o _sentimento_.»[174] E como a dissolução do
regimen catholico-feudal comprehendeu o systema das ideias dominantes
da synthese theologica que perderam a credulidade dos espiritos, e a
fórma da sociabilidade, cuja hierarchia aristocratica se quebrou com o
advento do proletariado, essa profunda crise, que constitue a historia
moderna, foi conjunctamente _social_ e _mental_. Nos jurisconsultos
vêem-se estes dois aspectos, quando pela erudição fazem reviver as
leis romanas em favor da dictadura monarchica; servem a mesma causa
os humanistas coadjuvando a emancipação _mental_ com a vulgarisação
dos philosophos gregos, cuja metaphysica oppõem á theologia catholica.
Póde-se bem explicar toda a Renascença dos fins do seculo XV a
principios do seculo XVII como uma profunda revolução _mental_; com a
Revolução de Inglaterra é que a grande crise europêa toma o intuito
_social_. N’esta instabilidade de critica e de acção não havia logar
para as emoções affectivas; queria-se subtileza para a argumentação e
audacia para o combate. O _sentimento_ fôra inevitavelmente abandonado,
tornando-se por isso mais violentos os conflictos; o que amar, quando
tudo era agitado e incerto? A poesia teve de inspirar-se na admiração
da antiguidade morta; alguns espiritos femininos foram com a forte
corrente da erudição, mas a mulher alheia ao perstigio classico, sentia
a saudade do passado, e, como diz Comte: «aspirava espontaneamente á
Edade media.» De animo submisso, era n’essa edade extincta que a alma
repousava na crença, que se exaltava na galanteria trobadoresca e na
generosidade da cavalleria; a mulher mantinha o _sentimento_ da Edade
media. Foi sobre essa tendencia que se estribaram sempre todas as
reacções catholicas. Quando as Litteraturas romanicas caíam na imitação
fria das obras primas greco-romanas, foi a predilecção feminina pela
poesia dos Cancioneiros e pelas Novellas cavalheirescas, que fortificou
a reacção contra o gosto e auctoridade dos eruditos.
_a_) OS POETAS DA MEDIDA VELHA
Na _Arte de Galanteria_ notou D. Francisco de Portugal, que as
damas não sympathisavam com os versos endecasyllabos por serem longos
e não exprimirem conceitos tão delicados como as redondilhas. E Camões
em uma das suas Cartas falla das damas que mostravam frieza ouvindo um
pensamento de Petrarcha. Evidentemente o lyrismo italiano encontrou
certa antipathia, que foi explorada em Portugal e Hespanha pelos poetas
que continuaram com intuito de reacção a metrificar no verso octonario.
Esta persistencia nada mais é do que o prolongamento da influencia
da poesia castelhana, que desde as relações do Infante D. Pedro com
João de Mena, se exercera nas côrtes de D. Affonso V, D. João II e D.
Manoel. Ideia e fórma são imitadas dos versos de João de Mena, Jorge
Manrique, Stuniga, como era moda nas côrtes de D. Juan II e Enrique IV.
Os casamentos com princezas de Castella tornaram a lingua castelhana
usual na côrte portugueza, n’ella escrevendo os seus motes, voltas
e coplas. No _Cancioneiro geral_, de Garcia de Resende, vinte
nove poetas palacianos escrevem em castelhano, facto já observado por
Pidal; Jorge Ferreira chegou a queixar-se do despotismo que as trovas
castelhanas exerciam no nosso ouvido, e Damião de Góes tambem consigna
o facto da grande importancia que tinham na côrte os _chocarreiros
de Castella_. Era este lyrismo a ultima transformação do gosto ou
estylo trobadoresco, e como um producto archaico, os fidalgos e os
princepes são os que sobresáem como poetas, nos serões do paço. Foram
poetas o rei D. Duarte, o Infante D. Pedro, seu filho o Condestavel
de Portugal, e D. Philippa; mesmo o terrivel D. João II considerava o
talento poetico _uma excellente manha_, e animava a habilidade
poetica de Garcia de Resende. Tambem o infante D. Luiz era poeta, e
de seu irmão o infante D. Duarte escrevia André de Resende: «Fazia
trovas sentenciosas, e guardava todas as leis e arte de bem trovar.»
A musica, tão cultivada pela aristocracia, como vêmos em D. João de
Menezes, Sá de Miranda, Manoel Machado de Azevedo e outros, coadjuvava
a sympathia pelos versos curtos de redondilha menor e maior, emquanto
que os endecasyllabos só podiam ser recitados. A persistencia da
_medida velha_ manifestava-se pela paixão dos colleccionadores de
Cancioneiros; d’este costume falla Jorge Ferreira de Vasconcellos, na
comedia _Ulyssipo_: «Fazem por si mundo em segredo, vivem como
morcegos, _tem Cancioneiro de boa letra e má nota_ e mostram-no
em particular a quantos lh’o querem ouvir.» (Fl. 213, V.) De varios
d’estes Cancioneiros formou Garcia de Resende o _Cancioneiro
geral_, publicado em 1516, á imitação do _Cancionero general_
de Hernando del Castillo, começado em 1491 e impresso em 1511. Em
1514 fôra Resende a Roma como secretario da embaixada a Leão X, e por
tanto não fez mais do que confiar ao prelo sem ordem os materiaes que
lhe entregaram, por entender que a poesia: «nas côrtes dos grandes
prinçepes he muy neçessaria na jentileza, amores, justas e mômos,
e tambem para os que máos trajos e envenções fazem, per trovas sam
castigados, e lhe dam suas emendas...» Na _Aulegraphia_ revela
Jorge Ferreira o antagonismo das duas poeticas: «hey muito grande dó de
uns juizes poldros, e tão curtos da vista, que acceitam toda novidade
sem pezo, a olhos, e assi me parece de vós, senhor, que por andar com
som do moderno sereis todo um Soneto, e condemnaes logo o outro verso,
sem mais respeito nem consideração.» (Fl. 165, v.) E D. Francisco de
Portugal, na _Arte de Galanteria_, tambem allude ao antagonismo
das duas poeticas: «las otras modas de versos hizieranse para leydos, e
estos para sentidos...» E explica claramente a influencia hespanhola em
Portugal: «las coplas castellanas son las mas proprias para palacio...»
Os versos de redondilha deram expressão ás mais sentidas emoções
amorosas, como no _Crisfal_ de Christovam Falcão e nas _Eclogas_ de
Bernardim Ribeiro. N’este genero de redondilha chegou Gil Vicente a
renovar os typos tradicionaes das serranilhas, e Camões na galanteria
do paço tornou-se inimitavel na graça com que reanimou toda a poetica
dos velhos cancioneiros. O proprio inaugurador da poetica italiana
era admirado e imitado no seculo XVII mais pelas suas bellas Eclogas
e Cartas em redondilhas. As duas escholas, como notou Sá de Miranda
estabelecendo a relação entre os provençaes e os italianos, não eram
incompativeis, provinham da mesma origem.
_b_) ROMANCES E NOVELLAS DE CAVALLERIA
A instabilidade social na grande transição para a edade moderna,
fez com que a creação épica dos Romanceiros da peninsula hispanica
estacionasse em simples rudimentos narrativos. Facilmente foram
dissolvidos na prosa das chronicas, como testemunhos historicos, e no
seculo XV consideravam-se _infimos e despreziveis_ os que com
_romances_ se recreavam. Esses infimos constituiam o proletariado,
incorporado na sociedade moderna, e por isso não admira que os Romances
começassem a ser colligidos no seculo XV em folhas volantes, máo grado
o desdem dos cultistas litterarios e admiradores da antiguidade.
Explorando esta corrente de sympathia popular, a fórma de Romance foi
adoptada pelos escriptores cultos para n’ella metrificarem a prosa
das chronicas nacionaes. Puzeram em romance a historia de Hespanha,
Sepulveda, Juan de la Cueva e Lasso de la Vega; o mesmo trabalho se
effectuou em Portugal, quando Gil Vicente, Jorge Ferreira, Balthazar
Dias transformaram o romance anonymo, que se tornou subjectivo e um
pretexto para a composição musical.
A lingua castelhana usada como expressão aristocratica na côrte
portugueza, era empregada de preferencia nos romances. André de
Resende, na _Vida do Infante D. Duarte_, conta: «Veiu ter a esta
cidade de Lisboa um mancebo castelhano chamado Ortiz, que graciosamente
tangia e cantava chistes; filhou-o o Infante, e folgava de o ouvir.»
(Cap. 11.) Tambem Jorge Ferreira allude aos romances póstos em musica:
«Eu não vos nego que sabeis muito bem harpar um _Conde Claros_,
que elles logo dizem que não ha tal musica.» O gosto feminino,
suscitado pela musica tambem provocava a fórma litteraria dada ao
romance, como o affirma Diego de San Pedro na _Carcel de Amor_,
fallando das excellencias da mulher: «Por quien se cantan los lindos
romances.» Os romances foram glosados, desenvolvendo-se lyricamente; na
comedia _Eufrosina_, allude Jorge Ferreira a este gosto dominante:
«Bem estaveis agora para glosar _Recuerde el alma dormida_, etc.»
E na comedia _Ulyssipo_: «Este meio é de uns porretas que grosam
_Retrahida está a Infante_, e _Para que pariste, madre?_» É
frequentissimo o encontrar-se em todos os escriptores quinhentistas
referencias aos romances populares que mais espalhados andavam na
tradição, e com especialidade nos poetas dramaticos, que pintavam os
costumes vulgares. O romance decaíu da sua importancia épica para as
fórmas allegoricas e subjectivas do lyrismo culteranista; e quando
conservou a expressão objectiva foi para representar as aventuras
de salteadores e contrabandistas nos romances de _guapos_ e
_temerones_, ou as Xácaras.
As Novellas de Cavalleria é que resistiram mais no gosto publico
contra a corrente erudita que desdenhava de tudo quanto provinha da
Edade media. Aqui são em geral as mulheres, que se interessam pelas
narrativas novellescas. Em varios logares das suas comedias refere
Jorge Ferreira a grande importancia que tinham as novellas na sociedade
portugueza; diz na _Eufrosina_: «Ride-vos dos aphorismos de Hypocras,
nam das _Xergas de Esplandião_.» E na comedia _Ulyssipo_, alludindo
ás predilecções femininas: «Já se entram em saber latim ou musica,
nenhuma cura lhes sinto. E se são lidas por _Espelho de Cavalleria_, ou
_Carcel de Amor_, e _Conde Partinoples_, e não leixam udo nem meudo;
ride-vos vós de mais _Donzella Theodora_.» Os humanistas eram inimigos
encarniçados das Novellas medievaes; escreve o auctor do _Dialogo de
las Lenguas_: «Dez annos, os melhores da minha vida, gastei em palacios
e côrtes, não me empregando em exercicio mais virtuoso do que lêr estas
mentiras, em que achava tanto sabor, que me deixava levar por ellas;
e olhae que cousa é ter o gosto estragado, que se pegava em algum
livro escripto em latim, que são os de historias verdadeiras, ou que
pelo menos são tidos como taes, não podia resolver-me a acabal-os de
lêr.» E no livro _De institutionae Faeminae christianae_ o humanista
hespanhol João Luis Vives deblatera contra as Novellas, pedindo a
intervenção prohibitiva dos governos: «Deviam fazer o mesmo d’estes
outros livros vãos, que são: em Hespanha, o _Amadis_, _Florisandro_,
_Tirante_, _Tristão de Leonis_, _Celestina_, a alcoviteira, mãe da
malvadez; em França, _Lançarote do Lago_, _Páris e Viana_, _Ponto e
Sidonia_, _Pedro de Provença_, _Magalona e Melusina_; e em Flandres,
_Flores e Brancaflor_, _Leonela e Cananior_, _Curias e Floreta_,
_Pyramo e Tisbe_. Ha outros traduzidos do latim em vulgar, como são as
infacetissimas _Facecias_ e _Graças_ desgraçadas de Poggio, e as _Cem
Novellas_ de João Boccacio, livros todos elles escriptos por homens
ociosos e desoccupados, sem letras, cheios de vicios e sordidez, nos
quaes eu me maravilho como se póde achar cousa que dê deleite, a não
ser que os nossos vicios nos tragan tanto al retortero;... eu por
mim digo na verdade, que nunca vi, nem ouvi dizer que lhe agradavam
obras d’este genero senão ás pessoas que nunca tocaram nem viram um
bom livro, e eu tambem fiz d’essas leituras algumas vezes, mas nunca
achei vestigios alguns de bom engenho.» Tambem na _Historia imperal
e cesárea_, Pedro Mexia clama com sarcasmo contra as novellas: «e em
paga de quanto trabalhei em a recolher e abreviar, peço agora attenção
e aviso, já que o costumam prestar ás proezas e mentiras de _Amadis_,
de _Lisuartes_ e de _Clarianes_, e de outros portentos, que com tanta
rasão deviam ser desterrados de Hespanha como cousa contagiosa e
damnosa á Republica, pois tão mal fazem gastar o tempo aos auctores
e leitores d’elles, e o que é peior, que dão mui máos exemplos e
bastantes perigos para os costumes.» E n’esta increpação crescente de
deshonestidade, conclue: «É um mui grande e damnoso abuso, do qual,
entre outros inconvenientes se segue grande ignominia e descredito das
Chronicas e Historias verdadeiras, permittindo que andem cousas tão
nefandas a par com ellas.» Vives, no seu livro _De causis corruptarum
Artium_, condemna implacavelmente o _Amadis_ e _Florisandro_,
hispanicos, o _Lancelot_ e _Tavola Redonda_, francezes, e o _Orlando_,
italico; mas apezar de tudo a paixão cavalheiresca actuava na
sociedade, como vêmos pela paixão de Ignacio de Loyola pelo _Amadis
de Gaula_, na mocidade. Cervantes, no capitulo VI do _D. Quijote_,
synthetisa esta antipathia, no exame feito pelo barbeiro Mestre Nicoláo
e pelo Cura ás novellas por onde lia o Cavalleiro da triste figura:
«O primeiro que lhe deu Mestre Nicoláo foi os quatro (sc. livros) do
_Amadis_; e disse o Cura:--Parece cousa de mysterio esta, por que ao
que tenho ouvido referir, foi este livro o primeiro de Cavallerias que
se imprimiu em Hespanha, e todos os mais tomaram principio e origem
d’este, e assim me parece que como a dogmatista de uma seita tão má o
devemos sem excusa lançar á fogueira.--Não, senhor! (disse o barbeiro),
pois tambem tenho ouvido dizer, que é o melhor de todos os livros que
d’este genero se tem composto, e assim como a unico em sua arte se deve
perdoar.--É verdade isso, volve o Cura, e por tal rasão se lhe outorga
a vida por agora.» No exame do _Palmeirim de Inglaterra_, resolvem
tambem «que _este_ e _Amadis de Gaula_ quedem livres de fogo, e todos
os outros sem fazer mais reclamações pereçam.» Cervantes revelava
n’este episodio o seu superior sentimento esthetico, diante d’essas
duas creações do genio portuguez, que continuava na historia a sua
paixão pelas aventuras. Na _Côrte na Aldeia_ refere Rodrigues Lobo
uma anecdota caracteristica: «Na milicia da India, tendo um Capitão
nosso cercado uma cidade de inimigos, certos soldados camaradas que
alvergavam juntos, traziam entre as armas um livro de Cavallerias, com
que passavam o tempo. Um d’elles, que sabia menos que os mais d’aquella
leitura, tinha tudo o que ouvia lêr por verdadeiro, (e assim ha alguns
innocentes que cuidam que se não póde mentir em letra redonda) os
outros ajudando a sua simpleza, lhe diziam que assim era. Veiu occasião
de um assalto, em que o bom soldado invejoso e animado do que ouvia
lêr, lhe pareceu ensejo de mostrar seu valor e fazer uma cavalleria
que ficasse de memoria, e assim se metteu entre os contrarios com
tanta furia, e a começar a ferir tão rijamente com a espada, que em
pouco espaço se empenhou de sorte, que com muito trabalho e perigo
dos companheiros e de outros muitos soldados, lhe ampararam a vida,
recolhendo-se com muita honra e não poucas feridas. E reprehendendo-o
os mais amigos daquella temeridade, respondeu:--Ah, deixae-me, que não
fiz a metade do que cada noite lêdes de qualquer cavalleiro do nosso
livro.»
Era com este espirito que iamos á descoberta do _Preste João das
Indias_ e das _Ilhas encantadas_, e davamos a volta do mundo.
Mas a edade da burguezia tinha chegado, e o nosso ultimo rei cavalleiro
D. Sebastião amando mouras encantadas e sonhando o _Quinto Imperio
do mundo_, ao lançar-se para a conquista de Marrocos levava já
comsigo a corôa de ouro com que havia de significar a sua soberania,
e ia acompanhado do poeta que havia de exaltar na tuba épica o seu
triumpho. Seria um prototypo de Quixote, se a este tresloucamento não
andasse ligada a perda da autonomia da nacionalidade portugueza. As
Novellas de Cavalleria tambem degeneraram nas allegorias pastoraes
do gosto italiano, e nas historias moraes encabeçadas em nomes de
personagens da antiguidade. Mas d’esta fórma se transitava para o typo
mais caracteristico da arte moderna--o Romance, na accepção actual, que
por este seu proprio titulo nos relaciona com a poesia da Edade media.
_c_) OS AUTOS HIERATICOS
Como em todos os povos catholicos em que as festas religiosas do
Natal, Reis Magos e Paixão, eram a base do theatro hieratico, tivemos
esses Autos ou vigilias, que se ligavam ás manifestações do culto,
sobretudo no tempo em que a Egreja admittia o povo á participação da
liturgia. Foi por um monologo de natureza de Visitação da lapinha ou do
presepio, que Gil Vicente começou a elaborar a fórma litteraria do Auto
_hieratico_.
Os velhos mythos da lucta do Verão e do Inverno, base de um grande
numero de festas publicas europêas, tambem foram aproveitados pelo
genio de Gil Vicente na farça _popular_. Por fim a fórma
dos Mômos e entremezes da côrte de D. João II, a que se allude
no _Cancioneiro geral_, constituiam o elemento do theatro
_aristocratico_. Gil Vicente, sugerido pela generosa rainha
D. Leonor, compoz n’estes trez generos os seus Autos, Farças e
Tragicomedias, quasi que exclusivamente para os serões do paço. As
Constituições episcopaes atacaram o costume popular das representações
hieraticas; e os eruditos da Renascença fizeram caír pelo descredito
os mômos e entremezes. Sob o regimen da repressão catholica o povo
ficou triste e mudo; Gil Vicente fez-se o seu interprete nas côrtes
de D. Manoel e D. João III, dando a conhecer a miseria geral. Em um
Auto falla no perigo de mandar os galeões para a India com capitães
nobres mas imbecis; em outro pede tolerancia para a pobre gente
supersticiosa na sua rudeza: em todos desmascara as grandes ambições
do clericalismo. É esta fórma litteraria do Auto mais directamente
medieval a que se manifesta mais radicalmente satyrica; ahi conserva
as orações _farsis_ dos goliardos, e tem como personagem comico
o Diabo, como nos antigos Mysterios. Ainda entre o povo portuguez se
encontra a locução--_Fazer diabos a quatro_, que teve origem dos
Mysterios dramaticos, em que a importancia da peça augmentava com o
maior numero de diabos que entravam; em Rabelais se encontra esta
phrase: _la grande diablerie à quatre personages_, empregada no
_Pantagruel_. D’este personagem popular foram herdeiros da sua
malicia e vivacidade Scapin, Paillasse, Arlechino, Pathelin, Celestina
e Sganarello.
Possuido da inspiração e espontaneidade do sentimento da Edade media,
Gil Vicente, com essa liberdade sarcastica, toca em todos os pontos
capitaes da grande lucta da secularisação social e emancipação
mental, encontrando-se por vezes na mesma aspiração da Reforma. Em
Antonio Prestes causa impressão como elle no _Auto da Ave-Maria_
considera a Rasão como indispensavel para o merecimento da Fé. Não nos
admira pois que o theatro nacional depois do Concilio de Trento fosse
combatido nos Indices Expurgatorios, que conservaram muitos titulos de
autos e comedias que a intolerancia religiosa fez perder.
A influencia castelhana da comedia em prosa, tambem de costumes
populares, como o typo immortal e immoral da _Celestina_, acha-se
introduzida por Jorge Ferreira de Vasconcellos na _Eufrosina_,
_Ulyssipo_ e _Aulegraphia_; elle cita com frequencia esse
typo incomparavel: «E vós dar-lhe-heis mais virtudes que a _madre
Celestina_.» João de Barros e Camões tambem citaram esta comedia
portentosa, que se impoz á imitação portugueza. Na _Côrte na
Aldêa_ escrevia Rodrigues Lobo: «Ainda me parece que haveis de
chegar á _Celestina_, que posto que o officio é commum de dois,
accomoda-se melhor ao feminino.» Na linguagem popular egualmente se
encontra a phrase: _Artes da madre Celestina encantadora_.
Em consequencia da incorporação na unidade castelhana em 1580,
começou-se a representar em castelhano, e os escriptores portuguezes
enriqueceram o vasto reportorio dramatico da Hespanha. Pedro Salgado,
Jacintho Cordeiro, Mattos Fragoso escreveram em castelhano, comedias
famosas de _capa e espada_. Rodrigues Lobo refere-se á estructura
castelhana começada a usar: «E tambem os poetas nas suas comedias, que
são mais proprias para recreação e passatempo, dividiram a obra em
actos _a que agora chamam Jornadas_...» Por falta de um interesse
nacional, que fecundasse o theatro, ou de um sentimento que recebesse a
expressão esthetica do drama, os divertimentos scenicos dos _Pateos
das Comedias_ tiveram por fim a especulação da caridade. Comtudo a
riqueza fecunda do theatro hespanhol actuou nas litteraturas da Europa
no seculo XVII, inspirando genios superiores como Corneille, Molière e
Shakespeare.
_b_) O CULTERANISMO SEISCENTISTA
(_Hegemonia da Hespanha_)
Na marcha progressiva da Renascença, o pensamento europeu preoccupa-se
com a renovação das _sciencias experimentaes_ e com a elaboração
de uma nova _synthese philosophica_. É n’esta corrente que finda
o seculo XVI, e que se absorve completamente todo o seculo XVII, o
qual segundo a phrase de Cournot, occupa na historia do espirito
humano um logar unico, sem analogo no passado nem no futuro, em que
as descobertas tornam-se revoluções em geometria, na astronomia e
na physica, pela determinação das leis geraes do movimento e da
acção da gravidade, da figura e movimento dos corpos celestes e
do systema do mundo. N’esta marcha grandiosa da revolução mental,
que se manifestára pelo _Humanismo_, na sua fórma philologica
e critica, a Egreja oppuzera uma reacção, primeiro de compressão
material pela Inquisição, e depois de apropriação pela astucia por
meio do ensino e da direcção espiritual do Jesuitismo. O encontro
d’estas duas correntes depressivas deu-se no Concilio de Trento, que
veiu perturbar as nações catholicas na sua actividade scientifica; e
pela sua assimilação na dictadura monarchica (a Inquisição ao serviço
de Philippe II, e a Companhia de Jesus servindo-se de Luiz XIV) a
revolução tornou-se mais intensa saíndo do campo theorico para a
prática social. A Hespanha, sob o dominio da Casa de Austria que se
dava como garantia da unidade catholica, ficou alheia ao movimento
scientifico e philosophico do seculo XVII. As suas _Academias_,
fórma caracteristica adoptada pela cooperação dos investigadores da
natureza e experimentalistas, tornam-se _Tertulias_ de passa-tempo
litterario. É n’esta exuberancia poetica sem plano, que se cultiva a
fórma figurada da expressão, sem destino social; a cultura humanistica
dos Collegios jesuiticos, com a sua falsa rhetorica, em pouco tempo se
apoderou das novas gerações e lhes imprimiu o sello da mediocridade.
As relações politicas do dominio da Hespanha na Italia, e a fusão do
genio d’estes dois povos, quando a Companhia de Jesus se remodelou sob
os geraes italianos, produziram as perversões moraes da casuistica
_molinista_, do cauteloso _equivoquismo_ do pensamento, e do
vazio _concettismo_ da phrase. A falta de convicções era supprida
pela emphase, e a ausencia de ideias pelo pedantismo mascarado com
antitheses e parallelismos. O Humanismo italiano, materialmente imitado
entre os outros povos da Europa, degenerou no _Preciosismo_ em
França, no _Euphuismo_ em Inglaterra, e no _Cultismo_ em
Hespanha. Tem-se irracionalmente attribuido á Hespanha este contagio
do máo gosto; mas a sua generalidade só póde explicar-se por causas
sociaes persistentes e não por influxo individual de um ou outro
escriptor. A Hespanha exerceu no seculo XVII uma acção sobre todas
as litteraturas: revelou-lhes o drama moderno. Como todas as outras
nações, ella tambem foi victima do máo gosto, por que soffria as mesmas
causas sociaes: a compressão monarchica.
O imperio do equivoco na expressão vulgar e artistica, a linguagem
sempre figurada e translata, não para receber mais relevo pittoresco
mas para subtilisar as comparações sem a justa relação entre o
sentimento e a imagem, e tudo isto feito por um esforço e pedantismo
indigesto, constituem o gosto amaneirado, culteranesco, conceitista,
geral a todas as Litteraturas do seculo XVII. O _gongorismo_
ou _culteranismo_ em Hespanha e Portugal, os _concetti_ em Italia, o
_preciosismo_ em França, o _euphuismo_ em Inglaterra, são o mesmo
phenomeno, indicando no seu vasto contagio de corrupção no estylo
litterario uma causa commum á sociedade europêa. Qual essa causa? A
falta de liberdade. A dictadura monarchica do seculo XVI, acha-se no
seculo XVII dando o apoio do seu poder temporal á compressão das
dissidencias religiosas, e depois das grandes carnificinas
(_S. Barthelemy, Dragonadas_) prohibe a liberdade de consciencia e a
liberdade do pensamento (Revogação do Edito de Nantes). Renan descreve
em palavras incisivas o effeito d’esta suppressão da liberdade mental,
apezar de não traçar o quadro historico da alliança ou colligação da
Monarchia e da Egreja: «É tal a actividade da intelligencia humana,
que o encerral-a em um circulo apertado é forçal-a a delirar. A
liberdade de pensar é imperscriptivel; se barrardes ao homem os vastos
horisontes elle se vingará pelas subtilezas; se lhe impondes um texto
elle exime-se pelo contrasenso. O contrasenso nas épocas de
auctoridade, é a reprezalia que toma o espirito humano contra a algema
que lhe impõem; é o protesto contra o texto. Esse texto é infallivel;
seja-o, embora. Mas é diversamente interpretavel, e n’isso começa a
diversidade, simulacro de liberdade, com que se contenta á falta de
mais. Sob o regimen de Aristoteles, como sob o da Biblia, pôde-se
pensar tão livremente como no dia de hoje, mas com a condição de
provar que tal pensamento estava realmente em Aristoteles ou na
Biblia, o que nunca era difficil. O Talmud, a Masora, a Cabala são
productos extravagantes do quanto é capaz o espirito humano
acorrentado a um texto. Contam-se as letras, as syllabas, entregam-se
aos sons materiaes mais do que ao sentido, multiplicam-se até ao
infinito as subtilezas exegeticas, os modos de interpretação, como o
faminto que depois de ter comido o seu pão apanha as migalhas. Todos
os commentarios dos livros sagrados parecem-se entre si, desde os de
Manu até aos da Biblia, até aos do Coran. Todos são o protesto do
espirito humano contra a letra escravisante, um esforço infeliz para
fecundar um campo infecundo. Quando o espirito não acha um objecto
proporcionado á sua actividade, cria um para si com mil
habilidades.--O que o espirito humano faz diante de um texto imposto,
fal-o diante de um dogma definido. Por que se mostrou tão aborrecido o
seculo XVII? Por que morria de tedio madame de Maintenon em
Versailles? É por que não havia ahi horisontes.--É por esta mesma
rasão, que este seculo de orthodoxia e de regulamentação foi o seculo
do _equivoco_. É a regra estricta que dá origem ao equivoco. Por que é
o direito a sciencia do equivoco? É por que de todos os lados se vê
confinado por fórmulas.»[175]
A transcripção foi extensa, mas merece ser desenvolvida na sua
eloquente verdade. A severidade na etiqueta da vida palaciana, obrigava
a uma linguagem affectada e de convenção, que por seu turno viria
a influir na corrente da linguagem e do estylo litterario.[176] A
severidade das regras deduzidas dos modelos classicos, e a indiscutivel
admiração que lhes era consagrada, escravisavam a imaginação a imitar
ou melhor a _parodiar_ caricatamente essas eternas idealisações
do sentimento. O phenomeno deu-se em Portugal com a parodia dos
_Lusiadas_, e em França com o _Virgile travesti_, de Scarron. Desde
que se imitassem minuciosamente, respeitando as regras da rhetorica,
os modelos classicos, estava admittido como litterario qualquer
absurdo. Facilmente se perverteu a corrente scientifica das Academias
em _Tertulias_ e _Arcadias_, corporações destinadas á inalterabilidade
das rhetoricas de Aristoteles e de Quintiliano, e a fomentar a livre
expansão do equivoco, ou da linguagem conceituosa das pessoas cultas.
Era ao que Gracian codificava sob o titulo de _Agudezas de Ingenio_.
O que se passava na Litteratura repetia-se com a mesma fatalidade do
absurdo na Theologia, com as doutrinas do _Quietismo_, do _Molinismo_,
do _Congruismo_, do _Probabilismo_, que transportadas para a polemica
clerical e para os pulpitos deram os enormes ridiculos dos prégadores,
retratados no _Frei Gerundio de Campazas_, e nas _Provinciaes_ de
Pascal, que reduziu a systema esse acervo de contrasensos. O equivoco
artificioso invadiu os pulpitos, onde os prégadores, em uma época sem
liberdade politica, arrastavam os textos sacros ás interpretações
allusivas, e ás censuras encapotadas ou indirectas aos poderes
publicos, como vêmos nos sermões do Padre Vieira.
Este mesmo motivo suscitou a immensa fecundidade do theatro hespanhol
nos fins do seculo XVI e em quasi todo o seculo XVII; a nação estava
sem liberdade, e era sobre a scena que o pensamento achava uma brécha
para expandir-se. É por isso que o drama hespanhol não representa
o estado de consciencia do poeta que o elaborou; exprime todos os
caracteres da alma hespanhola, repassada das suas tradições, sedenta de
heroismo, cheia de garbo e de paixões violentas, mas não tendo em que
empregar a sua vida affectiva. A cavalleria é atacada pelo ridiculo, a
crença religiosa vae cedendo o logar á verdade scientifica; resta-lhe
o drama sobre o palco, o espectaculo que lhe lisongeia o instincto.
N’esta crise de uma sociedade a que lhe foge o antigo ideal, os
individuos sem recursos para exporem o seu pensamento fizeram do palco
a tribuna; d’ahi a rasão da extrema fecundidade creadora em uma época
de repressão. Sobre este ponto é lucido o juizo de Philarète Chasles:
«Este drama, no seculo XVII, desempenhou o papel que representa a
imprensa periodica moderna. Correu a Europa e o mundo, avivando o
pensamento e a acção, do Mexico a Berlim, e de Londres a Lima.»[177]
E accrescenta: «Todos os acontecimentos, todas as ideias, todas as
loucuras, todas as esperanças creavam algum drama novo.» Separada da
influencia da Hespanha a responsabilidade do contagio do máo gosto ou
o Culteranismo, a sua acção foi impulsiva e fecunda sobre todas as
litteraturas romanicas no seculo XVII em quanto ás fórmas novellescas e
dramaticas. Competiu por sua vez á Hespanha a hegemonia.
Fallando da influencia do theatro hespanhol nas litteraturas da Europa,
no seculo XVII, escreve Philarète Chasles: «Elle é que ensinou á
Italia o _imbroglio_ pueril dos acontecimentos que se embatem,
se cruzam e se entrelaçam. Mestre e precursor do theatro europeu,
produziu Corneille e Beaumarchais, os dois genios mais oppostos que
possam nomear-se. Desde o meado do seculo XVI a Inglaterra imita a
scena hespanhola. Os contemporaneos de Shakspeare, homens de talento
agrupados em volta do homem de genio, Marston, Dekker, Johnson,
Marlow, Webster, Heywood, nomes pouco conhecidos em França, copiam
ou antes calcam os imbroglios de Lope de Vega e dos seus discipulos.
Assim se formou o drama inglez. A Italia fornecia o assumpto, o conto
original, a trama primeira; a Hespanha dava o movimento dramatico:
trapaças, velhacarias, aventuras nocturnas, raptos, disfarces, mudanças
e substituições de nomes e de estado. Tudo o que pertence á vida
activa vinha do meio-dia; o genio nacional do norte ajuntava-lhe a sua
profundidade nativa, a analyse, a reflexão. Consultem-se as peças de
Congrève, de madame Centlivre, de Farquhar, todo o máo drama inglez
do XVII seculo até á bella e brilhante comedia de Sheridan _Fort
Scandal_, appresentam o cunho hespanhol em quanto á intriga.»[178]
Transcreveremos como insuspeitas as palavras do critico francez, para
se notar quam profunda foi tambem a influencia do genio hespanhol na
litteratura franceza.
Sobre esta hegemonia successiva das modernas nações da Europa umas
sobre as outras, fecundando-se por allianças reciprocas, exprime-se
Philarète Chasles: «N’este vasto ensino mutuo dos povos, vê-se cada
nação poderosa elevar-se á missão de instituidora. Os Arabes e os
Provençaes succedem aos Romanos, os quaes tambem tinham succedido
aos Gregos. Do seculo XIV ao seculo XV a Italia dá a lei ao mundo
intellectual. O turno da Hespanha deu-se sob Luiz XIII.» E resumindo a
sua actividade historica, accrescenta: «A Hespanha attraía as attenções
do globo; nação conquistadora e poeta, que tinha descoberto um mundo e
o guardava; que assentava um pé sobre o Perú, o outro sobre a Allemanha
e Flandres. Desde 1590, o genio hespanhol suscita a Liga franceza;
encontra-se em Bruxellas, em Napoles, em Roma, em Vienna, no Mexico,
na Hispaniola, na Florida; por toda a parte é detestado, temido e
admirado, diria mesmo, amado, pois se ama voluntariamente o que se
teme. No proprio momento em que as imprecações do mundo civilisado
se misturavam ás lagrimas longinquas dos Indios, e aos gemidos dos
escravos, a Europa tomava por modelo a Hespanha.--No principio do
seculo XVII o diccionario hespanhol invade e sobrecarrega com o peso
das suas palavras sonoras a nossa lingua flexivel.--Não desenrolaremos
todos os emprestimos que o diccionario francez tomou da Hespanha
sob Anna de Austria e durante a menoridade de seu filho. A phrase
castelhana enche com as suas pomposas circumlocuções as Memorias
de Richelieu e as de M.^{me} de Motteville.--Balzac é hespanhol.
Os seus sermões leigos são o segundo tomo das verbosas e solemnes
amplificações de Balthazar Gracian; as miniaturas galantes de Voiture,
ainda que conservam um pouco o colorido italiano, são sobretudo
castelhanas. Desde 1610, a emphase apodera-se do discurso familiar e
do estylo epistolar.--Em Paris, em 1640, só se dirigem ás damas e aos
grandes cumprimentos harmoniosos e vazios, uma pompa elogiosa, uma
lisonja banal, que os hespanhóes chamavam espirituosamente--musica
celeste.» E fallando da influencia dos trajos hespanhóes nos desenhos
de Callot, define-o: «artista mais historiador que os historiadores,
multiplica a parodia deliciosa d’estes gentishomens que marcham com o
punho na cinta, d’esses poeticos maltrapilhos, d’esses mendigos que
o sol aquenta, d’estes almocreves insolentes, verdadeiros filhos de
Castella.»[179]--«Este prurido hespanhol durou até meio do reinado de
Luiz XIV;... este reflexo da Hespanha cáe sobre Versailles, sobre os
seus costumes solemnes, seus usos, sua admiravel mistura de nobreza
e de elegancia, sua litteratura gravemente doce, perfeitamente e
nobremente bella. Por um singular destino, a Hespanha que dominava
tudo pelo seu exemplo, seus costumes e sua lingua, ia morrer sem
esplendor, morrer no meio do seu triumpho. A agonia preparava-se-lhe
pela ignorancia, pelo orgulho e pela priguiça. Ella tinha conquistado a
fonte do ouro, e o berço dos diamantes; possuia os grandes escriptores,
os sublimes pintores, os altos caracteres; viu-se sublime, creu-se
immortal e adormeceu.»[180]
«Triste suicidio! morrer assim, depois de ter creado o primeiro poema
épico da nova Europa, o primeiro romance da nova civilisação, depois
de ter aberto as portas da America ás nações modernas! Nem a Hespanha,
nem a Europa se aperceberam d’esta decadencia; a Hespanha admira-se
e os seus visinhos copiam-n’a; as obras creadas por ella servem de
ensino a todos. Em França estes germens são fecundos; Scarron toma-lhe
as grosseiras tramas de uma intriga embrulhada e a facecia popular dos
pícaros; d’Urfé diverte as mulheres imitando as phantasias zagalescas;
Saint-Amand acha bella acima de tudo a exageração das imagens; Voiture
imita o estylo culto; Corneille acha n’esta mina de ouro o elemento
primitivo do seu genio, uma grandeza sobrehumana e os energicos
combates da paixão e do dever. Seu irmão, intelligencia dotada de
plasticidade e habilidade ... tira da Hespanha o que ella tem de menos
profundo e de menos potente: a intriga habilmente atada, o imprevisto
dos movimentos; o jogo dos acontecimentos extravagantes; a lucta da
sorte contra si mesmo; o amor, o odio, a felicidade e a desgraça
enlaçando-se em um tecido fragil; um movimento vivo e rapido em vez
de uma imitação séria da vida; disfarces e golpes de espada; encontros
extraordinarios, escondrijos maravilhosos, e o facil recurso dos
_aposentos_ nos quaes se topam os inimigos e os amantes.--Tristan,
Hardy e Mairet fizeram a parodia d’isto, mas sem graça, perpetuando-se
até Quinault, do qual o _Timocrates_ é uma verdadeira peça
hespanhola, que sobreviveu até Luiz XIV; _Rhadamisto e Zenobia_
recebeu a mesma successão. Os _Visionarios_ de Desmarets, e as
vesanias divertidas de Cyrano de Bergerac são fructos do mesmo solo.»
«Faltava ainda explicar o mais difficil, a mais intima, a mais
nobre, a mais séria porção do genio hespanhol; coube esta ao grande
Corneille. Potencia de paixão, do pensamento, de combinação, eis o
que elle pediu ao theatro de Hespanha.--_Las Mocedades del Cid_
transformadas fornecem-lhe a mais bella tragedia moderna. Um drama
pseudonymo de Alarcon transforma-o em uma comedia de costumes.»[181] «O
_Menteur_ é uma obra prima de bom senso, de arranjo e de imitação.
Corneille não quiz mais do que isso. Descobriu a fonte hespanhola, e
fez brotar a comedia de caracter.» E na marcha do seu estudo Philarète
Chasles chega a affirmar: «O nosso theatro contém mais de duzentos
dramas que vieram de Hespanha. As obras de Montfleury, de Scarron,
outr’ora tão popular, de Dufresny, mesmo de Destouches, algumas de
Molière, tem uma origem hespanhola.»[182]
Philarète Chasles, caracterisa a influencia do theatro hespanhol em
França, depois de alludir ás imitações de Corneille no _Polyeucte_ e no
_Cid_: «Racine escapa á influencia hespanhola; n’elle só se encontra
sob a fórma de galanteria e de elegancia. Depois da morte de Racine,
Lagrange-Chancel e Crébillon succedem-lhe, mediocres fabricantes de
intrigas hespanholas. Os _Timocrates_ e os _Rhadamisto_, que abriram
a senda ao melodrama moderno, vieram-nos de Hespanha. Foram Lope,
Alarcon, Tirso de Molina, que crearam para nosso uso esta architectura
cheia de escadas secretas, gabinetes occultos, pavilhões mysteriosos,
retiros para galanteadores, balcões para escalar, e muros faceis
de saltar, todo este material que ainda se não abandonou. O mais
insignificante vaudeville de intriga que se representa na Europa ainda
agora é uma creação da Hespanha.»[183] E caracterisando esta força
creadora do genio hespanhol, accrescenta Philarète Chasles: «O enredo
hespanhol encontra-se em todos os theatros do mundo. Em Veneza, Roma,
Paris, Londres, San Petersburgo, Vienna, New-York, _Don Juan_, o _Cid_,
o _Menteur_, o _Matrimonio secreto_, antigos caprichos de alguns poetas
de Madrid, sustentam-se obstinadamente, tal é a vida dramatica n’estas
invenções.--Ao primeiro relance, Calderon, Alarcon, Roxas e Tirso são
um mesmo poeta; os mil dramas hespanhóes que do seculo XVI ao XVII
brotaram d’esta fonte, parecem-se e são gémeos. Para reconhecer o cunho
das variedades de talento que os dictaram, é preciso reparar bem de
perto; a originalidade d’estas obras é a originalidade de um povo, não
a de um homem; o talento especial do poeta como que se sacrificou e
perdeu no genio dominante da multidão.»[184]
Sobre a litteratura ingleza, especialmente no theatro é que o genio
hespanhol irradiou a sua intensa paixão, a ponto de por um effeito
reflexo os dramas inglezes de origem hespanhola popularisarem-se sobre
a scena franceza. É pois absurdo attribuir á Hespanha a perversão do
gosto do estylo _euphuista_ propagado á Inglaterra.
A influencia da Litteratura hespanhola em Inglaterra, facto
manifesto em Shakspeare e nos poetas dramaticos, tem sido confundida
com esse phenomeno de perversão do estylo metaphorico chamado o
_Culteranismo_. Esta epidemia litteraria, tão caracteristica
dos poetas e prosadores do seculo XVII, teve em Inglaterra o nome de
_Euphuismo_, nome tomado do titulo de uma obra do seu propagador
John Lyly. Bem examinadas as origens do _euphuismo_, vê-se que
este estylo entrou em voga na Inglaterra no meado do seculo XVI,
na prosa de George Petty, imitador dos italianos, como tambem o
implantou Philip Sidney, seguindo-o todos aquelles que tentavam
reproduzir o petrarchismo, como Thomas Wyatt, Surrey e Spenser. O
requinte na expressão do sentimento levava á linguagem amaneirada,
ás antitheses, ás aliterações, e póde-se considerar, segundo Morly,
que n’este meio é que se desenvolveu o _euphuismo_. Lyly imitou
Petty, e seguidamente os italianos, a Petrarcha directamente na sua
_Galathea_, e a Surrey especialmente. Embora o gosto do euphuismo
seja menos dominante nas poesias de Lyly do que nas suas novellas, e
tenda a ser abandonado em outras composições, comtudo mantiveram-n’o
outros escriptores, como Rich, Nash, Green, Lodge, o que revela uma
influencia mais profunda e não pessoal. É pois absurdo attribuir á
Hespanha esta perversão do gosto na litteratura ingleza, já derivando-a
da imitação do estylo de Guevara, como o imaginou Laudmann, já de
Gongora como anachronicamente o indicou Hillebrand. A imitação da
poesia italiana em Inglaterra começou com Chaucer, e esse gosto
propagou-se até Shakspeare; e emquanto em Inglaterra degenerava o
estylo no emprego de paronomasias simples, de aliterações alternadas,
de antitheses parallelas e cadencias rythmicas, tambem em Hespanha essa
mesma influencia degenerava segundo o genio peninsular em hyperboles
phantasticas, em atrevidas metaphoras e tropos inchados. Assim o
_Euphuismo_ e _Culteranismo_ sem serem eguaes, nem derivarem
um do outro, identificaram-se facilmente, produzindo esse engano nos
criticos.[185] Não é nas aberrações do estylo litterario que se deve
procurar a influencia hespanhola na litteratura ingleza, mas sim nos
themas fundamentaes e nos processos da idealisação artistica; e a
acção exercida sobre as litteraturas da Italia e da França ajuda a
comprehender quanto ella suscitou nobremente o genio esthetico na
Inglaterra.
No seculo XVII Portugal estava incorporado na unidade castelhana;
não existia como organismo nacional, e pelas manifestações da sua
litteratura não se poderia prevêr a revolução autonomica de 1640. Esse
impulso veiu de fóra; a liberdade de Portugal era um dos córtes do
plano de Richelieu contra a Casa de Austria. Na litteratura portugueza
os principaes poetas, como D. Francisco Manoel de Mello escrevem em
castelhano: e uma grande parte das _Comedias famosas_ do theatro
hespanhol são compostas por portuguezes. Parece que mentalmente, ou
nos dominios da intelligencia Portugal e Hespanha formavam uma mesma
civilisação. O uso do castelhano pelos escriptores portuguezes no
seculo XVII não era um symptoma de depressão do sentimento nacional;
já no seculo XV os poetas portuguezes palacianos enriqueceram os
Cancioneiros de Hespanha; na época quinhentista Sá de Miranda, Gil
Vicente e Camões escreveram em castelhano grande parte das suas
poesias. No _Catalogo razonado_ de Escriptores portuguezes
que escreveram em castelhano, colligido pelo Dr. Garcia Perez, é
extraordinario o numero que ahi se encontra, como revelando uma certa
unidade de civilisação iberica. O genio portuguez cooperou para o
esplendor da litteratura hespanhola, quando aquella nação decahia
sob o despotismo da Casa de Austria. Por via da paixão de Jorge de
Monte-mór actuou sobre o gosto das allegorias pastoraes na Europa,
com a _Diana_; com a _Historia da Guerra da Catalunha_ de
D. Francisco Manoel de Mello, appresentava a norma realista para os
modernos historiadores. Estavamos sob o jugo politico, mas em plena
egualdade mental; o genio portuguez communicou á Hespanha a paixão, o
elemento vivo que mais longe levou o seu influxo litterario. As causas
da decadencia da Hespanha foram as mesmas que actuaram em Portugal,
aggravada porém a nossa situação por um factor deprimente--a alliança
ingleza com todos os seus tratados diplomaticos.
_c_) O ARCADISMO E A REACÇÃO PROTO-ROMANTICA
(_Hegemonia da Inglaterra_)
As liberdades da elocução poetica, tanto na Italia, França,
Inglaterra, Hespanha e Portugal, que foram designadas pelo nome de
_Culteranismo_, e pelo de _Seiscentismo_ por predominarem
no gosto do seculo XVII, não devem ser consideradas como uma
degenerescencia das Litteraturas meridionaes, mas como um esforço
espontaneo de renovação desordenada e mal comprehendida. A imitação
da Antiguidade com que as Academias poeticas chamadas _Arcadias_
procuraram reagir contra essa corrente de uma intemperança rhetorica,
era injustificavel, por que nos poetas classicos encontravam-se
exemplos para justificar os maiores absurdos e os laboriosos artificios
do estylo culto. Verney, nas cartas sobre o _Verdadeiro methodo de
estudar_, analysando todos esses destemperos das rimas forçadas, dos
labyrintos, acrosticos, anagrammas, chronogrammas, equivocos, eccos,
usados na litteratura hespanhola e portugueza, cita fórmas analogas
nos escriptores gregos e latinos. As _Arcadias_ restringiram os
modelos classicos a um pequeno numero de poetas, como Theocritico,
Virgilio e Horacio; e contra os rasgos da imaginação expressos
pela linguagem figurada, impuzeram-se um estylo rasoavel, frio, de
um bom senso prosaico, sem emoção, nem colorido. O esforço para a
manutenção das normas classicas, começou no proprio seculo XVII, com a
auctoridade implacavel de Boileau em França, e com o estabelecimento
da _Arcadia_ de Roma, em 1690, fundada por Crescimbeni e Gravina,
academia poetica que se tornou o typo de todas as Arcadias que encheram
quasi todo o seculo XVIII. O pseudo-classicismo francez, propagado pelo
perstigio dos grandes escriptores do seculo XVII, identifica-se com
o Arcadismo, em que o espirito de erudição procurava transformar as
academias culteranistas.
Mas no seculo XVII o conflicto entre as duas escholas tomou um aspecto
consciente na celebre _Querella dos Antigos e Modernos_,
suscitada por Charles Pérrault. Tratava-se de saber se a civilisação
moderna tinha recursos mais ricos e fecundos do que a antiga, e se no
meio de uma mais activa e delicada sociabilidade, com sentimentos mais
humanos, não havia logar para uma idealisação tão bella nas artes e na
poesia, como a da sociedade greco-romana. Pérrault sustentava que sim,
e mostrava-se deslumbrado pelo esplendor da côrte de Luiz XIV; Boileau,
reconhecendo esse esplendor como digno da éra de Périeles e de Augusto,
cahia no contrasenso de proclamar a primasia da antiguidade, vindo a
final a transigir com o seu antagonista.
Operára-se pela generalisação das ideias philosophicas do Cartesianismo
uma forte corrente contra o formalismo da Scholastica, libertando o
criterio e dando-lhe a audacia com que actúa no espirito do seculo
XVIII; reflectiu-se essa situação mental tambem nas doutrinas
litterarias, suscitando a ruidosa mas significativa _Querella dos
Antigos e Modernos_, e determinando o abandono da _Poetica_
de Aristoteles. Escrevia o barão Taylor para uma sessão do Congresso
historico de 1840: «A mesma reacção que se opéra contra a antiguidade
philosophica, não tarda a manifestar-se contra a antiguidade
litteraria, e a _Poetica_ de Aristoteles é atacada com tanta
vivacidade como a _Logica_. Pérrault, Lamothe e Fontenelle
são os campeões das ideias modernas, e ouso dizel-o, appresentaram
melhor a fórmula romantica, do que a eschola actual, do que o proprio
Chateaubriand, que quiz fechar a Litteratura no cyclo christão.»
[186] Desde que as ideias e os sentimentos da civilisação moderna
são evidentemente mais verdadeiros e humanos, são essas ideias e
sentimentos que devem ser universalisados na arte e na litteratura,
que com taes elementos não podem ficar inferiores ás obras primas
antigas. Apezar d’este impulso resultante da _Querella dos Antigos a
Modernos_, na primeira metade do seculo XVIII prevaleceu a admiração
exclusiva pelas obras classicas greco-romanas, a imitação reflectida ou
pautada d’esses modelos, e a preoccupação de um purismo de linguagem e
primor de estylo, que em vez de exprimir sentimentos visava a seguir as
convenções e a obter os applausos academicos. Um esforço para derivar a
idealisação poetica da realidade da vida moderna começou pela generosa
tentativa dos Romancistas inglezes; a liberdade politica e philosophica
da Inglaterra, affirmadas nas suas duas fecundas revoluções do seculo
XVII, deram-lhe essa plena hegemonia que exerceu pela sua influencia na
França sobre a Europa do seculo XVIII. As ideias com que Montesquieu
leva a insurreição aos espiritos no _Espirito das Leis_ foram
recebidas de Inglaterra, como a audacia das _Lettres persanes_ nos
apparece cultivada na associação de livres-pensadores do _Club de
l’entresol_, em que dominava Bolingbroke. Tambem pela emigração na
Inglaterra alcançou Voltaire a comprehensão mais clara da sua missão
negativista. O romance da vida intima ou domestica, como o fundou
Richardson, veiu mostrar ao genio francez a fórma definitiva, que
elle só tem a aperfeiçoar; e as tragedias de Shakspeare, máo grado os
protestos academicos, revelaram uma esthetica nova, em que a verdade da
paixão prevalece sobre a fórma transitoria, que se torna bella e mesmo
profundamente philosophica por essa verdade.
Na grande crise social que vae fazer a sua explosão nos fins do seculo
XVIII, os litteratos foram os instrumentos de uma propaganda das ideias
philosophicas do negativismo revolucionario. Mas, não conseguiram
vencer a rhetorica; o _Arcadismo_, mantinha-se n’esse deploravel
aspecto incolôr das obras litterarias que se não referiam á sociedade
viva, á época, á nação, mas esboçavam abstractas entidades, umas
vezes segundo os moldes consagrados pelas Academias, outras vezes com
a intenção de servir ou de combater as aspirações revolucionarias.
A litteratura protegida pelas côrtes do seculo XVIII, para evitar
os perigos da liberdade, fechava-se na disciplina do _arcadismo_.
Como a falta de sentimento imprimia aos poetas uma fórma apagada e
sem colorido, elles procuravam mascarar a futilidade ou inutilidade
dos seus versos tornando-os rasoaveis, compondo poemas didacticos ou
scientificos. Taine caracterisa magistralmente o caracter incolôr da
litteratura: «No seculo XVIII não é proprio o figurar a cousa viva,
o individuo real, tal como existe effectivamente na natureza e na
historia, isto é, como um conjuncto indefinido, como um rico tecido,
como um organismo completo de caracteres e de particularidades
sobrepostas, entremeadas e coordenadas. Falta-lhe a capacidade para
recebel-as e para contel-as. Affasta-as o mais que póde, tanto,
que por fim não conserva senão um extracto mesquinho, um residuo
evaporado, um nome quasi ôco, em summa, o que se chama uma inane
abstracção.--Por toda a parte a seiva está esgotada, e em logar de
plantas florescentes, só se deparam flores de papel pintado. Tantos
poemas sérios desde a _Henriada_ de Voltaire até aos _Mezes_ de
Roucher ou á _Imaginação_ de Delille, que é tudo isso senão trechos
de rhetorica guarnecidos de rimas? Percorrei as immensas tragedias
e comedias de que Grimm e Colé nos dão o extracto mortuario, mesmo
as boas peças de Voltaire e de Crébillon, mais tarde a dos auctores
que estiveram em voga, Du Belloy, La Harpe, Ducis, Marie Chénier:
eloquencia, arte, situações, bellos versos, tudo isso têm, excepto
homens; os personagens não passam de mannequins bem adestrados, e
as mais das vezos trombetas pelas quaes o auctor lança ao publico
as suas declamações. Gregos, Romanos, Cavalleiros da Edade media,
Turcos, Arabes, Peruvianos, Guebros, Byzantinos, pertencem todos á
mesma mechanica discursiva. E o publico não se encommoda; não tem o
sentimento historico; admitte que o homem é em toda a parte o mesmo,
e consagra pela admiração os _Incas_ de Marmontel, o _Gonzalve_
e as _Novellas_ de Florian...»[187] E mostrando o mesmo aspecto
incolôr nas obras dos historiadores: «O Grego antigo, o christão dos
primeiros seculos, o conquistador germanico, o homem feudal, o arabe
de Mahomet, o allemão, o inglez da Renascença, o puritano, apparecem
nos seus livros com pouca differença das suas estampas e dos seus
frontispicios, com algumas differenças de trajo, mas com os mesmos
corpos, as mesmas caras, a mesma physionomia, attenuados, apagados,
decentes, accommodados ás conveniencias. A imaginação sympathica pela
qual o escriptor se transporta a outrem, e reproduz em si um systema de
habitos e de paixões contrarias ás suas, é o talento que mais falta ao
seculo XVIII.»[188] Comparando o romance francez com o romance inglez,
Taine conclue pela surprehendente superioridade de Foë, Richardson,
Fielding, Smollett, Sterne e Goldsmith até Miss Burney e Miss Austen,
e diz: «eu conheço a Inglaterra do seculo XVIII; eu vejo clergyman,
gentishomens do campo, rendeiros, estalajadeiros, marinheiros, gente
de todas as condições, infimas e elevadas;... tenho nas mãos uma série
de biographias circumstanciadas e precisas, um quadro completo, de
mil scenas, da sociedade inteira, o mais amplo montão de informações
para me guiarem quando eu quizer fazer a historia d’este mundo
extincto. Se, em seguida, leio a série correspondente dos romancistas
francezes, Crébillon filho, Rousseau, Marmontel, Laclos, Rétif de la
Bretonne, Louvet, M.^{me} de Staël, M.^{me} de Genlis, e os outros,
comprehendendo Mercier e até M.^{me} Cottin, quasi que não tenho notas
a tomar;... vejo modos delicados, mimos, galanterias, velhacarias,
dissertações de sociedade, e aqui está tudo.»[189] Pela fórma do
romance é que a Inglaterra exerceu tambem a hegemonia litteraria no
seculo XVIII, determinando em França essa tentativa de idealisação da
realidade, ou o _Proto-Romantismo_, e na Allemanha, depois da Guerra
dos Sete annos, o impulso que a levou a idealisar as suas tradições
nacionaes, e a abrir a época da renovação das Litteraturas modernas no
seculo XIX ou o Romantismo.
Quando se fundou a _Arcadia_ de Roma para corrigir os exageros do
estylo _marinista_, oppuzeram os seus associados outros exageros,
simulando ingenuidades pastoris, resuscitando as allegorias buccolicas
que desde Sanazzaro se propagaram entre os eruditos; reuniam-se no
monte Janiculo, chamando á sala das sessões _Bosque Parrasio_, e
tomando nomes poeticos de pastores gregos, das eclogas de Theocrito ou
de Virgilio. Os Papas, Reis, cardeaes, bispos e magistrados honravam-se
em pertencer á _Arcadia_; Dom João V, que teve n’esse gremio
pastoral o nome de _Albano_, mandou-lhe construir em Roma um
palacio para as suas sessões. A _Arcadia_, que se propagára a
todas as cidades da Italia, tambem teve em Portugal o seu rebento. Mas
aqui, a lucta contra o elemento seiscentista foi porfiosa, por que as
Academias ou Tertulias litterarias eram os baluartes do Culteranismo.
Do gosto dominante, escrevia Verney: «Geralmente entendem, que o compôr
bem consiste em dizer subtilezas e inventar cousas que a ninguem
occorressem...»[190] E sob a influencia da litteratura castelhana:
«Envergonham-se de poetisar em portuguez, e têm por peccado mortal ou
cousa pouco decorosa fazel-o na dita lingua.» Por este mesmo tempo
estava a moda das Academias arcadicas no seu maior fervor em Hespanha,
como affirma Valderrábano no prefacio ao poema _Angelo-machia_:
«Entretinham-se os saráos fazendo relações, trechos de comedias,
cantando ao fandango xácaras de valentões, e recitavam-se poesias
burlescas. Tudo cessou de quarenta annos a esta parte, (1786) e
mais vale que se não renovem, a não ser com melhor cultura e melhor
influxo nos costumes.»[191] Era tambem ardente este prurido arcadico
em Portugal, como o confessa o bispo Cenaculo, no seu estudo _As
Letras na Ordem Terceira de Sam Francisco_: «Ainda durava o seculo
das Academias. A duração era effeito dos bons principios, e tambem
por que o caracter da nação é o do monarcha. Sendo paixão de el-rei
D. João V aquelle genero de estudos, por que passava quatro e cinco
horas continuadas n’esta lição, para este fim dispoz uma união de
academicos escolhidos, que competissem com o grande merito do seu
assumpto, qual era a historia da patria. Espalhou-se pela monarchia
este calor: os paroxismos vieram-lhe da desordem em que poz o reino o
Terremoto de cincoenta e cinco. Mas d’antes, nas casas particulares,
nos conventos de religiosos, e por outras maneiras se ajuntavam a cada
passo, não só os letrados, mas tambem os que tanto pretendiam, tratando
com diligencia os assumptos.--Nos mesmos claustros achei praticada
aquella curiosidade. Nos dias do P. Fr. Joaquim (de Santa Clara)
sendo collegial, elle o fomentava em o nosso Collegio de Coimbra, com
sociedade de bons amigos, e no Collegio de S. Thomaz e de S. Jeronymo.
Admittiram-se os contemporaneos habeis, sendo todos collegiaes, e que
foram depois professores ou doutores em a Universidade, e prelados
maiores das suas Ordens e alguns bispos.»[192] No seculo XVIII, como o
sentia o bispo Cenaculo, o caracter do monarcha era o da nação: D. João
V já se não penalisava de não poder trocar a corôa de rei pela cugula
de Inquisidor, mas acceitava para maior perstigio da soberania o papel
de pastor-arcade; elle amava o canto-chão, e assim como importava da
Italia os productos da arte _rococo_ para ornamentar a sua côrte,
chamava tambem o veneziano Frei Jorge para ensinar o funebre canto-chão
em Sam José de Ribamar. O sentimento da nacionalidade apagava-se, e bem
preciso era o entoar o canto mortuario sobre o paroxismo de um povo. Á
imitação dos monarchas do seculo XVIII, D. João V tinha por modelos
Luiz XV e Leopoldo na sensualidade e na prodigalidade. Gastando quatro
e cinco horas em tertulias academicas, bocejava ouvindo a conferencia
dos ministros, que interrompia de vez em quando para saber quanto
rendia a caixa das almas, como nol-o pinta Alexandre de Gusmão; de
noite refocilava-se com as freiras do beato harem de Odivellas, como o
descreve o bispo de Gram-Pará. A censura litteraria era exercida pelo
cardeal Cunha, que mandava riscar dos repertorios os prognosticos de
trovoadas e chuvas.
Em uma nação em que a vida toda se reconcentrava na côrte, em volta do
rei e dos seus aulicos favoritos, a influencia franceza tinha de ser
preponderante, por que a França era então considerada como o modelo
da elegancia e do gosto. Esta influencia franceza na litteratura
manifesta-se como uma reacção do purismo pseudo-classico contra o
Culteranismo, ou a influencia hespanhola. D. João V tomava como seu
figurino Luiz XV com a sua côrte sensual e sumptuosa. Os fidalgos
portuguezes começaram a ter nos seus jardins fontes feitas por Bernin,
como se usava em França; Mafra era um arremedo de Versailles, e as
Aguas-Livres um despique com o Aqueducto de Maintenon. O Conde da
Ericeira mantinha relações de amisade com o chefe do pseudo-classicismo
francez, o austero Boileau, e traduzia-lhe a sua _Poetica_ para nos dar
um codigo de bom gosto. Boileau agradeceu-lhe em uma carta (é a XIV.^a)
tamanha consagração. Francisco de Pina e Mello imita as _Odes sacras_
de João Baptista Rousseau; Verney, proclamava o _Telemaco_ de Fénélon
«uma Epopêa das mais bem feitas e escriptas que tem apparecido.»[193] A
_Athalia_ de Racine era traduzida por Candido Lusitano, e o _Lutrin_,
imitado no _Hyssope_ de Cruz e Silva. A fundação da _Academia de
Historia portuguesa_, em 9 de Dezembro de 1720, fôra iniciada pelo
Conde da Ericeira no seu palacio da Annunciada «_por emulação dos
Scientes de França_» como se lê em uma _Oração panegyrica_. É curiosa
a transformação das Academias culteranistas do seculo XVII nas
arcádicas do seculo XVIII, aproximando-se do classicismo francez.
Assim, a Academia dos _Generosos_, iniciada pelo trinchante-mór de
Dom João IV, mantendo-se de 1647 até 1668, é renovada em 1684, e por
seu filho D. Luiz da Cunha, continuando até 1693, é disfarçada com o
titulo de _Conferencias discretas_, com que celebrava as suas sessões
de 1696 a 1699 em casa do Conde da Ericeira; e n’esse mesmo palacio
durante quatorze annos (1714 a 1728) se confundiu com a Academia dos
_Anonymos_, refundindo-se a final na _Academia de Historia portuguesa_,
com caracter particular em 1717, e official depois de 4 de Novembro de
1720. Assim a divisa da Academia dos _Generosos_: _Non extinguetur_,
com o emblema de uma vela accesa, tornava-se uma realidade, por que
n’estas renovações transmittia sempre o gosto do Culteranismo. O antigo
secretario da Academia dos _Generosos_, Manuel Telles da Silva, funda
em 1747 a Sociedade dos _Occultos_, com o fim da transformação do
gosto litterario. Existiu até 1755 em que foi dispersada pela tremenda
catastrophe do terremoto de Lisboa, e só veiu a reconstituir-se em 11
de Março de 1756 com o titulo definitivo de _Arcadia Ulyssiponense_,
datando as suas conferencias do _Monte Ménalo_ (á imitação do Parrasio,
da de Roma.) Quando morreu D. João V, o protector das sociedades
arcádicas, celebraram-lhe a memoria as Academias dos _Escolhidos_,
dos _Anonymos_, dos _Applicados_ e dos _Occultos_, que funccionavam
em Lisboa. Foi contra esta forte corrente culteranista que luctou a
_Arcadia Ulyssiponense_, mas com aquella frieza sensata e incolôr do
classicismo francez. A poesia culteranista impunha-se, por que, como o
confessa Verney: «a sua contextura é tão facil, que por máo que seja o
poeta sempre acerta com ellas. A _Decima_, o _Madrigal_, as _Liras_,
a _Silva_, o _Romance_ lyrico, _Quartetos_ puros e de pé-quebrado,
_Tercetos_, etc., nada mais pedem que a naturalidade do conceito e
expressão...»[194] A _Arcadia_ dispendeu a sua energia em questões
banaes, propondo a imitação dos Quinhentistas e as regras do emprego
dos archaismos e neologismos da linguagem. Sob a pressão material
e moral do absolutismo monarchico e do intolerantismo catholico, a
auctoridade academica veiu acabar de deprimir os espiritos, e a poesia
degradou-se na obscenidade, como se vê nos versos de Caetano da Silva
Souto Mayor (o _Camões do Rocio_), de Antonio Lobo de Carvalho (o
_Diogenes da Madragoa_), nos de Filinto e de Bocage.
No emtanto, sente-se no meio d’esta linguagem falta de expressão
emocional o influxo da poesia ingleza em Garção, apezar do seu
horacianismo, e em José Anastacio da Cunha. Entre as obras de Garção
encontra-se a «_Traducção de uns versos inglezes feitos a um grande
pintor_.»[195] E da ode _A uns annos de uma senhora ingleza_,
se deprehende qual a sua convivencia, e ensejo de familiaridade
com as obras dos poetas inglezes. José Anastacio da Cunha traduziu
a _Oração universal_, de Pope, um dos fundamentos com que o
agarrou a Inquisição de Coimbra em 1778; no seu processo do Santo
Officio se lê, que era muito amigo do brigadeiro Ferrier «escossez
de nação, protestante, o qual lhe pedia traduzisse algumas peças e
versos de alguns livros francezes e inglezes, que elle fazia em verso
portuguez...» No sequestro que a Inquisição de Coimbra fez dos seus
Livros, vem enumerados muitos livros inglezes.[196]
A superioridade das poesias lyricas de José Anastacio da Cunha sobre
todas as dos seus contemporaneos explica-se por esses modelos que o
conduziram á realidade e á expressão natural e simples da paixão. O
pseudo-classicismo reconhecendo a sua inutilidade, cultivava a poesia
didactica, pondo em poemas os estudos scientificos tão predilectos do
seculo XVIII, ou propagando tambem em tragedias racinianas as doutrinas
revolucionarias do criticismo encyclopedista. Póde-se considerar
como a ultima phase do _Arcadismo_, que a Revolução franceza,
apezar das grandes paixões postas em conflagração, não conseguiu
desviar da sua inalteravel rhetorica. É certo, que em França, pelo
mesmo negativismo critico, se operava uma libertação da auctoridade
classica e das tradições medievaes, e se proclamava o individualismo
humano e o regresso á natureza. É esta corrente _proto-romantica_
franceza, que vae reflectir-se na Allemanha, acordando o espirito
dos creadores d’aquella grande litteratura; Lessing imita Diderot
no theatro, Goëthe admira o creador do _Neveu de Rameau_,
Wieland reelabora as Gestas francezas, Schiller desenvolve a Tragedia
philosophica com intuitos revolucionarios, e o proprio Kant confessa-se
fecundado pelas ideias individualistas de Rousseau. Os emigrantes
francezes, por occasião da revogação do Edito de Nantes, tinham levado
para a Allemanha o impulso da civilisação moderna; era inevitavel
a preponderancia do pseudo-classicismo francez. Interrompeu-se
essa imitação, quando a Allemanha, suscitada pelo conhecimento da
Litteratura ingleza, comprehendeu o valor das suas antigas _tradições
nacionaes_. O rompimento com a cansada imitação da França só
podia começar em uma nação forte pela raça e pela riqueza das suas
tradições, para fundar a sua Litteratura na idealisação d’ellas.
Foi um trabalho consciente. Por occasião da Guerra dos Sete annos a
Allemanha separou-se da imitação franceza, e a leitura dos antigos
poetas inglezes revelou-lhe que fóra das normas do classicismo francez
existiam outras fórmas artisticas mais coloridas e bellas. Lessing,
na _Dramaturgia_, funda a nova prosa allemã e derrue as theorias
dos tragicos francezes; a côrte de Weimar, sob o influxo pacifico da
regencia de Anna Amelia de Bronswick, agrupa essa pleiada de genios
creadores, de que Goëthe era o chefe. Os irmãos Grimm encetam os seus
vastos estudos sobre a lingua, a mythologia, o direito, as velhas
epopêas e os contos populares da Allemanha; e sobre estes elementos
da _Patria germanica_, resplandece uma nova litteratura, que se
torna uma das mais opulentas do seculo. O _Romantismo_, para os
povos do Occidente foi o regresso ás suas tradições da Edade media,
não comprehendidas, desprezadas e esquecidas desde a Renascença, pelo
prurido da imitação classica sob a protecção official monarchica.
Desde então o movimento das Litteraturas romanicas se resume n’este
impulso da Litteratura allemã, revelando as fontes organicas de toda a
elaboração esthetica.[197]
=§ 3.--O Romantismo=
(HEGEMONIA DA ALLEMANHA)
Os espiritos mais eminentes do seculo XVIII previram a _crise
violenta_, que a decadencia das instituições politicas provocava,
e que as revoltas da consciencia iam apressando. A Revolução
franceza foi essa explosão temporal de um movimento, que desde o
seculo XII procurava um novo equilibrio; movimento complicado pelo
longo esforço negativista de decomposição, e pela incerteza de uma
base positiva para a reconstrucção de uma outra synthese humana. A
queda dos Jesuitas fôra o resultado da final decomposição do poder
espiritual do regimen catholico; e a execução da realeza, na pessoa
do desgraçado Luiz XVI, era a transformação do poder temporal, que
desde as bandas guerras germanicas, e dos privilegios das classes
aristocraticas, se fôra concentrando na dictadura monarchica. Devera
seguir-se um forte trabalho de reconstrucção sobre as ruinas do
regimen catholico-feudal; a Convenção comprehendeu genialmente o seu
destino, e esboçou o _poder espiritual_ com as grandes reformas
pedagogicas, e o _poder temporal_ com a substituição provisoria
da Republica-democratica. Na complicação dos acontecimentos esta
marcha foi perturbada; o poder espiritual desvairado pela metaphysica
_deista_ de Robespierre facilmente regressou a uma reacção
neo-catholica; e o poder temporal, envolvido nas guerras defensivas
e no delirio do _terror_, foi cahir nas mãos de um aventureiro
militar, que com o nome de Consul e de Imperador esgotou a França com
uma orgia de guerras sangrentas, que levou a Europa a colligar-se e
a fazer a restauração da monarchia. Eis a série de factos que na sua
inconsequencia se accumularam na transição do seculo revolucionario
para o seculo XIX; a nova edade continuou a antiga lucta, porém com
menos clareza. Com rasão considerava De Maistre o nosso seculo como
um prolongamento do seculo XVIII. Não se avançou mais no trabalho da
construcção da nova synthese; estabeleceu-se a hypocrisia systematica
das contemporisações e dos partidos medios (_juste milieu_);
as Cartas-outorgadas e o regimen monarchico-representativo foram a
sophismação do poder temporal; da mesma fórma a religião de estado e o
subsidio official a todas as desconnexas especialidades scientificas
corrompeu o poder espiritual em uma espantosa pedantocracia.
N’esta angustiosa crise, que esterelisou o seculo XIX, que deixará
na historia a marca da sua incapacidade para a construcção da
synthese definitiva, as Litteraturas reflectiram todos estes abalos
de um regimen decahido, e da comprehensão de um ideal superior.
Representaram a melancholia e o estado de desalento dos espiritos;
deram expressão aos sentimentos que se compraziam em evocar o
passado, que procurava restaurar o seu antigo dominio; espalharam os
protestos de revolta dos genios insubmissos, e lisongearam o gosto
banal de uma burguezia cordata. Todas estas manifestações eram a
revelação dos caracteres de uma nova época litteraria: chamou-se-lhe
o _Romantismo_. Veiu da Allemanha esta designação, como viera
o exemplo de sympathia pelas tradições da Edade media. Na renovação
das Litteraturas romanicas competiu á Allemanha a hegemonia, nos
começos do seculo, como resultante da solidariedade da civilisação
europêa; e essa acção ligava-se á diversidade que n’este longo periodo
de lucta se estabelecera entre o regimen catholico-monarchico e o
aristocratico-protestante, dos povos romanicos e germanicos.
Considerando como uma base da Sociologia o estudar a civilisação em
todos estes povos que conjunctamente participaram do movimento da
Europa occidental, na Italia, França, Inglaterra, Allemanha e Hespanha,
estabelece Comte: «Estas cinco grandes nações podem ser consideradas
como tendo constituido depois da primeira metade da Edade media, apezar
de immensas diversidades, um povo unico reunido sob o regimen catholico
e feudal e sujeito a todas as transformações successivas que este
regimen provocava consequentemente.»[198] No estudo das Litteraturas
modernas torna-se indispensavel este criterio; embora o genio nacional
tenda a individualisar-se e a manter o separatismo patriotico como um
estimulo de inspiração, é nas Litteraturas que se observa a hegemonia
esthetica que cada nação europêa foi exercendo uma após uma sobre
o conjuncto das outras, creando assim uma verdadeira solidariedade
sentimental na civilisação do occidente. Comte fez sentir o valor
d’esta successão hegemonica: «Ainda que a arte tenha sido accusada
de fomentar antipathias nacionaes, em virtude da sua incorporação
no desenvolvimento proprio de cada população, ella tem, sem duvida,
actuado com mais energia em sentido contrario, aproximando as nações,
pela viva predilecção universal que as obras primas estheticas
suscitavam para o povo que as produzia. Cada uma das bellas-artes teve
o seu modo especial de excitar a sympathia universal da Europa e de
auxiliar a communicação mutua; mas a influencia mais geral e a mais
efficaz, sob este aspecto, pertence á poesia, que obrigou ao estudo das
linguas estrangeiras, sem o qual as diversas obras primas não teriam
sido apreciaveis.»[199]
Na crise systematica da revolução occidental, a começar do seculo
XVI, as capacidades estheticas revelam-se diversamente entre os
povos catholicos e os protestantes. Com o catholicismo prepondera a
monarchia com a sua absorvente dictadura temporal, apoderando-se das
Litteraturas por uma exagerada protecção official, pela instituição
de academias destinadas a subordinar a inspiração individual a regras
rhetoricas, manietando pela auctoridade do gosto ou dos modelos
consagrados todos os impulsos de originalidade. Nada satisfazia melhor
este plano do que a imitação da antiguidade classica; e de facto o
prolongado perstigio da poesia do polytheismo greco-romano durou
com o perstigio das monarchias absolutas, e soffreu a sua reacção
depois da explosão revolucionaria. Com o protestantismo preponderou o
elemento aristocratico, a quem era sympathico o ideal cavalheiresco
do individualismo heroico; e as naturezas artisticas, sem outro apoio
mais do que a espontaneidade da sua vocação e a sympathia popular,
não perderam completamente a originalidade, por que se não afastaram
de todo da Edade media. É por isso que a Inglaterra exerce no seculo
XVIII uma influencia sugestiva no pseudo-classicismo francez, e que no
seculo XIX a Allemanha actúa nas Litteraturas occidentaes revocando-as
pelo exemplo ás suas fontes tradicionaes da Edade media. Nem de outra
fórma se explica como o Protestantismo tão anti-poetico pôde exercer
uma influencia renovadora; não renegára completamente a Edade media.
Comte observou esta differença, concluindo quanto uma verdadeira
theoria do progresso humano póde esclarecer o estudo do desenvolvimento
historico da arte: «Dos dois modos politicos, o monarchico-catholico e
o aristocratico-protestante, o primeiro era mais favoravel á arte do
que o outro. Comprehende-se facilmente que a arte recebesse um impulso
mais homogeneo e mais completo de um poder mais central e mais elevado,
cujo ascendente protector devia incorporar bastantemente a animação
contínua de todas as bellas-artes ao systema geral da politica moderna.
Assim vêmos os governos monarchicos fundarem Academias poeticas ou
artisticas, (_Arcadismo_) as quaes, primeiramente instituidas na
Italia, adquiriram immediatamente em França, sob Richelieu e sob Luiz
XIV uma importancia superior. No modo aristocratico e protestante, ao
contrario, a preponderancia da força local entregava as bellas-artes
ao penivel e insufficiente recurso das protecções particulares, nas
povoações em que o protestantismo tendia a neutralisar a educação
esthetica começada na Edade media.--A dictadura monarchica em
França devia de ter repugnancia pelas recordações da Edade media,
em que a realeza era tão fraca e a aristocracia tão poderosa;... Em
Inglaterra ao contrario, em que o systema feudal estava menos alterado,
as sympathias as mais geraes voltavam-se para as recordações da
Edade-media, o que explica a popularidade que teve a sua representação
pelo grande Shakspeare.»[200]
_a_) REHABILITAÇÃO DA EDADE-MEDIA
Uma das causas da incoherencia mental do seculo XVIII fôra o
desconhecimento da continuidade historica; no seu negativismo religioso
e politico desprezou completamente a Edade media; Helvetius e Raynal
chamavam-lhe _esteril barbarie_, e edade de _trevas sem nome_.
Comprehende-se que a Allemanha feudal, reagindo contra a influencia
litteraria da França, procurasse nas tradições heroicas ou
cavalheirescas da Edade media elementos sympathicos para a idealisação
poetica de espiritos reflexivos. O nacionalismo levava a achar as
fontes organicas da sua elaboração artistica. O mesmo espirito feudal,
na Inglaterra, comprazia-se com a representação de uma existencia
cavalheiresca, que Walter Scott reconstruia pacientemente e com esmero
na portentosa série dos seus romances historicos. Em França este
regresso á Edade media não se deu por um intuito artistico;
determinou-o um fim politico. O conde José de Maistre, servindo a causa
da restauração neo-catholica, tratou de estabelecer a solidariedade
historica da Edade media com o presente. Nada percebia do progresso
humano depois do christianismo, como o previra Condorcet, porém via com
lucidez a continuidade do passado nos seus elementos conservantistas.
Foi esta incapacidade que provocou a lucta entre _Classicos_ e
_Romanticos_, que rompeu em 1818; n’essa lucta revelava-se a antinomia
de doutrinas. Os _Classicos_, que eram voltairianos, que continuavam
sob a Restauração o ideal republicano, ou como academicos se
conciliavam com a monarchia liberal, sustentavam o predominio absoluto
dos modelos greco-romanos. Os _Romanticos_, começaram por servir a
reacção catholica, e para isso é que Chateaubriand idealisou a Edade
media no _Genio do Christianismo_; sendo renovadores na litteratura,
caíam no contrasenso de cooperarem para o retrocesso da consciencia. A
esta phase religiosa chamou-se o _Romantismo emmanuelico_, sendo os seus
principaes vultos depois de Chateaubriand, Lamartine, Alfred de Vigny
e Soumet.
Mas a Edade media não fôra sómente catholica; fôra feudal e
cavalheiresca. Sob este aspecto começou a apparecer como um mundo
ignorado, rico de formosos symbolos e de uma sociabilidade altamente
dramatica; desenvolve-se então o romance historico sobre os typos
de Walter Scott, e o drama de sensação, pelo gosto de Schiller.
É então que apparece Victor Hugo com a _Notre Dame_ e os
_Burgraves_. Na Edade media tambem luctaram pela liberdade
as Classes servas, que chegaram a constituir o terceiro Estado,
que triumphou com a Revolução; foi esse o campo do _Romantismo
liberal_, que foi achar a sua disciplina na renovação dos estudos
historicos por Agostinho Thierry, Guizot, Michelet, Barante, etc.
Assim como a palavra _Romance_ designa a fórma a mais original e
caracteristica das Litteraturas modernas, em que se idealisa o elemento
domestico desconhecido na arte antiga, tambem a palavra _Romantismo_
é uma feliz denominação de uma edade ou phase das Litteraturas
modernas em que ellas reataram a continuidade com a Edade media, onde
se elaboraram todos os germens tradicionaes das raças incorporadas
pela civilisação romanica. Nenhuma expressão poderia achar-se mais
significativa, por que na diversidade das nações europêas tem
implicita a ideia da sua unidade, tantas vezes e tão calamitosamente
obliterada na historia. Nas _Conversas com Eckermann_, Goëthe conta: «A
determinação de poesia _classica_ e de poesia _romantica_, que n’este
momento circula pelo mundo, e que causa tantas discussões e dissensões,
partiu, quanto ao fundo, de mim e de Schiller. Eu adoptára para a
poesia o processo objectivo, o unico que me parecia bom, Schiller, que
pelo contrario, procedia de um modo inteiramente subjectivo, julgou o
seu methodo melhor, e foi para se defender contra mim que elle escreveu
o _Tratado da Poesia ingenua e da Poesia sentimental_. (1795.) Os
Schlegel apoderaram-se d’esta distincção para a levarem mais longe,
de sorte que presentemente estendeu-se pelo mundo todo.» Á maneira
da _Querella dos Antigos e Modernos_, levantou-se a polemica entre
_Classicos_ e _Romanticos_, avançando para uma melhor comprehensão
historica de cada Litteratura, ambas bellas nas suas differenças
estheticas. Segundo Schiller, para os gregos a poesia é uma imitação
da realidade quanto possivel, tendendo para a verdade; o poeta
moderno ou sentimental reproduz a sua propria impressão idealisando-a
como realidade. Mas esta distincção, sendo aliás fundamental é
incompleta, por que a objectividade pertence a todas as épocas de
espontaneidade irreflectida, o que se repete nas Gestas da Edade
media; e a subjectividade caracterisa as épocas em que ha um intenso
trabalho mental, critico e reflectido. A revolução occidental do seculo
XII ao XIX foi na sua maior parte _mental_, metaphysica, critica e
negativista; bastava esta intensa subjectividade para caracterisar as
Litteraturas creadas n’esta longa instabilidade. Comte viu mais claro
o problema; distinguiu as Litteraturas antigas pela idealisação da
_vida publica_ (as Epopêas, as Tragedias, os Córos e Odes triumphaes),
e as Litteraturas modernas pela idealisação da _vida domestica_, como
se vê nos Romances e na Comedia molieresca, creados apezar de todas as
correntes contrarias a uma natural evolução esthetica. N’esta longa
crise revolucionaria, o completo abandono do sentimento sem intervenção
social deixou manifestar-se o individualismo em revolta; é este
elemento _pessoal_ que apparece na arte moderna de uma fórma original
e extraordinaria, dando logar ás expansões de um esplendido lyrismo.
_b_) O ULTRA-ROMANTISMO
Os _Classicos e Romanticos_ já se não entendiam entre si,
chegando os sectarios das normas do gosto greco-romano ou academico, a
pedirem a intervenção do governo contra os quebrantadores das regras
litterarias; os romanticos achavam n’este titulo um apódo de desprezo
com que os queriam ferir, e renegavam-o com desdem. Assim, em 1824,
lamentava Victor Hugo que empregassem o nome de _Romantico_
sem definirem o termo, explorando «um certo vago indefinivel que
lhe redobrava o horror.» E por fim, quando uma pleiada fecunda de
talentos exprimia nas fórmas litterarias os sentimentos modernos, ainda
Victor Hugo, em 1830, se felicitava de que «estes miseraveis termos
de questiunculas tivessem cahido no abysmo...» Tambem Garrett no seu
poema _Camões_ repellia de si a imputação de _romantico_,
e Herculano considerava essa lucta como a dos antigos Nominalistas;
este seguia o romantismo emmanuelico idealisando a saudade pela vida
monachal, e Garrett seguia o romantismo liberal, como o declara no
_Arco de Sant’Anna_. Mas se estes dois chefes não comprehenderam
a lucta dos _Classicos_ e _Romanticos_, tiveram a intuição
da missão da nova edade litteraria; Garrett avançou para o estudo das
tradições nacionaes no _Romanceiro_, e Herculano fixou-se no
estudo das instituições da Edade media portugueza, a que elle chamou
_Historia de Portugal_. O que era definitivamente o Romantismo,
que ninguem sabia explicar, viu-o lucidamente M.^{me} de Staël,
destacando as duas edades, a classica «que precedeu o estabelecimento
da religião christã» e a que se lhe seguiu, isto é, todos os germens
tradicionaes das novas nacionalidades do Occidente unificadas sob o
regimen catholico-feudal da Edade media até aos tempos modernos. O
regresso a estas origens communs das Litteraturas romanicas é que é
o facto capital da transformação esthetica do seculo XIX. A paixão
pela Edade media tornou-se uma monomania; era facil de reproduzir
os seus symbolos caracteristicos e de simular os seus conflictos de
classes, em dramas e romances. A representação exclusiva da Edade
media, á falta de objectividade, levou ao exagero da phrase, a emphase
rhetorica, produzindo um estylo chamado o _Ultra-Romantismo_.
A subjectividade fôra tambem considerada como um caracteristico das
litteraturas modernas, e n’essa parte parece ainda reconhecer-se a
hegemonia allemã.
No decurso da longa edade revolucionaria, primeiramente mental e
depois social, houve o interregno do _sentimento_, deixado á
espontaneidade da sua concordia natural. No seculo XVIII irrompeu
esta nova força, primeiramente na fórma de _philanthropia_,
inspirando reformas a favor das classes soffredoras; veiu a
passividade emocional diante da natureza, a sensibilidade idyllica,
tornou-se moda a voluptuosidade da melancholia, até se chegar á
_sensiblerie_ das lagrimas, ao desalento da vida e ao pessimismo.
A grande actividade mental do seculo, que tudo analysou, conduzia
a um exagerado _subjectivismo_, e as commoções da explosão
temporal foram determinar nas fórmas da arte moderna a expressão da
sentimentalidade acordada n’essa crise. A alma humana carecia de
consolos, e a musica entrou na sua phase de expressão em Haydn, Mozart,
Beethoven, Weber e Cimarosa. A Poesia saíu do allegorico e deslavado
arcadismo para tornar-se pessoal, e traduzir este estado morbido do
_sentimentalismo_ melancholico. N’este meio social e moral, é que
appareceu na Allemanha o _wertherismo_, não creado por Goëthe na
sua novella de _Werther_, mas de que esta narrativa de uma paixão
vaporosa e fatal que leva ao suicidio foi um resultado. Em França, este
mesmo contagio de tristeza ou o _obermanismo_ teve o evangelho
no _Oberman_ de Sénancourt e no _René_ de Chateaubriand. Na
Inglaterra choram-se as _Noites_ elegiacas do Dr. Young, e surgem
depois os poetas _Lakistas_ cantando os luares, os nevoeiros,
os crepusculos da tarde, todas as emoções tenues da alma; Wordsworth
inspirava-se de um platonismo religioso e animava cada cousa com
entidade moral; Southey e Wilson completavam a pleiada dos poetas
visinhos dos lagos de Westmoreland e de Cumberland, para quem a poesia
era um pantheismo christão, uma somnolencia de extasis, uma bonança
mystica no meio da grande derrocada do regimen theologico-feudal do fim
do seculo XVIII.[201]
No renascimento esthetico do seculo actual reapparecia o elemento
_pessoal_ da Arte, que estivera abafado sob a imitação das obras
classicas; consequentemente resoava um lyrismo novo, subjectivo,
affinado pelo estado das almas em uma éra perturbada que começava.
Na Allemanha, Novalis tirava novos accentos d’esse sentimento vago e
indeterminado da melancholia; a existencia tornava-se uma nostalgia e
saudade da outra vida; o tumulo, os goivos dos cemiterios, a solidão,
os dobres funerarios, a cruz do ermo eram os symbolos sympathicos do
lyrismo que mais aggravava esta doença das almas ingenuas e sensiveis.
Os poetas tomavam a sério o pezo imaginario da sua angustia, declamavam
ao vento as suas elegias plangentes, e muitas vezes expiravam minados
por consumpção nostalgica irremediavel. Em França, Lamartine propagou
esta sentimentalidade _larmoyante_ dando-lhe uma uncção religiosa;
e Millevoye, com menos talento abandonou-se como Novalis ao seu
desgosto intimo, cahindo em um languor sem remedio. A paixão pelo genio
melancholico estendeu-se por toda a parte pela impressão dos poemas de
_Ossian_, inventados por Macpherson; as sombras dos guerreiros
vagando na cerração dos promontorios, os eccos da harpa bardica
perdidos nos banquetes estridentes, as lembranças dolorosas das tribus
extinctas, um mixto de objectividade homerica com a subjectividade
das lamentações e dos psalmos biblicos (em um syncretismo consciente)
tornavam o genero agradavel e suggestivo.
Transitou-se assim para o lyrismo religioso ou _emmanuelico_,
como uma reacção contra a incredulidade do seculo encyclopedista,
contra o philosophismo que devastára os espiritos. O Lyrismo portuguez
estava esterilisado pelas imitações arcádicas; o proprio Garrett ainda
se chamava _Jonio Duriense_, e Castilho chamava-se _Mémnide
Egynense_, na Arcadia de Roma.
A emigração politica é que nos revelou o Romantismo; emquanto
Garrett e Herculano comiam o pão do exilio, acompanharam o movimento
litterario que se operava em volta d’elles. Garrett comprehendeu que
o renascimento da vida politica da nacionalidade carecia da base
affectiva da litteratura e das tradições, e Herculano do conhecimento
da sua historia. A feição do Lyrismo iniciado por estes renovadores
foi a que predominava nas outras litteraturas, _melancholica_
e _emmanuelica_. Garrett foi completamente elegiaco, e de um
subjectivismo exagerado no poema narrativo _Camões_; invoca a saudade,
o gosto amargo, o pungir delicioso que lhe repassa os imos seios da
alma, em uma especie de obermanismo, e já no fim da vida ficou fiel a
essa emoção nas _Folhas cahidas_, o principal modelo do nosso lyrismo.
Herculano foi tambem sentimental, mas pela rigidez do seu temperamento
não podendo conciliar-se com a _sensiblerie_ lamartiniana, pendeu para
a emoção religiosa, e tomou por modelo Klopstock; na _Harpa do crente_,
destacam-se a _Semana santa_, a _Cruz mutilada_, a _Arrabida_, como um
protesto a favor do christianismo medieval, que Chateaubriand tentára
revivescer pela arte e José de Maistre esclarecer pela continuidade
historica, que a Revolução quebrára.
A feição da sentimentalidade nostalgica, affinada pelos _Lakistas_,
pela melancholia de Novalis e pelo desalento de Millevoye, teve em
Portugal já tardiamente o seu representante em Soares de Passos;
são-lhe sympathicos os poemas de Ossian, as balladas do norte e as
_Harmonias_ de Lamartine.
O seculo XIX, na sua instabilidade politica e ausencia de uma
doutrina philosophica aggravada pela fragmentação das especialidades
scientificas, continuava o seculo XVIII no insurreccionismo dos
espiritos. Os que não cahiam na passividade revoltavam-se; o
Lyrismo reflectiu este estado emocional, que levava á concepção
_pessimista_ do universo, como em Leopardi, ou ao imperio absoluto
do mal, como o _satanismo_ de Byron. O immortal poeta contrapõe ao
mundo a sua individualidade, que representa no _Child Harold_, no
_Don Juan_, no _Manfredo_, mas sente em volta de si um vacuo
moral que lhe annulla a intelligencia capaz de abranger o infinito, e
um coração puro em que podia accolher o universo. Tem o atheismo na
cabeça e a aspiração religiosa no intimo da alma, mas vê-se forçado
pelo meio deleterio ambiente ao sarcasmo, á ironia, á blasphemia. O seu
ideal, como o de Shelley, sendo apto para trazer a concordia ás almas
e revelar-lhes a synthese affectiva humana, é deturpado em uma missão
negativa. Comte definiu de uma fórma nitidissima o genio e a missão
de Byron: «O mais eminente poeta do nosso seculo, o grande Byron, que
até hoje, tem a seu modo melhor do que ninguem presentido a verdadeira
natureza geral da existencia moderna, simultaneamente mental e moral,
tentou espontaneamente e sósinho esta audaciosa regeneração poetica,
unico desfecho da Arte actual. Sem duvida, a sã philosophia não estava
então ainda bastante avançada para permittir ao seu genio o apprecial-a
sufficientemente, na nossa situação fundamental, além do aspecto
puramente negativo, que elle, apezar de tudo, soube admiravelmente
idealisar... Mas, o profundo merito das suas immortaes composições e o
seu immenso successo immediato, apezar das vãs antipathias nacionaes,
entre todas as populações cultas, tornaram já irrecusavel quer a
potencia poetica privativa da nova sociabilidade, quer a tendencia
universal para uma tal renovação.»[202] N’esta orientação esthetica
seguia Shelley, desviado da sua obra por uma morte desastrosa. A parte
negativa do genio de Byron é que foi seguida por outros lyricos,
segundo os seus caracteres nacionaes; pelo allemão Henri Heine, no
_humour_ e _launa_, e em Alfred de Musset por um alcoolismo
com que se sobreexcita, como o phantastico Foë. Falhos de uma concepção
geral, os Lyricos modernos esgotaram-se reproduzindo a nota negativa
de Byron. Em Portugal repercutiram-se estas cambiantes, como se vê nos
_Sonetos_ de Anthero, confessando elle mesmo que tem um pouco de
Heine; no Lyrismo brazileiro prevaleceu o mussetismo, pela mesma fórma
desgraçada da dissipação da vida, como se observa em Alvares de Azevedo
e Castro Alves.
A poesia lyrica do Romantismo esgotou-se em uma exagerada
subjectividade; o elemento _pessoal_ da arte não encontrava
caracteres nem concepções, na invasão das mediocridades. Os poetas
lyricos modernos preoccuparam-se de um modo exclusivo da fórma,
antepondo a expressão á concepção, ou o _parnasismo_. A facilidade
da acquisição da technica desvairou os talentos subalternos. No estado
actual dos espiritos e na crise por que está passando a consciencia
moderna para fundar e universalisar a sua nova synthese, a Poesia
soffre tambem os effeitos d’esta instabilidade moral. Compete aos
poetas dignamente modernos empregar todo o seu poder de expressão em
dar universalidade ás concepções positivas, para que se criem assim os
novos costumes estaveis, elementos de idealisação para a Arte pura.
Os poetas que cultivam exclusivamente a expressão, sacrificando-se ao
preconceito da _arte pela arte_, abdicam de uma missão social,
chegando por isso raras vezes a despertar a sympathia social. Quando
idealisam com elevação sentimentos eternos e humanos, como o amor,
ainda conseguem ser lidos; mas ha n’este sentimento um personalismo
que amesquinha a emoção, e que reduz a obra de arte a uma confidencia
que nos é indifferente. M.^{me} Ackermann formulou em poucas palavras
a orientação do poeta moderno: «Fazer poesia subjectiva é uma
disposição doentia... É em nome da natureza, é sobretudo em nome
da humanidade, que é precisa a voz. Estas fontes de inspiração são
as unicas verdadeiramente profundas e inexauriveis.» Restabelecida
a continuidade historica da Edade media, estava conciliado o mundo
romantico com o classico, e logicamente se segue o conhecimento de uma
mesma Humanidade. É esse sêr ideal e real que tem de ser idealisado em
todas as manifestações artisticas, cooperando a formação segura de uma
Philosophia da Historia com a idealisação simultanea de uma Poesia da
Historia.
_c_) DISCIPLINA CRITICA E PHILOSOPHICA
Depois de estabelecidas as bases criticas dos poemas homericos, por
Vico, e amplamente comprovadas por Wolf, veiu a comprehensão dos
cantos nacionaes e o reconhecimento da sua importancia scientifica.
Notou-se que o homem assim como formava os seus systemas de linguagem
e de mythos religiosos independente dos grammaticos e dos theologos,
tambem antes dos litteratos soubera manter a tradição e dar fórma
aos sentimentos que realisaram a unificação das nacionalidades. Em
1794, a descoberta da collectividade homerica por Wolf, coincidia
com a manifestação da consciencia de um povo na Revolução franceza.
A eloquencia dos factos justificava a concepção especulativa do
philosopho; nas modernas revoluções da Europa, a poesia continuou a
manifestar-se como o grito da liberdade: a _Marseillaise_, de Rouget
de l’Isle, exaltava as multidões; as estrophes de Krasinski e de
Miçkievich convulsionavam os estudantes da Polonia; os hymnos de
Poetefi ajudavam a causa da emancipação da Hungria; os hymnos de Riego
e da _Maria da Fonte_ atacavam o despotismo que deixava cahir a mascara
da hypocrisia liberal. Conheceu-se que a alma popular tinha a sua
poesia, e que era accessivel a esse encanto. Esta descoberta affirma-se
pelas descobertas da critica e da philologia; estudaram-se os cantos
gaëlicos e as narrativas do _Mabinogion_, na Inglaterra, foram achadas
as _Canções de Gesta_ da França, reproduziram-se os _Niebelungen_,
da Allemanha, e os _Romanceiros_ da Hespanha. A archeologia, a
linguistica, a mythographia, a critica da arte, a philosophia,
cooperavam para darem novas bases á sciencia da Historia, determinando
o que ha de verdade nas tradições. Jacob Grimm, dominado por esta
sympathia percorre a Allemanha, e no decurso de dez annos explora a
rica mina das tradições dos povos germanicos. E o que elle fazia como
erudito genial, os poetas tentaram como artistas reconstruindo pelo
sentimento as edades passadas. Uhland, na Allemanha, foi o poeta que
mais trabalhou para a comprehensão da alma popular; chamavam-lhe por
isso o ultimo trovador; a sua imaginação de fada repovoava os castellos
em ruinas, reconstituindo as lendas dos solares extinctos pelas vagas
tradições locaes. Era um propheta do passado prégando o amor da Edade
media. Nas suas balladas acha-se a mesma consagração das _Côrtes de
Amor_, ainda os peregrinos voltam desconhecidos da Terra Santa e cantam
ao sopé dos castellos o lai plangitivo do ausente; o cavalleiro errante
é ainda impellido pelo sentimento do amor e da justiça; na Cathedral
continúa vibrando o sino que toca á revolta, e ainda lá dentro nascem
os amores immaculados dos petrarchistas. O cantico de uma edade que
passou torna-se no seu plectro uma aspiração da liberdade moderna.
Na Inglaterra Lockart, guiado por Walter Scott, traduzia os romances
hespanhóes, que Jacob Grimm tambem reproduzia na _Silva de Romances
viejos_. A sympathia da tradição iniciava a unificação dos povos;
pelo estudo das origens da _Divina Commedia_ e do _Decameron_
se viu como todas as raças da Europa contribuiram com o syncretismo das
tradições medievaes para a elaboração das obras primas litterarias. O
_Fausto_, de Goëthe, era essa tradição restricta, illuminada por
um pensamento philosophico e universalisando um estado da consciencia
humana enganada pelas noções absolutas da metaphysica com que fôra
seduzida; a salvação do doutor vem da tolerancia da relatividade.
Só muito tarde é que chegou a Portugal a necessidade de saber se
eramos um povo vivo, ou, o que valia o mesmo, se possuiamos uma poesia
tradicional; Garrett regressára da primeira emigração de 1823, e
tendo assistido na Inglaterra á impressão provocada pelas publicações
de Ellis, Percy, Rodd e outros collectores, veiu aqui encetar essas
pesquizas. Retocou os cantos populares ao gosto de Uhland e de
Percy, misturando com as dezaseis rhapsodias achadas nas lareiras
da provincia as suas composições litterarias da _Adosinda_
e _Miragaia_. O criterio d’estes estudos, empregado pelos
irmãos Grimm, é que prevaleceu, e trabalhando já n’este periodo de
disciplina scientifica fomos levados do estudo dos _Foraes_ para
a investigação dos _Romanceiros_. Raiou-nos uma luz nova: o que
parecia rudeza era o documento de um estado social extincto, ou de uma
raça; o que parecia imagem sem sentido era um symbolo foraleiro do
periodo hispano-germanico, conservado nos costumes pela persistencia
do elemento mosarabe; o que se affigurava um erro grammatical era um
archaismo de linguagem; o que parecia um fragmento obliterado era um
episodio abreviado de uma Gesta carlingia ou de uma novella arthuriana.
Assim comprehendemos a _inerrancia_ das tradições populares, que
proclamára Jacob Grimm.
A Edade media foi no seu conjuncto estudada scientificamente em todas
as suas manifestações; as novas linguas romanicas, os rudimentos
litterarios épicos, lyricos e dramaticos, as creações artisticas
e a sumptuaria, as instituições civis e religiosas, as luctas
de classes sociaes, o feudalismo, as jurandas, as communas e a
realeza, a persistencia das instituições romanas através do dominio
dos invasores germanicos, a constituição das nacionalidades, os
conflictos doutrinarios das escholas philosophicas e da theologia,
tudo se tornou objecto de numerosas monographias historicas, que
deram logar ao conhecimento pleno d’esta moderna antiguidade. O
_Ultra-Romantismo_ dissolveu-se diante da seriedade da sciencia.
Qual seria então a marcha das Litteraturas, quando melhor se
conhecia o seu berço organico da Edade media? Infelizmente a marcha
_social_ da Europa estacionou no seu trabalho de reorganisação nos
expedientes aventurosos da transição parlamentarista; em quanto á parte
_mental_, a falta de opiniões definitivas e sua versatilidade
não deixou crear caracteres dignos e costumes estaveis, por tanto, as
Litteraturas resentiram-se d’esta situação deploravel. Gastaram-se
vivos esforços em renovar as fórmas litterarias reproduzindo a
realidade no _Naturalismo_, mas as obras primas não conseguiram
cativar a sympathia popular. Faltava-lhes um ideal, e esse não póde ser
senão a fórma esthetica da grande synthese philosophica para a qual a
humanidade tende. Notando a insufficiencia da Arte e das Litteraturas
modernas, Comte formulou nitidamente as condições necessarias para a
sua renovação final: «As bellas-artes, destinadas á multidão, devem com
effeito, pela sua natureza sentir a indispensavel necessidade de se
apoiarem sobre um systema conveniente de opiniões familiares e communs,
cuja preponderancia prévia é egualmente indispensavel para produzir e
para gosar, a fim de preparar suficientemente entre o interprete activo
e o espectador passivo esta harmonia moral que d’ante mão dispõe um a
secundar espontaneamente os meios de expressão empregados pelo outro,
e sem a qual nenhuma obra de arte conseguiria ser plenamente efficaz,
mesmo sob o ponto de vista individual, e, com mais forte rasão sob o
aspecto social. É a deficiencia de uma tal condição, rarissimamente
preenchida na arte moderna, o que basta para explicar o pouco effeito
real de tantas obras primas, concebidas sem fé e apreciadas sem
convicção, e que, apezar do seu eminente merito, não podem excitar
em nós senão impressões geraes inherentes ás leis geraes da natureza
humana; de sorte que d’aqui resulta quasi sempre uma influencia muito
abstracta e consequentemente pouco popular.»[203] O atrazo mental
na reconstrucção da synthese humana, contrasta com a dispersão de
energias em especialidades scientificas verdadeiramente inuteis, e com
a falsa direcção das intelligencias desprovidas dos _sentimentos_
que fecundam os nobres caracteres. É ás Litteraturas que compete o
irem adiante, dando disciplina aos sentimentos, e acordando-lhes o
ideal que tem andado confundido em indefinidas aspirações. Os mais
difficeis problemas da reorganisação social só podem ser resolvidos
affectivamente; assim se operou no christianismo na transição da Edade
media. Servindo este destino, as Litteraturas desenvolvidas sobre
concepções sympathicas, que tendem a tornar-se estaveis, reatarão
essa mutualidade perdida, essa antiga collaboração entre o poeta que
idealisa e a multidão que se impressiona.
NOTAS DE RODAPÉ:
[97] _Cours de Philosophie positive_, t. VI, p. 146.
[98] _Cours de Philosophie positive_, t. VI, p. 150.
[99] _Ibid._, p. 152.
[100] _Op. cit._, p. 2.
[101] _Système de Politique positive_, t. III, p. 459.
[102] _Cours de Philosophie positive_, t. VI, p. 155.
[103] _Cours de Philosophie positive_, t. VI, p. 155.
[104] _Ibid._, p. 156.
[105] H. Fortoul, _De la Litterature provençale_ (Rev. des
Deux Mondes), 1846.
[106] _Poeti del primo secolo_, t. II, p. 175.
[107]
Von Provenz in Tustsche lant
Die rechte mere sint gesant.
[108] Frédéric Morin, _France au Moyen-Age_, p. 82.
[109] _Obras_ del Marqués de Santillana, p. 12. Ed. Amador de los Rios.
(1852)
[110] _Poésie des Troubadours_, p. 237.
[111] Na _Chronica gothorum_ (Mon. hist., _Scriptores_, I), lê-se:
«Eodem quoque tempore venerunt quedam naves exinsperato _de partibus
Galliarum_, plene armatis viris votum habentes ire in Jerusalem, cumque
venissent ad Portum Gaye, et intrassent Dorium, audivit hec Rex, et
gavisus est cum eis, erant enim fere septuaginta, et paccitus est cum
eis ut irent ad Ulixbonam ipsi per mare, et ipse cum exercitu super
terram, et obsiderunt eam forsitan placere Domino ut traderet eam in
manibus eorum.»
[112] Terram _Portugallorum_ Dacis et Flandris dedit. (Cap. XVIII).
[113] Léon Gautier, _Les Épopées françaises_, t. I, p. 71.
[114] _Hist. de la Poésie provençale_, t. III, p. 9 e 29.
[115] _Mon. Hist._--Scriptores, p. 283.
[116] Léon Gautier, _Les Épopées fr._, t. II, p. 184.
[117] _Monarch. luzitana_, t. IV, p. 289.
[118] _Romanceiro geral_, n.^o 34.
[119] _Historiens de France_, t. XXII, p. 24 (préface) e p. 589. Apud
Léon Gautier, _Les Épopées françaises_, t. I, p. 373.
[120] Jean Corbechon, _De Proprietatibus_, fl. 237. Apud Léon Gautier,
_Les Épopées franç._, t. i, p. 393.
[121] Gautier, _ibid._, t. i, p. 783.
[122] _Chronica da Conquista de Guiné_, p. 4. Ed. Paris.
[123] _Les Épopées françaises_, t. II, p. 249.
[124] _Essai sur l’origine de l’Épopée française_, p. 57 a 59.
[125] _La Poésie des Races celtiques._ (Essais de Morale et de
Critique, p. 380.)
[126] Renan, _ib._, p. 427.
[127] _Op. cit._, p. 321.
[128] Henri Martin, _Hist. de France_, VIII, 22.
[129] _Ethnogénie gauloise_, III, 335.
[130] _Mon. hist._, Leges, p. 139.
[131] Renan, _op. cit._, p. 417.
[132] D’Héricault, _Essai sur l’origine de l’Épopée française_, p. 51.
[133] D’Héricault, _ibid._, p. 47.
[134] _Rapport sur une Mission litteraire en Angleterre_, p. 1.
[135] _Monum. hist._, Scriptores, p. 244.
[136] _Poesies des Troubadours_, t. III, p. 25.
[137] _Blanchefleur_, Introduc., p. XXXVII.
[138] _État des Lettres au XIV^{me} siècle_, t. I, p. 153.
[139] _Ibid._, p. 484.
[140] _Ibid._, t. II, p. 15.
[141] No citado resumo (t. I, p. XXII) se lê: «Je n’ose m’en fier
absolument à ma memoire; je suis intimement conveincu d’avoir vu ces
manuscripts (pretendus picards) écrits en ancienne langue Romance,
dans la Bibliothèque du Vatican; c’est à dire, dans la partie de cette
Bibliothèque formée de celle que la celèbre Reine Christine avoit
rassemblée, et dans l’aquelle presque tous nos meilleurs et nos plus
anciens Romans français sont compris.»--No t. IX, p. 2, Du Tréssan
torna a referir-se mais explicitamente a este facto: «Pendant un sejour
de quatre mois que l’auteur ... fit à Rome, son Eminance Monseigneur
le Cardinal Querini l’honora de son amitié et la Bibliothèque du
Vatican lui fut ouverte... La partie droite renferme la Bibliothèque
de la celèbre reine Christine... C’est là qu’il se rappelle d’avoir vu
l’_Amadis de Gaule_, écrit dans un très vieux langage, que l’Herberay
caracterise en le nommant _langue picarde_, fondé sur ce que le jargon
du paysan picard est précisement le même que celui dans le quel les
Romanciers de la fin du règne de Philippe Auguste et des regnes de
Louis VIII et de Saint Louis ont écrit; c’est ce que lui fait présumer,
avec bien de vraisemblance, que l’original de l’_Amadis de Gaule_ est
de la main de nos anciens Romanciers françois; etc.»
[142] _Dictionaire_, compl. de la préface, p. LIV. Hippeau, editor do
poema de _Amadas et Ydoine_, reconhece estas relações, e que reclamam
serio exame.
[143] _Libros de Cavallerias_, p. 30 (Ed. Ribadaneyra.)
[144]
Et Amadas devant sont père
Devant son père, à la table ere,
Cui puis avint maint aventure.
Li dus l’apela à droiture,
Le mès li commande à porter
Sa belle fille et présenter.
Qui tint à une part sa feste,
Com pucele de haut geste.
Comme courtois et afaitiés,
De cest message se fist prest.
(P. 209 a 219.)
En l’esgarder de la pucele
Li saut au cuer une estincelle,
Lui de fine amor l’a esprit;
Jà en est tes mas e suspris,
E entrés en si grant effroi,
Qu’il ne set nul conseil de soi;
Ne set s’il a joie ou doleur,
Ou amertume, ou douceur;
Ne set si il la vit ou non
Par songe ou par avision; etc.
(P. 243 a 252.)
[145] Do prurido que exerceram os poemas da Tavola Redonda na sociedade
europêa falla Dante no celebre episodio de Francesca di Rimini,
seduzida pela imitação dos amores de _Lancilotto_. Escreve Émile
Chasles: «Isto que se passava na Italia acontecia egualmente em todo
o Meio Dia. Os Hespanhoes e os Portuguezes, ao terminarem as suas
longas guerras contra o islamismo foram vivamente impressionados por
estas creações romanescas; imitaram-as com a paixão séria que imprimem
na poesia. Os _Amadises_, que levam ao extremo o ponto de honra, a
galanteria e a coragem, são os descendentes da familia gallo-bretã.»
(_Histoire nationale de la Litterature française_, p. 326.)
[146] _Ineditos da Historia portugueza_, p. 120.
[147] Ed. de Paris, p. 45. Em nota escreve o Visconde de Santarem:
«Segundo esta tradição, dizia-se que _San Brendan_ tinha aportado em
um navio no anno de 565 a uma parte da equinocial. Conservou-se esta
_entre os habitantes da Madeira_ e da Gomeira, _os quaes julgavam vêr
a dita ilha ao Oéste em certo tempo do anno_.» E accrescenta: «Azurara
conheceu esta tradição da Edade media por alguma copia dos Ms. do
seculo XIII intitulado _Imago Mundi de dispositione Orbis_ de Honorio
d’Autun; e esta circumstancia é tanto mais curiosa, que Azurara não
podia ter tido conhecimento do famoso _Mappa Mundi_ de Fra Mauro,
que só foi feito entre os annos de 1457 e 1459; e ainda menos do
planispherio de Martim de Bohemia (1492) que se conserva em Nuremberg,
onde se vê desenhada junto da equinocial uma grande Ilha com a seguinte
legenda: _Anno 565 S. Brandam chegou com o seu navio a esta ilha._»
[148] Renan, no estudo _Poesia das Raças celticas_, alludindo ao poder
das ficções, escreve: «D’ahi este profundo sentimento do futuro e
dos destinos eternos da sua raça que sempre alentou o Kymri, e o faz
apparecer joven ainda ao lado dos seus conquistadores envelhecidos.
D’ahi o dogma da resurreição dos heróes, que parece ter sido um
d’aquelles que o christianismo teve mais pena de desraigar. D’ahi
este _messianismo celtico_, esta crença em um vingador futuro, que
restaurará a Cambria e a libertará dos seus oppressores, como o
mysterioso Leminok, que Merlin lhes promettera, o Lez-Breiz dos
Armoricanos, o Arthur dos Gallois.» (_Ess._, p. 387.)
[149] _Roland et la Chevalerie_ (na Rev. des Deux Mondes, 1846.)
[150] _Roland et la Chevalerie._ Magnin esboça um plano de coordenação
de caracteres historicos fundado sobre este dualismo: «Comprazer-me-hia
a oppôr a um personagem de temperamento e de cultura antiga um
personagem de compleição e de costumes septemtrionaes; Clovis, por
exemplo, a Carlos Magno; o ultimo dos Bourguinhões, Carlos o Temerario,
a Luiz XI; o troveiro Thurold, a Ariosto; Shakespeare, a Racine; Erwin
de Steinbach, a Miguel Angelo; finalmente mais perto de nós, Byron, a
Alfieri; Beccaria, ao conde de Maistre.»
[151] _Dicc. da Academia española_, vb.^o cit.
[152] Apud Joly, _Benoit de Sainte More_, t. I, p. 6.
[153] _Catalogo dos Bispos do Porto_, prefação, § 13.
[154] _Vida de D. João de Castro_, p. 509. Ed. 1835.
[155] Xivrey, _Trad. terat._, p. XLVI.
[156] _Op. cit._, p. XLIII.
[157] _Panorama_, t. I, p. 164.
[158] _Ibid._, t. IV, p. 8.
[159] _Poésies populaires latines antérieurs au XII^{me} siècle_, p. 26.
[160] Bibl. Jacob, _Histoire de Cordonniers_, p. 220.
[161] _Cours de Philosophie positive_, VI, 150.
[162] _Ibid._, p. 159.
[163] _Ibid._, p. 172.
[164] _Cours de Philosophie positive_, t. VI, p. 174.
[165] _Ibid._, p. 153.
[166] _Études sur le Seizième siècle en France_, p. 5 e 6.
[167] _Op. cit._, p. 176.
[168] «Possem utriusque rei exempla non pauca in medium adducere,
non jam ex Italia ipsa studiorum altrice, verum etiam ex Gallia, ex
Britania, ex Germania, nostra hac aetate cum Italia de litterarum
palma contendente, et denique ex Sarmatia omnium quondam terrarum
barbarissima.»
[169] _La Poésie du Moyen-Age_, p. 80.
[170] Raczynski, _Carta XXI_, p. 410.
[171] _Purgatorio_, canto XXIV.
[172] _Obras_, ed. 1614, fl. 123. Na edição de 1595 vem sob estas
variantes:
Eu digo os Proençaes, de que ao presente
Inda rythmos ouvimos, que entoaram
As musas delicadas altamente.
[173] Ap. _Influence de l’Italie sur les Lettres françaises_, p. 93.
[174] _Système de Politique positive_, t. III, p. 514.
[175] _L’avenir de la Science_, p. 58.
[176] A preoccupação da lisonja da côrte dava aos escriptores as
expressões amaneiradas, como notou Weise no _Politischer Näscher_, nos
escriptores do seculo XVII que se annullavam «pelo grande desejo da
_sôpa da côrte_ politica.»
[177] _Études sur l’Espagne_, p. 227.
[178] _Études sur l’Espagne et sur l’influence de la Litterature
espagnole en France et en Italie_, p. 40.
[179] _Études sur l’Espagne_, p. 108 a 111.
[180] _Ibid._, p. 113.
[181] _Ibid._, p. 114.
[182] _Études sur l’Espagne_, p. 148.
[183] _Ibid._, p. 41.
[184] _Ibid._, p. 225.
[185] Sobre este assumpto, vid. Child, _John Lyly and Euphuism_;
Laudmann, _Der Euphuism_; e Morly, _Quarterly Review_, 1861.
[186] _Congrès historique_ (IX^{me}) p. XVIII. Paris, 1843.
[187] _L’Ancien Régime_, p. 257 e seguintes.
[188] _Ibid._, p. 260.
[189] _Ibid._, p. 261.
[190] _Verdadeiro methodo de estudar_, t. I, p. 177.
[191] Ap. Marquez de Valmar, _Historia de la Poesia española_, t. I, p.
261.
[192] _Panorama_, t. VIII, p. 152.
[193] _Verdadeiro methodo de estudar_, t. I, p. 220.
[194] _Verdadeiro methodo de estudar_, t. I, p. 201.
[195] _Obras poeticas e oratorias_, p. 166. Ed. 1888.
[196] «Beles, Shakspeare, inglez, em nove volumes de outavo magno,
encadernados em pasta. Boa edição, estampados, avaloados em 6$400 réis.
«_Poemas_ de Raulay, inglez, 1 vol.
«_Hudibras_, por Samuel Butler, inglez, 1 vol.
«_Ancient Inglis_, obra poetica, em 3 vol., encadernada em pasta.
«_Several Hands_, collecção de poemas em inglez, em 6 volumes.
«_British Theatre_, comedias em inglez em um volume.
«Obras de Laurence Sterne, inglez, em 3 volumes de 8.^o.
«Obras de _Tristran Shandy_, inglez, encadernado em pasta, 6 vol. de
8.^o.
«_Sentimental Journey_: Yorich, em 2 vol. de 8.^o em pasta.
«_British Tragedias_, inglezas, em 1 vol.
«Obras de Young, francez, em 3 vol.
«_Cartas de Junius_, em inglez, em 2 vol.
«_Obras_, _Poemas_ de Milton, inglezes, 3 vol.
«Um tomo das Obras de William Shakspeare, em que contém algumas
comedias inglezas, em 1 vol.»
[197] Fallando do meio como poderia reflorir a poesia franceza do seu
inexpressivo arcadismo, escrevia Frederico Schlegel: «eu sou levado a
pensar que isso não se daria nem poderia acontecer pela imitação dos
inglezes, como se tem feito até ao presente para sustentar a poesia
desfallecida, nem pela imitação de nenhuma outra nação; mas sómente
por um regresso ao espirito poetico em geral, e reconduzindo a poesia
franceza aos tempos antigos.»--«basta a cada nação o voltar-se para
a sua poesia e tradições suas proprias e originaes. Tanto mais perto
se está da origem e mais profundamente se immerge n’ella, quanto mais
se vê apparecer o que todas as nações tem de commum.» (_Historia
da Litteratura antiga e moderna_, t. II, p. 248, trad. franc.) A
influencia da Litteratura ingleza era devida a não se ter completamente
separado da Edade media, e é d’esta fonte commum das Litteraturas
modernas que ellas avançam para a sua unificação.
[198] _La Philosophie positive_, resumida por Miss Martineau, t. II, p.
446.
[199] _Ibid._, p. 484.
[200] _La Philosophie positive_, condensée par Miss Martineau, t. II,
p. 486 a 488.
[201] Philarète Chasles indicando este phenomeno, não explica a sua
origem: «Que causas sociaes determinaram tambem a sentimentalidade
wertheriana, esta moda extraordinaria de chorar sem fim, este
_obermanismo_ desesperado que só teve um dominio passageiro em França
com Arnaud Baculard, em Inglaterra com o Dr. Young, mas que penetrou
até ás ultimas camadas da sociedade e da burguezia allemãs entre
1780 e 1790, e que tanto persistiu que duas operarias gorduchas e
dois bons burguezes que se encontrassem em Leipzic ou em Goettingue,
não perguntavam um ao outro: Como passaes? mas: Tendes vós derramado
copiosas lagrimas? ou então:--Como vão os soffrimentos do vosso
coração?--Esta tendencia lagrimejante auxiliou o successo do _Werther_
de Goëthe, e o da _Intriga e amor_ de Schiller; as obras de Kotzebue
foram um producto definitivo. Mas onde teve esta tendencia a sua
origem?» (_Des travaux récents sur le XVIII^{me} Siècle._)
[202] _Cours de Philosophie positive_, t. VI, p. 762.
[203] _Cours de Philosophie positive_, t. V, p. 106.
III
Épocas historicas da Litteratura portugueza
Para formar a Historia de uma Litteratura moderna em especial, importa
considerar a nação que a produziu como membro d’esta Republica
occidental, analysando as manifestações do seu genio esthetico e
deduzindo pela comparação dos typos communs a marcha que seguiu a
evolução esthetica da Europa desde a Edade media até ao presente, nas
suas relações complexas com as instituições politicas e economicas, bem
como com as phases mentaes e affectivas do espirito e da sociabilidade.
A um trabalho concreto de erudição tem de seguir-se uma forte
abstracção philosophica, considerando a _Edade media_ como o fóco
de elaboração do genio esthetico tanto para as linguas e para a poesia
como de todo o systema das bellas-artes. Pelo exame da marcha geral da
Civilisação europêa no seu movimento de decomposição e por tanto de
instabilidade social, se comprehenderá como o elemento _classico_
serviu de apoio provisorio para o exercicio das capacidades estheticas
na época mentalmente agitada da Renascença. Todas as phases por
que passou a civilisação europêa sob a dissolução do regimen
catholico-feudal, actuaram nas fórmas das Litteraturas, umas vezes
desviando-as da idealisação dos seus elementos affectivos medievaes
para a imitação greco-romana, outras vezes confundindo-os, e por ultimo
regressando á origem organica. É este facto fundamental o em que melhor
se observa a solidariedade das Litteraturas romanicas, e o que melhor
define as transformações que constituem a caracteristica de cada época
historica. Assim as épocas da Historia da Litteratura portugueza são
semelhantes ás que apresentam as outras litteraturas meridionaes.
PRIMEIRA ÉPOCA
(SECULOS XII A XV)
Preponderancia dos elementos tradicionaes e estheticos da Edade media,
e começo de transição para o estudo da Antiguidade classica
=1.^o Periodo (Seculos XII a XIV):=
=_Trovadores portuguezes._=--A poesia provençal entrou na peninsula
hispanica especialmente pela Galliza, quando Portugal se achava ainda
incorporado no seu territorio. Eram da Gasconha, pertencente á eschola
poetica da Aquitania, os trovadores que aqui penetraram, entendendo-se
pela homogeneidade da tradição, dos costumes e da linguagem. Pelo
casamento de D. Affonso Henriques, o primeiro monarcha portuguez, com
uma princeza italiana, assim como nos apropriámos das fórmas municipaes
(o _Podestariado_) tambem conhecemos a poesia dos trovadores que em
grande numero se haviam refugiado na Italia por causa da absorpção
monarchica da França do norte. Peire Vidal, Marcabrun e Gavaudan o
velho, que vieram a Portugal ou a elle se referiram, tinham passado a
parte principal da sua vida na Italia. No _Cancioneiro da Vaticana_
determina-se esta phase de iniciação italo-provençal: ha importantes
referencias a Sordello, de Mantua, e abundantes italianismos, como:
_Cajon_, _Mensonha_, _Mentre_, _Pelegrin_, _Toste_, _Ledo_, _Nozir_,
_Solaz_, _Guirlanda_, _Dolçor_, _Vergonça_, Potestade, etc. No
_Cancioneiro Colocci-Brancuti_ acham-se em portuguez canções assignadas
por Bonifazio Calvo, de Genova.
O desenvolvimento completo da poesia trobadoresca deu-se na côrte
de D. Affonso III por circumstancias implicitas nas transformações
politicas portuguezas. Contra o systema administrativo de D. Sancho
II insurgiram-se o clero e a nobreza, e depois da escaramuça violenta
da _Lide do Porto_, os bispos mais audaciosos foram para
Roma conspirar para a deposição do monarcha, e a nobreza emigrou
para França, refugiando-se junto do princepe D. Affonso, que se
distinguia pela sua estremada bravura na côrte de San Luiz. Então
estava o lyrismo provençal em moda no norte da França, e o conde de
Champagne com outros senhores serviam-se das subtilezas das allegorias
trobadorescas para cortejarem a formosa rainha viuva Branca de
Castella. N’essa côrte cavalheiresca residira D. Affonso desde 1238
a 1246; para junto d’elle é que emigraram os fidalgos das familias
dos Bayões, Porto-Carreros, Valadares, Alvins, Nobregas, Mellos,
Sousas e Reymondos, appellidos dos principaes trovadores que assignam
as composições dos nossos trez valiosos Cancioneiros fragmentarios.
Apoiado n’esse partido de revolta dos grandes vassallos, D. Affonso
fez um desembarque furtivo em Portugal, e foi recebendo a homenagem
dos principaes Alcaides dos castellos; refugiou-se o irmão em Toledo,
e só depois da morte d’este é que D. Affonso se acclamou rei. Uma
Satyra violenta contra os Alcaides traidores, revela-nos que já no
reinado de D. Sancho II se cultivava e reconhecia a importancia da
poesia trobadoresca. Nas Canções dos codices da Ajuda e da Vaticana
verifica-se a influencia directa do norte da França: uma traz o
retornello _Que je soy votre ome-lige_, outra imita as fórmas
épicas e chama-se _Gesta de Maldizer_, outra seguindo o gosto das
pastorellas falla no _Caminho francez_. E nos costumes da casa
real ordenava-se que só houvesse trez jograes na côrte.
Dom Affonso III deu os principaes cargos da nação aos seus partidarios,
e tratou de desfazer o seu casamento com a Condessa de Bolonha, para
casar com uma bastarda de D. Affonso o Sabio. Assim se aproximaram
as duas côrtes, principalmente quando D. Diniz tambem se mostrou
apaixonado da poesia provençal como seu avô. Ou para lisongear
Affonso o Sabio ou pela propria predilecção, D. Affonso III deu a D.
Diniz uma educação litteraria completa; o fragmento de uma Poetica
provençalesca do principio do _Cancioneiro Colocci-Brancuti_,
mostra-nos quanto eram estudados os segredos da metrificação limosina;
com intuitos de arte é que são imitados os _Lais_ bretãos, e as
_Pastorellas_ aquitanicas com as _Serranilhas_ gallezianas.
O conhecimento da arte trobadoresca fez renascer a dignidade do
que inventava a canção, do trovador sobre o jogral, que só cantava
mercenariamente. A influencia do meio-dia da França resente-se no
subjectivismo exagerado das canções de D. Diniz, em contradicção com as
suas aventuras amorosas. O gosto elevado que o monarcha mantinha pelo
lyrismo provençal foi causa da extraordinaria actividade poetica da sua
côrte, que se tornou o centro de concorrencia dos jograes e trovadores
da Galliza, de Leão, de Castella e de Aragão, aos quaes distinguia com
grande liberalidade. Até os seus dois bastardos D. Affonso Sanches e D.
Pedro figuram entre os trovadores.
Modificou-se o gosto poetico, oppondo aos typos _limosinos_ os varios
generos gallezianos, como _dizeres_, _serranas_ e _cantares de amigo_,
de uma belleza inimitavel. O motivo d’esta corrente era devido ao
encontro dos jograes gallegos, mas principalmente á concorrencia dos
jograes da Catalunha, Aragão, Leão e Castella, que inconscientemente
faziam renascer as fórmas tradicionaes do lyrismo peninsular, hoje
definidas pelo phenomeno da irradiação poetica da Aquitania. Ao fallar
d’esta corrente galleziana, escreveu o Marquez de Santillana: «d’estas
resçevimos los nombres del arte, asi como _maestria mayor_ e _menor_,
_encadenados_, _lexapren_ e _mansobre_.» No Cancioneiro de Baena, em
que ha uma forte influencia gallega, se lê: «Sin _doble-mansobre_,
sensillo ó _menor_.»
Nas luctas de D. Affonso II com suas irmãs, e nas de D. Affonso III com
a aristocracia, muitos fidalgos portuguezes refugiaram-se na Galliza,
explicando-se por esta circumstancia esse esplendor poetico da Galliza,
quando ella já não tinha autonomia politica nem acção historica. A
imitação do trovar gallego, tanto em Portugal como em Castella no tempo
de Affonso o Sabio, indica que a Galliza se tornaria uma Provença
peninsular se a posse d’esse estado não fosse duramente disputada
pelos diversos reinos unificados da Hespanha. A Galliza perdeu a
sua autonomia com a constituição das novas monarchias; e a lingua,
tornando-se uma especie de dialecto occitanico para a peninsula, decaíu
por falta de vitalidade nacional. O grande vigor poetico d’este povo
tornou a reflectir-se em Portugal e Castella no fim do seculo XIV e XV,
com Villasandino, Rodrigues del Padron e Vasco Pires de Camões.
Com a morte do rei D. Diniz, o centro da actividade poetica
deslocou-se para Castella, agrupando-se os trovadores das outras
côrtes peninsulares junto de Affonso XI, que tambem era trovador. Os
cavalleiros portuguezes continuaram a frequentar a côrte poetica de
Affonso XI, e são admiravelmente bellas as _Barcarolas_ compostas
por occasião da batalha do Salado, em que elles tão generosamente
figuraram. D. Affonso IV detestava seus irmãos bastardos, e parece
não ter protegido a cultura trobadoresca, estimando mais as fórmas
da Novella em prosa; por este despeito o Conde D. Pedro deixou em
testamento o seu _Livro das Cantigas_ a Affonso XI.
A poesia trobadoresca portugueza-galleziana parecia cahir outra vez no
automatismo popular, mas um facto politico, a tendencia separatista,
suscitou um novo fervor litterario como manifestação do seu
individualismo; brilham Macias, Rodrigues del Padron e Villasandino,
e os documentos d’esta lucta da eschola galleziana contra a imitação
do gosto italiano enchem o Cancioneiro de Baena, e explicam-nos a
natureza do conflicto que se repetiu no seculo XVI, quando Castillejos
se oppunha á invasão do lyrismo italiano propagado por Garcilasso e
Boscan. Em Hespanha a influencia petrarchista prevaleceu pela acção
da eschola sevilhana; em Portugal desconheceu-se essa influencia.
Muitas cidades da Galliza tendo abraçado o partido de D. Fernando
contra Henrique II de Castella, na esperança de alcançarem a antiga
independencia, ao perderem a causa varios fidalgos gallegos tiveram
de refugiar-se em Portugal. O principal d’entre esses emigrados
politicos era Vasco Pires de Camões, terceiro avô do grande épico
portuguez; perdeu-se uma boa parte das composições poeticas
anteriores ao Infante D. Pedro, como o confessa Resende no prologo
do _Cancioneiro geral_. O nome de Macias tornou-se em Portugal
synonimo de apaixonado; conservaram-se com grande vitalidade as fórmas
trobadorescas gallezianas, (em Gil Vicente, Sá de Miranda, Christovam
Falcão e Camões), e não será indifferente indicar que são descendentes
d’esses fidalgos emigrados da Galliza alguns dos nossos principaes
poetas quinhentistas.
=_Novellas de Cavalleria:--O Amadis de Gaula._=--Quando as Canções de
Gesta iam recebendo a fórma litteraria, decahia ao mesmo tempo a
organisação da sociedade feudal, e a lucta dos grandes vassallos contra
a realeza terminava pela impotencia diante de um elemento poderoso pelo
seu numero, o proletariado. A Gesta já não podia ser mais do que a
expressão de saudade pelo que acabava; e essa aspiração do passado era
um ideal, a Cavalleria, em que a individualidade do heroe faz lei á sua
vontade motivada por impetos de justiça. Porém, as virtudes do
cavalleiro tornaram-se _quixotescas_, desde que disciplinada a força no
exercito permanente, e convertida a justiça em ministerio publico, o
heróe comprimido entre as communas e a realeza, estava egualado no
mesmo codigo. A litteratura reflectiu esta instabilidade; a Gesta não
tendo que idealisar, decahiu na prosa e achou um novo interesse na
aventura amorosa da Novella. Segundo Victor Le Clerc e Léon Gautier,
nenhuma Canção de Gesta apparece reduzida á prosa antes do seculo XV; é
em Portugal que se inicia essa transformação na côrte de D. Diniz. A
politica do reinado de D. Diniz e a situação de Portugal explicam-nos o
phenomeno. Com a conquista do Algarve sob D. Affonso III acabaram as
expedições militares contra os sarracenos, e por tanto a intervenção do
poder senhorial. D. Diniz tirou as consequencias do facto, fazendo
renascer o direito romano na restauração dos direitos magestaticos
segundo o Digesto, e submettendo a Nobreza ao _fôro de el-rei_, pelo
estabelecimento do cadastro dos _Livros de Linhagens_. Á situação
subalterna da nobreza corresponde a maior intensidade dos divertimentos
palacianos, no lyrismo dos Cancioneiros trobadorescos, e na paixão com
que se liam as Novellas amorosas, como as de _Tristão e Brancaflor_.
Entre essas novellas figura uma mais ou menos rudimentar de um typo da
absoluta fidelidade no amor, o _Amadis_; era celebrado em França no
poema de _Amadas et Ydoine_, na Inglaterra no _Sir Amadace_, na
Hollanda, Italia e Hespanha citava-se a _Chacone de Amadis_. Vê-se por
tanto que a invenção d’este argumento novellesco não pertence a
Portugal, mas em Portugal é que recebeu a fórma em prosa litteraria
definitiva. No texto castelhano do _Amadis de Gaula_ ainda se conserva
uma canção, que se acha assignada por João Lobeira no _Cancioneiro
Colocci-Brancuti_, como vestigio da primitiva redacção portugueza.
D. Affonso IV, quando princepe e em dissidencia com seu pae, proferiu
ao subjectivismo trobadoresco as narrativas das Novellas amorosas;
este facto determinou uma nova redacção no _Amadis de Gaula_:
no capitulo 40 do livro I, do actual texto castelhano, conservou-se
a sigla da emenda mandada fazer por este princepe na estructura da
Novella em relação ao episodio de Briolanja. Esta sigla no texto
castelhano de Montalbo manifesta uma primitiva redacção; e pelo retoque
imposto pelo princepe se estabelece a relação da Novella em prosa
para com um texto poetico d’onde saíu e ao qual em outros poemas da
Edade media ha numerosas referencias. Varios poetas castelhanos do
Cancioneiro de Baena referem-se aos _trez livros_ do _Amadis de
Gaula_; a existencia do _quarto livro_, que não foi escripto
por Montalbo, é que pertencerá a Vasco de Lobeira, do tempo do rei D.
Fernando, como o affirma Azurara, attribuindo a esse tempo a redacção
da novella. Na nobreza de Portugal eram frequentes no seculo XIV os
nomes de _Oriana_ e de _Idana_ (do francez _Ydoine_), o que revela
a influencia profunda da Novella antes da sua vulgarisação pela
paraphrase castelhana.
Talvez em nenhum outro povo a imitação da Cavalleria, ou propriamente
o _Quixotismo_, penetrasse mais nos costumes do que em Portugal, onde
o nosso typo comico contraposto ao _Ratinho_ é o do _Fidalgo pobre_.
Davam-se no principio do seculo XV duas fortes correntes antagonicas na
civilisação portuguesa: a burguezia tendia á preponderancia politica
pelas magistraturas e pelas descobertas maritimas; a nobreza imitava
acintosamente os feitos de armas segundo a Cavalleria, que tinha
passado. Partiam as caravellas para as expedições das costas da Africa
e Ilhas oceanicas, e ao mesmo tempo os Paladins sahiam em desaggravo
das damas, como os Doze de Inglaterra, e os cavalleiros Gonçalo
Ribeiro, Vasco Annes e Fernão Martins de Santarem que foram correr
aventuras por Hespanha e França. As cerimonias da vida cavalheiresca
caracterisam as práticas da côrte de D. João I e de D. Duarte, e
simultaneamente domina a predilecção litteraria pelas Novellas. Para
a lingua portugueza se traduziu e paraphraseou a _Demanda do Santo
Graal_; lia-se o _Galaaz_, a ponto do Condestavel o tomar por modelo;
e na sua opulenta livraria o rei D. Duarte guardava o _Tristão_ e a
_Historia de Troia_. O _Amadis de Gaula_ exerceu certa influencia
no enthuziasmo de um renascimento tardio da cavalleria, por via
da traducção franceza. Fez-se uma vasta série de novellas em sua
continuação desde as _Sergas de Esplandian_ até _Leandro o Bello_. Mas
a corrente do renascimento erudito da Antiguidade, quando a egualdade
civil minava o feudalismo, desviava a actividade litteraria que punha
em novella um ideal ridicularisado. Montaigne fallando da sua educação
litteraria do mais exagerado classicismo, diz com entono que nem
sequer conhecia pelo titulo as principaes producções da Edade media:
«car des _Lancelot du Lac_, des _Amadis_, des _Huon de Bordeaux_, et
tel fatras de livres à quoy l’enfance s’amuse, je ne connessoys pas
seulement le nom, ny ne foys encores le corps; tant exacte estoit
ma discipline.»[204] E em outra passagem refere-se com mais desdem
ao _Amadis_: «Quant’aux _Amadis_, et telles sortes d’escripts, ils
n’ont pas eut le credit d’arrester seulement mon enfance.»[205] Dos
humanistas da Renascença e dos moralistas catholicos poderiamos extraír
condemnações analogas. O enthuziasmo das obras primas da civilisação
greco-romana envolveu em um desprezo mortal todas as tradições, poemas
e novellas da Edade media. No primeiro quartel do seculo XVI já o Dr.
João de Barros, nas _Antiguidades de Entre Douro e Minho_, fallando do
desprezo em que decahira o original portuguez do _Amadis de Gaula_, de
cuja redacção os hespanhóes se apoderaram, lamenta--que estas cousas se
sequem nas nossas mãos.--Era a consequencia do esplendor dos estudos
humanisticos, de que fomos corypheos no seculo XVI. A persistencia do
ideal cavalheiresco em Hespanha explica-se por uma mais numerosa e
opulenta aristocracia e por um intenso catholicismo que lhe tornára
antipathica a civilisação polytheica, e suspeitos de heresia os
humanistas.
=2.^o Periodo (Seculo XV):=
=_Os Poetas palacianos._=--Com o desenvolvimento da erudição
augmenta dia a dia a separação entre os escriptores e o povo. Com o
predominio da realeza que avança para a dictadura, a _côrte_
torna-se centro de todas as manifestações artisticas, reduzidas a
imitações banaes. Desde o reinado de D. Affonso IV até ao de D.
Duarte, dá-se uma grande mudez na poesia portugueza: duas poderosas
correntes disputavam a predilecção dos espiritos; era uma a do lyrismo
da eschola gallega, e a outra a das ficções do cyclo da Tavola Redonda
propagadas pelos aventureiros do bretão Du Guesclin, e tambem pelo
casamento de D. João I com uma filha do duque de Lencastre. Absorvidos
nos primeiros alvores da Renascença, e mais apaixonados da erudição
da antiguidade do que das tradições medievaes, estacámos na imitação
do que estava mais no gosto palaciano. Separados de Castella por
interesses dynasticos que visavam a unificação politica, ficámos,
depois da victoria de Aljubarrota, vacilantes entre o lyrismo
galleziano e as aventuras novellescas do genio celtico, ao passo que
os Castelhanos avançaram na poesia continuando a tradição provençal
reanimada com o platonismo da Italia e com as allegorias dantescas.
Ainda a tradição provençal pura procurou manter-se nos costumes, como
se vê pela fundação do Consistorio del Gay-saber, em Barcelona, em
1393; mas a nova transformação dantesca e petrarchista seguida pelos
poetas Jordi de Saint Jordi, André Fever, traductor da _Divina
Comedia_ em catalão, Ausias March, Rocaberti, como precursores de
Bocan e Garcilasso, determinou a superioridade do lyrismo hespanhol no
seculo XV.
Quando terminaram os odios politicos entre Portugal e Castella,
reconheceu-se que nos passára desapercebida a evolução operada
na poesia desde Micer Imperial até Juan de Mena. Começou pois a
influencia da poesia castelhana sob a regencia do Infante D. Pedro,
duque de Coimbra.
Antes porém do influxo de Juan de Mena, amigo pessoal do regente,
a tradição provençalesca avivára-se um pouco e indirectamente na
côrte portugueza, pelas relações com a côrte de Aragão motivadas
pelos casamentos do rei D. Duarte e infante D. Pedro com princezas
aragonezas. Na Livraria do rei D. Duarte, guardavam-se traducções
aragonezas da _Historia de Troya_ e de _Valerio Maximo_.
O Condestavel de Portugal, que foi rei de Aragão, por 1464, possuia
entre os seus livros as poesias de Petrarcha, e escrevia os seus versos
no gosto allegorico. São d’este desgraçado princepe e rei deposto, as
outavas em fórma castelhana do _Menosprecio do mundo_, attribuidas
erradamente a seu pae o infante D. Pedro, e as pequenas elegias que sob
a rubrica de _Elrei D. Pedro_ (sc. de Aragão) foram attribuidas a
D. Pedro I. Póde bem considerar-se o Condestavel de Portugal o chefe
d’esta eschola allegorica, a que pertencem os poetas que no tempo de
D. Duarte e D. Affonso V floresceram na ilha da Madeira, então centro
da aristocracia insulana. O Condestavel D. Pedro escreveu no genero
allegorico a _Satyra de felice e infelice vida_, em que as paixões
e os pensamentos são personificados em figuras de mulheres.
Nos poetas do Cancioneiro de Resende, em que prevalece a imitação
castelhana, distingue-se essa eschola allegorica perfeitamente
caracterisada em Duarte de Brito, que começa a sua visão perdido e
embalado pelo canto de um rouxinol; como reminiscencias da _Divina
Comedia_ descreve minuciosamente o inferno dos namorados, veste a
figura da esperança com todos os seus ornatos symbolicos, adopta as
figurações mythologicas da astronomia, e já desenvolve as imagens como
que em pequenos poemas a que chama comparação. Na poesia castelhana
o _Inferno de Amor_ de Garci Sanches de Badajoz tornou-se o
modelo d’este genero de idealisação; o mesmo typo foi tambem imitado
por Fernão Brandão na formosa poesia _Fingimento de amores_. Os
caracteres do gosto allegorico manifestaram-se livremente nos processos
amorosos dos serões do paço, como o do _Cuidar e suspirar_,
pallido arremedo das _Côrtes de Amor_ da tradição provençalesca.
Esta eschola extinguiu-se, por que não foi fecundada pelo influxo do
neo-platonismo com que Dante e Petrarcha converteram os rudimentos
trobadorescos no esplendido lyrismo italiano que dominou todas as
litteraturas romanicas desde o seculo XV.
Depois de acabadas as luctas com Castella, e que se conheceu o
esplendor da poesia nas côrtes de Juan II e Enrique IV, já não era
possivel attingir-se aquella altura; deslumbrados, imitámol-a e
escrevemos em castelhano. O infante D. Pedro escrevia em verso a Juan
de Mena, e pedia-lhe a collecção das suas obras; em Portugal, já no
principio do seculo XVI, ainda era citado Juan de Mena como o exemplo
do poeta de côrte, _medrado_ pelo favor dos reis. As obras do
Arcipreste de Hita foram traduzidas em portuguez, como se conhece pelo
fragmento da Bibliotheca do Porto; as obras do Marquez de Santillana
eram enviadas para Portugal ao Condestavel D. Pedro, a quem dirigia
uma Carta com a filiação das escholas poeticas. Os Cancioneiros
aristocraticos encerram documentos da communicação das duas côrtes,
que avançavam para a unificação politica por casamentos reaes; no
_Libro de Cantos_, manuscripto da Bibliotheca de Madrid, acham-se
composições de cinco fidalgos portuguezes; no _Cancionero general_
de Hernan de Castillo figuram bastantes poetas portuguezes, e foi
essa collecção o modelo que seguiu Garcia de Resende. No Cancioneiro
portuguez já apparecem traducções do latim, como as _Heroides_ de
Ovidio, e já se tiram comparações da mythologia.
Dava-se no seculo XV na Europa um phenomeno politico, que acabou de
tirar á poesia a sua expansão natural, tornando-a uma insignificativa
bajulação dos aulicos; fixára-se o poder real por uma forte dictadura,
e acabára a lucta dos grandes vassallos que procuravam manter a
independencia senhorial do regimen feudal. O infante D. Pedro foi a
nobre victima n’esta lucta, que se renovou sob D. João II, e terminou
pela execução do duque de Bragança e pelo assassinato do duque de
Vizeu. A imitação exclusiva da poesia castelhana era uma especie de
reacção da nobreza, tendendo para a unificação politica sob Fernando e
Isabel; a poesia era um passa-tempo da côrte, que servia para celebrar
as anecdotas da occasião e encher a inanidade da vida aulica. O numero
pasmoso dos poetas aristocraticos revela a frivolidade da inspiração,
que se explica pelo desconhecimento do lyrismo italiano, em que nos
conservavamos, apezar das relações litterarias e commerciaes que
Portugal desenvolveu com a Italia n’este tempo.
=_Os Historiadores portuguezes._=--Com o poder real creava-se
tambem a nova fórma litteraria da Historia, á imitação dos antigos, que
deixaram memoria dos grandes feitos; era natural que se preferisse para
a sua redacção a linguagem latina, pela illusão da sua universalidade.
Por 1434 encarregou o rei D. Duarte a Fernão Lopes de reduzir a
Chronica as memorias dos antigos reis de Portugal; é um narrador
ingenuo como Froissart ou Villani; do seu trabalho se foram apropriando
Azurara, Ruy de Pina, Duarte Galvão e Duarte Nunes do Leão. O prurido
da erudição começa propriamente em Gomes Eannes de Azurara, que deturpa
assim a fórma pittoresca das suas impressões directas das pessoas e
dos logares. Em Ruy de Pina ha já o intuito politico, narrando os
successos como convinha ao monarcha que o assoldadára, que elles fossem
conhecidos. Em uma carta de João Rodrigues de Sá a Damião de Góes
lê-se: «o estylo de Ruy de Pina pelos muitos adjectivos e epithetos que
se usavam n’aquelle tempo, he muito affeitado.» Cahira-se na imitação
do peior modelo da antiguidade, tomando por norma a rhetorica de Tito
Livio.
NOTAS DE RODAPÉ:
[204] _Essais_, liv. I, cap. 25.
[205] _Ibid._, liv. II, cap. 10.
SEGUNDA ÉPOCA
(SECULOS XVI A XVIII)
Predominio da imitação da Antiguidade classica, e abandono das
Tradições nacionaes
=1.^o Periodo: Os Quinhentistas (Seculo XVI):=
PARTE I: _Poetas da Medida velha._--A tendencia allegorica da ultima
phase da poesia palaciana era um prenuncio da sua transformação. Qual
seria ella, comprehendeu-o superiormente Sá de Miranda inspirando-se
das obras primas do lyrismo italiano. Antes porém de generalisar-se em
Portugal o gosto d’essa nova poetica, mais subjectiva, manifestou-se
uma reacção contra os innovadores; o combate não se feriu por alguma
theoria de arte ou concepção de ideal, versava apenas na preferencia
que se devia manter ao verso octonario ou da _medida velha_ das
redondilhas, com exclusão do endecasyllabo. O titulo de Eschola da
Medida velha, designa cabalmente o periodo que antecedeu o regresso de
Sá de Miranda da Italia, no qual os poetas palacianos pela imitação das
allegorias dantescas e já pelo conhecimento da Renascença classica,
sem abandonarem as fórmas da poetica hespanhola adoptam o estylo de
Theocrito assimilado pelos bucolicos italianos. Bouterwek considera
a poesia pastoril portugueza immensamente bella; não resultou esta
perfeição de imitações litterarias, mas da aproximação inconsciente
das fontes tradicionaes. Nos costumes populares da Peninsula
mantinha-se a fórma dialogada dos _Villancicos_, que coadjuvava a
naturalisação e desenvolvimento da Ecloga litteraria. Observa-se essa
persistencia nos cantos lyricos intercalados por Gil Vicente nos seus
_Autos_; e o conhecimento das Pastorellas e Serranilhas gallezianas
era ainda o que tornava bellas as redondilhas de Christovam Falcão,
de Sá de Miranda e de Camões. Este periodo de transição no gosto
apoia-se na sympathia dos poetas pelos elementos tradicionaes das
pastorellas. Bernardim Ribeiro é o corypheu dos bucolistas, conhecedor
dos Villancicos e Romances populares, a que deu fórma allegorica; soube
alliar a naturalidade com os dialogos pastorís, a profundidade do
sentimento com a simplicidade. A belleza inexcedivel das suas Eclogas
resulta da realidade palpitante dos desgraçados amores com _Aonia_,
a sua prima D. Joanna Zagalo. Pela amisade com Sá de Miranda, chegou
a conhecer a eschola italiana, a _nova frauta_, de que faz menção a
_Ecloga Aleixo_, onde Miranda descreve a sua desgraça.
Depois de Bernardim Ribeiro, foi o seu intimo amigo Christovam Falcão
o que levou mais alto o esplendor d’este lyrismo hispano-italico;
a ecloga _Crisfal_, em que pinta o desventurado amor com D.
Maria Brandão, irmã mais moça dos dois poetas do _Cancioneiro
geral_ Diogo e Fernão Brandão, não tem cousa que se lhe compare nas
litteraturas da Europa.
Tambem se explicará a sua superioridade pela aproximação dos elementos
tradicionaes do lyrismo portuguez: no _Crisfal_ vem intercalado
um _canto de ledino_.[206] Todos os outros poetas quinhentistas,
á excepção do Dr. Antonio Ferreira, começaram os seus tentames pela
redondilha popular, designada litterariamente trova ou verso de
Cancioneiro.
Sá de Miranda, que escreveu bellissimas Eclogas e Cartas em
redondilhas, satyrisou os que tanto reagiam contra a nova poetica
italiana, e condemnava os que mantinham o uso anachronico de uma triste
_Esparsa_, de uma _Glosa_ ou _Mote_ velho, de uma pobre _Volta_ com
seu _Cabo_. A moda palaciana sustentava o estylo de Cancioneiro, por
uma tradição aristocratica. Em uma carta de Soropita, escripta depois
de 1589, caracterisa-se esta especie de metrificadores: «Achei n’esta
companhia a saber ... um poeta ancião, ainda pela _medida velha_.»
Devem comprehender-se sob esta designação propriamente os poetas que
antipathisavam com a novidade vinda de Italia, pelo terror pelas ideias
da Reforma; e tambem os que tiveram certa communicação com o povo, para
quem compunham redondilhas moraes e romances com fórma litteraria.
Pertencem á primeira cathegoria, D. Luiz da Silveira, Jorge Ferreira de
Vasconcellos e Garcia de Resende; na segunda sobresae o vulto gigante
de Gil Vicente, cujas _Obras meudas_ se perderam. Nos seus Autos
acham-se romances em redondilhas, que entraram na corrente popular como
o _D. Duardos_, e bellas serranilhas semelhantes aos typos dos nossos
Cancioneiros trobadorescos. As _Trovas do Moleiro_ de Luiz Brochado,
os _Arrenegos_ de Gregorio Affonso e _Avisos para guardar_, do Chiado,
tornaram-se vulgares; as _Trovas_ de Gonçalo Eannes Bandarra, com a
fórma rudimentar de eclogas, chegaram a actuar na sociedade portugueza,
como se lê no seu processo do Santo Officio. As redondilhas do poeta
cego Balthazar Dias, taes como _Malicia das Mulheres_, _Conselhos para
bem casar_, não fallando dos seus Autos hieraticos, ainda hoje formam
parte essencial da Litteratura de cordel, ou popular.
=_Novellas de Cavalleria e Pastoraes._=--Sob o dominio da
erudição da Renascença, e com um aspecto apparentemente contradictorio,
desenvolve-se uma certa actividade na elaboração de Novellas
cavalheirescas, d’onde proveiu o vasto cyclo dos _Palmeirins_.
Mas a contradicção concilia-se, por que essas novellas pretendiam
continuar as tradições medievaes conjunctamente com as do cyclo
greco-romano, prestando-se a um facil emprego d’esse extraordinario
prurido rhetorico dos escriptores da Renascença. Além d’isso, influiu
tambem a predilecção das damas, como na côrte de Francisco I, ou
junto da infanta D. Maria na côrte de D. João III. Dentro d’este meio
facticio a pressão erudita leva a novella cavalheiresca a fundir-se
com as lendas pseudo-nacionaes. Assim, na _Chronica do Imperador
Clarimundo_ João de Barros syncretisa as lendas de Ulysses, pensando
em assentar a mão e fixar o estylo rhetorico para escrever dos
descobrimentos portuguezes nas _Decadas da Asia_. A influencia
feminina sustentava o gosto das Novellas, que decahia pela preferencia
da erudição. Do principal romance d’este cyclo, o _Palmeirim de
Oliva_, diz Ticknor: «quasi geralmente admittido que se escreveu
originariamente em portuguez e é o obra de uma senhora.»[207] N’este
cyclo de novellas, os cavalleiros são oriundos da Grecia, e para
conciliar o gosto pelo genero bucolico de Theocrito e Virgilio,
esses mesmos cavalleiros passam a infancia em casa de pastores, que
os accolheram por os terem encontrado abandonados. Foi no regresso
da côrte de Francisco I, que o secretario da embaixada Francisco de
Moraes offereceu á infanta D. Maria a sua novella do _Palmeirim de
Inglaterra_, por 1543, seguindo-se logo a traducção castelhana,
na qual Luis Hurtado confessa ser fructo de _agenos huertos_. A
rhetorica dissolveu este cyclo novellesco em prolixos e illegiveis
volumes.
Uma vez perdido o ideal cavalheiresco e esquecida a Edade media,
a Novella vagueava entre os interesses burguezes, que vieram a
idealisar-se no _Romance_ moderno, e a imitação dos quadros de
convenção da vida pastoral, e as allegorias a successos e intrigas
palacianas. O genero da Novella pastoral tem o seu typo na _Daphnis
e Chloé_ de Longus, revivescido na _Arcadia_ de Sanazzaro;
as allegorias foram empregadas como recurso para dar interesse á
ficção. A pastoral mais bella que possuimos é a _Menina e Moça_,
de Bernardim Ribeiro, em que descreve allegoricamente os desgraçados
amores de _Aonia_ e _Bimnarder_ (sua prima D. Joanna Zagalo
e elle Bernardim,) e de _Arima e Avalor_ (D. Alvaro Velez de
Guevara e D. Maria Alvares Zagalo, tia de _Aonia_.) A pastoral
mais conhecida na Europa, e que chegou a formar um cyclo novellesco
é a _Diana_ de Jorge de Monte-mór, continuada por Gil Polo
e por Tejada; é tambem uma allegoria aos amores do poeta. Fernão
Alvares d’Oriente imitou directamente Sanazzaro; o genero decahiu na
insipidez, como se vê no _Desenganado_ e _Pastor peregrino_,
de Rodrigues Lobo, e nos disparates dos _Desmaios de Maio_, de
Diogo Ferreira Figueirôa, nas _Ribeiras de Mondego_ de Eloy
de Souto Mayor, e nos _Crystaes d’alma_, de Escobar. Pelos
Indices Expurgatorios conhece-se a existencia de muitas novellas
allegoricas que se tornaram mysticas, como _Pé de rosa fragrante_,
_Cerva branca_ e outras. Um dos typos mais completos do genero
é a _Historia do Predestinado Peregrino_, imitada d’essa
extraordinaria allegoria ingleza _Pilgrim’s Progress_, de Bunyan,
que o jesuita Alexandre de Gusmão apropriou tomando-a do auctor
anabaptista. Continuou esta corrente no seculo XVIII, como vêmos no
_Feliz Independente_, do P.^e Theodoro de Almeida, misturando
com a imitação de Fénélon o deismo da sua época, e no _Piolho
viajante_ de José Daniel, ficção picaresca não com a pujança
pittoresca de Mendoza e Quevedo, mas como um producto morbido de uma
sociedade imbecilisada pelo mais degradante cesarismo.
Os Contos da Edade media, ou Fabliaux, que receberam fórma litteraria
no _Decameron_ de Boccacio, conciliam-se com os Exemplos da
antiguidade classica, tomados de Valerio Maximo; os prégadores
catholicos empregam-os com intuito moralista. A obra mais capital
d’esta transformação é a collecção de Gonçalo Fernandes Trancoso,
_Historias de Proveito e exemplo_, livro inestimavel, escripto
durante o terror da _Peste grande_ em 1569, e quando o pobre
mestre eschola acabava de perder mulher e filhos, como o confessa em
uma carta á rainha D. Catherina. Este livro manteve-se no gosto publico
até meados do seculo XVIII. Ahi se lê o celebre conto da Edade media,
a paciencia de _Griselidis_, que appareceu referido no _Miroir
des Femmes_ e universalisado depois no _Decameron_. A redacção
de Trancoso egual á castelhana de Timoneda, deriva de um texto italiano
anonymo publicado sem data. Nos anexins populares repete-se: «Pelo
marido vassoura; pelo marido senhora,» referindo-se ás situações
emocionantes d’esse conto. Outros anexins, como: _Minha mãe_,
_calçotes_, acham-se desenvolvidos por Trancoso.
=_Gil Vicente e as origens do Theatro nacional._=--Era Gil
Vicente um eminente poeta lyrico, como se vê pelas suas serranilhas,
que elle mesmo punha em musica; era um notavel philologo, citado como
auctoridade nas _Grammaticas_ portuguezas de Fernão de Oliveira e
João de Barros; era um racionalista, sendo pelos seus Autos, e dentro
da orthodoxia um dos precursores da Reforma. No seu genio satyrico
revela o alto senso commum com que retratou todos os vicios do seu
tempo, todos os abusos da organisação social, que dia a dia ia sendo
invadida pela ambição clerical. Para um homem com todos estes dotes,
a vida tinha de ser fatalmente uma lucta; luctou em quanto o protegeu
a rainha D. Leonor, viuva de D. João II, e morreu proximo se não no
mesmo anno em que entrou a Inquisição em Portugal. O ourives-lavrante
da rainha D. Leonor, Gil Vicente, era tio do poeta, que por sua
influencia veiu de Guimarães para Lisboa e cursou os estudos de
Artes em que recebeu o gráo de _Mestre_ (como se lhe chama no
Cancioneiro de Resende). Ainda por influencia de seu tio Gil Vicente
ourives, frequentou a côrte de D. João II, e por convite da rainha é
que elle compoz os seus primeiros Autos hieraticos, que se tornaram um
divertimento palaciano.
O theatro de Gil Vicente é a vida do povo escripta para os serões do
paço, como quem expunha ao monarcha, que andava longe da realidade,
a existencia de soffrimentos dos que trabalhavam sem garantias. Ali
apparecem todos os costumes da Edade media portugueza, as superstições,
os anexins, os jogos, as pragas, as cantigas, as danças, os romances;
os typos da alcaiota, da bruxa, do judeu casamenteiro, do cigano, do
frade unctuoso, do astrologo, do escholastico, do fidalgo pobre, do
lorpa ou ratinho, tudo isso apimentado com essa soltura da linguagem
medieval, que não arranhava os ouvidos das damas da côrte. Quando
vêmos como se passava o tempo nas côrtes europêas do fim da Edade
media; como foram compostas as _Cem Novellas novas_ de Luiz XI,
o _Heptameron_ da rainha de Navarra, os exemplos obscenos de
La Tour Landry para moralisar suas filhas, temos a explicação das
desenvolturas de Gil Vicente, e do gosto que ellas lisongeavam nas
côrtes de D. Manoel e D. João III. O grande artista teve um intuito
superior nos seus Autos, que os torna dignos de estudo, além do merito
de serem a iniciação e fórma evolutiva do theatro nacional: luctava
pela independencia do fôro civil contra o fanatismo religioso, e contra
o parasitismo aristocratico que vivia de capitanias, alcaidarias e
commendas. Os humanistas (_alguns homens de bom saber_) atacaram
a fórma rude dos seus Autos; elle confundiu-os com a farça de _Inez
Pereira_, verdadeiramente molieresca. O seu genio dramatico
manifestou-se em um meio deprimente, a côrte, em que era admirado o
pedantismo humanista e em que prevalecia a intolerancia religiosa, que
por vezes lhe queria impedir a palavra, como se viu quando se oppuzeram
a que recitasse o _Sermão_ em verso pelo nascimento do infante D.
Luiz. Mas os seus Autos tornavam-se uma necessidade na côrte sempre
aterrada com as contínuas pestes com que no seculo XVI Lisboa era
devastada. No meio da mortandade geral, a côrte fugia para Santarem,
para Almeirim, para Coimbra, para Evora; Gil Vicente era chamado
para distrahir os serões do paço: de uma vez chegou a ir representar
a Coimbra, ainda doente, tendo a peste em casa, como elle proprio o
declara. Por que triumphou a obra de Gil Vicente, apezar do antagonismo
classico, da reacção catholica dos Indices Expurgatorios, das
tragicomedias jesuiticas e do grande perstigio das comedias hespanholas
de _capa y espada_? Para que a fórma de Auto seduzisse espiritos
como os de Camões, e se impuzesse á litteratura desde o seculo XVI a
XVIII, era preciso que tivesse raizes profundas na alma portugueza;
e tinha-as, por que eram as tradições de que o genio de Gil Vicente
soube apropriar-se. Aonde Gil Vicente representou os seus Autos, ahi
parece ter fundado eschola: em Evora, vamos encontrar seguindo as suas
normas, Antonio Ribeiro Chiado, seu irmão Jeronymo Ribeiro, Gaspar
Gil Severim e Braz de Resende; em Santarem, desenvolve-se o talento
dramatico de Antonio Prestes, que tambem como o mestre prégou as
ideias da Reforma; o diacono e mulato Antonio Pires Gonge, e Manoel
de Sousa Nogueira, que sustentou a eschola até ao seculo XVII. Em
Coimbra, apezar da corrente erudita dos Collegios e das representações
de tragedias latinas, a influencia de Gil Vicente não foi extincta;
para os divertimentos escholares é que escreveu Camões o _Auto dos
Amphytriões_. Em Lisboa, fundaram-se os primeiros _Corros_ ou
_Pateos de Comedias_, e as representações dramaticas tornavam-se
uma necessidade da vida burgueza, que um privilegio exclusivo a favor
do Hospital de Todos os Santos explorava como subsidio. Á eschola
do Auto pertencem Gil Vicente de Almeida, neto do poeta, auctor do
_Auto da Donzella da Torre_ e da _Comedia dos Cativos_;[208]
tambem, Simão Garcia, auctor do _Auto do Pé de prata_, de 1557,
Antonio Peres, auctor de comedias manuscriptas, Frei Antonio de
Lisboa e Balthazar Dias, cujos Autos de _Santa Barbara_, de
_Santo Aleixo_, de _Santa Genoveva_, estão ainda em vigor
nas representações aldeãs, e constituem esta eschola lisbonense.
O povo entristecido pelas fogueiras da Inquisição e pelas fôrcas
do absolutismo, ficou sem festas nacionaes, e o unico desafogo que
conservou encontrou-o nos seus Autos hieraticos e farças tradicionaes.
PARTE II: _A Eschola italiana._--Na transição affectiva da Edade
media operava-se uma synthese lenta na civilisação europêa, ou
unidade que tende a realisar no seu destino: a poesia trobadoresca
iniciára, como diz Quinet, a egualdade perante o amor; pela emancipação
das classes servas e luctas do Terceiro estado estabeleciam-se as
bases para a unidade politica; apezar da depressão religiosa, o
sentimento christão ainda inspira uma acção commum nas Cruzadas, e
dá ensejo ao ultimo emprego da intervenção da força na liga contra
os Turcos; as grandes navegações, o estabelecimento do regimen
colonial e do credito, preparam a unidade economica. A dictadura
monarchica, desvairada pelos interesses dynasticos, é que separava
as nações por um systema de guerras alimentadas pela chimera da
_Monarchia universal_. N’este periodo brilhante da Renascença,
as Litteraturas romanicas tendem para uma certa unidade esthetica,
imitando-se mutuamente. A Italia occupou n’este momento da civilisação
um logar analogo ao que Roma conservou depois da sua queda durante a
transição da Edade media, em que a letra dos seus codigos continuava
a sua supremacia; a Italia, depois de subjugada pela Allemanha e
pela França, viveu pela Arte, dominou os seus invasores pelo influxo
esthetico. A poesia italiana era um desenvolvimento do lyrismo dos
trovadores, menos casuistico e mais philosophico; todos os povos
modernos que tinham conhecido o lyrismo trobadoresco acceitaram a nova
expressão do sentimento, e a Italia ficou como que a Grecia do mundo
moderno. Faziam-se viagens á Italia como em santa romagem para sentir
de perto a antiguidade, para se repassarem do espirito da cultura
latina, para observarem a sumptuosidade sensual da Renascença. Os
monarchas eram educados por pedagogos italianos, como Francisco I,
amigo de Benvenuto Cellini; procuravam attrahir para as suas côrtes os
grandes artistas, como Henrique VIII a Ticiano e a Raphael; davam suas
filhas em casamento a princepes italianos, como D. Manoel concedendo
a infanta D. Beatriz ao duque de Saboya. Os filhos das principaes
familias de Portugal, como Luiz Teixeira, João Rodrigues de Sá e
Ayres Barbosa, iam completar os seus estudos á Italia, sob a direcção
de Angelo Policiano; ou a frequentar a lição dos jurisconsultos, que
as Universidades pagavam principescamente. Em uma comedia de Jorge
Ferreira chasquêa-se d’esta monomania da viagem á Italia.
=_Sá de Miranda e a Pleiada portugueza._=--O momento definitivo
em que a poesia italiana influenciou em Portugal, fixa-se no
regresso de Sá de Miranda da viagem em que percorrera Roma,
Veneza e Milão «em tempo de hespanhóes e de francezes,» isto é,
desde 1521 a 1527. Durante a sua digressão artistica Sá de Miranda
praticou com Ruscellai e com Luctancio Tolomei; vinha fascinado com
os _Assolanos_ de Bembo, com as phantasias cavalheirescas do
_Orlando_, enlevava-o o platonismo de Petrarcha e de Dante, cuja
relação com os trovadores provençaes lhe era já conhecida; vinha
desvairado pela exuberancia de vida e de alegria da saturnal da
Renascença, que o seu espirito catholico condemnava. Quando regressou
á côrte portugueza, tinham acabado os serões do paço, onde ouvira
poetar ainda D. João de Menezes; quiz ensaiar os novos metros, receioso
de ir de encontro á auctoridade perstigiosa da poetica hespanhola,
abonava-se com o exemplo de Garcilasso, e indicava como o proprio
Petrarcha derivou o seu lyrismo dos provençaes. Os partidarios do verso
octosyllabo tinham pelo seu lado os poetas palacianos, e a suspeição
contra as ideias da Reforma. Em volta de Sá de Miranda foram-se
agrupando os novos, como D. Manoel de Portugal, Francisco de Sá de
Menezes, Pedro de Andrade Caminha, Diogo Bernardes, Agostinho Pimenta,
o Dr. Antonio Ferreira e Jorge de Monte-mór, e por ultimo André Falcão
de Resende; pelos seus ensaios poeticos estreitavam uma encantadora
amisade formando uma _Pleiada_ egual á franceza, não menos
sympathica e innovadora.
A Eschola italiana era combatida pelos sectarios da poetica de Encina
que preferiam escrever em _castelhano_, e pelos eruditos, que se
vangloriavam de metrificar em _latim_. O Dr. Antonio Ferreira
foi o que mais propugnou pelo uso da lingua portugueza. Desgostado da
côrte, Sá de Miranda retirou-se para a vida confinada da provincia,
moralmente alquebrado antes de tempo; distrahia-se em amenas conversas
com Antonio Pereira, o senhor de Basto, na sua quinta da Tapada, lendo
no remanso campestre os mais bellos exemplares da poesia italiana.
Ali lhe iam ter as poesias de Caminha, de Bernardes, de Ferreira, e o
princepe herdeiro D. João, que começava a sympathisar com a poesia,
instava para que lhe mandasse a collecção dos seus versos. Por
trez vezes lhe enviou cadernos das suas composições para comprazer
amavelmente com a curiosidade do princepe, que mandava tambem a Evora o
seu secretario Luiz Vicente copiar os versos de Fernão da Silveira.
Por falta de um ideal superior a poesia lyrica tornou a cahir no
mais acanhado personalismo; vertiam-se excerptos de Anacreonte e
de Moscho, e odes de Horacio. Porém entre estes Quinhentistas que
se admiravam na mais beatifica ingenuidade, que se louvavam em
todos os seus versos, que se chrismavam com nomes bucolicos, que
eram camareiros-móres, desembargadores, commendadores, apparecia um
homem de genio, irreverente, travesso, sem fumos de erudição nem de
gerarchia, que se identificou com a Renascença pelo seu espirito de
rehabilitação da Natureza, e que amou a Edade media para agradar ás
damas; era Camões, que teve a comprehensão suprema da poesia italiana.
Os outros poetas fecharam-lhe o accesso ao princepe D. João e guardaram
silencio absoluto em volta do seu nome; Caminha satyrisa-o duramente
alludindo ao verso dos _Lusiadas_: «Dae-me uma furia grande e
sonorosa;» Bernardes indicando o nome dos poetas que devem formar um
grande Cancioneiro que projecta, não só omitte o nome de Camões, como
tambem se apropria de alguns sonetos, eclogas e do poemeto de _Santa
Ursula_, talvez desmembrados dos manuscriptos roubados a Camões.
Apenas Falcão de Resende, que o conheceu na desgraça e doença, lhe
dedicou uma composição moral ou satyra contra os costumes.
=_Camões, e sua Eschola lyrica e épica._=--Sabe-se pela genealogia
de Camões, que fôra seu terceiro avô um trovador-fidalgo da Galliza,
tendo por parte de sua mãe parentesco com a familia dos Gamas, do
Algarve. N’esta orientação ethnica discorre a sua vida: o genio
galleziano revela-se na sua superioridade lyrica sobre todos os outros
quinhentistas; a tendencia cosmopolita que o levou por toda a extensão
do dominio portuguez era essa mesma que fez com que do Algarve sahissem
as primeiras caravellas para as descobertas das costas da Africa e
das ilhas do Mar Tenebroso. Ainda no seculo XVI formou-se em volta de
Camões uma eschola de imitadores, que souberam dar mais sentimento e
harmonia ás fórmas italianas. Os versos lyricos de Camões só começaram
a ser impressos quinze annos depois da sua morte; reunira-os sob o
titulo de _Parnaso_, mas foi-lhe esta collecção furtada logo que
chegou a Lisboa em 1570; os editores suppriram esta perda explorando
as collecções particulares, como as de Luiz Franco, Manoel Godinho,
Antonio de Abreu; e assim se explicam tambem os plagios de Bernardes e
de Fernão Alvares d’Oriente. Percorrendo-se as collecções manuscriptas,
raro será o poeta quinhentista que não tenha com o seu nome versos que
ou pertenceram ou foram attribuidos a Camões. Por este syncretismo
litterario se vê, que o gosto e a imitação camoniana levavam os
colleccionadores a estes equivocos, ou os plagiarios a uma apropriação
irresistivel. Era-se _camoniano_ no fim do seculo XVI, como na
época das Arcádias se era _elmanista_. O amor e a philosophia
neo-platonica revelaram a Camões a belleza da poesia italiana, em cuja
imitação se exercitára ainda na vida escholar de Coimbra, como se
vê pela _Elegia da Paixão_; na frequencia do paço foi levado a
acceitar a _medida velha_, escrevendo voltas, glosas e endechas,
aproximando-se espontaneamente das fontes tradicionaes: cita romances
populares, reproduz fórmas encantadoras do lyrismo galleziano e mostrou
um conhecimento directo da ecloga _Crisfal_. A sua inspiração
veiu-lhe do contacto da realidade: a vida aventureira na Africa, na
India, na China, nas Molucas, nos cruzeiros, nos naufragios, nos
hospitaes e nos carceres, não lhe dava tempo, nem logar para compulsar
classicos gregos e romanos, os grandes poetas italianos e hespanhóes, e
a seguir servilmente modelos auctorisados. Subtrahiu-se assim áquella
causa que tornou em parte mediocres os Quinhentistas. O contacto da
realidade bastou para lhe dar essa melancholia indefinivel, essa
tristeza da fatalidade e o protesto eloquente que solta por tudo quanto
é verdadeiro e justo. O ideal era o seu refugio; _Natercia_, era
uma realidade, e como elle não comprehendia o amor sem tempestades
e ruinas, a sua vida dispendeu-se nos accidentes d’esta realidade
profunda.
A perfeição do lyrismo de Camões exerceu uma influencia immediata;
seguiram-o os lyricos Heitor da Silveira, Simão da Silveira, Estacio de
Faria, Antonio de Abreu, André de Quadros, André Falcão de Resende, D.
Manoel de Portugal, Vasco Mousinho de Quevedo, Balthazar Estaço e Diogo
de Couto, que começou a fazer um commentario aos _Lusiadas_. A
naturalidade e verdade da sua inspiração foi comprehendida pela nação,
que estava incorporada na unidade hespanhola pela Casa de Austria;
serviu de alento ao sentimento de patria e de estimulo á sua autonomia.
O valor da obra de Camões resume-se na eloquente phrase de Schlegel:
Camões é uma litteratura inteira.
No seculo XVI appareceu nas principaes litteraturas da Europa a
preoccupação de uma Epopêa moderna, individual, academica, pautada
pelos moldes virgilianos. Estavam esquecidas ou diluidas em novellas as
grandes Gestas francezas; faltava um assumpto que servisse de thema ao
ideal heroico, e fosse compativel com a sympathia da sociedade moderna;
por isso os poetas francezes, italianos e hespanhóes malbarataram
esforços sem conseguir essa creação esthetica. Camões deu fórma á
moderna Epopêa, por que idealisou o facto capital--a posse da terra
e a lucta do homem com a natureza, d’onde deriva a civilisação da
Europa na sua synthese activa. O assumpto dos _Lusiadas_ tinha
sido entrevisto por outros espiritos, mas faltou-lhes as condições
para attingirem a fórma eterna. João de Barros no _Panegyrico_
a D. João III, falla da necessidade de um poema das Navegações
portuguezas, e no _Clarimundo_ chega a esboçar quarenta outavas
sobre o grande quadro. Os chronistas Damião de Góes e Castanheda
reconhecem que é necessario uma fórma mais solemne que a da historia
para a exaltar as navegações portuguezas; o poeta Antonio Ferreira
incita Caminha a essa empreza; Jorge de Monte-mór tentava um poema do
_Descobrimento da India oriental_, e Pedro da Costa Perestrello
rasga com desespero o seu poema sobre a expedição de Vasco da Gama,
quando viu os _Lusiadas_ de Camões, como conta Faria e Sousa.
Camões realisando esta intensa aspiração seguiu o typo virgiliano,
que o gosto do tempo exigia; mas salvou-o a intuição do genio, com que
soube agrupar em volta do facto historico todas as bellas tradições
e lendas da nacionalidade portugueza. É isto o que o distingue dos
outros poetas épicos, que julgaram fazer epopêas pondo as chronicas
em verso, como Jeronymo Côrte Real com o _Segundo Cêrco de Diu_,
em 1574, Luiz Brandão com a _Elegiada_, em 1588, Francisco de
Andrade com o _Primeiro Cêrco de Diu_, em 1589. Na expedição
inconsiderada de D. Sebastião á Africa, encarregou o monarcha a Diogo
Bernardes de ser o seu Homero; Camões foi preterido pela influencia dos
intrigantes palacianos, talvez o mediocre Jeronymo Côrte Real. Camões
saberia inspirar-se da derrota, como o cantor de _Roland_. Depois
da perda da autonomia nacional em 1580, morre o poeta, mas ficaram os
_Lusiadas_ como a unica força viva em que se apoiou a consciencia
portugueza.
=_A Comedia e a Tragedia classicas._=--Assombrado pelo que
vira na Italia, maravilhado com as comedias de Ariosto, de Bibiena
e de Machiavelli, no seu regresso a Portugal tentou Sá de Miranda
renovar a litteratura dramatica, como o emprehendera com a poesia
lyrica. Começou por protestar contra o titulo e a fórma dos Autos
hieraticos, e a escrever no gosto italiano. Pallido reflexo da
sociedade grega, as comedias latinas de Terencio serviram de typo
para o renascimento do theatro classico, em que as _hetairas_ e
o _miles gloriosus_ se transformavam nas _cortezianas_ e
no _condotieri_. Montaigne descreve este processo litterario:
«Muitas vezes me occorre á phantasia, como no nosso tempo, aquelles que
se entregam a fazer comedias (assim como os Italianos, que são os mais
felizes) empregam trez ou quatro argumentos das de Terencio ou Plauto,
para fazerem uma das suas; e accumulam em uma só comedia cinco ou seis
contos de Boccacio.» (_Ess._, II, 10.) Sá de Miranda seguiu esta
mesma pauta; o cardeal D. Henrique folgava em vêl-as representar. A
Comedia classica sustentou-se entre os humanistas, servindo de ensaio
litterario nos divertimentos e férias escholares. D’este costume falla
Montaigne, ao descrever a influencia pedagogica de André de Gouvêa no
Collegio de Guienne, em Bordéos: «j’ay soustenu les premiers personages
ez tragedies latines de Buchanan, de Guerente et de Muret, que se
representerent en nostre Collège de Guienne avecques dignité: en cela,
_Andreas Goveanus_, nostre principal, comme en toutes aultres
parties de sa charge, feut sans comparaison le plus grand principal de
France.» (_Ess._, I, 25.) Em 1547 veiu André de Gouvêa a Portugal
por chamado de Dom João III estabelecer o _Collegio real_ em
Coimbra, que os Jesuitas apanharam e converteram no seu Collegio das
Artes. Sob a influencia de Mestre André e dos professores francezes é
que mais se desenvolveu o gosto do theatro classico, e pela amisade de
Diogo de Teive com Antonio Ferreira é que este seria levado a tentar os
seus primeiros ensaios dramaticos. Nos prologos das suas comedias se
reconhece o esforço para sustentar uma fórma dramatica sem condições
de vida. Adstringindo-se ás regras da comedia _motoria_, os
quinhentistas esqueceram-se da realidade da vida, sendo muitas vezes
incomprehensiveis as situações e mesmo o plano da acção.
Como a Comedia, tambem a Tragedia classica foi conhecida
indirectamente, não dos modelos gregos, mas das imitações latinas de
Seneca. Separada dos seus elementos mythicos, d’onde derivára, foi
esta fórma reproduzida como mero artificio, visando os talentos que
a imitavam a manter escrupulosamente _as trez unidades_. Ferreira,
um dos mais elevados representantes do humanismo portuguez, teve um
conhecimento directo da tragedia grega. Ao ensaiar esta nova fórma
litteraria teve a felicidade de se compenetrar do verdadeiro espirito
da fatalidade antiga, e de comprehender o valor de um assumpto nacional
e moderno. Mas esta direcção justa não foi sustentada; a desgraça
de Inez de Castro tornou-se o assumpto quasi exclusivo dos tragicos
portuguezes desde os imitadores da comedia de _capa y espada_ até
aos exageros ultra-romanticos. A Tragedia classica foi desnaturada
pelas Tragicomedias latinas dos Jesuitas, que dramatisavam assumptos
biblicos, n’esse como que exercicio collegial, cuja representação com
um apparato scenico assombroso durava por vezes dois e trez dias.
O Collegio das Artes, de Coimbra, o de Santo Antão, de Lisboa, e a
Universidade do Espirito Santo, de Evora, foram os centros em que os
Jesuitas mais desenvolveram estes espectaculos tragicomicos. Eram essas
Tragicomedias intermeadas de grandes córos cantados por estudantes,
apresentando mutações phantasticas, a que se chamou _tramoias_. Na
formatura do Prior do Crato representou-se em Santa Cruz a tragicomedia
latina _Golias_; e quando D. Sebastião, ainda criança, em 1570
visitou Coimbra, assistiu á representação de uma tragicomedia do P.^e
Luiz da Cruz, que durou trez dias. Póde-se inferir, que por via das
tragicomedias chegaram a Portugal as primeiras noticias da Opera, que
estava ainda nos seus rudimentos, como os _Madrigaes_ da Italia e os
_Ballets_ francezes, que se desenvolveram no seculo XVII.
=2.^o Periodo: Os Culteranistas (Seculo XVII):=
Quando as Litteraturas se afastam das fontes naturaes da tradição
seguindo uma imitação erudita, ou uma artificiosa originalidade,
tornam-se o producto de uma aberração doentia; faltando-lhes a
communicação com o publico e um destino social, apoiam-se nos preceitos
banaes da rhetorica, e na superstição dos modelos. Deu-se no seculo
XVII em todas as Litteraturas da Europa este desvio das suas bases
naturaes; chamou-se a esta corrente do máo gosto, _Culteranismo_.
Penetrou o seu influxo em Portugal de um modo absoluto, caracterisando
todas as manifestações estheticas do seculo, e maculando a obra de
espiritos superiores, como D. Francisco Manoel de Mello ou o Padre
Antonio Vieira. O que se passou em Portugal foi simultaneo em Hespanha,
Italia, França e Inglaterra, o que leva a considerar uma causa
geral, immanente ao mesmo seculo. As Litteraturas confinavam-se nas
côrtes e nas Academias. Toda e qualquer actividade da intelligencia
humana, esthetica, scientifica ou philosophica, exercendo-se em um
subjectivismo exclusivo e sem relação com o meio social, cáe na
degenerescencia morbida. Quando a Philosophia ficou confinada nos
claustros, longe da communicação com a realidade das cousas, ou a
objectividade, deu a Scholastica, em que os cerebros especularam
sobre entidades nominaes, sem o apoio dos factos scientificos, e sem
o intuito de subordinar a uma concepção synthetica os dados do mundo
objectivo; reduziu-se a philosophia a uma dialectica palavrosa, a
uma argucia sophistica, e por fim a uma futilidade e inutilidade
lamentaveis. A renovação philosophica de Bacon e Descartes até
Augusto Comte, começou por arrancal-a do isolamento claustral, dando
á especulação a complexidade dos elementos objectivos que constituem
o mundo physico e moral. Fecundada pelas observações o experiencias
physicas, a Philosophia libertava-se de um inane _Ontologismo_;
mas as Litteraturas fechadas nas côrtes, e nas escholas e academias,
cahiram nas banalidades do _Humanismo_. Por isso mesmo que a
especulação intellectual activava o trabalho scientifico do seculo
XVII, é que as manifestações estheticas foram prejudicadas. A rasão
emancipava-se da auctoridade theologica; a Companhia de Jesus
tornou-se o fóco de toda a educação publica, monopolisou o ensino,
tomou conta das gerações novas, amoldou-lhes os cerebros, esgotou a
rasão humana em cousas inuteis, com o prolongado ensino do latim, da
rhetorica, da dialectica e da theologia. Os Jesuitas antepuzeram-se
aos Humanistas, e sustentaram o scholasticismo; aonde dominaram como
pedagogos não penetrou a sciencia; e as Academias, que se creavam como
fócos de actividade mental, nos paizes mais catholicos tornaram-se
exclusivamente litterarias, á maneira das Tertulias hespanholas,
proseguindo o humanismo das escholas jesuiticas.
Este periodo seiscentista caracterisa-se por um impudente pedantismo,
pela falta de senso commum no emprego das metaphoras; dava provas de
culto, o que encobria a falta de pensamento em laboriosos hyperbatons,
o que primava em sustentar theses ridiculas com gravidade, o que
forjava anagrammas propheticos, o que engenhava labyrintos recheados
de acrosticos, com versos lipogrammaticos ou chronogrammaticos, com a
fórma de columna, de pyramide ou de calix.
Além da educação do automatico humanismo jesuitico, as côrtes, pelas
conveniencias do euphuismo, reduziram a idealisação litteraria a
uma indignidade pela bajulação obtida pela protecção official; os
reis boçaes, a aristocracia frivola, emfim todos os prepotentes eram
proclamados Mecenas. Foram numerosissimas as Academias litterarias
em Portugal no seculo XVII, taes como a dos _Ambientes_, de
1615, a _Sertoria_, de Evora, de 1630, a dos _Anonymos_, de
1637, a dos _Generosos_, de 1647, a dos _Singulares_, de
1663, a dos _Solitarios de Santarem_, de 1664, e _Conferencias
discretas_, de 1696. As bibliothecas estão repletas de manuscriptos
d’este periodo litterario. Uma vez separados da naturalidade, não
tinha limites a aberração mental; ha nos seiscentistas uma tendencia
satyrica, que os absolve, por que protestavam contra o absurdo da moda.
No meio dos desconcertos dos _Culteranistas_ destacam-se pela sua
incontestavel superioridade no lyrismo, D. Francisco Manoel de Mello
e Francisco Rodrigues Lobo. Conheceram estes dois eminentes poetas
as tradições portuguezas; D. Francisco Manoel, que allude a muitos
cantos e contos populares, estudou Sá de Miranda e imitou-o nas suas
encantadoras Eclogas. A superioridade do lyrismo de Rodrigues Lobo, que
estudára Camões, era explicada por Faria e Sousa como consequencia dos
plagios feitos ao immortal poeta; é certo que Rodrigues Lobo conheceu
as antigas serranilhas, mas as suas Eclogas são principalmente bellas
por que se ligam a successos reaes da sua vida desgraçada.
Abundam n’este periodo culteranesco as Epopêas historicas, com o
competente tempero da fabula, descripções, narrações e episodios,
segundo a norma virgiliana. Na perversão do gosto houve intenções de
annullar o poema de Camões, substituindo os _Lusiadas_ pela _Ulyssêa_
do desembargador Gabriel Pereira de Castro. Levantou-se tambem a
polemica entre _Tassistas_ e _Camoistas_, chegando-se a recorrer ás
delações ao Santo Officio para fazer triumphar o partido que esquecido
das tradições nacionaes queria por todos os modos impôr á admiração o
poema de Tasso. O que mais impressiona é o facto da revindicação da
autonomia nacional, pela revolução de 1640, não despertar a idealisação
de tantos poetas épicos que metrificaram a mythologia dos falsos
chronicões.
Unificado na Hespanha no ultimo quartel do seculo XVI, Portugal
era mais conquistado pelos costumes, pela lingua e pelo theatro,
do que pelas leis. Durante todo o seculo XVII deliciamo-nos com as
comedias famosas de _capa y espada_, e com a sua fecundidade
muitos escriptores portuguezes enriqueceram o reportorio castelhano.
As melhores companhias de actores hespanhóes achavam em Portugal
asylo e dinheiro. No manuscripto da bibliotheca nacional de Madrid,
_Genealogia, origen y noticia de los Comediantes de España_,
enumeram-se os que vieram a Portugal. Em todas as festas publicas
eram obrigadas as comedias de Lope de Vega; os escriptores dramaticos
hespanhóes, como Lope de Vega, Calderon, Tirso de Molina, Alarcon,
Montalban, Mira de Mescua, Velez de Guevara e outros menos celebres,
dramatisavam a historia portugueza, desde os amores de Inez de Castro
até á propria revolução de 1640. Os escriptores portuguezes que
adoptaram o estylo da comedia de _capa y espada_ tornaram-se
celebres entre os _ingenios_ do theatro hespanhol. Sacudido o
jugo politico da Hespanha, entraram em Portugal outras influencias
litterarias e artisticas, mas não passaram do meio restricto da côrte.
=3.^o Periodo: Os Árcades (Seculo XVIII):=
Não existia vida nacional no seculo XVIII; a monarchia passára á
ostentação do cesarismo, em que a auctoridade adormentava a opinião
publica com o deslumbramento da sua sumptuosidade; o rei era senhor
de tudo, e nada se emprehendia sem a acção _official_. Os
ministros de D. João V foram primeiramente dois jesuitas, e depois o
varatojano Frei Gaspar, chefe da seita de illuminados a _Jacobêa_,
e o monarcha sinceramente possuido do poder paternal sobre o seu
povo entendia servir o bem da nação mandando dizer missas por alma
dos seus subditos, e dispendendo a riqueza publica na fundação de
estupendas basilicas, como a de Mafra e a Patriarchal, e na compra
de indulgencias. O que era o povo, dil-o pittorescamente Beckford
nas suas _Cartas_, que nunca vira terra com mais mendigos,
mais grotescamente esfrangalhados, com pustulas mais asquerosamente
assoalhadas á caridade; e dizia lord Tiralwey, que Portugal se dividia
em duas partes, a que suspirava pelo Messias, e a que ainda sonhava com
a vinda de D. Sebastião. E comtudo, no seculo das maiores audacias,
Portugal iniciou os dois factos capitaes, a suppressão da Companhia
de Jesus e a secularisação do ensino; tal era a força da corrente
revolucionaria, que a propria monarchia, sob a acção ministerial,
cooperava activamente embora inconsciente na dissolução do regimen
catholico-feudal.
Os homens que sentiam a necessidade de uma renovação litteraria só
achavam possivel o facto intervindo um decreto do rei. A Academia,
que segundo os costumes italianos era uma reunião familiar, com
musica, poesia e refrescos, recebeu sob o cesarismo uma protecção
_official_, que assegurou a sua existencia, para dogmatisar e
restaurar. Ignorava-se que a litteratura era um reflexo do estado
social e uma expressão do genio nacional; contra a decadencia que
estava na ordem das cousas e atrophiava os espiritos, impunham-se
os moldes greco-romanos, com a mesma inintelligencia com que o
curandeiro ataca o symptoma morbido. Permaneciam as causas, e os mais
sinceros esforços ficavam sempre improficuos. Estafou-se inutilmente
a _Academia de Historia portugueza_, apezar do poderoso influxo
official que a sustentava. Erigiu-se a _Academia dos Anonymos_
de José Freire Montarroyo, mas caíu na glorificação banal de D. João
V; os Ericeiras prestaram os seus palacios, e póde-se julgar que sob
a influencia critica do _Verdadeiro Methodo de estudar_, de
Verney, que analysava o Culteranismo, se organisou a _Academia dos
Occultos_, que veiu a servir de nucleo á _Arcadia de Lisboa_. A
relação entre estas duas Academias explica-nos a reacção estabelecida
contra o anterior elemento seiscentista, representado por Pina e Mello
e D. Joaquim Bernardes, e o purismo classico que procurava restabelecer
a auctoridade dos Quinhentistas.
=_A Arcadia de Lisboa._=--Foi fundada por homens de alta
posição official, principalmente desembargadores que se envergonhavam
de ser poetas, como Diniz (_Elpino Nonacriense_) que conservou
inéditas as suas composições. Os Estatutos da Arcadia eram tão
draconianos, que para ser admittido como socio exigia-se a unanimidade,
e para a critica das obras um sigilo absoluto. Floresceu de 1757 até
1774, e representa historicamente o absolutismo do canon classico em
boa alliança com o despotismo politico e o intolerantismo religioso.
Exercendo-se em dogmatisar, esterilisou-se na indecisão, gastando as
suas energias na discussão se deveria admittir na linguagem litteraria
o _neologismo_ e o _archaismo_. Desde que os árcades perderam
o favor official do omnipotente ministro de D. José, desappareceu a sua
actividade, e a academia desagregou-se silenciosamente.
O poeta, como vêmos pelo exemplo de Tolentino--«acabava por fim
pedindo esmola;» era uma especie de creado de casa fidalga, que
festejava os annos dos titulares e esperava que o brindassem com um
fato. Ainda não havia a dignidade do escriptor. O Marquez de Pombal
viu na _Arcadia_ uma Companhia com o privilegio ou monopolio das
composições metricas, e assim a protegeria; desde que alguns espiritos
sympathisaram com as doutrinas pedagogicas do Oratorio, o ministro
tirou-lhes o favor official, e aos que suspeitou de fallarem mal do seu
governo metteu-os no carcere, como ao Garção que morreu no Limoeiro.
=_Os Dissidentes da Arcadia._=--A verdadeira feição do seculo
XVIII na poesia não está no que produziu a _Arcadia_ adstricta
á imitação classica; sob a pressão do despotismo houve protestos
irreflectidos da natureza, como se observa n’esse phenomeno de
perversão mental da poesia erotica. O _molinismo_ dos conventos e
a sensualidade do cesarismo patrocinavam este genero litterario, de que
foram victimas quasi todos os poetas do seculo XVIII. Esse phenomeno é
conhecido em França pelo nome de _Sadismo_.
O _Camões do Rocio_ e o _Lobo da Madragôa_ revelam melhor a
depressão moral sob o cesarismo, do que as campanudas odes horacianas.
Garção, Tolentino e Filinto Elysio sacrificaram ao gosto erotico; foi a
doença do seculo, cuja intensidade se nota na quantidade de nomes que
cultivaram o genero, taes como Domingos Monteiro de Albuquerque, Pedro
José Constancio, Fr. José Botelho Torrezão, o Abbade de Jazende, o P.^e
José Agostinho de Macedo, Bocage, Pimentel Maldonado e outros.
Na constituição da _Arcadia de Lisboa_ alguns poetas afamados do
tempo não foram convidados, e outros mais tarde não foram admittidos
por causa do seu genio satyrico. N’este caso apparecem Nicoláo
Tolentino, que metrificava irreprehensivelmente, e Francisco Manoel do
Nascimento (_Filinto_) que com outros poetas constituiu o _Grupo
da Ribeira das Náos_. Cruzou-se por vezes o tiroteio das satyras,
acirrando-se uns e outros, a ponto de ser conhecido o seu principal
conflicto pela designação da _Guerra dos Poetas_, a proposito da
cantora Zamperini.
Havia no seculo XVIII um costume em que a poesia se tornava um elemento
das festas; chamava-se-lhe _Outeiro poetico_, em que se versejava
nas eleições dos abbadeçados. Seria ainda uma apagada reminiscencia
das _Côrtes de Amor_. Tolentino pinta com traços pittorescos este
costume, que formava reputações.[209]
A reacção da côrte de D. Maria I contra as reformas pombalinas,
lançou a nação na violencia do _intolerantismo_; fizeram-se
perseguições systematicas aos homens intelligentes, como ao mathematico
e poeta José Anastacio da Cunha, a Felix de Avelar Brotero, a Filinto
Elisio, a José Corrêa da Serra, e por ultimo até ao poeta Bocage,
por causa do seu espirito encyclopedista. Assim se cahiu n’esse gráo
de cretinisação, que fazia dizer ao P.^e Theodoro de Almeida, ao
inaugurar a _Academia das Sciencias_ em 1779: «Que admirados
ficareis, senhores, se soubesseis quam vil é o conceito que mesmo
os estrangeiros fazem injustamente de nós. Quando lá fóra apparece
casualmente algum portuguez de engenho mediocre, admirados se espantam
como de phenomeno raro. E como assim? (dizem) de Portugal? do centro
da ignorancia!--Assim o cheguei a ouvir.» No seculo XVIII a Europa
confundia a situação mental dos portuguezes com a crassa estupidez
dos seus governantes, como hoje nos identificam com o descaro da sua
insolvencia. A _Academia das Sciencias_ foi um fóco de luz que o
duque de Lafões e José Corrêa da Serra, auxiliados por Vandelli e o
visconde de Barbacena, projectaram n’este prolongamento da Edade media
em Portugal.
=_A nova Arcadia._=--A influencia franceza, que se
contrabalançava com a auctoridade dos Quinhentistas na primeira
_Arcadia_, depois da sua dissolução é que adquiriu uma completa
preponderancia. A litteratura franceza era o orgão da propaganda
philosophica e politica que convulsionavam a Europa. A _Nova
Arcadia_ ou Academia de Bellas-Lettras foi fundada pelo mulato
brazileiro o P.^e Caldas (_Lereno Selinuntino_) no palacio do
Conde de Pombeiro. No meio das grandes commoções politicas da Europa
com o apparecimento dos principios de 1789, a _Nova Arcadia_
fechou-se no seu remanso pastoral, alheia a todas as reclamações
humanas.
No meio d’este insulso idyllio, rebentou o conflicto turbulento do
genio de Bocage, que reagia contra a mediocridade geral vibrando
satyras immortaes. A sua adhesão aos principios da Revolução franceza
levou-o aos carceres da Policia, então mais terriveis do que os da
Inquisição, para a qual appellou, para escapar. Póde-se dizer que o
meio social amesquinhou este genio, que apezar da imbecilidade geral
soube sentir a superioridade de Camões.
O lyrismo portuguez teve uma fugaz renovação, pelo favor que no gosto
do tempo encontraram as _Modinhas brazileiras_, tão celebradas
por lord Beckford, consideradas como o elemento generativo da musica
portugueza por Strafford, e sendo na realidade uma persistencia
tradicional das antigas serranilhas gallezianas. As Lyras da _Marilia
de Dirceu_, de Gonzaga, são o que ha de mais bello no lyrismo da
ultima metade do seculo XVIII. A superioridade litteraria revelava-se
entre os escriptores do Brazil, que pelo influxo da Revolução franceza
serviam a causa da emancipação d’esta explorada colonia, que aspirava á
legitima autonomia de nacionalidade. A _Nova Arcadia_ dissolveu-se
depois do conflicto de Bocage, depois de ter accumulado Odes, Sonetos,
Epistolas, Elogios dramaticos. Durante a segunda metade do seculo
XVIII vivemos entregues a todas as tropelias da rasão de estado, sob a
vigilancia feroz do Intendente Manique, sob a suspeição das _ideias
francezas_ e apavorados pelo intolerantismo religioso. A censura
litteraria e a policia nas alfandegas, não deixavam entrar em Portugal
os livros suspeitos, e as obras dos Encyclopedistas eram queimadas na
praça publica pela mão do carrasco.
A nação soffreu os tremendos desastres provocados pela inconsciencia
politica; depois da invasão napoleonica e do não menos terrivel
protectorado da Inglaterra, houve um momento em que a nação manifestou
vida propria, na revolução de 1820, em que no meio das grandes
catastrophes reassumiu a sua soberania, proclamada como fonte do
poder na Constituição de 1822. Com esta data gloriosa da liberdade
portugueza, começa simultanea com a renovação social uma nova e
fecunda phase na litteratura.
Na Europa passava-se a renovação litteraria do _Romantismo_,
agitando a França, a Italia, a Inglaterra e a Hespanha; em Portugal
continuavamos estacionarios na admiração dos classicos, como a colonia
romana longinqua que ainda continuava a veneração do Imperador já
destituido. Um accidente desgraçado, a restauração do absolutismo
bragantino, provocando a emigração de 1823, é que levou os nossos
innovadores a descobrirem a relação entre as litteraturas e as
aspirações da sociedade.
=_A baixa Comedia._=--Com as comedias hespanholas de _capa
y espada_ e as italianas de _imbroglio_, fez-se um amalgama sem
intenção, nem responsabilidade litteraria para acudir á exploração dos
theatros do Salitre e do Bairro Alto. Tal era a _baixa comedia_,
em que se fundiam elementos das obras de Lope de Vega, Molière e
Goldoni. Eram geralmente em verso octosyllabo assonantado, e constituem
um vasto reportorio avulso, chamado _Comedias de cordel_. Esta
creação correspondia ao estado dos espiritos, quasi idiotico, a que
os levára a inquisição e o cesarismo; a sua publicação tornára-se
uma industria dos cegos, ligados entre si em uma Confraria do Menino
Jesus, que tinha o privilegio exclusivo da sua exploração. Na _baixa
comedia_ não se encontra um protesto contra o aviltamento geral, mas
abundam as graçolas equivocas, os esgares de quem quer reagir contra
o terror. Distinguiram-se no genero Antonio José da Silva, alcunhado
o _Judeu_, e Nicoláo Luiz. Contra o gosto popular que applaudia
as _Operas do Judeu_ reagiu o árcade Garção. Filinto appellava
para a tradição dramatica nacional: «Lêam a opera dos _Encantos de
Circe_, eruditissimo parto de um engenho judaico. Houve editor que
modernamente deu á luz esse non plus ultra do genero dramatico; e
_Gil Vicente_, e _Prestes_ e outros classicos ficaram para
sempre no cadoz! Oh vergonha! oh ingrata incuria!» Pela sua parte, o
árcade Manoel de Figueiredo reagiu contra Nicoláo Luiz, querendo dar ao
theatro bases philosophicas; faltava-lhe porém o talento, não obstante
a sua clara comprehensão do problema.
O que era o theatro póde avaliar-se pela situação dos actores;
o Intendente da Policia, Pina Manique, nas _Contas para as
Secretarias_ traz curiosas noticias, que derramam uma immensa luz
na historia do theatro no seculo XVIII; lê-se na Conta, de 30 de
setembro de 1792: «Os comicos e os Emprezarios, que de ordinario são os
mais infimos, e que para os conter e conservar a boa ordem e policia
do theatro é necessario a força, sem a qual nada se póde fazer, por
que é uma gente sem melindre ou caprixo, e são susceptiveis de tudo
aquillo que é máo para o adoptarem, ou seja contra os bons costumes,
ou contra a honra, o ponto é que elles tenham interesse. Além de que
não cumprem o que devem para satisfazer ao publico, e muitas vezes é
preciso contel-os para não enxerirem algumas palavras menos decentes,
que não vêm na peça que executam; etc.» (Liv. III, fl. 264 a 267.) O
Intendente era a favor das representações, por que oppondo-se á entrada
em Portugal das _ideias francezas_, considerava o theatro um
elemento indispensavel para conservar os cidadãos longe do conhecimento
dos successos da Europa, e sem logar para discutirem sobre os negocios
publicos. A _baixa comedia_ foi um instrumento do cesarismo. Durou
esta fórma dramatica até ao tempo de Garrett, e algumas das principaes
peças d’esta eschola ainda sobrevivem na scena, como o _Manoel
Mendes Enxundia_, de Ferreira de Azevedo, o _Doutor Sovina_
e o _Zanguizarra_. Nunca uma litteratura foi mais completa na
revelação do estado decadente de uma nacionalidade. A _Arcadia_,
querendo restaurar o theatro, traduziu e imitou os tragicos da
época de Luiz XIV, segundo a sua fé monarchica; mas com a corrente
revolucionaria lêram-se e representaram-se as tragedias philosophicas
de Voltaire, que persistiram até á geração de 1820.
NOTAS DE RODAPÉ:
[206] No fragmento da _Poetica provençal_ que vem no Cancioneiro
Colocci-Brancuti, cita-se no cap. IX este genero de seguidilha, em que
se intercalam versos de outrem: «som em prazer ou em _ledo_.» Têm quasi
sempre o estribilho: _Leda vou eu_, etc.
[207] _Historia de la Literatura española_, t. I, p. 11.
[208] No _Catalogo_, de Barrera y Leyrado, p. 534, cita-se esta ultima:
«Manuscripto sin año, de principios del siglo XVI, en la Libreria de
señor Duran.»
[209]
Fôra cem vezes em nocturno _Outeiro_
Da sabia Padaria apadrinhado;
E dizem que glosava por dinheiro...
Rompi _Outeiros_ em Sant’Anna e Chellas,
Chamei sol á Prelada, e ás mais estrellas.
TERCEIRA ÉPOCA
(SECULO XIX)
Revivescencia das Tradições nacionaes pela idealisação da Edade media,
e comprehensão do elemento classico pela solidariedade historica
Á proclamação da liberdade de consciencia no seculo XVI, pela
_Reforma_, corresponde essa outra emancipação do dogmatismo na
arte, pelo _Romantismo_, com o qual a Allemanha no começo do
seculo XIX propagou o principio da espontaneidade do sentimento.
Em ambas as revoluções, religiosa e esthetica, existiu uma base
commum: o regresso á tradição, quer a da Egreja primitiva, quer a das
origens nacionaes. A Allemanha chegou a este resultado fundamental
pelo trabalho erudito da descoberta das tradições germanicas, e
pela renovação philosophica exercida na critica da Arte, suscitada
práticamente pela necessidade de estimular o espirito da nação contra
as desvairadas devastações napoleonicas. O influxo da Allemanha na
transformação do _Romantismo_ foi universalisado por M.^{me} de
Staël; em Portugal tambem uma mulher teve essa sympathica iniciativa.
Herculano confessou dever á marqueza de Alorna a direcção dos seus
primeiros passos na Litteratura: «Como madame de Staël, ella fazia
voltar a imaginação da mocidade para a Allemanha, a qual veiu dar nova
seiva á arte meridional, que vegetava na imitação servil das chamadas
letras classicas...»
De facto a renovação do _Romantismo_ correspondia a uma
transformação social da Europa moderna pelo influxo dos principios
da Revolução franceza; e se a nova eschola triumphou foi por que se
encontrou em um novo meio social. As monarchias absolutas reagiam
contra o direito das Constituições ou codigos da soberania nacional,
e pretendiam restaurar o antigo e decahido regimen, ou pelo menos
falsificar esse direito pela _outorga_ ou concessão de Cartas
constitucionaes. Aquelles que combatiam pela liberdade politica
e civil, tanto na Italia e França, como em Hespanha e Portugal,
abraçaram por instincto a nova concepção das Litteraturas, da mesma
fórma que os trovadores provençaes tinham sido os proclamadores da
independencia municipal, e os humanistas da Renascença os propugnadores
do livre-exame.
=_Os chefes do Romantismo._=--Os principaes promotores da renovação do
Romantismo em Portugal foram dois emigrados liberaes, Almeida Garrett,
que em 1823 fugira para França ante a restauração do absolutismo de D.
João VI, que prejurára a Constituição de 1822, e Alexandre Herculano,
que em 1831 fugira para Inglaterra ás forcas de Dom Miguel, que tambem
prejurára a Carta constitucional de 1826. Garrett no seu regresso
d’estas duas emigrações procurou descobrir o veio da tradição nacional,
lançando as bases do _Romanceiro portuguez_; no poema _Camões_
comprehendeu a mais alta expressão do genio nacional; na _D. Branca_,
no _Alfageme de Santarem_, no _Arco de Sant’Anna_, universalisou no
poema, no drama, no romance historico as bellas lendas antigas, que
estavam dispersas e desconhecidas nas chronicas monachaes e monarchicas.
A acção exclusiva de Garrett na fundação do theatro portuguez
manifesta-se na extraordinaria intuição do artista que comprehendeu o
alcance da transformação da sociedade burgueza, para a qual o theatro
era uma fórma tambem de liberdade. Teve o raro tino nas suas obras
de inspirar-se nos conflictos do meio social, como se observa com a
tragedia _Catão_, ligada ás aspirações liberaes de 1820; com o
_Camões_, idealisado nos desalentos do desterro; com o _Arco
de Sant’Anna_, vivificado pela resistencia do cêrco do Porto; com
o _Alfageme de Santarem_, exprimindo a necessidade de recorrer á
revolta, na crise terrivel do cabralismo em 1842.
Com a iniciação pois da liberdade constitucional appareceu uma vaga
comprehensão do valor dos elementos tradicionaes como a base das
litteraturas; com esta intuição pôde Garrett levantar o theatro
portuguez. O drama _Frei Luiz de Sousa_ hade ser sempre uma
obra prima em todas as litteraturas modernas. A acção de Garrett
ficou isolada por falta de uma geração intelligente; o theatro
continuou reduzido a uma macaqueação dos dramas ultra-romanticos, por
que surgiram as ambições politicas de um absolutismo mascarado em
constitucionalismo, que perverteram e esgotaram todas as capacidades,
que para engrandecimento pessoal se prestaram á hypocrisia liberal com
que illudiram a nação. Ainda hoje a litteratura dramatica se acha na
mesma esterilidade e mesquinhez em que a deixou a morte de Garrett;
traduzem-se dramas pelo mesmo espirito com que na representação
parlamentar se traduzem relatorios e leis.
Tambem com os desalentos da emigração e diante das situações reaes e
sublimes do cêrco do Porto, soube Alexandre Herculano inspirar-se; na
_Harpa do Crente_ a sua poesia é viva. Comprehendendo a Edade
media através dos romances de Walter Scott, fez romances historicos
de segunda mão, cahindo por vezes n’esse mesmo ultra-romantismo que
condemnára nos pareceres do _Jornal do Conservatorio_. A falta de
uma concepção synthetica levou-o para o campo da historia critica, na
doce esperança de exercer sobre Garrett essa influencia fecundante de
Herder sobre Goëthe e de Thierry sobre Victor Hugo. Não foi secundado
nos estudos historicos, e por isso a concepção da Edade media ficou em
mera exterioridade que suscitou um impertinente prurido de banalidades
no lyrismo, no theatro e no romance.
=_Os ultra-romanticos._=--A primeira phase do _Romantismo_ consistiu
em todas as litteraturas em renovar com mais ou menos intelligencia
as tradições nacionaes. Como as modernas nacionalidades provinham
das transformações sociaes da Edade media, nas instituições,
linguas, crenças, costumes e mesmo em quanto ás fórmas litterarias e
artisticas, caíu-se insensivelmente na admiração exclusiva d’essa época
profundamente poetica, e facil foi ás mediocridades o apossarem-se
dos caracteres exteriores da vida medieval; repintando castellos,
pontes levadiças, juras tremendas á meia noite, reprezalias de barões
feudaes, ou pelo lado religioso despedidas de trovadores-cruzados
para a Terra santa, apaixonados amantes cobrindo o seu fogo com as
cinzas da penitencia claustral, tudo isto recortado como se fosse de
cartão, dava uma litteratura romantica de soláos e xácaras, romances
historicos e dramalhões tetricos. A esta inintelligencia de uma
concepção fundamental, que caíu no exagero do processo, chamou-se o
_Ultra-Romantismo_. Em quanto a Edade media era scientificamente
estudada em todos os seus aspectos, os litteratos continuavam a
explorar a nova rhetorica da emphase romantica, que se tornava tão
inexpressiva como a rhetorica classica. Os talentos verdadeiros
reagiram contra esta dissolução, procurando inspirar-se da realidade,
da verdade do natural; mas n’este esforço rasoavel, excederam-se
sacrificando o elemento ideal ou a representação subjectiva á
reproducção ou descripção exacta do dado objectivo.
=_Dissolução do Romantismo: Eschola de Coimbra._=--Causas
immanentes ao nosso meio social mantiveram o gosto do _Romantismo_
em Portugal, quando elle estava já em dissolução por toda a Europa. As
necessidades do jornalismo da pedantocracia monarchico-representativa
absorveram todos os talentos e vocações litterarias, que se esgotaram
n’essas paixões e ambições, abandonando o estudo pela espectativa de
uma pasta ministerial. A nação querendo revindicar a sua liberdade
foi violentamente abafada por uma _intervenção armada_ da
Inglaterra e Hespanha, a reclamo de D. Maria II, para subjugar a
revolução contra a oligarchia dos seus ministerios de resistencia.
Edgar Quinet comprehendeu o alcance de tal attentado; tendo apreciado
o esplendor da primeira iniciação romantica, vaticinou o paroxismo da
nação, da sua vida intellectual e moral sob esta traição da realeza. A
nação vergada brutalmente ao _statu quo_ caíu na inconsciencia.
Abafada toda a aspiração da liberdade, os talentos novos puzeram-se
do lado do paço contra a nação, como Mendes Leal e Rebello da Silva;
n’este interregno do espirito creador e original, ergueu-se Castilho,
reduzindo a elaboração litteraria a traducções dos poetas latinos, e á
cultura do estylo, independente das ideias. Mas peior do que isto, foi
ainda a perversão do _elogio mutuo_, que favorecia o imperio das
mediocridades e a aversão por toda a ideia ou innovação esthetica.
Tinha de dar-se a dissolução d’este ultra-romantismo extemporaneo;
irrompeu em 1865 de um modo tempestuoso, dando logar á longa polemica
da chamada _Questão coimbrã_, analoga ao que na Allemanha se
passára com o _Sturm und Drang_. Proclamava-se a alliança da
poesia e da philosophia, inspirando-se do sentimento da solidariedade
humana, dando fórma ao ideal da Humanidade.
A poesia abandonada ao subjectivismo metaphysico, ia fatalmente cahir
no romantismo mystico ou em um _pessimismo_ doentio; carecia-se de
uma disciplina critica. Pelos processos novos da critica comparativa
applicados á historia politica e litteraria, á philologia, aos
costumes ou ethnologia, ás tradições, é que Portugal se relacionou
com o movimento intellectual e social da Europa. Com todos estes
elementos novos da actividade mental, havia a necessidade de evitar a
tendencia da _especialisação_, que amesquinha as intelligencias,
ou a _dispersão_ incoherente de estudos, que leva á banalidade
acobertada com o verniz do estylo; essa somma de elementos novos fez
reconhecer a necessidade de uma disciplina _philosophica_. Assim
a Philosophia positiva veiu em um momento opportuno demarcar uma
nova orientação na mentalidade portugueza, mostrando como terminada a
revolução todos os esforços deviam convergir para activar o advento a
uma edade de normalidade.
Os povos do occidente da Europa constituem uma grande confederação
natural, uma mesma familia moral; a Italia, a Hespanha e Portugal
reconhecem espontaneamente a França como o centro da hegemonia da
civilisação latina. Separados politicamente por odios dynasticos, em
que a Italia foi invadida pela Hespanha e pela França; em que pelos
exercitos napoleonicos invadiu a Hespanha e Portugal a mesma França,
que sob a Santa Alliança tornou a invadir a Hespanha sob a bandeira
absolutista, estes paizes, á medida que se aproximam da comprehensão
da democracia, vão reconhecendo que esses odios provinham do egoismo
dos interesses monarchicos, que deram em resultado a decadencia da
Civilisação occidental. A sciencia estudando a similaridade do grupo
das linguas novo-latinas e comparando a evolução das Litteraturas
romanicas ou meridionaes, reconstrue a unidade ethnica e moral dos
estados do Occidente; e em quanto a democracia não funda em bases
juridicas de federação esta solidariedade historica da França, Italia,
Hespanha e Portugal, é indispensavel que essa conclusão scientifica se
generalise na fórma de sentimento.
Pelo exame da marcha da historia moderna da Europa desde o seculo XII
até ao seculo XIX, vê-se que a esse longo processo de dissolução do
regimen catholico-feudal corresponde um trabalho reconstructivo. De
Maistre, que tanto trabalhára para sustentar o regimen da Edade media,
proclamava o facto evidente: «Tudo indica que caminhamos para uma
nova Synthese.» Para elle, essa synthese seria uma reorganisação do
christianismo para abranger a sociedade e a consciencia modernas que
lhe fugiam; mas, os espiritos que seguiram o trabalho reconstructivo
da rasão pela descoberta das verdades positivas das Sciencias
experimentaes e pelo estabelecimento da liberdade civil, tambem
proclamaram o advento da nova Synthese, como Comte, terminando a acção
social das ficções theologicas e metaphysicas substituidas pela noção
da solidariedade humana.
Eis pois determinado o _sentimento_ fundamental que deve
inspirar todos os themas estheticos. Por falta d’este sentimento
universal e decisivo, é que na longa crise da dissolução do regimen
catholico-feudal as Litteraturas fluctuaram na sua idealisação,
imitando e parodiando sem intuito social; uma vez determinado, a missão
do sentimento é chegar á synthese a que as luctas mental e social ainda
não souberam dar fórma. Todo o systema das Bellas-Artes é chamado a
cooperar n’esta missão para a qual foram impotentes os politicos, os
sabios e os philosophos. É verdadeiramente assombrosa a percepção de
Wagner, quando tendo analysado a anarchia da arte, formúla o grande
destino da funcção esthetica: «Aonde outr’ora o artista desesperou, ahi
começaram a politica e a philosophia; ahi, aonde hoje em dia a politica
e a philosophia desesperam, é ahi que começa o artista.»[210] Todo o
vasto corpo da Historia litteraria de Portugal que temos coordenado é
a narrativa d’esses antecedentes do sentimento esthetico, que, pela
comparação com as outras Litteraturas romanicas e relação com o meio
social nos conduzem a uma clara deducção da Philosophia da Litteratura.
FIM
NOTAS DE RODAPÉ:
[210] Maravilha a concordancia do genio philosophico de Comte com a
intuição artistica de Wagner; tudo nos confirma o valor e segurança da
sua direcção mental.
NOTA BIBLIOGRAPHICA
Quem confrontar o presente livro com o que foi publicado em 1870 com
o titulo de _Introducção á Historia da Litteratura portugueza_,
poucas paginas encontrará semelhantes; pouco ou quasi nada aproveitámos
da fórma da sua redacção, que era vacilante por falta de nitidez da
ideia fundamental, mas reproduzimos sempre os factos, embora deslocados
ou mal interpretados.
Vinte e cinco annos de estudo sobre a Historia da Litteratura
portugueza impõem a obrigação de estar ao corrente dos problemas
indispensaveis para a comprehensão d’esta litteratura. Tendo de
proceder a uma edição integral d’esta obra, não me podia contentar
com esse primeiro e imperfeito esboço. Tambem não devia atiral-o
fóra por inutil e aleijado; submetti-o a uma revisão minuciosa,
reconhecendo--quanto é mais facil emendar do que crear de
novo,--circumstancia que tornará perdoaveis os meus antigos erros.
Eis as modificações a que submettemos o nosso primitivo trabalho:
O § I--_Das raças e suas creações artisticas_, foi completamente
refundido com factos importantes de todas as litteraturas romanicas e
segundo os resultados da Anthropologia.
§ II--_Genio dos Mosarabes em Portugal_; tanto este capitulo
como o anterior tornaram-se parte da secção dos elementos staticos da
Litteratura, em que ha uma melhor coordenação de materiaes.
§ III--_Epopêas da Edade media em Portugal_; estava desconnexo, e
ficou distribuido mais ordenadamente na secção dos elementos dynamicos
da Litteratura, em que a Edade media apparece sob a hegemonia da França.
§ IV--_Primeiras Bibliothecas portuguezas_; foi eliminado este
capitulo, por que está largamente desenvolvido e melhorado na Historia
da Universidade de Coimbra, vol. I, p. 191 a 245.
§ V--_A Renascença_; foi encorporado e desenvolvido nos elementos
dynamicos da Litteratura, descrevendo a hegemonia da Italia.
§ VI e VII--_Academias litterarias_--_Origens da Poesia moderna_;
ficaram reunidos nos elementos dynamicos da Litteratura, na
descripção da hegemonia da Hespanha, da Inglaterra e da Allemanha,
com os necessarios retoques e desenvolvimentos.
A terceira parte d’este livro, _Épocas historicas da Litteratura
portugueza_, contém o volume publicado em 1872 e reproduzido em 1881
com o titulo _Theoria da Historia da Litteratura portugueza_;
foram cortadas todas as repetições e distribuidos os factos por fórma
a caracterisar cada época litteraria, e a mostrar o traçado da grande
obra em livros independentes e completos em si.
INDICE
INTRODUCÇÃO Á HISTORIA DA LITTERATURA PORTUGUEZA
PAG.
PROLOGO v
ANTELOQUIO 1
I. _Elementos staticos da Litteratura_ 7
§ 1.--=A Raça e o Meio= 10
§ 2.--=A Tradição e os Costumes= 62
_a_) Das fórmas lyricas 70
_b_) Das fórmas épicas 83
--Do elemento iberico 86
--Do elemento germanico 90
--Transformação erudita do Romance
popular 97
_c_) Das fórmas dramaticas 100
§ 3.--=A Linguagem oral e escripta= 126
§ 4.--=Patria e Nacionalidade= 161
II. _Elementos dynamicos da Litteratura_ 174
§ 1.--=A Edade media= (Hegemonia da França) 177
_a_) Influencia gallo-romana (_Lyrismo_
_trobadoresco_) 191
_b_) Influencia gallo-franka (_Gestas e Epopêas_
_medievaes_) 203
_c_) Influencia gallo-bretã (_Poemas e Novellas_
_da Tavola Redonda_) 216
_d_) A cultura latino-ecclesiastica e humanista 247
§ 2.--=A Renascença= (Hegemonia da Italia) 263
_a_) O Humanismo quinhentista 272
I. Antagonismo dos dois elementos classico
e medieval 281
_a_) O Lyrismo petrarchista 288
_b_) A Epopêa classica 292
_c_) A Comedia e a Tragedia classicas 299
II. Sympathia pela Edade media na Eschola
da Medida velha 302
_a_) Os Poetas da Medida velha 304
_b_) Romances e Novellas de
Cavalleria 307
_c_) Os Autos hieraticos 313
_b_) O Culteranismo seiscentista (Hegemonia
da Hespanha) 316
_c_) O Arcadismo e a reacção proto-Romantica
(Hegemonia da Inglaterra) 332
§ 3.--=O Romantismo= (Hegemonia da Allemanha) 348
_a_) Rehabilitação da Edade media 354
_b_) O Ultra-Romantismo 358
_c_) Disciplina critica e philosophica 366
III. _Epocas historicas da Litteratura portugueza_ 373
PRIMEIRA ÉPOCA
(SECULOS XII A XV)
_Preponderancia dos elementos tradicionaes e estheticos da Edade
media, e começo de transição para o estudo da Antiguidade
classica_
=1.^o Periodo= (=Seculos XII a XIV=):
Trovadores portuguezes 374
Novellas de Cavalleria:--O Amadis de Gaula 380
=2.^o Periodo= (=Seculo XV=):
Os Poetas palacianos 384
Os Historiadores portuguezes 389
SEGUNDA ÉPOCA
(SECULOS XVI A XVIII)
_Predominio da imitação da Antiguidade classica, e abandono
das Tradições nacionaes_
=1.^o Periodo: Os Quinhentistas= (=Seculo XVI=):
PARTE I: _Poetas da Medida velha_ 390
Novellas de Cavalleria e Pastoraes 393
Gil Vicente e as origens do Theatro nacional 396
PARTE II: _A Eschola italiana_ 400
Sá de Miranda e a Pleiada portugueza 402
Camões, e sua Eschola lyrica e épica 404
A Comedia e a Tragedia classicas 408
=2.^o Periodo: Os Culteranistas= (=Seculo XVII=) 411
=3.^o Periodo: Os Árcades= (=Seculo XVIII=) 416
A Arcadia de Lisboa 417
Os Dissidentes da Arcadia 418
A nova Arcadia 421
A baixa Comedia 423
TERCEIRA ÉPOCA
(SECULO XIX)
_Revicescencia das Tradições nacionaes pela idealisação da Edade_
_media, e comprehensão do elemento classico pela solidariedade_
_historica_ 425
Os chefes do Romantismo 427
Os ultra-romanticos 429
Dissolução do Romantismo: Eschola de Coimbra 430
NOTA BIBLIOGRAPHICA 435
=NOTAS DO EDITOR=
Os erros tipográficos evidentes foram corrigidos. Algumas palavras
escritas em português arcaico, tais como "perstigio", foram mantidas
como na versão original e verificadas em um dicionário da língua
portuguesa do século XIX.
Devido à utilização de línguas arcaicas nesse texto, as inconsistências
de hifenização e acentuação foram mantidas conforme a versão original.
Nesta versão, o carácter "caret" (acento circumflexo) foi utilizado com
ou sem chaves para representar letras sobrescritas.
*** END OF THE PROJECT GUTENBERG EBOOK 74392 ***
Historia da litteratura portugueza [Vol. I]
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1 Introducção e Theoria da Historia da Litteratura
portugueza 1 vol.
2 Trovadores portuguezes 1 "
3 Amadis de Gaula 1 "
4 Poetas palacianos 1 "
5 Os Historiadores portuguezes (_Inedito_) 1 "
6 Bernardim Ribeiro e os Bucolistas 1 "
7 Novellas de...
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— End of Historia da litteratura portugueza [Vol. I] —
Book Information
- Title
- Historia da litteratura portugueza [Vol. I]
- Author(s)
- Braga, Teófilo
- Language
- Portuguese
- Type
- Text
- Release Date
- September 8, 2024
- Word Count
- 106,024 words
- Library of Congress Classification
- PQ
- Bookshelves
- Browsing: History - European, Browsing: Literature
- Rights
- Public domain in the USA.
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