Cover of A Illustre Casa de Ramires

A Illustre Casa de Ramires

Portuguese 114,774 words 1912h 54m read Oct 22, 2007

Excerpt

The Project Gutenberg EBook of A Illustre Casa de Ramires, by Eša de Queiroz

This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org

Read the Full Text

The Project Gutenberg EBook of A Illustre Casa de Ramires, by Eša de Queiroz This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org Title: A Illustre Casa de Ramires Author: Eša de Queiroz Release Date: October 22, 2007 [EBook #23145] Language: Portuguese Character set encoding: ISO-8859-1 *** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A ILLUSTRE CASA DE RAMIRES *** Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) Eša de Queiroz A Illustre Casa de Ramires PORTO LIVRARIA CHARDRON De Lello & IrmŃo, editores 1900 Pertence no Brazil o direito de propriedade d'esta obra ao cidadŃo Francisco Alves, livreiro editor no Rio de Janeiro, que, para a garantia que lhe offerece a lei n.^o 496 de 1 d'Agosto de 1898, fez o competente deposito na Bibliotheca nacional, segundo a determinašŃo do art. 13.^o da mesma Lei. * * * * * _Porto_--_Imprensa Moderna_ A ILLUSTRE CASA DE RAMIRES Obras do mesmo auctor: *Revista de Portugal*. 4 grossos volumes 12$000 *As Minas de SalomŃo*, 1 volume 600 *Os Maias*. 2 grossos volumes 2$000 *O Crime do Padre Amaro*. Terceira edišŃo inteiramente refundida, recomposta, e differente na fˇrma e na acšŃo da edišŃo primitiva, 1 grosso volume 1$200 *O Primo Bazilio*. Terceira edišŃo, 1 grosso volume. 1$000 *A Reliquia*, 1 grosso volume 1$000 *O Mandarim*. Quarta edišŃo, 1 volume 500 *Correspondencia de Fradique Mendes*, 1 volume 600 No prelo: *A Cidade e as Serras.* A ILLUSTRE CASA DE RAMIRES I Desde as quatro horas da tarde, no calor e silencio do domingo de Junho, o Fidalgo da Torre, em chinellos, com uma quinzena de linho envergada sobre a camisa de chita c˘r de rosa, trabalhava. Gonšalo Mendes Ramires (que n'aquella sua velha aldŕa de Santa Ireneia, e na villa visinha, a aceada e vistosa Villa-Clara, e mesmo na cidade, em Oliveira, todos conheciam pelo źFidalgo da Torre╗) trabalhava n'uma Novella Historica, _A Torre de D. Ramires_, destinada ao primeiro numero dos *Annaes de Litteratura e de Historia*, Revista nova, fundada por JosÚ Lucio Castanheiro, seu antigo camarada de Coimbra, nos tempos do Cenaculo Patriotico, em casa das Severinas. A livraria, clara e larga, escaiolada d'azul, com pesadas estantes de pau preto onde repousavam, no pˇ e na gravidade das lombadas de carneira, grossos folios de convento e de f˘ro, respirava para o pomar por duas janellas, uma de peitoril e poiaes de pedra almofadados de velludo, outra mais rasgada, de varanda, frescamente perfumada pela madresilva que se enroscava nas grades. Deante d'essa varanda, na claridade forte, pousava a mesa--mesa immensa de pÚs torneados, coberta com uma colcha desbotada de damasco vermelho, e atravancada n'essa tarde pelos rijos volumes da _Historia Genealogica_, todo o _Vocabulario_ de Bluteau, tomos soltos do _Panorama_, e ao canto, em pilha, as obras de Walter Scott sustentando um copo cheio de cravos amarellos. E d'ahi, da sua cadeira de couro, Gonšalo Mendes Ramires, pensativo deante das tiras de papel almašo, rošando pela testa a rama da penna de pato, avistava sempre a inspiradora da sua Novella,--a Torre, a antiquissima Torre, quadrada e negra sobre os limoeiros do pomar que em redor crescera, com uma pouca d'hera no cunhal rachado, as fundas frestas gradeadas de ferro, as ameias e a miradoira bem cortadas no azul de Junho, robusta sobrevivencia do Pašo acastellado, da fallada Honra de Santa Ireneia, solar dos Mendes Ramires desde os meiados do seculo X. Gonšalo Mendes Ramires (como confessava esse severo genealogista, o morgado de Cidadelhe) era certamente o mais genuino e antigo fidalgo de Portugal. Raras familias, mesmo coevas, poderiam trašar a sua ascendencia, por linha varonil e sempre pura, atÚ aos vagos Senhores que entre Douro e Minho mantinham castello e terra murada quando os bar§es francos desceram, com pendŃo e caldeira, na hoste do BorguinhŃo. E os Ramires entroncavam limpidamente a sua casa, por linha pura e sempre varonil, no filho do Conde Nuno Mendes, aquelle agigantado Ordonho Mendes, senhor de Treixedo e de Santa Ireneia, que casou em 967 com Dona Elduara, Condessa de Carrion, filha de Bermudo o _Gottoso_, Rei de LeŃo. Mais antigo na Hespanha que o Condado Portucalense, rijamente, como elle, crescera e se afamßra o Solar de Santa Ireneia--resistente como elle ßs fortunas e aos tempos. E depois, em cada lance forte da Historia de Portugal, sempre um Mendes Ramires avultou grandiosamente pelo heroismo, pela lealdade, pelos nobres espiritos. Um dos mais esforšados da linhagem, Lourenšo, por alcunha o _Cortador_, collašo de Affonso Henriques (com quem na mesma noite, para receber a pranchada de cavalleiro, vellßra as armas na SÚ de Zamora), apparece logo na batalha d'Ourique, onde tambem avista Jesus-Christo sobre finas nuvens d'ouro, pregado n'uma cruz de dez covados. No cerco de Tavira, Martim Ramires, freire de San-Thiago, arromba a golpes de acha um postigo da Couraša, rompe por entre as cimitarras que lhe decepam as duas mŃos, e surde na quadrella da torre albarran, com os dous pulsos a esguichar sangue, bradando alegremente ao Mestre:--źD. Payo Peres, Tavira Ú nossa! Real, Real por Portugal!╗ O velho Egas Ramires, fechado na sua Torre, com a levadiša erguida, as barbacans errišadas de frecheiros, nega acolhida a El-Rei D. Fernando e Leonor Telles que corriam o Norte em folgares e cašadas--para que a presenša da _adultera_ nŃo macule a pureza extreme do seu solar! Em Aljubarrota, Diogo Ramires o _Trovador_ desbarata um trošo de bÚsteiros, mata o Adiantado-mˇr de Galliza, e por elle, nŃo por outro, cahe derribado o pendŃo real de Castella, em que ao fim da lide seu irmŃo d'armas, D. AntŃo d'Almada, se embrulhou para o levar, danšando e cantando, ao Mestre d'Aviz. Sob os muros d'Arzilla combatem magnificamente dois Ramires, o edoso Sueiro e seu neto FernŃo, e deante do cadaver do velho, trespassado por quatro virotes, estirado no pateo da Alcašova ao lado do corpo do Conde de Marialva--Affonso V arma juntamente cavalleiros o Principe seu filho e FernŃo Ramires, murmurando entre lagrimas: źDeus vos queira tŃo bons como esses que ahi jazem!...╗ Mas eis que Portugal se faz aos mares! E raras sŃo entŃo as armadas e os combates de Oriente em que se nŃo esforce um Ramires--ficando na lenda tragico-maritima aquelle nobre capitŃo do Golpho Persico, Balthazar Ramires, que, no naufragio da _Santa Barbara_, reveste a sua pesada armadura, e no castello de pr˘a, hirto, se afunda em silencio com a nßu que se afunda, encostado ß sua grande espada. Em Alcacer-Kebir, onde dous Ramires sempre ao lado d'El-Rei encontram morte soberba, o mais novo, Paulo Ramires, pagem do GuiŃo, nem lezo nem ferido, mas nŃo querendo mais vida pois que El-Rei nŃo vivia, colhe um ginete solto, apanha uma acha d'armas, e gritando:--źVai-te, alma, que jß tardas, servir a de teu senhor!╗--entra na chusma mourisca e para sempre desapparece. Sob os Philippes, os Ramires, amuados, bebem e cašam nas suas terras. Reapparecendo com os Braganšas, um Ramires, Vicente, Governador das Armas d'Entre-Douro e Minho por D. JoŃo IV, mette a Castella, destroša os Hespanhoes do Conde, de Venavente, e toma Fuente-Gui˝al, a cujo furioso saque preside da varanda d'um Convento de Franciscanos, em mangas de camisa, comendo talhadas de melancia. Jß, porÚm, como a našŃo, degenera a nobre raša... Alvaro Ramires, valido de D. Pedro II, brigŃo fašanhudo, atord˘a Lisboa com arruašas, furta a mulher d'um VÚdor da Fazenda que mandßra matar a pauladas por pretos, incendeia em Sevilha depois de perder cem dobr§es uma casa de tavolagem, e termina por commandar uma urca de piratas na frota de Murad o _Maltrapilho_. No reinado do Sr. D. JoŃo V Nuno Ramires brilha na C˘rte, ferra as suas mulas de prata, e arruina a casa celebrando sumptuosas festes de Egreja, em que canta no c˘ro vestido com o habito de IrmŃo Terceiro de S. Francisco. Outro Ramires, Christovam, Presidente da Mesa de Consciencia e Ordem, alcovita os amores d'el-rei D. JosÚ I com a filha do prior de Sacavem. Pedro Ramires, Provedor e Feitor-mˇr das Alfandegas, ganha fama em todo o Reino pela sua obesidade, a sua chalaša, as suas proezas de glutŃo no Pašo da Bemposta com o arcebispo de Thessalonica. Ignacio Ramires acompanha D. JoŃo VI ao Brazil como Reposteiro-Mˇr, negoceia em negros, volta com um bah˙ carregado de pešas d'ouro que lhe rouba um administrador, antigo frade capuchinho, e morre no seu solar da cornada de um boi. O av˘ de Gonšalo, DamiŃo, doutor liberal dado ßs Musas, desembarca com D. Pedro no Mindello, comp§e as empoladas proclamaš§es do Partido, funda um jornal, o _Anti-Frade_, e depois das Guerras Civis arrasta uma existencia rheumatica em Santa Ireneia, embrulhado no seu capotŃo de briche, traduzindo para vernaculo, com um lexicon e um pacote de simonte, as obras de Valerius Flaccus. O pae de Gonšalo, ora Regenerador, ora Historico, vivia em Lisboa no Hotel Universal, gastando as solas pelas escadarias do Banco Hypothecario e pelo lagedo da Arcada, atÚ que um Ministro do Reino, cuja concubina, corista de S. Carlos, elle fascinßra, o nomeou, (para o afastar da Capital) Governador Civil de Oliveira. Gonšalo, esse, era bacharel formado com um R no terceiro anno. E n'esse anno justamente se estreou nas Lettras Gonšalo Mendes Ramires. Um seu companheiro de casa, JosÚ Lucio Castanheiro, algarvio muito magro, muito macilento, de enormes oculos azues, a quem SimŃo Craveiro chamava o źCastanheiro Patriotinheiro╗, fundßra um Semanario, a *Patria*--źcom o alevantado intento (affirmava sonoramente o Prospecto) de despertar, nŃo sˇ na mocidade Academica, mas em todo o paiz, do cabo Silleiro ao cabo de Santa Maria, o amor tŃo arrefecido das bellezas, das grandezas e das glorias de Portugal!╗ Devorado por essa idÚa, źa sua IdÚa╗, sentindo n'ella uma carreira, quasi uma missŃo, Castanheiro incessantemente, com ardor teimoso de Apostolo, clamava pelos botequins da Sophia, pelos claustros da Universidade, pelos quartos dos amigos entre a fumaša dos cigarros,--źa necessidade, caramba, de reatar a tradišŃo! de desatulhar, caramba, Portugal da alluviŃo do estrangeirismo!╗--Como o Semanario appareceu regularmente durante tres Domingos, e publicou realmente estudos recheiados de griphos e citaš§es sobre as _Capellas da Batalha_, a _Tomada d'Ormuz_, a _Embaixada de TristŃo da Cunha_, comešou logo a ser considerado uma aurora, ainda pallida mas segura, de Renascimento Nacional. E alguns bons espiritos da Academia, sobretudo os companheiros de casa do Castanheiro, os tres que se occupavam das cousas do saber e da intelligencia (porque dos tres restantes um era homem de cacete e foršas, o outro guitarrista, e o outro źpremiado╗), passaram, aquecidos por aquella chamma patriotica, a esquadrinhar na Bibliotheca, nos grossos tomos nunca d'antes visitados de Fernam Lopes, de Ruy de Pina, d'Azurara, proezas e lendas--źsˇ portuguezas, sˇ nossas (como supplicava o Castanheiro), que refizessem ß našŃo abatida uma consciencia da sua heroicidade!╗ Assim crescia o Cenaculo Patriotico da casa das Severinas. E foi entŃo que Gonšalo Mendes Ramires, mošo muito affavel, esvelto e loiro, d'uma brancura sŃ de porcelana, com uns finos e risonhos olhos que facilmente se enterneciam, sempre elegante e apurado na batina e no verniz dos sapatos--apresentou ao Castanheiro, n'um domingo depois do almošo, onze tiras de papel intituladas _D. Guiomar_. N'ellas se contava a velhissima historia da castellŃ, que, emquanto longe nas guerras do Ultra-mar o castellŃo barbudo e cingido de ferro atira a acha-d'armas ßs portas de Jerusalem, recebe ella na sua camara, com os brašos n˙s, por noite de Maio e de lua, o pagem de annellados cabellos... Depois ruge o inverno, o castellŃo volta, mais barbudo, com um bordŃo de romeiro. Pelo villico do Castello, homem espreitador e de amargos sorrisos, conhece a traišŃo, a macula no seu nome tŃo puro, honrado em todas as Hespanhas! E ai do pagem! ai da dama! Logo os sinos tangem a finados. Jß no patim da Alcašova o verdugo, de capuz escarlate, espera, encostado ao machado, entre dous cepos cobertos de pannos de dˇ... E no final choroso da _D. Guiomar_, como em todas essas historias do Romanceiro d'Amor, tambem brotavam rente ßs duas sepulturas, escavadas no ŕrmo, duas roseiras brancas a que o vento enlašava os aromas e as rosas. De sorte que (como notou JosÚ Lucio Castanheiro, cošando pensativamente o queixo) nŃo resaltava n'esta _D. Guiomar_ nada que fosse źsˇ portuguez, sˇ nosso, abrolhando do sˇlo e da raša!╗ Mas esses amores lamentosos passavam n'um solar de Riba-C˘a: os nomes dos cavalleiros, Remarigues, Ordonho, Froylas, Gutierres, tinham um delicioso sabor godo: em cada tira resoavam bravamente os genuinos: ź_BofÚ!... Mentes pela gorja!... Pagem, o meu murzello!_...╗: e atravÚs de toda esta vernaculidade circulava uma sufficiente turba de cavallarišos com saios alvadios, beguinos sumidos na sombra das cugulas, ovenšaes sopezando fartas bolsas de couro, uch§es espostejando nedios lombos de cŕrdo... A Novella portanto marcava um salutar retrocesso ao sentimento nacional. --E depois (accrescentava o Castanheiro) este velhaco do Gonšalinho surde com um estylo terso, masculo, de boa c˘r archaica... D'optima c˘r archaica! Lembra atÚ o _Bobo_, o _Monge de Cister_!... A Guiomar, realmente, Ú uma castellŃ vaga, da Bretanha ou da Aquitania. Mas no villico, mesmo no castellŃo, jß transparecem portuguezes, bons portuguezes de fibra e d'alma, d'entre Douro e Cavado... Sim senhor! Quando o Gonšalinho se enfronhar dentro do nosso passado, das nossas chronicas, temos emfim nas Lettras um homem que sente bem o torrŃo, sente bem a raša! _D. Guiomar_ encheu tres paginas da *Patria*. N'esse Domingo, para celebrar a sua entrada na Litteratura, Gonšalo Mendes Ramires pagou aos camaradas do Cenaculo e a outros amigos uma ceia--onde foi acclamado, logo depois do frango com ervilhas, quando os mošos do Camolino, esbaforidos, renovavam as garrafas de Collares, como źo nosso Walter Scott!╗ Elle, de resto, annuncißra jß com simplicidade um Romance em dois volumes, fundado nos annaes da sua Casa, n'um rude feito de sublime orgulho de Tructesindo Mendes Ramires, o amigo e Alferes-mˇr de D. Sancho I. Por temperamento, por aquelle saber especial de trajes e alfaias que revelßra na _D. Guiomar_, atÚ pela antiguidade da sua linhagem, Gonšalinho parecia gloriosamente votado a restaurar em Portugal o Romance Historico. Possuia uma missŃo--e comešou logo a passear pela Calšada, pensativo, com o gorro sobre os olhos, como quem anda reconstruindo um mundo. No acto d'esse anno levou o R. Quando regressou das ferias para o Quarto-Anno jß nŃo refervia na rua da Mathematica o Cenaculo ardente dos Patriotas. O Castanheiro, formado, vegetava em Villa Real de Santo Antonio: com elle desapparecera a *Patria*: e os mošos zelosos que na Bibliotheca esquadrinhavam as Chronicas de Fernam Lopes e de Azurara, desamparados por aquelle Apostolo que os levantava, recahiram nos romances de Georges Ohnet e retomaram ß noite o taco nos bilhares da Sophia. Gonšalo voltava tambem mudado, de luto pelo pae que morrera em Agosto, com a barba crescida, sempre affavel e suave, porÚm mais grave, averso a ceias e a noites errantes. Tomou um quarto no Hotel Mondego, onde o servia, de gravata branca, um velho creado de Santa Ireneia, o Bento:--e os seus companheiros preferidos foram tres ou quatro rapazes que se preparavam para a Politica, folheavam attentamente o _Diario das Camaras_, conheciam alguns enredos da C˘rte, proclamavam a necessidade d'uma źOrientašŃo positiva╗ e d'um źlargo fomento rural╗, consideravam como leviandade reles e jacobina a irreverencia da Academia pelos Dogmas, e, mesmo passeando ao luar no Choupal ou no Penedo da Saudade, discorriam com ardor sobre os dous Chefes de Partido--o Braz Victorino, o homem novo dos Regeneradores, e o velho BarŃo de S. Fulgencio, chefe classico dos Historicos. Inclinado para os Regeneradores, por que a RegenerašŃo lhe representava tradicionalmente idÚas de conservantismo, de elegancia culta e de generosidade, Gonšalo frequentou entŃo o Centro Regenerador da Couraša, onde aconselhava ß noite, tomando chß preto, źo fortalecimento da auctoridade da Cor˘a╗, e źuma forte expansŃo colonial!╗ Depois, logo na Primavera, desmanchou alegremente esta gravidade politica: e ainda tresnoitou, na taberna do Camolino, em bacalhoadas festivas, entre o estridor das guitarras. Mas nŃo alludio mais ao seu grande Romance em dous volumes: e ou recußra ou se esquecera da sua missŃo d'Arte Historica. Realmente sˇ na Paschoa do Quinto-Anno retomou a penna--para lanšar, na *Gazeta do Porto*, contra um seu patricio, o Dr. AndrÚ Cavalleiro, que o Ministerio do S. Fulgencio nomeßra Governador civil de Oliveira, duas correspondencias muito acerbas, d'um rancor intenso e pessoal, (a ponto de chasquear źa feroz bigodeira negra de S. Ex.^a╗). Assignara Juvenal, como outr'ora o pae, quando publicava communicados politicos d'Oliveira n'essa mesma *Gazeta do Porto*, jornal amigo, onde um Villar Mendes, seu remoto parente, redigia a _Revista Estrangeira_. Mas lŕra aos amigos no Centro--źos dous botes decisivos que atirariam o Sr. Cavalleiro abaixo do seu Cavallo!╗ E um d'esses mošos serios, sobrinho do Bispo de Oliveira, nŃo disfaršou o seu assombro: --Oh Gonšalo, eu sempre pensei que vocŕ e o Cavalleiro eram intimos! Se bem me lembro quando vocŕ chegou a Coimbra, para os Preparatorios, viveu na casa do Cavalleiro, na rua de S. JoŃo... Pois nŃo ha uma amizade tradicional, quasi historica, entre Ramires e Cavalleiros?... Eu pouco conhešo Oliveira, nunca andei para os vossos sitios; mas atÚ creio que Corinde, a quinta do Cavalleiro, pega com Santa Ireneia! E Gonšalo enrugou a face, a sua risonha e lisa face, para declarar seccamente que Corinde nŃo pegava com Santa Ireneia: que entre as duas terras corria muito justificadamente a ribeira do _Coice_: e que o Sr. AndrÚ Cavalleiro, e sobre tudo Cavallo, era um animal detestavel que pastava na outra margem!--O sobrinho do Bispo saudou e exclamou: --Sim senhor, boa piada! Um anno depois da Formatura, Gonšalo foi a Lisboa por causa da hypotheca da sua quinta de Praga, junto a Lamego, que certo f˘ro annual de dez rÚis e meia gallinha, devido ao Abbade de Praga, andava empecendo terrivelmente nos Conselhos do Banco Hypothecario;--e tambem para conhecer mais estreitamente o seu Chefe, o Braz Victorino, mostrar lealdade e submissŃo partidaria, colher algum fino conselho de conducta Politica. Ora uma noite, voltando de jantar em casa da velha Marqueza de Louredo, a źtia Louredo╗, que morava a Santa Clara, esbarrou no Rocio com JosÚ Lucio Castanheiro; entŃo empregado no Ministerio da Fazenda, na repartišŃo dos Proprios Nacionaes. Mais defecado, mais macilento, com uns oculos mais largos e mais tenebrosos, o Castanheiro ardia todo, como em Coimbra, na chamma da sua IdÚa--źa resurreišŃo do sentimento portuguez!╗ E agora, alargando a proporš§es condignas da Capital o plano da *Patria*, labutava devoradoramente na creašŃo d'uma Revista quinzenal de setenta paginas, com capa azul, os *Annaes de Litteratura e de Historia*. Era uma noite de Maio, macia e quente. E, passeando ambos em torno das fontes seccas do Rocio, Castanheiro, que sobrašava um rolo de papel e um gordo folio encadernado em bezerro, depois de recordar as cavaqueiras geniaes da rua da Misericordia, de maldizer a falta de intellectualidade de Villa Real de Santo Antonio--voltou soffregamente ß sua IdÚa, e supplicou a Gonšalo Mendes Ramires que lhe cedesse para os *Annaes* esse Romance que elle annuncißra em Coimbra, sobre o seu avoengo Tructesindo Ramires, Alferes-mˇr de Sancho I. Gonšalo, rindo, confessou que ainda nŃo comešßra essa grande obra! --Ah! murmurou o Castanheiro, estacando, com os negros oculos sobre elle, duros e desconsolados. EntŃo vocŕ nŃo persistio?... NŃo permaneceu fiel ß IdÚa?... Encolheu os hombros, resignadamente, jß acostumado, atravez da sua missŃo, a estes desfallecimentos do Patriotismo. Nem consentio que Gonšalo, humilhado perante aquella FÚ que se mantivera tŃo pura e servid˘ra--alludisse, como desculpa, ao inventario laborioso da Casa, depois da morte do papß... --Bem, bem! Acabou! _Proscratinare luzitanum est_. Trabalha agora no verŃo... Para Portuguezes, menino, o verŃo Ú o tempo das bellas fortunas e dos rijos feitos. No verŃo nasce Nun'Alvares no Bomjardim! No verŃo se vence em Aljubarrota! No verŃo chega o Gama ß India!... E no verŃo vae o nosso Gonšalo escrever uma novellasinha sublime!... De resto os *Annaes* sˇ apparecem em Dezembro, caracteristicamente no Primeiro de Dezembro. E vocŕ em tres mezes resuscita um mundo. Serio, Gonšalo Mendes!... ╔ um dever, um santo dever, sobretudo para os novos, collaborar nos *Annaes*. Portugal, menino, morre por falta de sentimento nacional! Nˇs estamos immundamente morrendo do mal de nŃo ser Portuguezes! Parou--ondeou o brašo magro, como a correia d'um latego, n'um gesto que ašoutava o Rocio, a Cidade, toda a NašŃo. Sabia o amigo Gonšalinho o segredo d'esta borracheira sinistra? ╔ que, dos Portuguezes, os peores despresavam a Patria--e os melhores ignoravam a Patria. O remedio?... Revelar Portugal, vulgarisar Portugal. Sim, amiguinho! Organizar, com estrondo, o reclamo de Portugal, de modo que todos o conhešam--ao menos como se conhece o Xarope Peitoral de James, hein? E que todos o adoptem--ao menos como se adoptou o sabŃo do Congo, hein? E conhecido, adoptado, que todos o amem emfim, nos seus herˇes, nos seus feitos, mesmo nos seus defeitos, em todos os seus padr§es, e atÚ nas veras pedrinhas das suas calšadas! Para esse fim, o maior a emprehender n'este apagado seculo da nossa Historia, fundava elle os *Annaes*. Para berrar! Para atroar Portugal, aos bramidos sobre os telhados, com a noticia inesperada da sua grandeza! E aos descendentes dos que outr'ora fizeram o Reino incumbia, mais que aos outros, o cuidado piedoso de o refazer... Como? Reatando a tradišŃo, caramba! --Assim, vocŕs! Por essa historia de Portugal fˇra, vocŕs sŃo uma enfiada de Ramires de toda a belleza. Mesmo o desembargador, o que comeu n'uma ceia de Natal dois leit§es!... ╔ apenas uma barriga. Mas que barriga! Ha n'ella uma pujanša heroica que prova raša, a raša mais forte _do que promette a forša humana_, como diz Cam§es. Dois leit§es, caramba! AtÚ enternece!... E os outros Ramires, o de Silves, o de Aljubarrota, os de Arzilla, os da India! E os cinco valentes, de quem vocŕ talvez nem saiba, que morreram no Salado! Pois bem, resuscitar estes var§es, e mostrar n'elles a alma fašanhuda, o querer sublime que nada verga, Ú uma soberba lišŃo aos novos... Tonifica, caramba! Pela consciencia que renova de termos sido tŃo grandes sacode este chocho consentimento nosso em permanecermos pequenos! ╔ o que eu chamo reatar a tradišŃo... E depois feito por vocŕ proprio, Ramires, que _chic_! Caramba, que _chic_! ╔ um fidalgo, o maior fidalgo de Portugal, que, para mostrar a heroicidade da Patria, abre simplesmente, sem sahir do seu solar, os archivos da sua Casa, velha de mais de mil annos. ╔ de rachar!... E vocŕ nŃo precisa fazer um grosso romance... Nem um romance muito desenvolvido estß na indole militante da Revista. Basta um conto, de vinte ou trinta paginas... Estß claro, os *Annaes* por ora nŃo podem pagar. Tambem, vocŕ nŃo precisa! E que diabo! nŃo se trata de pecunia, mas d'uma grande renovašŃo social... E depois, menino, a litteratura leva a tudo em Portugal. Eu sei que o Gonšalo em Coimbra, ultimamente, frequentava o Centro Regenerador. Pois, amigo, de folhetim em folhetim, se chega a S. Bento! A penna agora, como a espada outr'ora, edifica reinos... Pense vocŕ n'isto! E adeus! que ainda hoje tenho de copiar, para lettra christŃ, este estudo do Henriques sobre CeylŃo... Vocŕ nŃo conhece o Henriques?... NŃo conhece. Ninguem conhece. Pois quando na Europa, n'essas grandes Academias da Europa, ha uma duvida sobre a Historia ou a Litteratura cingaleza, gritam para cß, para o Henriques! Abalou, agarrado ao seu rolo e ao seu tomo--e Gonšalo ainda o avistou, na porta e claridade da tabacaria Nunes, agitando o brašo esguio d'Apostolo deante d'um sujeito obeso, de vasto collete branco, que recuava, com espanto, assim perturbado no quieto gozo do seu grosso charuto e da doce noite de Maio. O Fidalgo da Torre recolheu para o Braganša, impressionado, ruminando a idÚa do Patriota. Tudo n'ella o seduzia--e lhe convinha: a sua collaborašŃo n'uma Revista consideravel, de setenta paginas, em companhia de Escriptores doutos, lentes das Escolas, antigos Ministros, atÚ Conselheiros d'Estado: a antiguidade da sua raša, mais antiga que o Reino, popularisada por uma historia d'heroica belleza, em que com tanto fulgor resaltavam a bravura e a soberba d'alma dos Ramires; e emfim a seriedade academica do seu espirito, o seu nobre gosto pelas investigaš§es eruditas, apparecendo no momento em que tentava a carreira do Parlamento e da Politica!... E o trabalho, a composišŃo moral dos vetustos Ramires, a resurreišŃo archeologica do viver Affonsino, as cem tiras de almašo a atulhar de prosa forte--nŃo o assustavam... NŃo! porque felizmente jß possuia a źsua obra╗--e cortada em bom panno, alinhavada com linha habil. Seu tio Duarte, irmŃo de sua mŃe (uma senhora de GuimarŃes, da casa das Balsas), nos seus annos de ociosidade e imaginašŃo, de 1845 a 1850, entre a sua carta de Bacharel e o seu Alvarß de Delegado, f˘ra poeta--e publicßra no *Bardo*, semanario de GuimarŃes, um Poemeto em verso solto, o _Castello de Santa Ireneia_, que assignßra com duas iniciaes D.B. esse castello era o seu, o Pašo antiquissimo de que restava a negra torre entre os limoeiros da horta. E o Poemeto cantava, com romantico garbo, um lance de altivez feudal em que se sublimßra Tructesindo Ramires, Alferes-mˇr de Sancho I, durante as contendas de Affonso II e das senhoras Infantas. Esse volume do *Bardo*, encadernado em marroquim, com o brazŃo dos Ramires, o ašor negro em campo escarlate, ficßra no Archivo da Casa como um trecho da Chronica heroica dos Ramires. E muitas vezes em pequeno Gonšalo recitßra, ensinados pela mamŃ, os primeiros versos do Poema, de tŃo harmoniosa melancolia: Na pallidez da tarde, entre a folhagem Que o outomno amarellece... Era com esse sombrio feito do seu vago avoengo que Gonšalo Mendes Ramires decidira em Coimbra, quando os camaradas da *Patria* e das ceias o acclamavam źo nosso Walter Scott╗, comp˘r um Romance moderno, d'um realismo Úpico, em dous robustos volumes, formando um estudo ricamente colorido da Meia-Edade Portugueza... E agora lhe servia, e com deliciosa facilidade, para essa Novella curta e sobria, de trinta paginas, que convinha aos *Annaes*. No seu quarto do Braganša abrio a varanda. E debrušado, acabando o charuto, na dormente suavidade da noite de Maio, ante a magestade silenciosa do rio e da lua, pensava regaladamente que nem teria a canceira d'esmiušar as chronicas e os folios massudos... Com effeito! toda a reconstruccŃo Historica a realisßra, e solidamente, com um saber destro, o tio Duarte. O Pašo acastellado de Santa Ireneia, com as fundas carcovas, a torre albarran, a alcašova, a masmorra, o pharol e o balsŃo: o velho Tructesindo, enorme, e os seus flocos de cabellos e barbas ancestraes derramados sobre a loriga de malha; os servos mouriscos, de surr§es de couro, cavando os regueiros da horta; os oblatos resmungando ß lareira as _Vidas dos Santos_; os pagens jogando no campo do tavolado--tudo resurgia, com veridico realce, no Poemeto do tio Duarte! Ainda recordava mesmo certos lances: o truŃo ašoutado; o festim e os uch§es que arrombavam as cubas de cerveja; a jornada de Violante Ramires para o Mosteiro de LorvŃo... Junto Ó fonte mourisca, entre os ulmeiros, A cavalgada pßra... O enrŕdo todo com a sua paixŃo de grandeza barbara, os recontros bravios em que se saciam a punhal os rancores de raša, o heroico fallar despedido de labios de ferro--lß estavam nos versos do titi, sonoros e bem balanšados... Monge, escuta! O solar de D. Ramires Por si, e pedra a pedra se aluira, Se jßmais um bastardo lhe pisasse, Com sapato aviltado, as lages puras! Na realidade sˇ lhe restava transp˘r as formas fluidas do Romantismo de 1846 para a sua prosa tersa e mascula (como confessava o Castanheiro), de optima c˘r archaica, lembrando o _Bobo_. E era um plagio? NŃo! A quem, com mais seguro direito do que a elle, Ramires, pertencia a memoria dos Ramires historicos? A resurreišŃo do velho Portugal, tŃo bella no _Castello de Santa Ireneia_, nŃo era obra individual do tio Duarte--mas dos Herculanos, dos Rebellos, das Academias, da erudišŃo esparsa. E, de resto, quem conhecia hoje esse Poemeto, e mesmo o *Bardo*, delgado semanario que perpassßra, durante cinco mezes, ha cincoenta annos, n'uma villa de Provincia?...! NŃo hesitou mais, seduzido. E em quanto se despia, depois de beber aos goles um copo d'agua com bicarbonato de soda, jß martellava a primeira linha do conto, ß maneira lapidaria da _Salammb˘_:--źEra nos Pašos de Santa Ireneia, por uma noite d'inverno, na sala alta da Alcašova...╗ Ao outro dia, procurou JosÚ Lucio Castanheiro na repartišŃo dos Proprios Nacionaes, ß pressa,--por que, depois d'uma conferencia no Banco Hypothecario, ainda promettera acompanhar as primas Chellas a uma ExposišŃo de Bordados na livraria Gomes. E annunciou ao Patriota que, positivamente, lhe assegurava para o primeiro numero dos *Annaes* a Novella, a que jß decidira o titulo--a _Torre de D. Ramires_: --Que lhe parece? Deslumbrado, JosÚ Castanheiro atirou os magrissimos brašos, resguardados pelas mangas d'alpaca, atÚ ß abobada do esguio corredor em que o recebera: --Sublime!... _A Torre de D. Ramires_!... O grande feito de Tructesindo Mendes Ramires contado por Gonšalo Mendes Ramires!... E tudo na mesma Torre! Na Torre o velho Tructesindo pratica o feito; e setecentos annos depois, na mesma Torre, o nosso Gonšalo conta o feito! Caramba, menino, carambissima! isso Ú que Ú reatar a tradišŃo! * * * * * Duas semanas depois, de volta a Santa Ireneia, Gonšalo mandou um creado da quinta, com uma carroša, a Oliveira, a casa de seu cunhado JosÚ Barr˘lo, casado com Gracinha Ramires, para lhe trazer da rica livraria classica que o Barr˘lo herdßra do tio DeŃo da SÚ todos os volumes da _Historia Genealogica_--źe (accrescentava n'uma carta) todos os cartapacios que por lß encontrares com o titulo de źChronicas do Rei Fulano...╗ Depois, do pˇ das suas estantes, desenterrou as obras de Walter Scott, volumes desirmanados do _Panorama_, a _Historia_ de Herculano, o _Bobo_, o _Monge de CistÚr_. E assim abastecido, com uma farta rŕsma de tiras d'almašo sobre a banca, comešou a repassar o Poemeto do tio Duarte, inclinado ainda a transp˘r para a aspereza d'uma manhŃ de Dezembro, como mais congenere com a rudeza feudal dos seus avˇs, aquella lusida cavalgada de donas, monges e homens d'armas que o tio Duarte estendera, atravez d'uma suave melancolia outomnal, pelas veigas do Mondŕgo... Na pallidez da tarde, entre a folhagem Que o outomno amarellece... Mas, como era entŃo Junho e a lua crescia, Gonšalo determinou por fim aproveitar as sensaš§es de calor, luar e arvoredos, que lhe fornecia a aldeia--para levantar, logo ß entrada da sua Novella, o negro e immenso Pašo de Santa Ireneia, no silencio d'uma noite d'Agosto, sob o resplendor da lua cheia. E jß enchera desembarašadamente, ajudado pelo *Bardo*, duas tiras, quando uma desavenša com o seu caseiro, o Manoel Relho, que amanhava a quinta por oitocentos mil reis de renda, veio perturbar, na fresca e noviša inspirašŃo do seu trabalho, o Fidalgo da Torre. Desde o Natal o Relho, que durante annos de compostura e ordem se emborrachava sempre aos domingos com alegria e com pachorra, comešßra a tomar, tres e quatro vezes por semana, bebedeiras desabridas, escandalosas, em que espancava a mulher, atroava a quinta de berros, e saltava para a estrada, esguedelhado, de varapßu, desafiando a quieta aldeia. Por fim, uma noite em que Gonšalo, ß banca, depois do chß, laboriosamente escavava os fossos do Pašo de Santa Ireneia--de repente a Rosa cozinheira rompeu a gritar źAqui d'El-rei contra o Relho!╗ E, atravez dos seus brados e dos latidos dos cŃes, uma pedra, depois outra, bateram na varanda veneravel da livraria! Enfiado, Gonšalo Mendes Ramires pensou no revˇlver... Mas justamente n'essa tarde o creado, o Bento, descŕra aquella sua velha e unica arma ß cozinha para a desenferrujar e arear! EntŃo, atarantado, correu ao quarto, que fechou ß chave, empurrando contra a porta a commoda com tŃo desesperada anciedade que frascos de crystal, um cofre de tartaruga, atÚ um crucifixo, tombaram e se partiram. Depois gritos e latidos findaram no pateo--mas Gonšalo nŃo se arredou n'essa noite d'aquelle refugio bem defendido, fumando cigarros, ruminando um furor sentimental contra o Relho, a quem tanto perdoßra, sempre tŃo affavelmente tratßra, e que apedrejava as vidrašas da Torre! Cŕdo, de manhŃ convocou o Regedor; a Rosa, ainda tremula, mostrou no brašo as marcas roxas dos dedos do Relho; e o homem, cujo arrendamento findava em Outubro, foi despedido da quinta com a mulher, a arca e o catre. Immediatamente appareceu um lavrador dos Bravaes, o JosÚ Casco, respeitado em toda a freguezia pela sua seriedade e forša espantosa, propondo ao fidalgo arrendar a Torre. Gonšalo Mendes Ramires porÚm, jß desde a morte do pae, decidira elevar a renda a novecentos e cincoenta mil rÚis:--e o Casco desceu as escadas, de cabeša descahida. Voltou logo ao outro dia, repercorreu miudamente toda a quinta, esfarellou a terra entre os dedos, esquadrinhou o curral e a adega, contou as oliveiras e as cŕpas: e n'um esforšo, em que lhe arfaram todas as costellas, offereceu novecentos e dez mil rÚis! Gonšalo nŃo cedia, certo da sua equidade. O JosÚ Casco voltou ainda com a mulher; depois, n'um domingo, com a mulher e um compadre,--e era um cošar lento do queixo rapado, umas voltas desconfiadas em torno da eira e da horta, umas demoras sumidas dentro da tulha, que tornavam aquella manhŃ de Junho intoleravelmente longa ao Fidalgo, sentado n'um banco de pedra do jardim, debaixo d'uma mimosa, com a *Gazeta do Porto*. Quando o Casco, pallido, lhe veio offerecer novecentos e trinta mil rÚis--Gonšalo Mendes Ramires arremessou o jornal, declarou que ia elle, por sua conta, amanhar a propriedade, mostrar o que era um torrŃo rico, tratado pelo saber moderno, com phosphatos, com machinas! O homem de Bravaes, entŃo, arrancou um fundo suspiro, acceitou os novecentos e cincoenta mil reis. ┴ maneira antiga o Fidalgo apertou a mŃo ao lavrador--que entrou na cozinha a enxugar um largo copo de vinho, esponjando na testa, nas cordoveias rijas do pescošo, o suor anciado que o alagava. Mas, como entulhada por estes cuidados, a veia abundante de Gonšalo estancou--nŃo foi mais que um fio arrastado e turvo. Quando n'essa tarde se accomodou ß banca, para contar a sala d'armas do Pašo de Santa Ireneia por uma noite de lua--sˇ conseguiu converter servilmente n'uma prosa aguada os versos lisos do tio Duarte, sem relŕvo que os modernisasse, dÚsse magestade senhorial ou bellesa saudosa ßquelles macissos muros onde o luar, deslisando atravez das rexas, salpicava scentelhas pelas pontas das lanšas altas, e pela cimeira dos morri§es... E desde as quatro horas, no calor e silencio do domingo de Junho, labutava, empurrando a penna como lento arado em chŃo pedregoso, riscando logo rancorosamente a linha que sentia deselegante e molle, ora n'um rebolišo, a sacudir e reenfiar sob a mesa os chinellos de marroquim, ora immovel e abandonado ß esterilidade que o travava, com os olhos esquecidos na Torre, na sua difficillima Torre, negra entre os limoeiros e o azul, toda envolta no piar e esvoašar das andorinhas. Por fim, descoršoado, arrojou a penna que tŃo desastrosamente emperrßra. E fechando na gavŕta, com uma pancada, o volume precioso do *Bardo*: --Irra! Estou perfeitamente entupido! ╔ este calor! E depois aquelle animal do Casco, toda a manhŃ!... Ainda releu, cošando sombriamente a nuca, a derradeira linha rabiscada e suja: --ź...Na sala altaneira e larga, onde os largos e pallidos raios da lua...╗ Larga, largos!... E os pallidos raios, os eternos _pallidos raios_!... Tambem este maldito castello, tŃo complicado!... E este D. Tructesindo, que eu nŃo apanho, tŃo antigo!... Emfim, um horror! Atirou, n'um repellŃo, a cadeira de couro; cravou, com furor, um charuto nos dentes;--e abalou da livraria, batendo desesperadamente a porta, n'um tedio immenso da sua obra, d'aquelles confusos e enredados Pašos de Santa Ireneia, e dos seus avˇs, enormes, resoantes, chapeados de ferro, e mais vagos que fumos. II Bocejando, apertando os cord§es das largas pantalonas de seda que lhe escorregavam da cinta, Gonšalo, que durante todo o dia preguišßra, estirado no divan de damasco azul, com uma vaga d˘r nos rins, atravessou languidamente o quarto para espreitar, no corredor, o antigo relogio de charŃo. Cinco horas e meia!... Para desannuviar, pensou n'uma caminhada pela fresca estrada dos Bravaes. Depois n'uma visita (devida jß desde a Paschoa!) ao velho Sanches Lucena, eleito novamente deputado, nas Eleiš§es Geraes de Abril, pelo circulo de Villa Clara. Mas a jornada ß _Feitosa_, ß quinta do Sanches Lucena, demandava uma hora a cavallo, desagradavel com aquella teimosa d˘r nos rins que o filßra na vespera ß noite, depois do chß, na Assembleia da Villa. E, indeciso, arrastava os passos no corredor, para gritar ao Bento ou ß Rosa que lhe subissem uma limonada, quando, atravez das varandas abertas, resoou um vozeirŃo de grosso metal, que gracejando mais se engrossava, rolava pelo pateo, n'uma cadencia cava de malho malhando: --Oh s˘ Gonšalo! Oh s˘ GonšalŃo! Oh s˘ Gonšalissimo Mendes Ramires!... Reconheceu logo o _Titˇ_, o Antonio Villalobos, seu vago parente, e seu companheiro de Villa Clara, onde aquelle homenzarrŃo excellente, de velha raša Alemtejana, se estabelecera sem motivo, sˇ por affeišŃo bucolica ß villa. E havia onze annos que a atulhava com os seus possantes membros, o lento rebombo do seu vozeirŃo, e a sua ociosidade espalhada pelos bancos, pelas esquinas, pelas ombreiras das lojas, pelos balc§es das tabernas, pelas sachristias a caturrar com os padres, atÚ pelo cemiterio a philosophar com o coveiro. Era um irmŃo do velho morgado de Cidadelhe (o genealogista), que lhe estabelecŕra uma mesada de oito moedas para o conservar longe de Cidadelhe--e do seu sujo serralho de mošas do campo, e da obra tenebrosa a que agora se atrellßra, a _Veridica InquirišŃo_, uma InquirišŃo sobre as bastardias, crimes e titulos illegitimos das familias fidalgas de Portugal. E Gonšalo, desde estudante, amßra sempre aquelle Hercules bonacheirŃo, que o seduzia pela prodigiosa forša, a incomparavel potencia em beber todo um pipo e em comer todo um anho, e sobretudo pela independencia, uma suprema independencia, que, apoiada ao bengalŃo terrifico e com as suas oito moedas dentro da algibeira, nada temia e nada desejava nem da Terra nem do CÚo.--Logo debrušado na varanda, gritou: --Oh Titˇ, sˇbe!... Sˇbe emquanto eu me visto. Tomas um calice de genebra... Vamos depois passear atÚ aos Bravaes... Sentado no rebordo do tanque redondo e sem agua que ornava o pateo, erguendo para o casarŃo a sua franca e larga face requeimada, cheia de barba ruiva, o Titˇ movia lentamente como um leque um velho chapÚo de palha: --NŃo posso... Ouve lß! Tu queres hoje ß noite cear no Gago, commigo e com o JoŃo Gouveia? Vae tambem o Videirinha e o violŃo. Temos uma tainha assada, uma famosa. E enorme, que eu comprei esta manhŃ a uma mulher da Costa por cinco tost§es. Assada pelo Gago!... Entendido, hein? O Gago abre pipa nova de vinho, do Abbade de Chandim. Eu conhešo o vinho. ╔ d'aqui, da ponta fina. E Titˇ, com dous dedos, delicadamente, sacudio a ponta molle da orelha. Mas Gonšalo, repuxando as pantalonas, hesitava: --Homem, eu ando com o estomago arrazado... E desde hontem ß noite uma d˘r nos rins, ou no figado, ou no bašo, nŃo sei bem, n'uma d'essas entranhas!... AtÚ hoje, para o jantar, sˇ caldo de gallinha e gallinha cosida... Emfim! vß! Mas, ß cautela, recommenda ao Gago que me prepare para mim um franguinho assado... Onde nos encontramos? Na AssemblÚa? O Titˇ despegßra logo do tanque, pousando na nuca o chapÚo de palha: --Hoje nŃo me gasto pela AssemblÚa. Tenho senhora. Das dez para as dez e meia, no Chafariz... Vae tambem o Videirinha com a viola. Viva!... Das dez para as dez e meia! Entendido... E franguinho assado para S. Ex.^a, que se queixa do rim! E atravessou o pateo, com lentidŃo bovina, parando a colher n'uma roseira, junto ao portŃo, uma rosa com que florio a quinzena de velludilho c˘r d'azeitona. Immediatamente Gonšalo decidira nŃo jantar, certo dos beneficios d'aquelle jejum atÚ ßs dez horas, depois de um passeio pelos Bravaes e pelo valle da Riosa. E, antes de entrar no quarto para se vestir, empurrou a porta envidrašada sobre a escura escada da cozinha, gritou pela Rosa cozinheira. Mas nem a boa velha, nem o Bento por quem tambem berrou furiosamente, responderam, no pesado silencio em que jaziam, como abandonados, esses sombrios fundos de grande lage e de grande abobada que restavam do antigo Palacio, restaurado por Vicente Ramires depois da sua campanha em Castella, incendiado no tempo de El-Rei D. JosÚ I. EntŃo Gonšalo desceu dous degrßos da gasta escadaria de pedra e atirou outro dos longos brados com que atroava a Torre--desde que as campainhas andavam desmanchadas. E descia ainda para invadir a cozinha quando a Rosa acudio. Sahira para o pateo da horta com a filha da Crispola! nŃo sentira o Snr. Doutor!... --Pois estou a berrar ha uma hora! E nem vocŕ nem Bento!... ╔ por que nŃo janto. Vou cear a Villa Clara com os amigos. A Rosa, do sonoro fundo do corredor, protestou, desolada. Pois o Sr. Doutor ficava assim em jejum atÚ horas da noite?--Filha d'um antigo hortelŃo da Torre, crescida na Torre, jß cozinheira da Torre quando Gonšalo nascŕra, sempre o tratßra por źmenino╗, e mesmo por źseu riquinho╗ atÚ que elle partio para Coimbra e comešou a ser, para ella e para o Bento, o źSr. Doutor╗.--E o Sr. Doutor, ao menos, devia tomar o caldinho de gallinha, que apurßra desde o meio dia, cheirava que nem feito no cÚo! Gonšalo, que nunca discordava da Rosa ou do Bento, consentio--e jß subia, quando reclamou ainda a Rosa para se informar da Crispola, uma desgrašada viuva que, com um rancho faminto de crianšas, adoecera pela Paschoa de febres perniciosas. --A Crispola vae melhor, Sr. Doutor. Jß se levanta. Diz a pequena que jß se levanta... Mas muito derreadinha... Gonšalo desceu logo outro degrßo, debrušado na escada, para mergulhar mais confidencialmente n'aquellas tristezas: --Olhe, oh Rosa, entŃo se a pequena ahi estß, coitada, que leve para casa ß mŃe a gallinha que eu tinha para jantar. E o caldo... Que leve a panella! Eu tomo uma chavena de chß com biscoitos. E olhe! Mande tambem dez tost§es ß Crispola... Mande dois mil rÚis. Escute! Mas nŃo lhe mande a gallinha e o dinheiro assim seccamente... Diga que estimo as melhoras, e que lß passarei por casa para saber. E esse animal do Bento que me suba agua quente! No quarto, em mangas de camisa, deante do espelho, um immenso espelho rolando entre columnas douradas, estudou a lingua que lhe parecia saburrosa, depois o branco dos olhos, receiando a amarellidŃo de bilis solta. E terminou por se contemplar na sua feišŃo nova, agora que rapßra a barba em Lisboa, conservando o bigodinho castanho, frisado e leve, e uma m˘sca um pouco longa, que lhe alongava mais a face aquilina e fina, sempre d'uma brancura de nata. O seu desconsolo era o cabello, bem ondeado, mas tenue e fraco, e, apezar de todas as aguas e pomadas, necessitando jß risca mais elevada, quasi ao meio da testa clara. --╔ infernal! Aos trinta annos estou calvo... E todavia nŃo se despegava do espelho, n'uma contemplašŃo agradada, recordando mesmo a recommendašŃo da tia Louredo, em Lisboa:--źOh sobrinho! o menino, assim galante e esperto, nŃo se enterre na provincia! Lisboa estß sem rapazes. Precisamos cß um bom Ramires!╗--NŃo! nŃo se enterraria na provincia, immovel sob a hera e a poeira melancolica das cousas immoveis, como a sua Torre!... Mas vida elegante em Lisboa, entre a sua parentella historica, como a aguentaria com o conto e oitocentos mil reis de renda que lhe restava, pagas as dividas do papß? E depois realmente vida em Lisboa sˇ a desejava com uma posišŃo politica,--cadeira em S. Bento, influencia intellectual no seu Partido, lentas e seguras avanšadas para o Poder. E essa, tŃo docemente sonhada em Coimbra, nas faceis cavaqueiras do Hotel Mondego,--muito remota a entrevia! Quasi inconquistavel, para alÚm de um muro alto e aspero, sem porta e sem fenda!... Deputado--como? Agora, com o horrendo S. Fulgencio e os Historicos no Ministerio durante tres gordos annos, nŃo voltariam Eleiš§es Geraes. E mesmo n'alguma EleišŃo Supplementar que possibilidade lograria elle, que, desde Coimbra, bem levianamente, arrastado por uma elegancia de tradiš§es, se manifestßra sempre Regenerador, no źCentro╗ da Couraša, nas correspondencias para a *Gazeta do Porto*, nas verrinas ardentes contra o chefe do Districto, o Cavalleiro detestavel?... Agora sˇ lhe restava esperar. Esperar, trabalhando; ganhando em consistencia social; edificando com sagacidade, sobre a base do seu immenso nome historico, uma pequenina nomeada politica; tecendo e estendendo a malha preciosa das amizades partidarias desde Santa Ireneia atÚ ao Terreiro do Pašo... Sim! eis a theoria explendida:--mas consistencia, nomeada, affeiš§es politicas, como se conquistam? źAdvogue, escreva nos jornaes!╗ f˘ra o conselho distrahido e risonho do seu chefe, o Braz Victorino. Advogar em Oliveira, mesmo em Lisboa? NŃo podia, com aquelle seu horror ingenito, quasi physiologico, a autos e papelada forense. Fundar um jornal em Lisboa como o Ernesto Rangel, seu companheiro de Coimbra no Hotel Mondego? Era fašanha facil para o neto adorado da Snr.^a D. Joaquina Rangel que armazenava dez mil pipas de vinho nos barrac§es de Gaia. Batalhar n'um jornal de Lisboa? N'essas semanas de Capital, sempre pelo Banco Hypothecario, sempre com as źprimas╗, nem formßra relaš§es duraveis e uteis nos dous grandes Diarios Regeneradores, a _ManhŃ_ e a _Verdade_... De sorte que, realmente, n'esse muro que o separava da fortuna sˇ descobria um buraquinho, bem apertado mas servišal--os *Annaes de Litteratura e d'Historia*, com a sua collaborašŃo de Professores, de Politicos, atÚ d'um Ministro, atÚ de um Almirante, o Guerreiro Araujo, esse tocante massador. Appareceria pois nos *Annaes* com a sua _Torre_, revelando imaginašŃo e um saber rico. Depois, trepando da InvenšŃo para o terreno mais respeitavel da ErudišŃo, daria um estudo (que atÚ lhe lembrßra no comboio, ao voltar de Lisboa!) sobre as źOrigens Visigothicas do Direito Publico em Portugal...╗ Oh, nada conhecia, Ú certo, d'essas Origens, d'esses Visigodos. Mas, com a bella historia da _AdministrašŃo Publica em Portugal_ que lhe emprestßra o Castanheiro, comporia corrediamente um resumo elegante... Depois, saltando da ErudišŃo ßs Sciencias Sociaes e Pedagogicas--por que nŃo amassaria uma boa źReforma do Ensino Juridico em Portugal╗ em dous artigos massudos, de Homem d'Estado?... Assim avanšava, bem chegado aos Regeneradores, construindo e cinzelando o seu pedestal litterario, atÚ que os Regeneradores voltassem ao Ministerio, e no muro se escancarasse a desejada porta triumphal.--E no meio do quarto, em ceroulas, com as mŃos nas ilhargas, Gonšalo Mendes Ramires concluio pela necessidade de apressar a sua Novella. --Mas, quando acabarei eu essa _Torre_? assim emperrado, sem veia, com o figado combalido?... O Bento, velho de face rapada e morena, com um lindo cabello branco todo encarapinhado, muito limpo, muito fresco na sua jaqueta de ganga, entrßra vagarosamente, segurando a infusa d'agua quente. --Oh Bento, ouve lß! Tu nŃo encontraste na mala que eu trouxe de Lisboa, ou no caixote, um frasco de vidro com um pˇ branco? ╔ um remedio inglez que me deu o Sr. Dr. Mattos... Tem um rotulo em inglez, com um nome inglez, nŃo sei quŕ, _fruit salt_... Quer dizer sal de fructas... O Bento cravou no soalho os olhos, que depois cerrou, meditando. Sim, no quarto de lavar, em cima do bah˙ vermelho, ficßra um frasco com pˇ, embrulhado num pergaminho antigo como os do Archivo. --╔ esse! declarou Gonšalo. Eu precisava em Lisboa uns documentos por causa d'aquelle malvado f˘ro de Praga. E por engano, na balburdia, levo do Archivo um pergaminho perfeitamente inutil! Vae buscar o rolo... Mas tem cuidado com o frasco! O Bento, cuidadoso, sempre lento, ainda enfiou os bot§es d'agatha nos punhos da camisa do Sr. Doutor, e desdobrou sobre a cama, para elle vestir, a quinzena, as calšas bem vincadas, de cheviote leve. E Gonšalo, retomado pela idÚa de artigos para os *Annaes*, folheava, rente ß janella, a _Historia da AdministrašŃo Publica em Portugal_, quando Bento voltou com um rolo de pergaminho, d'onde pendia, por fitas roidas, um sello de chumbo. --Esse mesmo! exclamou o Fidalgo atirando o volume para o poial da janella. ╔ esse mesmo que eu enrolei no pergaminho para se nŃo quebrar. Desembrulha, deixa em cima da commoda... O Sr. Dr. Mattos aconselhou que o tomasse com agua tepida, em jejum. Parece que ferve. E limpa o sangue, desannuvia a cabeša... Pois eu muito necessitado ando de desannuviar a cabeša!... Toma tu tambem, Bento. E dize ß Rosa que tome. Todos tomam agora, atÚ o Papa! Com cuidado, o Bento desenrolßra o frasco, estendendo sobre o marmore da commoda o pergaminho duro, onde a lettra do seculo XVI se encarquilhava amarella e morta. E Gonšalo, abotoando o colarinho: --Ora ahi estß o que eu levo preciosamente para deslindar o f˘ro de Praga! Um pergaminho do tempo de D. SebastiŃo... E sˇ percebo mesmo a data, mil quatrocentos... NŃo, mil quinhentos e setenta e sete. Nas vesperas da jornada d'Africa... Emfim! serviu para embrulhar o frasco. O Bento, que escolhera no gavetŃo um collete branco, relanceou de lado o pergaminho veneravel: --Naturalmente foi carta que El-rei D. SebastiŃo escreveu a algum avosinho do Sr. Doutor... --Naturalmente, murmurava o Fidalgo, deante do espelho. E para lhe dar alguma cousa boa, alguma cousa gorda... Antigamente ter rei era ter renda. Agora... NŃo apertes tanto essa fivella, homem! Trago ha dias o estomago inchado... Agora, com effeito, esta instituišŃo de Rei anda muito safada, Bento! --Parece que anda, observou gravemente o Bento. Tambem, o _Seculo_ affianša que os Reis estŃo a acabar, e por dias. Ainda hontem affianšava. E o _Seculo_ Ú jornal bem informado... No de hoje, nŃo sei se o Sr. Doutor leu, lß vem a grande festa dos annos do Sr. Sanches Lucena, e o fogo de vistas, e o brodio que deram na _Feitosa_... Enterrado no divan de damasco, Gonšalo estendera os pÚs ao Bento que lhe lašava as botas brancas: --Esse Sanches Lucena Ú um idiota! Ora que arranjo farß a esse homem, aos sessenta annos, ser deputado, passar mezes em Lisboa no Francfort, abandonar as propriedades, deixar aquella linda quinta... E para quŕ? Para rosnar de vez em quando źapoiado!╗ Antes elle me cedesse a cadeira, a mim, que sou mais esperto, nŃo possuo grandes terras, e gosto do Hotel Braganša. E por Sanches Lucena... O Joaquim amanhŃ que me tenha a egoa prompta, a esta hora, para eu ir ß _Feitosa_ visitar esse animal... E ponho entŃo o fato novo de montar que trouxe de Lisboa, com as polainas altas... Ha mais de dois annos que nŃo vejo a D. Anna Lucena. ╔ uma linda mulher! --Pois quando o Sr. Doutor estava em Lisboa elles passaram ahi, na caleche. AtÚ pararam, e o Sr. Sanches Lucena apontou para a Torre, a mostrar ß senhora... Mulher muito perfeita! E traz uma grande luneta, com um grande cabo, e um grande grilhŃo, tudo d'oiro... --Bravo!... Encharca bem esse lenšo com agoa de Colonia, que tenho a cabeša tŃo pesada!... Essa D. Anna era uma jornaleira, uma moša do campo, de Corinde? Bento protestou, com o frasco suspenso, espantado para o Fidalgo: --NŃo senhor! A Snr.^a D. Anna Lucena Ú de gente muito baixa! Filha d'um carniceiro d'Ovar... E o irmŃo andou a monte por ter morto o ferrador d'Ilhavo. --Emfim, resumiu Gonšalo, filha de carniceiro, irmŃo a monte, bella mulher, luneta d'oiro... Merece fato novo! * * * * * Em Villa-Clara, ßs dez horas, sentado n'um dos bancos de pedra do Chafariz, sob as olaias, o Titˇ esperava com o amigo JoŃo Gouveia--que era o Administrador do Concelho da Villa. Ambos se abanavam com os chapeus, em silencio, gozando a frescura e o sussurro da agua lenta na sombra. E a źmeia╗ batia no relogio da Camara, quando Gonšalo, que se retardßra na AssemblÚa n'um voltarete enremissado, appareceu annunciando uma fome terrivel, źa fome historica dos Ramires╗, e apressando a marcha para o Gago--sem mesmo consentir que o Titˇ descesse ß tabacaria do Brito, a buscar uma garrafa de aguardente de canna da Madeira, velha e źda ponta fina...╗ --NŃo ha tempo! Ao Gago! Ao Gago!... SenŃo devoro um de Vocŕs, com esta furiosa fome Ramirica! Mas, logo ao subirem a Calšadinha, parou elle cruzando os brašos, interpellando divertidamente o Sr. Aministrador do Concelho pelo estupendo feito do _seu_ Governo... EntŃo o _seu_ Governo, os _seus_ amigos Historicos, o _seu_ honradissimo S. Fulgencio--nomeavam, para Governador Civil de Monforte, o Antonio Moreno! O Antonio Moreno, tŃo justamente chamado em Coimbra Antoninha Morena! NŃo, realmente, era a derradeira degradašŃo a que podia rolar um paiz! Depois d'esta, para harmonia perfeita dos servišos, sˇ outra nomeašŃo, e urgente--a da Joanna Salgadeira, Procuradora Geral da Cor˘a! E o JoŃo Gouveia, um homem pequeno, muito escuro, muito secco, de bigode mais duro que piassaba, esticado n'uma sobrecasaca curta, com o chapeu de coco atirado para a orelha, nŃo discordava. Empregado imparcial, servindo os Historicos como servira os Regeneradores, sempre acolhia com imparcial ironia as nomeaš§es de bachareis novos, Historicos ou Regeneradores, para os gordos logares Administrativos. Mas, n'este caso, sinceramente, quasi vomitßra, rapazes! Governador Civil, e de Monforte, o Antonio Moreno, que elle tantas vezes encontrßra no quarto, em Coimbra, vestido de mulher, de roupŃo aberto, e a carinha bonita coberta de pˇ de arroz!...--E, travando do brašo do Fidalgo, recordava a noite em que o JosÚ GorjŃo, muito bebedo, de cartola e com um revˇlver, exigia furiosamente que o padre Justino, tambem bebedo, o casasse com o Antoninho deante d'um nicho da Senhora da Boa Morte! Mas o Titˇ, que esperava, floreando o bengalŃo, declarou ßquelles senhores que se o tempo sobejava para arrastarem assim na rua, a conversar de Politica e d'indecencias--entŃo voltava elle ao Brito, buscar a aguardentesinha... Immediatamente o Fidalgo da Torre, sempre brincalhŃo, sacudiu o brašo do Administrador, e galgou pela Calšadinha, aos corcovos, com as mŃos fortemente juntas, como colhendo uma redea, contendo um cavallo que se desboca. E na sala alta do Gago, ao cimo da escada esguia e ingreme que subia da taberna, a um canto da comprida mesa allumiada por dois candieiros de petroleo, a ceia foi muito alegre, muito saboreada. Gonšalo, que se declarava miraculosamente curado pelo passeio atÚ aos Bravaes e pelas emoš§es do voltarete em que ganhßra desenove tost§es ao Manoel Duarte--comešou por uma pratada d'ovos com chourišo, devorou metade da tainha, devastou o seu źfrango de doente╗, clareou o prato da salada de pepino, findou por um montŃo de ladrilhos de marmellada: e atravez d'este nobre trabalho, sem que a fina brancura da sua pelle se afogueasse, esvasiou uma caneca vidrada de AlvaralhŃo, porque logo ao primeiro trago, e com desgosto do Titˇ, amaldišoßra o vinho novo do Abbade. ┴ sobremesa appareceu o Videirinha, źo Videirinha do violŃo╗, tocador afamado de Villa Clara, ajudante da Pharmacia, e poeta com versos de amor e de patriotismo jß impressos no *Independente d'Oliveira*. Jantßra n'essa tarde, com o violŃo, em casa do commendador Barros, que celebrava o anniversario da sua commenda: e sˇ acceitou um copo d'AlvaralhŃo, em que esmagou um ladrilho de marmellada źpara adocicar a goella╗. Depois, ß meia noite, Gonšalo obrigou o Gago a espertar o lume, ferver um cafÚ źmuito forte, um cafÚ terrivel, Gago amigo! um cafÚ capaz de abrir talento no Sr. Commendador Barros!╗ Era essa a hora divina do violŃo e do źfadinho╗. E jß o Videirinha recußra para a sombra da sala, pigarreando, affinando os bord§es, pousado com melancolia ß borda d'um banco alto. --A _Soledad_, Videirinha! pediu o bom Titˇ, pensativo, enrolando um grosso cigarro. Videirinha gemeu deliciosamente a _Soledad_: Quando f˘res ao cemiterio Ai Soledad, Soledad!... Depois, apenas elle findou, acclamado, e emquanto acertava as cravelhas, o Fidalgo da Torre e JoŃo Gouveia, com os cotovellos na mesa, os charutos fumegando, conversaram sobre essa venda de Lourenšo Marques aos Inglezes, preparada surrateiramente (conforme clamavam, arripiados de horror, os jornaes da OpposišŃo) pelo Governo do S. Fulgencio. E Gonšalo tambem se arripiava! NŃo com a alienašŃo da Colonia--mas com a impudencia do S. Fulgencio! Que aquelle careca obeso, filho sacrilego d'um frade que depois se fizera mercieiro em Cabecelhos, trocasse a libras, para se manter mais dois annos no Poder, um pedašo de Portugal, torrŃo augusto, trilhado heroicamente pelos Gamas, os Athaydes, os Castros, os seus proprios avˇs--era para elle uma abominašŃo que justificava todas as violencias, mesmo uma revolta, e a casa de Braganša enterrada no lodo do Tejo! Trincando, sem parar, amendoas torradas, JoŃo Gouveia observou: --Sejamos justos, Gonšalo Mendes! Olhe que os Regeneradores... O Fidalgo sorrio superiormente. Ah! se os Regeneradores realisassem essa grandiosa operašŃo--bem! Esses, primeiramente, nunca commetteriam a indecencia de vender a Inglezes terra de Portuguezes! Negociariam com Francezes, com Italianos, povos latinos, rašas fraternas... E depois os bons milh§es soantes seriam applicados ao fomento do Paiz, com saber, com probidade, com experiencia. Mas esse horrendo careca do S. Fulgencio!...--E no seu furor, engasgado, gritou por genebra, por que realmente aquelle cognac do Gago era uma pešonha torpe! O Titˇ encolheu os hombros, resignado: --NŃo me deixaste ir buscar a aguardentesinha, agora aguenta... E a genebra Ú ainda mais pešonhenta. Nem para os negros d'esse Lourenšo Marques que tu queres vender... Portuguezes indecentes, a vender Portugal! AtÚ o Sr. Administrador do Concelho devia prohibir estas conversas... Mas o Sr. Administrador do Concelho affirmou que as consentia, e rasgadamente... Por que tambem elle, como Governo, venderia Lourenšo Marques, e Mošambique, e toda a Costa Oriental! E ßs talhadas! Em leilŃo! Alli, toda a Africa, posta em praša, apregoada no Terreiro do Pašo! E sabiam os amigos porquŕ? Pelo sŃo principio de forte administrašŃo--(estendia o brašo, meio alšado do banco, como n'um Parlamento)... Pelo sŃo principio de que todo o proprietario de terras distantes, que nŃo pˇde valorisar por falta de dinheiro ou gente, as deve vender para concertar o seu telhado, estrumar a sua horta, povoar o seu curral, fomentar todo o bom torrŃo que pisa com os pÚs... Ora a Portugal restava toda uma riquissima provincia a amanhar, a regar, a lavrar, a semear--o Alemtejo! O Titˇ lanšou o vozeirŃo, desdenhando o AlemtÚjo como uma pellicula de terra de mß qualidade, que, fˇra umas legoas de campos em torno de Beja e de Serpa, por um grŃo sˇ dava dois, e, apenas esgaravetada, logo mostrava o granito... --O mano JoŃo tem lß uma herdade immensa, immensissima, que rende trezentos mil rÚis! O Administrador, que advogßra em Mertola, protestou, encristado. O Alemtejo! Provincia abandonada, sim! Abandonada miseravelmente, desde seculos, pela imbecilidade dos governos... Mas riquissima, fertilissima! --Pois entŃo os Arabes... E qual Arabes! Ainda ha dias o Freitas GalvŃo me contava... Mas Gonšalo Mendes, que cuspira tambem a genebra com uma carantonha, acudiu, n'um resumo varredor, condemnando todo o Alemtejo como uma desgrašada illusŃo! Estirado por sobre a mesa, o Administrador gritava: --Vocŕ jß esteve no Alemtejo? --Tambem nunca estive na China, e... --EntŃo nŃo falle! Sˇ a vinha espantosa que plantou o JoŃo Maria... --Quŕ! Umas cem pipas de zurrapa! Mas, n'outros sitios, legoas e legoas sem... --Um celleiro! --Uma charneca! E atravez do tumulto o Videirinha, repenicando com solitario ardor, levado na torrente d'ais do źfado╗ da Ariosa, solušava contra uns olhos negros, donos do seu corašŃo: Ai! que dos teus negros olhos Me vem hoje a perdišŃo... O petroleo dos candieiros findava: e o Gago, reclamado para trazer castišaes, surdio em mangas de camisa, detraz d'uma cortina de chita, com a sua esperta humildade banhada em riso, lembrando a suas Excellencias que passava da uma horasinha da noite... O Administrador, que detestava noitadas, nocivas ß sua garganta (de amygdalas loucamente inflammaveis), puxou o relogio com terror. E rapidamente reabotoado na sobrecasa, de chapÚo c˘co mais tombado ß banda, apressou o lento Titˇ, por que ambos moravam no alto da Villa--elle defronte do Correio, o outro na viella das Therezas, n'uma casa onde outr'ora habitßra e apparecera apunhalado o antigo carrasco do Porto. O Titˇ porÚm nŃo se aviava. Com o bengalŃo debaixo do brašo, ainda chamou o Gago ao fundo sombrio da sala estreita, para cochichar sobre o embrulhado negocio d'uma compra de espingarda, soberba espingarda Winchester, empenhada ao Gago pelo filho do tabelliŃo Guedes d'Oliveira. E, quando desceu a escadaria, encontrou ß porta da taberna, no estendido luar que orlava a rua adormecida, o Fidalgo da Torre e o JoŃo Gouveia bruscamente engalfinhados na costumada contenda sobre o Governador Civil de Oliveira--o AndrÚ Cavalleiro! Era sempre a mesma briga, pessoal, furiosa e vaga. Gonšalo clamando que nŃo alludissem deante d'elle, pelas cinco chagas de Christo, a esse bandido, esse Snr. Cavalleiro e sobretudo Cavallo, mandŃo burlesco que desorganizava o Districto! E JoŃo Gouveia muito teso, muito secco, com o c˘co mais cahido na orelha, assegurando a inteligencia superior do amigo Cavalleiro, que estabelecera limpeza e ordem, como Hercules, nas cavallarišas d'Oliveira! O Fidalgo rugia. E Videirinha, com o violŃo resguardado atraz das costas, supplicava aos amigos que recolhessem ß taberna, para nŃo alvorotar a rua... --Tanto mais que defronte, coitada, a sogra do Dr. Venancio estß desde hontem com a pontada! --Pois entŃo, berrou Gonšalo, nŃo venham com disparates que revoltam! Dizer vocŕ, Gouveia, que Oliveira nunca teve Governador Civil como o Cavalleiro!... NŃo Ú por meu pae! O papß jß lß vae ha trez annos, infelizmente. E concordo que nŃo fosse boa auctoridade. Era frouxo, andava doente... Mas depois tivemos o Visconde de Freixomil. Tivemos o Bernardino. Vocŕ serviu com elles. Eram dois homens!... Mas este cavallo d'este Cavalleiro! A primeira condišŃo para a auctoridade superior d'um Districto Ú nŃo ser burlesca. E o Cavalleiro Ú d'entremez! Aquella guedelha de trovador, e a horrenda bigodeira negra, e o olho languinhento a pingar namoro, e o papo empinado, e o _pˇ-pˇ-poh_! ╔ d'entremez! E estupido, d'uma estupidez fundamental, que lhe comeša nas patas, vem subindo, vem crescendo. Oh senhores, que animal!... Sem contar que Ú malandro. Teso na sombra do immenso Titˇ, como uma estaca junto d'uma torre, o Administrador mordia o charuto. Depois, de dedo espetado, com uma serenidade cortante: --Vocŕ acabou?... Pois, Gonšalinho, agora escute! Em todo o districto d'Oliveira, note bem, em todo elle! nŃo ha ninguem, absolutamente ninguem, que de longe, muito de longe, se compare ao Cavalleiro em intelligencia, caracter, maneiras, saber, e finura politica! O Fidalgo da Torre emmudeceu, varado. Por fim sacudindo o brašo, n'um desabrido, arrogante desprezo: --Isso sŃo as opini§es d'um subalterno! --E isso sŃo as express§es d'um malcreado! uivou o outro, crescendo todo, com os olhinhos esbugalhados a fuzilar. Immediatamente entre os dois, mais grosso que um barrote, avanšou o brašo do Titˇ, estendendo uma sombra na calšada: --Olß! Oh rapazes! Que desconchavo Ú este? Vocŕs estŃo borrachos?... Pois tu, Gonšalo... Mas jß Gonšalo, n'um d'esses seus impulsos generosos e amoraveis que tŃo finamente seduziam, se humilhava, confessava a sua brutalidade, sensibilisado: --Perdoe vocŕ, JoŃo Gouveia! Sei perfeitamente que vocŕ defende o Cavalleiro por amizade, nŃo por dependencia... Mas que quer, homem? Quando me fallam n'esse Cavallo... NŃo sei, Ú por contagio da besta, orneio, atiro coice! O Gouveia, sem rancor, logo reconciliado (porque admirava carinhosamente o Fidalgo da Torre), deu um puxŃo forte ß sobrecasaca e apenas observou źque o Gonšalinho era uma fl˘r, mas picava...╗ Depois, aproveitando a emošŃo submissa de Gonšalo, recomešou a glorificašŃo do Cavalleiro, mais sobria. Reconhecia certas fraquezas. Sim, com effeito, aquelle modo impertigado... Mas que corašŃo!--E o Gonšalinho devia considerar... O Fidalgo, de novo revoltado, recuou, espalmando as mŃos: --Escute vocŕ, oh JoŃo Gouveia! Por que Ú que vocŕ lß em cima, ß ceia, nŃo comeu a salada de pepino? Estava divina, atÚ o Videirinha a appeteceu! Eu repeti, acabei a travessa... Por que foi? Por que vocŕ tem horror physiologico, horror visceral ao pepino. A sua natureza e o pepino sŃo incompativeis. NŃo ha raciocinios, nŃo ha subtilezas, que o persuadam a admittir lß dentro o pepino. Vocŕ nŃo duvida que elle seja excellente, desde que tanta gente de bem o adora: mas vocŕ nŃo pˇde... Pois eu estou para o Cavalleiro como vocŕ para o pepino. NŃo posso! NŃo ha molhos, nem raz§es, que m'o disfarcem. Para mim Ú ascoroso. NŃo vae! Vomito!... E agora ouša... EntŃo Titˇ, que bocejava, interveio, jß farto: --Bem! Parece-me que apanhamos a nossa dˇse de Cavalleiro, e valente! Somos todos muito boas pessoas e sˇ nos resta debandar. Eu tive senhora, tive tainha... Estou derreado. E nŃo tarda a madrugada, que vergonha! O Administrador pulou. Oh Diabo! E elle, ßs nove horas da manhŃ, com commissŃo de recenseamento!... Para esmagar bem o am˙o, cingiu Gonšalo n'um rijo abrašo. E, quando o Fidalgo descia para o Chafariz com o Videirinha (que n'estas noites festivas de Villa Clara o acompanhava sempre pela estrada atÚ ao portŃo da Torre), JoŃo Gouveia ainda se voltou, pendurado do brašo do Titˇ no meio da Calšadinha, para lhe lembrar um preceito moral źde nŃo sei que philosopho╗: --źNŃo vale a pena estragar boa ceia por causa de mß politica...╗ Creio que Ú d'Aristoteles! E atÚ Videirinha, que de novo afinava a viola, se preparava para um solto descante ao luar, murmurou respeitosamente por entre abafados harpejos: --NŃo vale a pena, Sr. Doutor... Realmente nŃo vale a pena, por que em Politica hoje Ú branco, ßmanhŃ Ú negro, e depois, zßs, tudo Ú nada! * * * * * O fidalgo encolhera os hombros. A Politica! Como se elle pensasse na Auctoridade, no Sr. Governador civil d'Oliveira--quando injuriava o Sr. AndrÚ Cavalleiro, de Corinde! NŃo! o que detestava era o homem--o falso homem d'olho langoroso! Por que entre elles existia um d'esses fundos aggravos que outr'ora, no tempo dos Tructesindos, armavam um contra o outro, em dura arrancada de lanšas, dois bandos senhoriaes...--E pela estrada, com a lua no alto dos oiteiros de Valverde, em quanto no violŃo do Videirinha tremia o choro lento do fado do Vimioso, Gonšalo Mendes recordava, aos pedašos, aquella historia que tanto enchera a sua alma desoccupada. Ramires e Cavalleiros eram familias vizinhas, uma com a velha torre em Santa Ireneia, mais velha que o Reino--a outra com quinta bem tratada e rendosa em Corinde. E quando elle, rapaz de dezoito annos, enfiava enfastiadamente os preparatorios do Lyceu, AndrÚ Cavalleiro, entŃo estudante do Terceiro-Anno, jß o tratava como um amigo serio. Durante as fÚrias, como a mŃe lhe dera um cavallo, apparecia todas as tardes na Torre; e muitas vezes, sob os arvoredos da quinta ou passeando pelos arredores de Bravaes e Valverde, lhe confiava, como a um espirito maduro, as suas ambiš§es politicas, as suas idÚas de vida que desejava grave e toda votada ao Estado. Gracinha Ramires desabrochava na fl˘r dos seus dezeseis annos; e mesmo em Oliveira lhe chamavam a źfl˘r da Torre╗. Ainda entŃo vivia a governante ingleza de Gracinha, a boa Miss Rhodes--que, como todos na Torre, admirava com enthusiasmo AndrÚ Cavalleiro pela sua amabilidade, a sua ondeada cabelleira romantica, a došura quebrada dos seus olhos largos, a maneira ardente de recitar Victor Hugo e JoŃo de Deus. E, com essa fraqueza que lhe amollecia a alma e os principios perante a soberania do Amor, favorecera demoradas conversas de AndrÚ com Maria da Graša sob as olaias do Mirante e mesmo cartinhas trocadas ao escurecer por sobre o muro baixo da MŃe d'Agua. Todos os domingos o Cavalleiro jantava na Torre:--e o velho procurador Rebello jß preparßra, com esforšo e resmungando, um conto de reis para o enxoval da źmenina╗. O pae de Gonšalo, Governador Civil de Oliveira, sempre atarefado, enredado em Politica e em dividas, amanhecendo sˇ na Torre aos Domingos, approvava esta collocašŃo de Gracinha, que, meiga e romanesca, sem mŃe que a velasse, creava na sua vida, jß difficil, um tropešo e um cuidado. Sem representar como elle uma familia de immensa Chronica, anterior ao Reino, do mais rico sangue de Reis godos, AndrÚ Cavalleiro era um mošo bem nascido, filho de general, neto de desembargador, com brasŃo legitimo na sua casa apalašada de Corinde, e terras fartas em redor, de boa semeadura, limpas de hypothecas... Depois, sobrinho de Reis Gomes, um dos Chefes Historicos, jß filiado no Partido Historico (desde o Segundo Anno da Universidade), a sua carreira andava marcada com seguranša e brilho na Politica e na AdministrašŃo. E emfim Maria da Graša amava enlevadamente aquelles reluzentes bigodes, os hombros fortes de Hercules bem educado, o porte ufano que lhe encourašava o peitilho e que impressionava. Ella, em contraste, era pequenina e fragil, com uns olhos timidos e esverdeados que o sorriso humedecia e enlanguescia, uma transparente pelle de porcellana fina, e cabellos magnificos, mais lustrosos e negros que a cauda d'um corcel de guerra, que lhe rolavam atÚ aos pÚs, em que se podia embrulhar toda, assim macia e pequenina. Quando desciam ambos as alamedas da quinta, miss Rhodes (que o pae, professor de Litteratura Grega em Manchester, recheßra de Mithologia) pensava sempre em źMarte cheio de forša amando PsychÚ cheia de graša.╗ E mesmo os criados da Torre se maravilhavam do źlindo par!╗ Sˇ a Snr.^a D. Joaquina Cavalleiro, a mŃe de AndrÚ, senhora obesa e rabugenta, detestava aquella terna assiduidade do filho na Torre, sem motivo pesado, sˇ por źdesconfiar da pinta da menina e desejar nˇra mais comesinha...╗ Felizmente, quando AndrÚ Cavalleiro se matriculava no Quinto Anno, a desagradavel matrona morreu d'uma anasarca. O pae de Gonšalo recebeu a chave do caixŃo: Gracinha tomou luto: e Gonšalo, companheiro de casa do Cavalleiro na rua de S. JoŃo, em Coimbra, enrolou um fumo na manga da batina. Logo em Santa Ireneia se pensou que o explendido AndrÚ, libertado da pŕca opposišŃo da mamŃ, pediria a źFl˘r da Torre╗ depois do Acto de Formatura. Mas, findo esse desejado Acto, Cavalleiro abalou para Lisboa--por que se preparavam Eleiš§es em Outubro, e elle recebera do tio Reis Gomes, entŃo Ministro da Justiša, a promessa de źser deputado╗ por Braganša. E todo esse verŃo o passou na Capital; depois em Cintra, onde o negro langor dos seus olhos humidos amollecia coraš§es; depois n'uma jornada quasi triumphal a Braganša com foguetes e źvivas ao sobrinho do Sr. conselheiro Reis Gomes!╗ Em Outubro Braganša źconfiou ao dr. AndrÚ Cavalleiro (como escreveu o _Echo de Traz-os-Montes_) o direito de a representar em C˘rtes com os seus brilhantes conhecimentos litterarios e a sua formosissima presenša de orador...╗ Recolheu entŃo a Corinde; mas nas suas visitas ß Torre, onde o pae de Gonšalo convalescia d'uma febre gastrica que exacerbßra a sua antiga diabetes, AndrÚ jß nŃo arrastava sofregamente Gracinha, como outr'ora, para as silenciosas sombras da quinta, permanecendo de preferencia na sala azul, a conversar sobre Politica com Vicente Ramires, que se nŃo movia da poltrona, embrulhado n'uma manta. E Gracinha, nas suas cartas para Coimbra a Gonšalo, jß se carpia de nŃo correrem tŃo doces nem tŃo intimas as visitas do AndrÚ ß Torre, źoccupado, como andava sempre agora, a estudar para deputado...╗ Depois do Natal o Cavalleiro voltou para Lisboa, para a abertura das C˘rtes, muito apetrechado, com o seu creado Matheus, uma linda egua que comprßra em Villa Clara ao Manoel Duarte, e dous caixotes de livros. E a boa Miss Rhodes sustentava que Marte, como convinha a um herˇe, sˇ reclamaria PsychÚ depois d'um nobre feito, uma estreia nas Camaras, źn'um discurso lindo, todo fl˘res...╗ Quando Gonšalo, nas fÚrias de Paschoa, apparešeu na Torre, encontrou Gracinha inquieta e descorada. As cartas do seu AndrÚ, que se estreßra źe n'um discurso lindo, todo fl˘res...╗, eram cada semana mais curtas, mais calmas. E a ultima (que ella lhe mostrou em segredo), datada da Camara, contava em tres linhas mal rabiscadas źque tivera muito que trabalhar em commiss§es, que o tempo se pozera lindo, que n'essa noite era o baile dos condes de Villaverde, e que elle continuava com muitas saudades o seu fiel AndrÚ...╗ Gonšalo Mendes Ramires, logo n'essa tarde, desabafou com o pae, que definhava na sua poltrona: --Eu acho que o AndrÚ se estß portando muito mal com a Gracinha... O papß nŃo lhe parece? Vicente Ramires apenas moveu, n'um gesto de vencida tristeza, a mŃo descarnada d'onde a cada momento lhe escorregava o annel d'armas. Por fim em Maio a sessŃo das Camaras terminou--essa sessŃo que tanto interessßra Gracinha, anciosa źque elles accabassem de discutir e tivessem fÚrias.╗ E quasi immediatamente ella em Santa Ireneia, Gonšalo em Coimbra, souberam pelos jornaes que źo talentoso deputado AndrÚ Cavalleiro partira para Italia e Franša n'uma longa viagem de recreio e d'estudo.╗ E nem uma carta ß sua escolhida, quasi sua noiva!... Era um ultraje, um bruto ultraje, que outr'ora, no seculo XII, lanšaria todos os Ramires, com homens de cavallo e peonagem, sobre o solar dos Cavalleiros, para deixar cada trave denegrida pela chamma, cada servo pendurado d'uma corda de canave. Agora Vicente Ramires, apagado e mortal, murmurou simplesmente: źQue traste!╗ Elle em Coimbra, rugindo, jurou esbofetear um dia o infame! A boa Miss Rhodes, para se consolar, desembrulhou a sua velha harpa, encheu Santa Ireneia de magoados harpejos. E tudo findou nas lagrimas que Gracinha, durante semanas, tŃo desconsolada da vida que nem se penteava, escondeu sob as olaias do Mirante. E, ainda depois d'esses annos, a esta lembranša das lagrimas da irmŃ, um rancor invadiu Gonšalo, tŃo redivivo que atirou para o lado, para sobre as sebes da valla, uma bengallada, como se fossem ßs costas do Cavalleiro!--Caminhavam entŃo junto ß ponte da Portella, onde os campos se alargam, e da estrada se avista Villa-Clara, que a lua branqueava toda, desde o convento de Santa Thereza, rente ao Chafariz, atÚ ao muro novo do cemiterio, no alto, com os seus finos cyprestes. Para o fundo do valle, clara tambem no luar, era a egrejinha de Craquŕde, Santa Maria de Craquŕde, resto do antigo Mosteiro em que ainda jaziam, nos seus rudes tumulos de granito, as grandes ossadas dos Ramires Affonsinos. Sob o arco, docemente, o riacho lento, arrastando entre os seixos, sussurrava na sombra. E Videirinha, enlevado n'aquelle silencio e suavidade saudosa, cantava, n'um gemer surdo de bord§es: Baldadas sŃo tuas queixas, Escusados sŃo teus ais, Que Ú como se eu morto f˘ra. E nŃo me verßs nunca mais!... E Gonšalo retomßra as suas recordaš§es, repassava tristezas que depois cahiram sobre a Torre. Vicente Ramires morrera n'uma tarde d'Agosto, sem soffrimento, estendido na sua poltrona ß varanda, com os olhos cravados na velha Torre, murmurando para o padre Soeiro:--źQuantos Ramires verß ella ainda, n'esta casa, e ß sua sombra?...╗ Todas essas ferias as consumiu Gonšalo no escuro cartorio, desajudado (por que o procurador, o bom Rebello, tambem Deus o chamßra), revolvendo papeis, apurando o estado da casa--reduzida aos dois contos e trezentos mil reis que rendiam os foros de Craquŕde, a herdade de Praga, e as duas quintas historicas, Treixedo e Santa Ireneia. Quando regressou a Coimbra deixou Gracinha em Oliveira, em casa de uma prima, D. Arminda Nunes Viegas, senhora muito abastada, muito bondosa, que habitava no Terreiro da Louša um immenso casarŃo cheio de retratos d'avoengos e de arvores de costado, onde ella, vestida de velludo preto, pousada n'um camapÚ de damasco, entre aias que fiavam, perpetuamente relia os seus Livros de Cavallaria, o _Amadis_, _Leandro o Bello_, _TristŃo e Brancafl˘r_, as _Chronicas do Imperador Clarimundo_... Foi ahi que JosÚ Barr˘lo (senhor d'uma das mais ricas casas d'Amarante) encontrou Gracinha Ramires, e a amou com uma paixŃo profunda, quasi religiosa--estranha n'aquelle mošo indolente, gorducho, de bochechas coradas como uma mašŃ, e tŃo escasso d'espirito que os amigos lhe chamavam źo JosÚ Bac˘co╗. O bom Barrolo residira sempre em Amarante com a mŃe, nŃo conhecia o trahido romance da źFl˘r da Torre╗--que nunca se espalhßra para alÚm dos cerrados arvoredos da quinta. E, sob o enternecido e romanesco patrocinio de D. Arminda, noivado e casamento docemente se apressaram, em tres mezes, depois d'uma carta de Barr˘lo a Gonšalo Mendes Ramires jurando--źque a affeišŃo pura que sentia pela prima Graša, pelas suas virtudes e outras qualidades respeitaveis, era tŃo grande que nem achava no Diccionario termos para a explicar...╗ Houve uma b˘da luxuosa: e os noivos (por desejo de Gracinha, para se nŃo affastar da querida Torre), depois d'uma jornada filial a Amarante, źarmaram o seu ninho╗ em Oliveira, ß esquina do largo d'El-Rei e da rua das Tecedeiras, n'um palacete que o Bac˘co herdßra, com largas terras, do seu tio Melchior, DeŃo da SÚ. Dois annos correram, mansos e sem historia. E Gonšalo Mendes Ramires passava justamente em Oliveira as suas ultimas fÚrias de Paschoa quando AndrÚ Cavalleiro, nomeado Governador Civil do Districto, tomou posse, estrondosamente, com foguetes, philarmonicas, o Governo civil e o Pašo do Bispo illuminados, as armas dos Cavalleiros em transparentes no cafÚ da Arcada e na Recebedoria!... Barr˘lo conhecia o Cavalleiro quasi intimamente, admirava o seu talento, a sua elegancia, o seu brilho Politico. Mas Gonšalo Mendes Ramires, que dominava soberanamente o bom Bac˘co, logo o intimou a nŃo visitar o Sr. Governador Civil, a nŃo o saudar sequer na rua, e a partilhar, por dever d'allianša, os rancores que existiam entre Cavalleiros e Ramires! JosÚ Barr˘lo cedeu, submisso, espantado, sem comprehender. Depois uma noite, no quarto, enfiando as chinellas, contou a Gracinha źa exquisitice de Gonšalo╗: --E sem motivo, sem offensa, sˇ por causa da Politica!... Ora, vŕ tu! Um bello rapaz como o Cavalleiro! Podiamos fazer um ranchinho tŃo agradavel!... Outro sereno anno passou... E n'essa primavera, em Oliveira, onde se demorßra para a festa dos annos de Barr˘lo, eis que Gonšalo suspeita, fareja, descobre uma incomparavel infamia! O impertigado homem da bigodeira negra, o Sr. AndrÚ Cavalleiro, recomešßra com soberba impudencia a cortejar Gracinha Ramires, de longe, mudamente, em olhadellas fundas, carregadas de saudade e langor, procurando agora apanhar como amante aquella grande fidalga, aquella Ramires, que desdenhßra como esposa! * * * * * TŃo levado ia Gonšalo pela branca estrada, no rolo amargo d'estes pensamentos, que nŃo reparou no portŃo da Torre, nem na portinha verde, ß esquina da casa, sobre tres degrßos. E seguia, rente do muro da horta, quando Videirinha, que estacßra com os dedos mudos nos bord§es do violŃo, o avisou, rindo: --Oh, Sr. Doutor, entŃo larga assim, a estas horas de corrida para os Bravaes? Gonšalo virou, bruscamente despertado, procurando na algibeira, entre o dinheiro solto, a chavinha do trinco: --Nem reparava... Que lindamente vocŕ tem tocado, Videirinha! Com lua, depois de ceia, nŃo ha companheiro mais poetico... Realmente vocŕ Ú o derradeiro trovador portuguez! Para o ajudante de Pharmacia, filho d'um padeiro d'Oliveira, a familiaridade d'aquelle tamanho Fidalgo, que lhe apertava a mŃo na botica deante do Pires boticario e em Oliveira deante das Auctoridades, constituia uma gloria, quasi uma coroašŃo, e sempre nova, sempre deliciosa. Logo sensibilisado, feriu os bord§es rijamente: --EntŃo, para acabar, lß vae a grande trova, Sr. Doutor! Era a sua famosa cantiga, o _Fado dos Ramires_, rosario de heroicas Quadras celebrando as Lendas da Casa illustre--que elle desde mezes apurava e completava, ajudado na terna tarefa pelo saber do velho Padre Soeiro, capellŃo e archivista da Torre. Gonšalo empurrou a portinha verde. No corredor espirrava uma lamparina mortiša, jß sem azeite, junto ao castišal de prata. E Videirinha, recuando ao meio da estrada, com um źdlindlon╗ ardente, fitßra a Torre, que, por cima dos telhados da vasta casa, mergulhava as ameias, o negro miradoiro, no luminoso silencio do ceu de verŃo. Depois para ella e para a lua atirou as endeixas glorificadoras, na dolente melodia d'um fado de Coimbra, rico em _ais_: Quem te v'rß sem que estremeša, Torre de Santa Ireneia, Assim tŃo negra e callada, Por noites de lua cheia... Ai! Assim callada, tŃo negra, Torre de Santa Ireneia! Ainda suspendeu para agradecer ao Fidalgo, que o convidava a subir e enxugar um calice de genebra salvadora. Mas retomou logo o descante, ditoso em descantar, como sempre arrebatado pelo sabor dos seus versos, pelo prestigio das Lendas, emquanto Gonšalo desapparecia--com folgazŃs desculpas ao Trovador źpor cerrar a portinha do Castello...╗ Ai! ahi estßs, forte e soberba, Com uma historia em cada ameia, Torre mais velha que o reino, Torre de Santa Ireneia!... E comešßra a quadra a Muncio Ramires, _Dente de Lobo_, quando em cima uma sala, aberta ß frescura da noite, se allumiou--e o Fidalgo da Torre, com o charuto acceso, se debrušou da varanda para receber a serenada. Mais ardente, quasi solušante, vibrou o cantar do Videirinha. Agora era a quadra de Gutierres Ramires, na Palestina, sobre o monte das Oliveiras, ß porta da sua tenda, deante dos Bar§es que o acclamavam com as espadas nuas, recusando o Ducado de GalilÚa e o senhorio das Terras d'AlÚm-JordŃo.--Que nŃo podia, em verdade, acceitar terra, mesmo Santa, mesmo de GalilÚa... Quem jß tinha em Portugal Terras de Santa Ireneia! --Boa piada! murmurou Gonšalo. Videirinha, enthusiasmado, entoou logo outra nova, trabalhada n'essa semana--a do sahimento de Aldonša Ramires, Santa Aldonša, trazida do mosteiro d'Arouca ao solar de Treixedo, sobre o almadraque em que morrera, aos hombros de quatro Reis! --Bravo! gritou o Fidalgo pendurado da varanda. Essa Ú famosa, oh Videirinha! Mas ahi ha Reis de mais... Quatro Reis! Enlevado, empinando o brašo do violŃo, o ajudante da Pharmacia lanšou outra, jß antiga--a d'aquelle terrivel Lopo Ramires que, morto, se erguera da sua campa no Mosteiro de Craquŕde, montßra um ginete morto, e toda a noite galopßra atravez da Hespanha para se bater nas Navas de Tolosa! Pigarreou--e, mais chorosamente, atacou a do _Descabešado_: Lß passa a negra figura... Mas Gonšalo, que abominava aquella lenda, a silenciosa figura degolada, errando por noites de inverno entre as ameias da Torre com a cabeša nas mŃos--despegou da varanda, deteve a Chronica immensa: --Toca a deitar, oh Videirinha, hein? Passa das tres horas, Ú um horror. Olhe! O Titˇ e o Gouveia jantam cß na Torre, no Domingo. Appareša tambem, com o violŃo e cantiga nova: mas menos sinistra... _Bona sera_! Que linda noite! Atirou o charuto, fechou a vidraša da sala--a źsala velha,╗ toda revestida d'esses denegridos e tristonhos retratos de Ramires que elle desde pequeno chamava as _carantonhas dos vovˇs_. E, atravessando o corredor, ainda sentia rolarem ao longe, no silencio dos campos cobertos de luar, fašanhas rimadas dos seus: Ai! lß na grande batalha... El-Rei Dom SebastiŃo... O mais mošo dos Ramires Que era pagem do guiŃo... Despido, soprada a vella, depois de um rapido signal da cruz, o Fidalgo da Torre adormeceu. Mas no quarto, que se povoou de Sombras, comešou para elle uma noite rev˘lta e pavorosa. AndrÚ Cavalleiro e JoŃo Gouveia romperam pela parede, revestidos de cˇtas de malha, montados em horrendas tainhas assadas! E lentamente, piscando o olho mßo, arremessavam contra o seu pobre estomago pontoadas de lanša, que o faziam gemer e estorcer sobre o leito de pau preto. Depois era, na Calšadinha de Villa-Clara, o medonho Ramires morto, com a ossada a ranger dentro da armadura, e El-rei Dom Affonso II, arreganhando afiados dentes de lobo, que o arrastavam furiosamente para a batalha das Navas. Elle resistia, fincado nas lages, gritando pela Rosa, por Gracinha, pelo Titˇ! Mas D. Affonso tŃo rijo murro lhe despedia aos rins, com o guante de ferro, que o arremessava desde a Hospedaria do Gago atÚ ß Serra Morena, ao campo da lide, luzente e fremente de pend§es e d'armas. E immediatamente seu primo d'Hespanha, Gomes Ramires, Mestre de Calatrava, debrušado do negro ginete, lhe arrancava os derradeiros cabellos, entre a retumbante galhofa de toda a hoste sarracena e os prantos da tia Louredo trazida como um andor aos hombros de quatro Reis!...--Por fim, moido, sem socŕgo, jß com a madrugada clareando nas fendas das janellas e as andorinhas piando no beiral dos telhados, o Fidalgo da Torre atirou um derradeiro repellŃo aos lenšoes, saltou ao soalho, abrio a vidraša--e respirou deliciosamente o silencio, a frescura, a verdura, o repouso da quinta. Mas que sŕde! uma sŕde desesperada que lhe encortišava os labios! Recordou entŃo o famoso _fruit salt_ que lhe recommendßra o Dr. Mattos,--arrebatou o frasco, correu ß sala de jantar, em camisa. E, a arquejar, deitou duas fartas colheradas n'um copo d'agua da Bica-Velha, que esvasiou d'um trago, na fervura picante. --Ah! que consolo, que rico consolo!... Voltou derreadamente ß cama: e readormeceu logo, muito longe, sobre as relvas profundas d'um prado d'Africa, debaixo de coqueiros susurrantes, entre o apimentado aroma de radiosas flores que brotavam atravez de pedregulhos d'oiro. D'essa perfeita beatitude o arrancou o Bento, ao meio dia, inquieto com źaquelle tardar do Sr. Doutor.╗ --╔ que passei uma noite horrenda, Bento! Pesadelos, pavores, bulhas, esqueletos... Foram os malditos ovos com chourišo; e o pepino... Sobretudo o pepino! Uma idÚa d'aquelle animal do Titˇ... Depois, de madrugada, tomei o tal _fruit salt_, e estou optimo, homem!... Estou optimissimo! AtÚ me sinto capaz de trabalhar. Leva para a livraria uma chavena de chß verde, muito forte... Leva tambem torradas. E momentos depois, na livraria, com um roupŃo de flanella sobre a camisa de dormir, sorvendo lentos goles de chß, Gonšalo relia junto da varanda essa derradeira linha da Novella, tŃo rabiscada e molle, em que źos largos raios da lua se estiravam pela larga sala d'armas...╗ De repente, n'uma rasgada impressŃo de claridade, entreviu detalhes expressivos para aquella noite de Castello e de verŃo--as pontas das lanšas dos esculcas faiscando silenciosamente pelos adarves da muralha, e o coaxar triste das rans nas bordas lodosas dos fossos... --Bons trašos! Achegou de vagar a cadeira, consultou ainda no volume do *Bardo* o Poemeto do tio Duarte. E, desannuviado, sentindo as Imagens e os Dizeres surgirem como bolhas d'uma agua represa que rebenta, atacou esse lance do Capitulo I em que o velho Tructesindo Ramires, na sala d'armas de Santa Ireneia, conversava com seu filho Lourenšo e seu primo D. Garcia Viegas, o _Sabedor_, de aprestos de guerra... Guerra! Porque? Acaso pelos cerros arraianos corriam, ligeiros entre o arvoredo, almogavares mouros? NŃo! Mas desgrašadamente, źn'aquella terra jß remida e christŃ, em breve se crusariam, umas contra outras, nobre lanšas portuguezas!...╗ Louvado Deus! a penna desemperrßra! E, attento ßs paginas marcadas n'um tomo da _Historia_ d'Herculano, esbošou com seguranša a Epocha da sua Novella--que abria entre as discordias de Affonso II e de seus irmŃos por causa do testamento d'El-Rei seu pae, D. Sancho I. N'esse comešo do Capitulo jß os Infantes D. Pedro e D. Fernando, esbulhados, andavam por Franša e LeŃo. Jß com elles abandonßra o Reino o forte primo dos Ramires, Gonšalo Mendes de Souza, chefe magnifico da casa dos Souzas. E agora, encerradas nos castellos de Monte-Mˇr e de Esgueira, as senhoras Infantas, D. Thereza e D. Sancha, negavam a D. Affonso o senhorio real sobre as villas, fortalezas, herdades e mosteiros, que tŃo copiosamente lhes doßra El-Rei seu pae. Ora, antes de morrer no Alcašar de Coimbra, o senhor D. Sancho supplicßra a Tructesindo Mendes Ramires, seu collašo e Alferes-Mˇr, por elle armado cavalleiro em LorvŃo, que sempre lhe servisse e defendesse a filha amada entre todas, a infanta D. Sancha, senhora de Aveyras. Assim o jurßra o leal Rico-Homem junto do leito onde, nos brašos do Bispo de Coimbra e do Prior do Hospital sustentando a candeia, agonisava, vestido de burel como um penitente, o vencedor de Silves... Mas eis que rompe a fÚra contenda entre Affonso II, asperamente cioso da sua auctoridade de Rei--e as Infantas, orgulhosas, impellidas ß resistencia pelos freires do Templo e pelos Prelados a quem D. Sancho legßra tŃo vastos pedašos do Reino! Immediatamente Alemquer e os arredores d'outros castellos sŃo devastados pela hoste real que recolhia das Navas de Tolosa. EntŃo D. Sancha e D. Thereza appellam para El-rei de LeŃo, que entra com seu filho D. Fernando por terras de Portugal a soccorrer as źDonas opprimidas.╗--E n'este lance o tio Duarte, no seu _Castello de Santa Ireneia_, interpellava com soberbo garbo o Alferes-Mˇr de Sancho I: Que farßs tu, mais velho dos Ramires? Se ao pendŃo leonez juntas o teu Trahes o preito que deves ao rei vivo! Mas se as Infantas deixas indefezas Trahes a jura que dÚstes ao rei morto!... Esta duvida, porÚm, nŃo angustißra a alma d'esse Tructesindo rude e leal que o Fidalgo da Torre rijamente modelava. N'essa noite, apenas recebera pelo irmŃo do Alcaide d'Aveyras, disfaršado em beguino, um afflicto recado da senhora D. Sancha--ordenava a seu filho Lourenšo que, ao primeiro arrebˇl, com quinze lanšas, cincoenta homens de pÚ da sua mercŕ e quarenta besteiros, corresse sobre Monte-mˇr. Elle no emtanto daria alarido--e em dous dias entraria a campo com os parentes de solar, um trošo mais rijo de cavalleiros acontiados e de frecheiros, para se juntar a seu primo, o _SouzŃo_, que na vanguarda dos leonezes descia d'Alva-do-Douro. Depois logo de madrugada o pendŃo dos Ramires, o Ašor negro em campo escarlate, se plantßra deante das barreiras gateadas: e ao lado, no chŃo, amarrado ß haste por uma tira de couro, reluzia o velho emblema senhorial, o sonoro e fundo caldeirŃo polido. Por todo o Castello se apressavam os servišaes, despendurando as cervilheiras, arrastando com fragor pelas lages os pesados saios de malhas de ferro. Nos pateos os armeiros agušavam ascumas, amaciavam a dureza das grevas e coxotes com camadas d'estopa. Jß o adail, na ucharia, arrolßra as raš§es de vianda para os dous quentes dias da arrancada. E por todas as cercanias de Santa Ireneia, na došura da tarde, os atambores mouriscos, abafados no arvoredo, tararam! tararam! ou mais vivos nos cabešos, ratatam! ratatam! convocavam os cavalleiros de soldo e a peonagem da mesnada dos Ramires. No emtanto o irmŃo do Alcaide, sempre disfaršado em beguino, de volta ao castello d'Aveyras com a boa nova de prestes soccorros, transpunha ligeiramente a levadiša da carcova... E aqui, para alegrar tŃo sombrias vesperas de guerra, o tio Duarte, no seu Poemeto, engastßra uma sorte galante: ┴ moša, que na fonte enchia a bilha, O frade rouba um beijo e diz _Amen_! Mas Gonšalo hesitava em desmanchar com um beijo de clerigo a pompa d'aquella formosa sortida d'armas... E mordia pensativamente a rama da penna--quando a porta da livraria rangeu. --O correio... Era o Bento com os Jornaes e duas cartas. O Fidalgo apenas abriu uma, lacrada com o enorme sinete d'armas do Barr˘lo--repellindo a outra em que reconhecera a lettra detestada do seu alfaiate de Lisboa. E immediatamente, com uma palmada na mesa: --Oh diabo! quantos do mez, hoje? quatorze, hein? O Bento esperava com a mŃo no fecho da porta. --╔ que nŃo tardam os annos da mana Graša! De todo esqueci, esquešo sempre. E sem ter um presentinho engrašado... Que secca, hein? Mas na vÚspera o Manoel Duarte, na AssemblÚa, ß mesa do voltarete, annuncißra uma fuga a Lisboa por tres dias, para tratar do emprego do sobrinho nas Obras Publicas. Pois corria a Villa-Clara pedir ao snr. Manoel Duarte que lhe comprasse em Lisboa um bonito guarda-solinho de sŕda branca com rendas... --O snr. Manoel Duarte tem gosto; tem muito gosto! E entŃo o Joaquim que nŃo selle a egoa; jß nŃo vou ao Sanches Lucena. Oh, senhores, quando pagarei eu esta infame visita? Ha tres mezes!... Emfim, por dous dias mais a bella D. Anna nŃo envelhece; e o velho Lucena tambem nŃo morre. E o Fidalgo da Torre, que decidira arriscar o beijo folgazŃo, retomou a penna, arredondou o seu final com elegante harmonia: źA moša, furiosa, gritou: _Fu! Fu! villŃo!_ E o beguino, assobiando, aligeirou as sandalias pelo corrego, na sombra das altas faias, emquanto que por todo o fresco valle, atÚ Santa Maria de Craquŕde, os atambores mouriscos, tararam! ratamtam! convocavam ß mesnada dos Ramires, na došura da tarde...╗ III Durante a longa semana, nas horas da calma, o Fidalgo da Torre trabalhou com afferro e proveito. E n'essa manhŃ, depois de repicar a sineta no corredor, duas vezes o Bento empurrßra a porta da livraria, avisando o snr. Doutor źque o almocinho, assim ß espera, certamente se estragava.╗ Mas de sobre a tira d'almašo Gonšalo rosnava źjß vou!╗--sem despegar a penna, que corria como quilha leve em agua mansa, na pressa amorosa de terminar, antes do almošo, o seu Capitulo I. Ah! e que canceira lhe custßra, durante esses dias, esse copioso Capitulo, tŃo difficil, com o immenso Castello de Santa Ireneia a erguer; e toda uma edade esfumada da Historia de Portugal a condensar em contornos robustos; e a mesnada dos Ramires a apetrechar, sem que faltasse uma rašŃo nos alforges, ou uma garruncha nos caixotes, sobre o dorso das mulas! Mas felizmente, na vespera, jß movera para fˇra do Castello o trošo de Lourenšo Ramires, em soccorro de Monte-mˇr, com um vistoso coriscar de capellos e lanšas em torno ao pendŃo tendido. E agora, n'esse remate do Capitulo, era noite, e o sino de recolher tangera, e a almenßra luzira na Torre albarran, e Tructesindo Ramires descera ß sala terrea da Alcašova para ceiar--quando fˇra, deante da carcova, com tres toques fortes annunciando filho-d'algo, uma bozina apressada soou. E, sem que o villico tomasse permissŃo do Senhor, o alšapŃo da levadiša rangeu nas correntes de ferro, rebombou cavamente nos apoios de pedra. Quem assim chegava em dura pressa era Mendo Paes, amigo de Affonso II e mordomo da sua Curia, casado com a filha mais velha de Tructesindo, D. Theresa--aquella que, pelo ondeante e alvo pescošo, pelo pisar mais leve que um v˘o, os Ramires chamavam a _Garša Real_. O Senhor de Santa Ireneia correra ao patim para acolher, n'um abrašo, o genro amado--źmembrudo cavalleiro, com os cabellos ruivos, a alvissima pelle da raša germanica dos visigodos...╗ E, de mŃos enlašadas, ambos penetraram n'essa sala de abobada, allumiada por tochas que toscos anneis de ferro seguravam, chumbados aos muros. Ao meio pousava a massiša meza de carvalho, rodeada de escanhos atÚ ao topo, onde se erguia, deante d'um aspero mantel de linho coberto de pratos de estanho e de picheis luzidios, a cadeira senhorial com o Ašor grossamente lavrado nas altas espaldas, e d'ellas suspensa, pelo cinturŃo tauxeado de prata, a espada de Tructesindo. Por traz negrejava a funda lareira apagada, toda entulhada de ramos de pinheiro, com a prateleira guarnecida de conchas, entre bocaes de sanguesugas, sob dois molhos de palmas trazidas da Palestina por Gutierres Ramires, o _d'Ultramar_. Rente a um esteio da chaminÚ, um falcŃo, ainda emplumado, dormitava na sua alcondora: e ao lado, sobre as lages, n'uma camada de juncos, dois al§es enormes dormiam tambem, com o focinho nas patas, as orelhas rojando. Toros de castanheiro sustentavam a um canto um pipo de vinho. Entre duas frestas engradadas de ferro, um monge, com a face sumida no capuz, sentado na borda de uma arca, lia, ß claridade do candil que por cima fumegava, um pergaminho desenrolado... Assim Gonšalo adornßra a soturna sala Affonsina com alfaias tiradas do Tio Duarte, de Walter Scott, de narrativas do _Panorama_. Mas que esforšo!... E mesmo, depois de collocar sobre os joelhos do monge um folio impresso em Moguncia por Ulrick Zell, desmanchßra toda essa linha tŃo erudita, ao recordar, com um murro na mesa, que ainda a Imprensa se nŃo inventßra em tempos de seu av˘ Tructesindo, e que ao monge lettrado apenas competia źum pergaminho de amarellada escripta...╗ E caminhando nos ladrilhos sonoros, desde a lareira atÚ ao arco da porta cerrado por uma cortina de couro, Tructesindo, com a branca barba espalhada sobre os brašos cruzados, escutava Mendo Paes, que, na confianša de parente e amigo, jornadeßra sem homens da sua mercŕ, cingindo apenas por cima do brial de lŃ cinzenta uma espada curta e um punhal sarraceno. Ašodado e coberto de pˇ correra Mendo Paes desde Coimbra para supplicar ao sogro, em nome do Rei e dos preitos jurados, que se nŃo bandeasse com os de LeŃo e com as senhoras Infantas. E jß desenrolßra ante o velho todos os fundamentos invocados contra ellas pelos doutos Notarios da Curia--as resoluš§es do Concilio de Toledo! a bulla do Apostolo de Roma, Alexandre! o velho fˇro dos Visigodos!... De resto, que injuria fizera ßs senhoras Infantas seu real irmŃo para assim chamarem hostes Leonezas a terras de Portugal? Nenhuma! Nem regedoria nem renda dos castellos e villas da doašŃo de D. Sancho lhes negava o senhor D. Affonso. O Rei de Portugal sˇ queria que nenhum palmo de chŃo portuguez, baldio ou murado, jazesse fˇra de seu senhorio real. Escasso e avido El-Rei D. Affonso?... Mas nŃo entregßra elle ß senhora D. Sancha oito mil morabitinos d'oiro? E a gratidŃo da irmŃ f˘ra o Leonez passando a raia e logo cahidos os castellos formosos d'Ulgoso, de Contrasta, d'Urros e de Lanhosello! O mais velho da casa dos Souzas, Gonšalo Mendes, nŃo se encontrßra ao lado dos cavalleiros da Cruz na jornada das Navas, mas lß andava em recado das Infantas, como moiro, talando terra portugueza desde Aguiar atÚ Miranda! E jß pelos cerros d'AlÚm-Douro apparecera o pendŃo renegado das treze arruellas--e por traz, farejando, a alcateia dos Castros! Carregada ameaša, e de armas christŃs, opprimindo o Reino--quando ainda Moabitas e Agarenos corriam ß redea solta pelos campos do Sul!... E o honrado Senhor de Santa Ireneia, que tŃo rijamente ajudßra a fazer o Reino, nŃo o deveria decerto desfazer arrancando d'elle os pedašos melhores para monges e para donas rebeldes!--Assim, com arremessados passos, exclamßra Mendo Paes, tŃo acalorado do esforšo e da emošŃo, que duas vezes encheu de vinho uma conca de pau e d'um trago a despejou. Depois, limpando a bocca ßs costas da mŃo tremula: --Ide por certo a Monte-mˇr, senhor Tructesindo Ramires! Mas em recado de paz e boa avenša, persuadir vossa senhora D. Sancha e as senhoras Infantas que voltem honradamente a quem hoje contam por seu pae e seu Rei! O enorme senhor de Santa Ireneia parßra, pousando no genro os olhos duros, sob a ruga das sobrancelhas, hirsutas e brancas como saršas em manhŃ de geada: --Irei a Monte-mˇr, Mendo Paes, mas levar o meu sangue e o dos meus para que justiša logre quem justiša tem. EntŃo Mendo Paes, amargurado, ante a heroica teima: --Maior dˇ, maior dˇ! Serß bom sangue de Ricos-homens vertido por mßs desfˇrras... Senhor Tructesindo Ramires, sabei que em Canta-Pedra vos espera Lopo de BaiŃo, o Bastardo, para vos tolher a passagem com cem lanšas! Tructesindo ergueu a vasta face--com um riso tŃo soberbo e claro que os al§es rosnaram torvamente, e, acordando, o falcŃo esticou a aza lenta: --Boa nova e de boa esperanša! E, dizei, senhor Mordomo-mˇr da Curia, tŃo de feišŃo e certa assim m'a trazeis para me intimidar? --Para vos intimidar?... Nem o Senhor Archanjo S. Miguel vos intimidaria descendo do cÚo com toda a sua hoste e a sua espada de lume! De sobra o sei, senhor Tructesindo Ramires. Mas casei na vossa casa. E jß que n'esta lide nŃo sereis por mim bem ajudado, quero, ao menos, que sejaes bem avisado. O velho Tructesindo bateu as palmas para chamar os sergentes: --Bem, bem, a cear, pois! ┴ ceia, Frei Munio!... E vˇs, Mendo Paes, deixai receios. --Se deixo! NŃo vos pˇde vir damno que me anceie de cem lanšas, de duzentas, que vos surjam a caminho. E, emquanto o monge enrolava o seu pergaminho, se acercava da mesa--Mendo Paes ajuntou com tristeza, desafivelando vagarosamente o cinturŃo da espada: --Sˇ um cuidado me pesa. E Ú que, n'esta jornada, senhor meu sogro, ides ficar de mal com o Reino e com o Rei. --Filho e amigo! De mal ficarei com o Reino e com o Rei, mas de bem com a honra e commigo! Este grito de fidelidade, tŃo altivo, nŃo resoava no poemeto do tio Duarte. E quando o achou, com inesperada inspirašŃo, o Fidalgo da Torre, atirando a penna, esfregou as mŃos, exclamou, enlevado: --Caramba! Aqui ha talento! Rematou logo o Capitulo. Estava esfalfado, ß banca do trabalho desde as nove horas, a reviver intensamente, e em jejum, as energias magnificas dos seus fortes avˇs! Numerou as tiras--fechou na gaveta ß chave o volume do *Bardo*. Depois ß janella, com o collete desabotoado, ainda lanšou o brado genial n'um grave e rouco tom, como o lanšaria Tructesindo:--...źde mal com o Reino e com o Rei, mas de bem com a honra e commigo!...╗ E sentia n'elle realmente toda a alma de um Ramires, como elles eram no seculo XII, de sublime lealdade, mais presos ß sua palavra que um santo ao seu voto, e alegremente desbaratando, para a manter, bens, contentamento e vida! O Bento, que espalhßra outro repique desesperado, escancarou a porta da livraria: --╔ o Pereira... Estß lß em baixo no pateo o Pereira que quer fallar ao Sr. Doutor. Gonšalo Mendes franziu a testa, com impaciencia, assim repuxado d'aquellas alturas onde respirava os nobres espiritos da sua raša: --Que massada!... O Pereira... Que Pereira? --O Pereira; o Manoel Pereira, da Riosa; o Pereira Brazileiro. Era um lavrador, com casal na Riosa, chamado _Brazileiro_ por ter herdado vinte contos de um tio, regatŃo no Parß. Comprßra entŃo terras, trazia arrendada a _Cortiga_, a fallada propriedade dos condes de Monte-Agra, envergava aos domingos uma sobrecasaca de panno fino, e dispunha de sessenta votos na Freguezia. --Ah! Dize ao Pereira que suba, que conversamos emquanto almˇšo... E p§e outro talher. A sala de jantar da Torre, que abria por trez portas envidrašadas para uma funda varanda alpendrada, conservava, do tempo do av˘ DamiŃo, (o traductor de Valerius Flaccus) dous formosos pannos d'Arraz representando a _ExpedišŃo dos Argonautas_. Loušas da India e do JapŃo, desirmanadas e preciosas, recheiavam um immenso armario de mogno. E sobre o marmore dos aparadores rebrilhavam os restos, ainda ricos, das pratas famosas dos Ramires que o Bento constantemente areava e polia com amor. Mas Gonšalo, sobretudo de verŃo, sempre almošava e jantava na varanda luminosa e fresca, bem esteirada, revestida atÚ meio-muro por finos azulejos do seculo XVIII, e offerecendo a um canto, para as preguišas do charuto, um profundo canapÚ de palhinha com almofadas de damasco. Quando lß entrou, com os jornaes da manhŃ que nŃo abrira, o Pereira esperava, encostado a um grosso guarda-sol de panninho escarlate, considerando pensativamente a quinta que, d'alli, se abrangia atÚ aos ßlamos da ribeira do Coice e aos outeiros suaves de Valverde. Era um velho esgalgado e rijo, todo ossos, com um carŃo moreno, de olhos miudinhos e azulados, e uma barbicha rala, jß branca, entre dous enormes collarinhos presos por bot§es de ouro. Homem de propriedade, acostumado ß Cidade e ao trato das Auctoridades, estendeu largamente a mŃo ao Fidalgo da Torre, e acceitou, sem embarašo, a cadeira que elle lhe empurrßra para a mesa--onde dominavam, com os seus ricos lavores duas altas enfusas de crystal antigo, uma cheia d'ašucenas e a outra de vinho verde. --EntŃo, que bom vento o traz pela Torre, Pereira amigo? NŃo o vejo desde Abril! --╔ verdade, meu Fidalgo, desde o sabbado em que cahiu a grande trovoada, na vespera da eleišŃo! confirmou o Pereira affagando o cabo do guarda-sol que conservßra entre os joelhos. Gonšalo, n'uma esfaimada pressa do almošo, repicou a campainha de prata. Depois rindo: --E os seus votos, Pereira amigo, segundo o costume, lß foram para o eterno Sanches Lucena, direitinhos, como os rios vŃo para o mar! O Pereira tambem riu, com um riso agradado que lhe descobria os mßos dentes. Pois o circulo era uma propriedade do Sr. Sanches Lucena! Cavalheiro de fortuna, homem de bem, conhecedor, servišal... E entŃo, quando lhe calhava como em Abril o apoio do Governo, nem Nosso Senhor Jesus Christo que voltasse ß terra e se propuzesse por Villa-Clara desalojava o patrŃo da _Feitosa_! O Bento, vagaroso, de jaqueta de lustrina preta sobre o avental resplandecente, entrava com um prato d'ovos estrellados, quando o Fidalgo, que desdobrßra o guardanapo, o amarrotou, arremessou com nojo: --Este guardanapo jß serviu! Eu estou farto de gritar. NŃo me importa guardanapo r˘to, ou com passagens, ou com remendos... Mas branquinho, fresquinho cada manhŃ, a cheirar a alfazema! E reparando no Pereira, que discretamente arredava a cadeira: --O quŕ! Vocŕ nŃo almoša, Pereira?... NŃo, agradecia muito ao Fidalgo, mas n'essa tarde comia as sopas com o genro nos Bravaes, que era festa pelos annos do netinho. --Bravo! Parabens, Pereira amigo! Dŕ lß um beijo meu ao netinho... Mas entŃo ao menos um copo de vinho verde. --Entre as comidas, meu Fidalgo, nem agua nem vinho. Gonšalo farejßra, arredßra os ovos. E reclamou o źjantar da familia╗, sempre muito farto e saboroso na Torre, e comešando por essas pesadas sopas de pŃo, presunto e legumes, que elle desde creanša adorava e chamava as _palanganas_. Depois, barrando de manteiga uma bolacha: --Pois francamente, Pereira, esse seu Sanches Lucena nŃo faz honra ao circulo! Homem excellente, decerto, respeitavel, obsequiador... Mas mudo, Pereira! Inteiramente mudo! O lavrador rošou vagarosamente pelas ventas cabelludas o lenšo vermelho, enrolado em bˇla: --Sabe as cousas, pensa com acŕrto... --Sim! mas pensamento e acŕrto nŃo lhe sahem de dentro do craneo! Depois estß muito velho, Pereira! Que edade terß elle? Sessenta? --Sessenta e cinco. Mas de gente muito rija, meu Fidalgo. O av˘ durou atÚ aos cem annos. E ainda o conheci na loja... --Como, na loja? EntŃo o Pereira, enrolando mais o lenšo, estranhou que o Fidalgo nŃo soubesse a historia do Sanches Lucena. Pois o av˘, o Manoel Sanches, era um linheiro do Porto, da rua das Hortas. E casado tambem com uma moša muito vistosa, muito farfalhuda... --Bem! atalhou o Fidalgo. Isso Ú honroso para o Sanches Lucena. Gente que engordou, que trepou... E eu concordo, Pereira, o circulo deve mandar a Lisboa um homem como o Sanches Lucena, que tenha n'elle terra, raizes, interesses, nome... Mas Ú preciso que seja tambem homem com talento, com arrojo. Um deputado, que, nas grandes quest§es, nas crises, se erga, transporte a Camara!... E depois, Pereira amigo, em Politica quem mais grita mais arranja. Olhe a estrada da Riosa! Ainda em papel, a lapis vermelho... E, se o Sanches Lucena fosse homem de berrar em S. Bento, jß o Pereira trazia por lß os seus carros a chiar. O Pereira abanou a cabeša, com tristeza: --Ahi talvez o Fidalgo acerte... Para essa estradinha da Riosa sempre faltou quem gritasse. Ahi talvez o Fidalgo acerte! Mas o Fidalgo emmudecera, embebido na cheirosa sopa, dentro d'uma cašoila nova, com raminhos de hortelŃ. E entŃo o Pereira, acercando mais a cadeira, cruzou no rebordo da mesa as mŃos, que meio seculo de trabalho na terra tornßra negras e duras como raizes--e declarou que se atrevera a incommodar o Fidalgo, ßquellas horas do almocinho, porque n'essa semana comešava um cˇrte de madeiras para os lados de Sandim, e desejava, antes que surdissem outros arranjos, conversar com S. Ex.^a sobre o arrendamento da Torre... Gonšalo reteve a colhÚr, num pasmo risonho: --Vocŕ queria arrendar a Torre, Pereira? --Queria conversar com V. Ex.^a. Como o Relho estß despedido... --Mas eu jß tratei com o Casco, o JosÚ Casco dos Bravaes! Ficamos meio apalavrados, ha dias... Ha mais de uma semana. O Pereira cošou arrastadamente a barba rala. Pois era pena, grande pena... Elle sˇ no sabbado s'inteirßra da desavenša com o Relho. E, se o Fidalgo nŃo resalvava o segredo, por quanto ficßra o arrendamento? --NŃo resalvo, nŃo, homem! Novecentos e cincoenta mil rÚis. O Pereira tirou da algibeira do collete a caixa de tartaruga, e sorveu detidamente uma pitada, com o carŃo pendido para a esteira. Pois maior pena, mesmo para o Fidalgo. Emfim! depois de palavra trocada... Mas era pena, porque elle gostava da propriedade; jß pelo S. JoŃo pensßra em abeirar o Fidalgo; e, apezar dos tempos correrem escassos, nŃo andaria longe de offerecer um conto e cincoenta, mesmo um conto cento e cincoenta! Gonšalo esqueceu a sopa, n'uma emošŃo que lhe afogueou a face fina, ante um tal accrescimo de renda--e a excellencia de tal rendeiro, homem abastado, com metal no banco, e o mais fino amanhador de terras de todas as cercanias! --Isso Ú sÚrio, oh Pereira? O velho lavrador pousou a caixa de rapÚ sobre a toalha, com decisŃo: --Meu Fidalgo, eu nŃo era homem que entrasse na Torre para cašoar com V. Ex.^a! Proposta a valer, escriptura a fazer... Mas se o arrendamento estß tratado... Recolheu a caixa, apoiava a mŃo larga na meza para se erguer, quando Gonšalo acudiu, nervoso, empurrando o prato: --Escute, homem!... Eu, nŃo contei por miudo o caso do Casco. Vocŕ comprehende, sabe como essas cousas passam... O Casco veiu, conversamos; eu pedi novecentos e cincoenta mil reis e porco pelo Natal. Primeiramente concordou, que sim; logo adiante emendou, que nŃo... Voltou com o compadre; depois, com a mulher e o compadre, e o afilhado, e o cŃo! Depois sˇ. Andou ahi pela quinta, a medir, a cheirar a terra; acho atÚ que a provou. Aquellas rabulices do Casco!... Por fim, uma tarde, lß gemeu, lß acceitou os novecentos e cincoenta mil reis, sem porco. Cedi do porco. Aperto de mŃo, copo de vinho. Ficou de apparecer para combinar, tratar da escriptura. NŃo o avistei mais, ha quasi duas semanas! Naturalmente jß virou, jß se arrependeu... Para resumir, nŃo tenho com o Casco contracto firme. Foi uma conversa em que apenas estabelecemos, como base, a renda de novecentos e cincoenta. E eu, que detesto cousas vagas, jß andava pensando em encontrar melhor homem! Mas o Pereira cošava o queixo, desconfiado. Elle, em negocios, gostava de lisura. Sempre se entendŕra bem com o Casco. Nem por um condado se atravessaria nos arranjos do Casco, homem violento, assomado. De modo que desejava as cousas claras, para nŃo surdir desgosto rijo. NŃo se lavrßra escriptura, bem! Mas ficßra, ou nŃo, palavra dada entre o Fidalgo e o Casco? Gonšalo Mendes Ramires, que findßra apressadamente a sopa e enchia um copo de vinho verde para se calmar, fitou o lavrador, quasi severamente: --Homem, essa pergunta!... Pois se eu tivesse confirmado ao Casco decisivamente a palavra de Gonšalo Ramires, estava agora aqui a tratar, ou sequer a conversar comsigo, Pereira, sobre o arrendamento da Torre? O Pereira baixou a cabeša. Tambem era verdade!... Pois, n'esse caso, elle abria a sua tenšŃo, claramente. E, como conhecia a propriedade, e apurßra o seu calculo--offerecia ao Fidalgo um conto cento e cincoenta mil rÚis, sem porco. Mas nŃo dava para a familia nem leite, nem hortališa, nem fructa. O Fidalgo, homem sˇ, pouco se aproveitava. A Torre, porÚm, casa antiga, enxameava de gentes e d'adherentes. Todos apanhavam, todos abusavam... Emfim, esse era o seu principio. E de resto, para a meza do Fidalgo e mesmo dos creados, bastava o pomar e a horta de regalo... Que horta e pomar necessitavam trato mais geitoso: mas elle, por amor do Fidalgo, e gosto seu, por lß passaria e tudo luziria... Emquanto ßs outras condiš§es, acceitava as do antigo arrendamento. E escriptura assignada para a outra semana, no sabbado... Estava feito? Gonšalo, depois de um momento em que pestanejou nervosa e tremulamente, estendeu a mŃo aberta ao Pereira: --Toque! Agora sim! Agora fica palavra dada! --E nosso Senhor lhe ponha virtude, concluiu o Pereira, firmado no immenso guarda-sol para se erguer. EntŃo no sabbado, em Oliveira, para a escriptura... Assigna V. Ex.^a ou o Sr. padre Soeiro? Mas o fidalgo calculava: --NŃo, homem, nŃo pˇde ser! No sabbado, com effeito, estou em Oliveira, mas sŃo os annos da mana Maria da Graša... O Pereira destapou de novo os maus dentes, n'um riso de estima: --Ah! e como vae a snr.^a D. Maria da Graša? Ha que edades a nŃo vejo! Desde o anno passado, na procissŃo de Passos, em Oliveira... Muito boa senhora! Muito dada! E o Sr. JosÚ Barr˘lo? Pessoa excellente tambem, a valer, o Sr. JosÚ Barr˘lo... E que terra a d'elle, a _Ribeirinha_! A melhor propriedade d'estas vinte leguas em redor. Linda propriedade! A do AndrÚ Cavalleiro que lhe estß pegada, a _Biscaia_, nŃo se lhe compßra--Ú como cardo ao pÚ de couve. O Fidalgo da Torre descascava um pecego, sorrindo: --Do AndrÚ Cavalleiro nada presta, Pereira! Nem terra, nem alma! O lavrador pareceu surprehendido. Elle imaginava que o Fidalgo e o Cavalleiro continuavam chegados e amigos... NŃo em Politica! Mas particularmente, como cavalheiros... --O que? Eu e o Cavalleiro? Nem como cavalheiro nem como politico. Que elle nem Ú cavalheiro nem politico. ╔ apenas cavallo, e resabiado. O Pereira ficou silencioso, com os olhos na toalha. Depois, resumindo: --EntŃo estß entendido, no sabbado, na cidade. E, se nŃo faz transtorno ao Fidalgo, passamos pelo tabelliŃo Guedes, e fica o feito arrumado. O Fidalgo, naturalmente, vae para a casa da senhora sua mana... --Sempre. Appareša vocŕ ßs trez horas. Lß conversamos com o padre Soeiro. --Tambem ha que edades nŃo encontro o Sr. padre Soeiro! --Oh! esse ingrato, agora, raramente apparece na Torre. Sempre em Oliveira, com a mana Graša, que Ú a menina dos seus encantos... EntŃo nem um calice de vinho do Porto, Pereira?... Bem, atÚ sabbado. NŃo esqueša o beijinho para o neto. --Cß me vae no corašŃo, meu Fidalgo... Ora essa! Pois consentia eu que V. Ex.^a se levantasse? Sei perfeitamente a escada, e ainda passo pela cozinha para debicar com a tia Rosa. Jß desde o tempo do paesinho de V. Ex.^a, que Deus haja, conhešo bem a Torre!... E sempre m'esperancei de trazer n'esta quinta uma lavoura a meu gosto, de consolar! Durante o cafÚ, esquecido dos jornaes, Gonšalo gozou a excellencia d'aquelle negocio. Duzentos mil rÚis mais de renda. E a Torre tratada pelo Pereira, com aquelle amor da terra e saber de lavra que transformßra o chavascal do Monte-Agra n'uma maravilha de seßra, vinha e horta!... AlÚm d'isso, homem abastado, capaz de um adeantamento. E eis ahi mais uma evidencia do valor da Torre, esse affinco do Pereira em a arrendar, elle tŃo apertado, tŃo seguro... Quasi se arrependia de lhe nŃo ter arrancado um conto e duzentos. Emfim, a manhŃ f˘ra fecunda! E, realmente, nenhum accordo firmado o collava ao Casco. Entre elles apenas s'esbošßra uma conversa, sobre um arrendamento possivel da Torre, a debater depois miudamente, n'uma base nova de novecentos e cincoenta mil reis... E que insensatez se elle, por escrupuloso respeito d'essa conversa esbošada, recusasse o Pereira, retivesse o Casco, lavrador de rotina--dos que raspam a terra para comer, e a deixam cada anno deperecendo, mais canšada e chupada!... --Bento, traze charutos! E o Joaquim que tenha a egua sellada das cinco para as cinco e meia. Sempre vou ß _Feitosa_... Hoje Ú o dia! Accendeu um charuto, voltou ß livraria. E, immediatamente releu o final magnifico: źDe mal com o Reino e com o Rei, mas de bem com a honra e commigo!╗--Ah! como alli gritava a alma inteira do velho portuguez, no seu amor religioso da palavra e da honra! E, com a tira d'almasso entre os dedos, junto da varanda, considerou um momento a Torre, as poeirentas frestas engradadas de ferro, as resistentes ameias, ainda inteiras, onde agora adejava um bando de pombas... Quantas manhŃs, ßs frescas horas d'alva, o velho Tructesindo se encostßra ßquellas ameias, entŃo novas e brancas! Toda a terra em redor, semeada ou bravia, decerto pertencia ao poderoso Rico-Homem. E o Pereira, n'esse tempo colono ou servo, sˇ abordava o seu Senhor de joelhos e tremendo! Mas nŃo lhe pagava um conto cento e cincoenta mil rÚis de sonora moeda do Reino. Tambem, que diabo, o v˘v˘ Tructesindo nŃo precisava... Quando os saccos rareavam nas arcas, e os acostados rosnavam por tardanša de soldo, o leal Rico-Homem, para se prover, tinha as tulhas e as adÚgas dos Concelhos mal defendidos--ou entŃo, n'uma volta de estrada, o ovenšal voltando de recolher as rendas reaes, o bufarinheiro genovez com os machos ajoujados de trouxas. Por baixo da Torre (como lhe contßra o papß) ainda negrejava a masmorra feudal, meio atulhada, mas com restos de correntes chumbadas aos pilares, e na abobada a argola d'onde pendia a polÚ, e no lagedo os buracos em que se escorava o potro. E, n'essa surda e humida cova, ovenšal, bufarinheiro, clerigos e mesmo burguezes de f˘ro uivavam sob o ašoite ou no torniquete, atÚ largarem agonizando o derradeiro morabitino. Ah! a ramantica Torre, cantada tŃo meigamente ao luar pelo Videirinha, quantos tormentos abafßra!... E de repente, com um berro, Gonšalo agarrou de sobre a mesa um volume de Walter Scott, que atirou sem piedade, como uma pedra, contra o tronco de uma faia. ╔ que descortinßra o gato da Rosa cozinheira, trepado, d'unhas fincadas n'um ramo, arqueando a espinha, para assaltar um ninho de melros. * * * * * Quando n'essa tarde o Fidalgo da Torre, airoso no seu fato novo de montar, polainas de couro polido, luvas de camurša branca, parou a egua ao portŃo da _Feitosa_--um velho todo esfarrapado, com longos cabellos cahidos pelos hombros e immensas barbas espalhadas pelo peito, immediatamente se ergueu do banco de pedra onde comia rodellas de chourišo, bebendo d'uma cabaša, para o avisar que o Sr. Sanches Lucena e a Sr.^a D. Anna andavam por fˇra, de carruagem. Gonšalo pediu ao velho que puchasse o ferro da sineta. E entregando um cartŃo ao mošo, que entreabrira a rica grade dourada, com um _S_ e um _L_ entrelašados, sob uma cor˘a de conde: --O Sr. Sanches Lucena, bem? O Sr. Conselheiro, agora, um pouquinho melhor... --O que? Esteve doente? --Pois o Sr. Conselheiro, aqui ha tres ou quatro semanas, andou muito agoniado... --Oh! Sinto muito... Diga ao Sr. Conselheiro que sinto muitissimo! Chamou o velho que repicßra a sineta para o recompensar com um tostŃo. E, interessado por aquellas barbašas e melenas de mendigo de Melodrama: --Vocemecŕ pede esmola por estes sitios? O homem ergueu para elle os olhos sujos, avermelhados da poeira e do sol, mas risonhos, quasi contentes: --Tambem me chego pela Torre, meu Fidalgo. E, grašas a Deus, lß me fazem muito bem. --EntŃo quando lß voltar diga ao Bento... Vocŕ conhece o Bento? Se conhecia! E a Snr.^a Rosa... --Pois diga ao Bento que lhe dŕ umas calšas, homem! Vocŕ assim, com essas calšas, nŃo anda decente. O velho riu, n'um riso lento e desdentado, mirando com gosto os sordidos farrapos que lhe trapejavam nas canellas, mais denegridas e seccas que galhos de inverno: --R˘tinhas, r˘tinhas... Mas o Sr. dr. Julio diz que me ficam assim bem. O Sr. dr. Julio, quando lß passo, sempre me tira o retrato na machina. Ainda na semana passada... AtÚ com uns pedašos de grilh§es dependurados do pulso, e uma espada erguida na mŃo... Parece que para mostrar ao Governo. Gonšalo, rindo, picou a egua. Pensava agora em alongar por Valverde: depois recolheria por Villa-Clara, e tentaria o Gouvŕa a partilhar na Torre um cabrito assado no espeto de cerejeira, para que elle na vespera, na AssemblÚa, convidßra o Manoel Duarte e o Titˇ. Mas ao atravessar a źCruz das Almas╗, onde a estrada de Corinde, tŃo linda, com as suas filas d'alamos, crusa a ladeira de Valverde, parou--notando ao fundo, para o lado de Corinde, como o confuso esbarro d'uma carrada de lenha, e uma carriola d'ašougue, e uma mulher de lenšo escarlate bracejando sobre a albarda d'um burro, e dous lavradores de enxada ßs costas. E, de repente, todo o encalhe se despegou--a mulher trotando no seu burrinho, logo sumida n'uma volta de arvoredo; a carriola solavancando n'um rolo leve de poeira; o carro avanšando para a źCruz das Almas╗ a chiar tardamente; os cavadores descendo para uma chŃ atravez das leiras de feno... Na estrada sˇ restou, como desamparado, um homem de jaqueta ao hombro, que se arrastava penosamente, coxeando. Gonšalo trotou, com curiosidade: --Que foi?... Vocemecŕ que tem? O homem, com a perna encolhida, levantou para Gonšalo uma face arrepanhada, quasi desmaiada, que reluzia sob as camarinhas de suor: --Nosso Senhor lhe dŕ muito boas tardes, meu Fidalgo! Ora o que hade ser? Desgrašas d'esta vida! E, gemendo, contou a sua historia.--Desde mezes padecia d'uma chaga n'um tornozello, que nŃo seccßra, nem com emplastos, nem com pˇ de murtinhos, nem com benzeduras... E agora andava arriba, na fazenda do Sr. dr. Julio, a concertar um socalco, para ajudar um compadre tambem doente com maleitas--e, zßs, desaba um pedregulho, que tˇpa na ferida, leva a carne, lasca o osso, o deixa n'aquella lastima!... AtÚ rasgßra a fralda para ensopar o sangue e amarrar por cima o lenšo. --Mas assim nŃo pˇde andar, homem! D'onde Ú vocemecŕ? --De Corinde, meu Fidalgo. Manoel S˘lha, do logar da Finta. AtÚ lß, sempre me hei-de arrastar. --E entŃo, d'essa gente toda, que ahi estava ha bocado, ninguem o poude ajudar?... Uma carriola, dous latag§es... Uma rija guinada, no teimoso esforšo de firmar a perna, arrancou um grito ao S˘lha. Mas sorriu, arquejando... Que queria o Fidalgo? Cada um, n'este mundo, tem a sua pressa... Emfim, a rapariga do burro promettŕra passar pela Finta, para avisar. E talvez um dos seus rapazes apparecesse na estrada com uma eguasita que elle comprßra pela Paschoa--e que, por desgraša, tambem mancava!... Immediatamente, com um salto leve, o Fidalgo da Torre desmontou: --Bem! EntŃo, egua por egua, jß vocemecŕ tem aqui esta... O S˘lha embasbacou para Gonšalo: --Ora essa! Santo nome de Deus!... Pois eu havia de ir a cavallo, e V. Ex.^a a pÚ? Gonšalo ria: --Homem, com essas discuss§es de źeu a pÚ╗ e źvocŕ a cavallo╗, e źfaz fav˘r╗ e źnŃo senhor╗, Ú que perdemos um tempo precioso. Monte, esteja quieto, e trote para a Finta! O outro recuava para a valleta da estrada, sacudindo a cabeša, esgazeado, como no espanto de um sacrilegio: --Isso Ú que nŃo, meu senhor, isso Ú que nŃo! Antes eu acabasse aqui ß mingoa, com a chaga em bolor! Gonšalo bateu o pÚ, com auctoridade: --Monte, que mando eu! Vocemecŕ Ú um lavrador de enxada, eu sou um Doutor formado em Coimbra, sou eu que sei, sou eu que mando! E o S˘lha, logo submisso ante aquella forša deslumbrante do Saber superior, agarrou em silencio a crina da egua, enfiou respeitosamente o estribo, ajudado pelo Fidalgo, que, sem tirar as luvas brancas, lhe amparava o pÚ entrapado e manchado de sangue. Depois, quando elle repousou no sellim com um _ah!_ consolado: --EntŃo que tal? O homem sˇ murmurava o nome de Nosso Senhor, na gratidŃo e no assombro d'aquella caridade: --Mas isto Ú a volta do mundo... Eu aqui, na egua do Fidalgo! E o Fidalgo, o Sr. Gonšalo Ramires, da Torre, a pÚ pela estrada! Gonšalo gracejou. E, para entreter a caminhada, perguntou pela quinta do Dr. Julio, que agora se arrojßra a obras e plantaš§es de vinha. Depois, como o Manoel S˘lha conhecia o Pereira Brasileiro (que pensßra em arrendar as terras do Dr. Julio), conversaram sobre esse esperto homem, sobre as grandezas da _Cortiga_. Jß sem embarašo, direito no sellim, no gosto d'aquella intimidade com o Fidalgo da Torre, o S˘lha esquecia a chaga, a d˘r que adormentßra. E ß estribeira do S˘lha, attento e sorrindo, o Fidalgo estugava o passo na poeira branca. Assim se avizinhavam da _Bica-Santa_, um dos sitios decantados d'aquellas cercanias formosas. Ahi a estrada, cortada na encosta d'um monte, alarga e fˇrma um arejado terrašo, d'onde se abrange todo o valle de Corinde, tŃo rico em casaes, em arvoredos, em seßras, em aguas. No pendor do monte, coberto de carvalhos e de fragas musgosas, brˇta a fonte nomeada, que jß em tempos d'El-Rei D. JoŃo V curava males d'entranhas--e que uma devota senhora de Corinde, D. Rosa Miranda Carneiro, mandou encanar desde o alto atÚ a um tanque de marmore, onde agora corre beneficamente, por uma bica de bronze, sob a imagem e patrocinio de Santa Rosa de Lima. De cada lado do tanque se encurvam dous compridos bancos de pedra, que a espalhada ramaria das carvalheiras tolda de sombra e frescura. ╔ um suave retiro onde se apanham violetas, se comem merendas, e senhoras dos arredores se sentam em rancho, nas tardinhas de domingo, escutando os melros, gozando a povoada, luminosa e verdejante largueza do valle. Antes porÚm de desembocar na _Bica-Santa_, e perto do logar do Serdal, a estrada de Corinde quebra n'uma volta:--e, ahi, de repente, a egua pulou, n'um reparo, que obrigou o Fidalgo da Torre, desconfiado da pericia do S˘lha, a deitar a mŃo ß caimba do freio. F˘ra o encontro inesperado d'uma carruagem--uma caleche forrada d'azul, com a parelha coberta de rŕdes brancas contra a m˘sca, e na almofada, tŕzo, um cocheiro de bigode, farda de golla escarlate e chapÚo de tˇpe amarello. E Gonšalo mantinha ainda a egua pelo freio, como arrieiro servišal em trilho perigoso--quando avistou, sentado n'um dos bancos de pedra, junto da Bica, com um chale-manta por cima dos joelhos, o velho Sanches Lucena. Ao lado o trintanario, agachado, esfregava com um mˇlho d'herva a botina que a bella D. Anna lhe estendia, apanhando o vestido de linho cr˙, apoiando a outra mŃo, sem luva, na cinta vergada e fina. A desconcertada apparišŃo do Fidalgo da Torre, puxando pela rÚdea a sua egua onde se escarranchava regaladamente um cavador em mangas de camisa, alvorotou aquelle repousado e dormente recanto da _Bica_. Sanches Lucena esbugalhava os olhos, esbugalhava os oculos, n'um arremesso de curiosidade que o levantßra, com o pescošo esticado, o chale-manta escorregado para a relva. D. Anna recolheu bruscamente a botina, logo empertigada, na gravidade condigna da senhora da _Feitosa_, retomando como uma insignia o cabo d'ouro da luneta d'ouro, suspensa por um cordŃo d'ouro. E atÚ o trintanario ria pasmadamente para o S˘lha. Mas jß, com o seu desembarašo elegante, Gonšalo, n'um relance, saudßra D. Anna, apertava com fervor a mŃo espantada do Sanches Lucena, e, alegremente se congratulava por aquelle encontro ditoso! Pois vinha justamente da _Feitosa_! E ahi soubera com desgosto, por um mošo da quinta decerto exagerado, que o Sr. Conselheiro nas ultimas semanas andßra doente... E, entŃo como estava? como estava?--Oh! a physionomia era excellente! --Pois nŃo Ú verdade, Sr.^a D. Anna? O aspecto Ú excellente! Com um leve requebro da cabeša, um fofo ondear do mˇlho de plumas brancas sobre o chapÚo de palha vermelha, ella volveu n'uma voz rolada, lenta e gorda, que arripiou Gonšalo: --O Sanches agora, grašas a Deus, desfructa melhor saude... --Um pouco melhor, sim, com effeito, muito agradecido a V. Ex.^a, Sr. Gonšalo Ramires! murmurou o descarnado e corcovado homem, repuxando para os joelhos o chale-manta. E, com os oculos a luzir, cravados em Gonšalo, na curiosidade que o abrazava, quasi lhe rosßra a face afilada, mais amarella que um cirio: --Mas, com perdŃo de V. Ex.^a! como Ú que V. Ex.^a anda por aqui, pela estrada de Corinde, n'este estado, a pÚ, trazendo ß rÚdea um lavrador de enxada?... Rindo, sobretudo para D. Anna, cujos olhos formosamente negros, d'uma funda refulgencia liquida, tambem esperavam, serios e reservados, Gonšalo contou o desastre do bom homem, que encontrßra no caminho gemendo, arrastando a perna escalavrada... --De sorte que lhe offereci a minha egua... E atÚ, se V. Ex.^a me permitte, minha senhora, Ú necessario que eu combine com elle o resto da jornada... Rapidamente, voltou ao S˘lha, que, de novo acanhado ante os senhores da _Feitosa_, com o chapeu na mŃo, encolhido sobre o sellim, como attenuando a sua grandeza, logo se desestribou para desmontar. Mas jß Gonšalo lhe ordenava que trotasse para a Finta--e lhe mandasse a egua por um dos seus rapazes, alli ß Bica-Santa, onde elle se demorava com o Snr. Conselheiro. E quando o S˘lha largou, saudando desabaladamente, torcido, como impellido a seu pezar pelos acenos risonhos com que o Fidalgo o despedia, o assombro do Sanches Lucena recomešou: --Ora uma cousa d'estas! Eu tudo esperaria, tudo, menos o Sr. Gonšalo Mendes Ramires a trazer ß rÚdea, pela estrada de Corinde, um cavador d'enxada! ╔ a repetišŃo do Bom Samaritano... Mas para melhor! Gonšalo gracejou, sentado no banco, junto de Sanches Lucena.--Oh! o Bom Samaritano nŃo merecera uma pagina tŃo amavel no Evangelho sˇmente por offerecer o burro a um Levita doente: decerto mostrßra virtudes mais bellas...--E sorrindo para D. Anna, que, do outro lado de Sanches Lucena, espalhava a luneta, com lentidŃo magestosa, pelas arvores e pela Fonte que tŃo bem conhecia: --Ha dous annos, minha senhora, que eu nŃo tenho a honra... Mas Sanches Lucena despediu um grito: --Oh! Sr. Gonšalo Ramires! V. Ex.^a traz sangue na mŃo! O Fidalgo reparou, espantado. Sobre a luva de camurša branca resaltavam duas manchas arroxeadas: --NŃo Ú sangue meu! foi naturalmente quando o S˘lha montou, e eu lhe segurei o pÚ escalavrado... Arrancou a luva, que arremessou para as hervas bravas, por traz do banco de pedra. E continuando o sorriso: --Com effeito, nŃo tenho a honra de encontrar a V. Ex.^a, minha senhora, desde o baile do barŃo das Marges, em Oliveira, o famoso baile de Entrudo... Ha mais de dois annos, era eu estudante. E ainda me recordo que V. Ex.^a estava vestida esplendidamente de Catharina da Russia... E, emquanto a envolvia no sorrir dos olhos finos e meigos, pensava:--źFormosa creatura! mas ordinaria! e que voz!...╗ D. Anna tambem se recordava do baile dos Marges: --O cavalheiro, porÚm, estß equivocado. Eu nŃo fui de Russa, fui de Imperatriz... --Sim, d'Imperatriz da Russia, de Grande Catharina... E com um gosto! com um luxo! Sanches Lucena voltou vagarosamente para Gonšalo os oculos d'ouro, apontou um dedo alongado e livido: --Pois tambem eu me lembro que sua mana, e minha senhora, a Sr.^a D. Graša, trazia um trage de lavradeira de Vianna... Foi uma luzidissima festa; nem admira; o nosso Marges Ú sempre primoroso... E desde essa noite nŃo tornei a encontrar a mana de V. Ex.^a em intimidade. Apenas de longe, na missa... De resto pouco residia agora em Oliveira, apesar de conservar a casa montada, creadagem e cocheira--porque, ou culpa do ar ou culpa da agua, nŃo se dava bem na Cidade. Gonšalo acalorou mais o seu interesse: --Mas entŃo, realmente, V. Ex.^a o que tem tido? Sanches Lucena sorriu, com amargura. Os medicos, em Lisboa, nŃo se entendiam. Uns attribuiam ao estomago--outros attribuiam ao corašŃo. Portanto, aqui ou alli, viscera essencial atacada. E soffria crises--mßs crises... Emfim, com a graša de Deus, e regimen, e leite, e descanšo, ainda esperava arrastar uns annos. --Oh! com certeza! exclamou Gonšalo alegremente. E V. Ex.^a nŃo pensa que a estada em Lisboa, e as Camaras, e a Politica, a terrivel Politica, o fatiguem, o agitem?... NŃo, pelo contrario, Sanches Lucena passava toleravelmente em Lisboa. Melhor mesmo que na _Feitosa_! Depois, gostava d'aquella distracšŃo das Camaras. E como conservava amigos na Capital, uma roda escolhida, uma roda fina... --Um d'esses nossos excellentes amigos, V. Ex.^a decerto conhece. Elle Ú parente de V. Ex.^a... O D. JoŃo da Pedrosa. Gonšalo, alheio ao homem, mesmo ao nome, murmurou polidamente: --Sim, o D. JoŃo, decerto... E Sanches Lucena, passando pelas suissas brancas a mŃo magrissima, quasi transparente, onde reluzia um enorme annel d'armas de saphira: --E nŃo sˇmente o D. JoŃo... Outro dos nossos amigos Ú egualmente parente de V. Ex.^a, e chegado. Muitas vezes temos fallado de V. Ex.^a, e da sua casa. Que elle pertence tambem ß primeira nobreza... ╔ o Arronches Manrique. --Cavalheiro muito dado, muito divertido! accrescentou D. Anna, com uma convicšŃo que lhe alteou o peito, a que o corpete justo marcava a forša višosa e a perfeišŃo. A Gonšalo tambem nunca chegßra esse nome sonˇro. Mas nŃo hesitou: --Sim, perfeitamente, o Manrique... De resto, eu tenho tantos parentes em Lisboa, e vou tŃo pouco a Lisboa!... E V. Ex.^a, Sr.^a D. Anna... Mas o Sanches Lucena insistia, deliciado n'aquella conversa de parentescos fidalgos: --V. Ex.^a, naturalmente, tem em Lisboa toda a sua parentella historica. Assim eu creio que V. Ex.^a Ú primo do Duque de Lourenšal... O Duarte Lourenšal! Elle nŃo usa o titulo, por Miguelismo, ou antes por habito: mas emfim Ú o legitimo Duque de Lourenšal. ╔ quem representa a casa de Lourenšal. Gonšalo, sorrindo attentamente, desabotoßra o fraque, procurava a sua velha charuteira de couro. --Sim, com effeito, o Duarte... Somos primos. Diz elle que somos primos. E eu acredito. Entendo tŃo pouco d'arvores de costado!... De facto as casas em Portugal andam muito cruzadas; todos somos parentes, nŃo sˇ pelo lado d'AdŃo, mas pelos Godos... E V. Ex.^a, Sr.^a D. Anna, prefere a estada em Lisboa? Mas, reparando que escolhera um charuto, distrahidamente o trincßra: --Oh! perdŃo minha senhora... Ia fumar sem saber se V. Ex.^a... Ella saudou, descendo as longas pestanas: --O cavalheiro pˇde fumar; o Sanches nŃo fuma, mas eu atÚ aprecio o cheiro. Gonšalo agradeceu, enjoado com aquella voz redonda e gorda, aquelles horrendos ź_cavalheiro, o cavalheiro_!...╗ Mas pensava:--źque linda pelle! que bella creatura!...╗ E Sanches Lucena, inexoravel, estendera o dedo agudo: --Pois eu conhešo muito, nŃo o Sr. D. Duarte Lourenšal, nŃo tenho essa subida honra por ora, mas seu irmŃo, o Sr. D. Philippe. Cavalheiro estimabilissimo, como V. Ex.^a decerto sabe... E depois, que talento... Que talento, no cornetim! --Ah! --O quŕ! V. Ex.^a nŃo ouviu seu primo, o Sr. D. Philippe Lourenšal, tocar cornetim? E atÚ a bella D. Anna se animou, com um sorriso languido dos beišos cheios, mais vermelhos que cerejas maduras sobre o fresco rebrilho dos dentes pequeninos: --Oh! tˇca ricamente! O Sanches gosta muito de musica; eu tambem... Mas, como V. Ex.^a comprehende, qui na aldÚa, com a falta de recursos... Gonšalo, arremessando o phosphoro, exclamßra logo, n'um sincero interesse: --EntŃo, queria que V. Ex.^a ouvisse um amigo meu, que Ú verdadeiramente sublime no violŃo, o Videirinha!... Sanches Lucena estranhou o nome, a sua vulgaridade. E o Fidalgo, singelamente: --╔ um rapaz muito meu amigo, de Villa-Clara... O JosÚ Videira, ajudante da Pharmacia... Os oculos de Sanches Lucena cresceram de puro espanto: --Ajudante da Pharmacia e amigo do Sr. Gonšalo Mendes Ramires! Sim, desde estudante, dos exames do Lyceu. AtÚ o Videirinha passava as ferias na Torre, com a mŃe, antiga costureira da casa. TŃo bom rapaz, tŃo simples... E na realidade, no violŃo, um genio! --Agora tem elle uma cantiga admiravel que chamou o _Fado dos Ramires_. A musica Ú com effeito um fado de Coimbra, um fado conhecido. Mas os versos sŃo d'elle, umas quadras engrašadas sobre cousas da minha Casa, lendas, patranhas... Pois ficou sublime! Ainda ha dias na Torre, comigo e com o Titˇ... E a este nome, familiar e menineiro, Sanches Lucena mostrou outro reparo: --O Titˇ? O Fidalgo ria: --╔ uma velha alcunha d'amizade que nˇs damos ao Antonio Villalobos. EntŃo Sanches Lucena atirou ambos os brašos, como se alguem muito querido apparecesse na estrada: --O Antonio Villalobos! Mas esse Ú um dos nossos fieis e bons amigos! Cavalheiro estimabilissimo! Quasi todas as semanas nos faz o favor de apparecer pela _Feitosa_... E agora era o Fidalgo que pasmava ante essa intimidade a que nunca o Titˇ alludira, quando no Gago, na Torre, na AssemblÚa, se berrava, politicando, o nome do Sanches Lucena! --Ah V. Ex.^a conhece... Mas D. Anna, que se erguera bruscamente do banco, e, debrušada, recolhia a luva e a sombrinha--lembrou ao marido o estriar lento da tarde, a neblina subindo sempre ßquella hora do valle aquecido: --Sabes que nunca te faz bem... E tambem nŃo faz bem ß parelha, assim parada, ha tanto tempo. Immediatamente Sanches Lucena, receioso, puxßra da algibeira um espesso lenšo de sŕda branca para abafar o pescošo. E, receioso tambem pela parelha, logo se arrancou pesadamente do banco de pedra, com um aceno canšado ao trintanario para apanhar o chale, avisar o cocheiro. Mas ainda atravessou, vergado e arrimado ß bengala, para o parapeito que resguarda a estrada sobre o despenhado pendor do monte, dominando o valle. E confessava a Gonšalo que aquelle era, nos arredores da _Feitosa_, o seu passeio preferido. NŃo sˇ pela belleza do sitio, jß cantado pelo źnosso mavioso Cunha Torres╗;--mas porque do terrašo da Bica, sem esforšo, sentado no banco, avistava n'uma largueza terras suas: --Olhe V. Ex.^a... Para alÚm d'aquelle souto, atÚ ß chŃ e ao comoro onde estß a casota amarella e por traz o pinhal, tudo Ú meu... O pinhal ainda Ú meu... Acolß, do renque d'ßlamos para deante, depois do lameiro, Ú tambem meu... Alli, do lado da ermida, pertence ao Monte-Agra... Mas, mais para lß, passado o azinhal, pelo monte acima, Ú tudo meu! O livido dedo, o brašo escanifrado na manga de casimira preta, cresciam por sobre o valle.--AlÚm os pastos... Adeante os centeios... Depois o bravio...--Tudo d'elle! E, por traz da magra figura alquebrada, de chapÚo enterrado na nuca, o abafo de seda subido atÚ ßs pallidas orelhas quasi despegadas, D. Anna, esvelta, clara e sŃ como um marmore, com um sorriso esquecido nos labios gulosos, o formoso peito mais cheio, acompanhava a enumerašŃo copiosa, affincava a luneta sobre os pastos, e os pinhaes, e os centeios, sentindo jß--tudo d'ella! --E agora acolß, detraz do olival, concluiu Sanches Lucena com respeito, Ú sitio seu, Sr. Gonšalo Mendes Ramires... --Meu?... --De V. Ex.^a, quero dizer, ligado ß casa de V. Ex.^a. Pois nŃo reconhece?... AlÚm, por traz do moinho, passa a estrada de Santa Maria de Craquŕde. SŃo os tumulos dos seus antepassados... Passeio que eu tambem ßs vezes fašo, e com gosto. Ainda ha um mez visitamos detidamente as ruinas. E acredite que fiquei impressionado! Aquelle bocado de claustro tŃo antigo, os grandes esquifes de pedra, a espada chumbada ß abobada por cima do tumulo do meio... ╔ de commover! E achei muito bonito, muito filial, da parte de V. Ex.^a, o ter sempre aquela lampada de bronze accŕsa de noite e de dia... Gonšalo engrolou um murmurio risonho--porque nŃo se recordava da espada, nunca recommendßra a lampada. Mas Sanches Lucena, agora, supplicava um precioso favor ao snr. Gonšalo Mendes Ramires. E era que S. Ex.^a lhe concedesse a honra de o conduzir na carruagem ß Torre... Alvorošadamente Gonšalo recusou. Nem podia! combinßra com o homem da perna dorida esperar alli, na Bica, pela sua egoa. --Mas fica aqui o meu trintanario, que leva a egoa de V. Ex.^a ß Torre. --NŃo, nŃo, se V. Ex.^a me permitte, eu espero... Depois metto pelo atalho da Crassa, porque tenho ßs oito horas na Torre, ß minha espera para jantar, o Titˇ. D. Anna, do meio da estrada, apressou logo o marido sacudidamente, com a ameaša renovada da friagem, do relento... Mas, junto da caleche, Sanches Lucena ainda emperrou para affirmar a Gonšalo, com a descarnada mŃo sobre o encovado peito, que aquella tarde lhe ficava celebre... --Porque vi uma cousa que poucas vezes se terß visto: o maior fidalgo de Portugal, a pÚ pela estrada de Corinde, levando ß rÚdea no seu proprio cavallo um cavador de enxada! Ajudado por Gonšalo, trepou emfim pesadamente ao estribo. D. Anna jß se enterrßra nas almofadas, alšando entre as mŃos, como uma insignia, o cabo rebrilhante da luneta d'ouro. O trintanario tambem se entezou, cruzou os brašos: e a caleche apparatosa, com as manchas brancas das rŕdes dos cavallos, mergulhou no silencio e na penumbra da estrada, sob a espalhada ramaria das faias. źQue massada!╗ exclamou Gonšalo. E nŃo se consolava de tarde tŃo linda assim desperdišada... Intoleravel, esse Sanches Lucena, com o Snr. D. Fulano e o Snr. D. Sicrano, e a sua gula de źrˇda fina╗, e źtudo d'elle╗ por collina e valle! A mulher, explendida pÚša de carne, como filha de carniceiro,--mas sem migalha de graša ou alma. E que voz, Jesus, que voz! Gente pedante e sabuja...--E agora sˇ desejava recuperar a sua egoa, galopar para a Torre, e desabafar com o Titˇ, familiar da _Feitosa_! o seu ßsco por toda aquella Sancharia. A egoa nŃo tardou, a trˇte largo, montada pelo filho do S˘lha, que, ao avistar o Fidalgo, saltou ß estrada, de chapeu na mŃo, encouchado e encarnado, balbuciando que o pae chegßra bem, pedia a Nosso Senhor lhe pagasse a caridade... --Bem, bem! Recados a teu pae. Que estimo as melhoras. Lß mandarei saber. N'um pulo montßra--galopava pelo facil atalho da Crassa. Mas, deante do portŃo da Torre, encontrou um mošo do Gago, com um bilhete do Titˇ, annunciando que nŃo podia jantar na Torre porque partia n'essa semana para Oliveira! --Que disparate! Para Oliveira tambem eu parto; mas janto hoje! AtÚ combinavamos, o levava na carruagem... Elle que ficou a fazer, o Snr. D. Antonio? O rapaz cošou pensativamente a cabeša: --O Snr. D. Antonio passou lß por casa para eu trazer o bilhete ao Fidalgo... Depois, creio que tem festa, porque entrou defronte no tio Cosme fogueteiro, a comprar bichas de rabear... Aquellas inesperadas bichas de rabear causaram logo ao Fidalgo uma immensa inveja: --E onde Ú a festa, sabes? --Eu nŃo sei, meu Fidalgo... Mas parece que Ú cousa rija, porque o Snr. JoŃo Gouvŕa encommendou lß ao patrŃo dous grandes pratos de bolos de bacalhau. Bolos de bacalhau! Gonšalo sentio como a amargura de uma traišŃo: --Oh! que animaes! E de repente ideou uma vinganša alegre: --Pois se vires hoje o Snr. D. Antonio ou o Snr. JoŃo Gouvŕa nŃo te esquešas de lhes dizer que sinto muito... Que eu tambem cß tinha ß noite na Torre uma festa. E havia senhoras. Vinha a Snr.^a D. Anna Lucena... NŃo te esquešas, hein? Gonšalo galgou as escadas rindo da sua invenšŃo. Mas, n'essa noite, ßs nove horas, depois do arrastado e atochado jantar com o Manoel Duarte, entrou na sala grande dos retratos, apenas allumiada pelo lampeŃo dourado do corredor, para buscar uma caixa de charutos. E casualmente, atravez da janella aberta, reparou n'um homem que, em baixo, rente da sombra dos alamos, rondava, espreitava... Mais attento, imaginou reconhecer os poderosos hombros, o andar bovino do Titˇ. Mas nŃo, com certesa! o homem trasia jaqueta e carapušo de lŃ. Curioso, abafando os passos, ainda se abeirou da varanda. O vulto porÚm descera da estrada, logo sumido sob as arvores d'uma quelha que contorna o Casal do Miranda, e desemboca adiante, na Portella, junto das primeiras casas de Villa-Clara. IV O palacete dos Barr˘los em Oliveira (conhecido desde o comešo do seculo pela Casa dos _Cunhaes_) erguia a sua fidalga fachada de doze varandas no Largo d'El-Rei, entre uma solitaria viella que conduz ao Quartel e a rua das Tecedeiras, velha rua mal empedrada, ladeirenta, opprimida pelo comprido terrašo do jardim, e pelo muro fronteiro da antiga cerca das Monicas. E n'essa manhŃ, justamente quando Gonšalo, na caleche da Torre puxada pela parelha do Torto, desembocava no Largo d'El-Rei, subia pela Tecedeiras, dobrando a esquina dos Cunhaes, n'um cavallo negro de fartas clinas, que feria as lages com soberba e garbo, o Governador Civil, o AndrÚ Cavalleiro, de collete branco e chapeu de palha. N'um relance, do fundo da caleche, o Fidalgo ainda o surprehendeu levantando os pestanudos olhos negros para as varandas de ferro do palacete. E pulou, com um murro no joelho, rugindo surdamente--źque biltre!╗ Ao apear no portŃo (um portŃo baixo, como esmagado pelo immenso escudo de armas dos Sßs) tŃo suffocada indignašŃo o impellia que nŃo reparou nas effus§es do porteiro, o velho Joaquim da Porta, e esqueceu dentro da caleche os presentes para Gracinha, a caixa com o guardasolinho e um cesto de flores da Torre coberto de papel de sŕda. Depois em cima, na sala d'espera, onde JosÚ Barr˘lo correra, ao sentir nas lages do Largo silencioso o estrepito do calhambeque, desabafou logo, arrebatadamente, atirando o guarda pˇ para uma cadeira de couro: --Oh senhores! Que eu nŃo possa vir ß cidade sem encontrar de cara este animal do Cavalleiro! E sempre no Largo, defronte da casa! ╔ sorte!... Esse bigodeira nŃo acharß outro logar para onde vß caracolar com a pileca? JosÚ Barr˘lo, um mošo gordo, de cabello ruivo e crespo, com um bušo claro n'uma face mais redonda e cˇrada que uma bella mašŃ, accudiu, ingenuamente: --Pileca?!... Oh, menino, tem agora um cavallo lindo! Um cavallo lindo, que comprou ao Marges! --Pois bem! ╔ um burro feio em cima d'um cavallo bonito. Que fiquem ambos na cavallariša. Ou que vŃo ambos pastar para as Devezas! O Barr˘lo escancarou a b˘ca larga e fresca, de soberbos dentes, n'um lento pasmo. E de repente, com uma patada no soalho, vergado pela cinta, rompeu n'uma risada que o suffocava, lhe inchava as veias: --Essa Ú d'arromba! NŃo, essa Ú para contar no Club... Um burro feio em cima d'um cavallo bonito! E ambos a pastarem!... Tu vens hoje rico, menino! Olha que essa! Ambos a pastarem, com os focinhos na herva, o Governador civil e o cavallo... ╔ d'arromba! Rebolava pela sala, com palmadas radiantes sobre a coxa obesa. E Gonšalo, adošado por aquella ovašŃo que celebrava a sua facecia: --Bem. Dß cß esses ossos, ou antes esses untos. E como vae a familia? A Gracinha?... Oh! viva a linda fl˘r! Era ella, com a sua ligeiresa airosa e menineira, os magnificos cabellos soltos sobre um penteador de rendas, correndo alvorošada para o irmŃo, que a envolveu n'um abrašo e em dous beijos sonoros. E immediatamente, recuando, a declarou mais bonita, mais gorda: --Positivamente estßs mais gorda, atÚ mais alta... ╔ sobrinho?... NŃo? nada, por ora? Gracinha cˇrou, com aquelle seu languido sorriso que mais lhe humedecia e lhe enternecia a došura dos olhos esverdeados. --Se ella nŃo quer, ella nŃo quer! gritava o JosÚ Barr˘lo, gingando, com as mŃos enterradas nos bolsos do jaquetŃo que lhe desenhava as ancas rolišas. A culpa nŃo Ú cß do patrŃo... Mas ella nŃo se decide! O fidalgo da Torre reprehendeu a irmŃ: --Pois Ú necessßrio um menino. Eu por mim nŃo caso, nŃo tenho geito: e lß se vŃo d'esta feita Barr˘los e Ramires! A extincšŃo dos Barr˘los Ú uma limpeza. Mas, acabados os Ramires, acaba Portugal. Portanto, Snr.^a D. Graša Ramires, depressa, em nome da našŃo, um morgado! Um morgado muito gordo, que eu pretendo que se chame Tructesindo! Barr˘lo protestou, aterrado: --O que? Turtesinho? NŃo! para tal sorte nŃo o fabrÝco eu! Mas Gracinha deteve aquelles gracejos picantes, desejosa de saber da Torre, e do Bento, e da Rosa cosinheira, e da horta, e dos pav§es... Conversando, penetraram na outra sala, guarnecida de contadores da India, de pesados cadeir§es dourados de damasco azul, com tres varandas sobre o Largo d'El-Rei. Barr˘lo enrolou um cigarro, reclamou a historia do Relho, da grande desordem. Tambem elle arranjßra uma źpega╗ com o rendeiro da _Ribeirinha_, por causa d'um cˇrte de pinhal. Essa do Relho porÚm f˘ra tremenda... E Gonšalo, enterrado ao canto do fundo camapÚ azul, desabotoando preguišosamente o jaquetŃo de chaviote claro: --NŃo! foi muito simples. Jß ha mezes esse Relho andava bebedo, sem despegar... Uma noite berrou, ameašou a Rosa, agarrou n'uma espingarda. Eu desci, e n'um instante a Torre ficou desembarašada de Relhos e de barulhos. --Mas veio o Regedor, com cabos! accudio o Barr˘lo. Gonšalo saccudiu os hombros, impaciente: --Veio o regedor? Veio depois, para legalisar! Jß o homem abalßra, corrido. E como resultado arrendei a Torre ao Pereira, ao Pereira da Riosa... Contou esse negocio excellente, tratado na varanda, ao almošo, entre dous copos de vinho verde. Barr˘lo admirou a renda--gabou o rendeiro. Assim Gonšalo descortinasse outro Pereira para a quinta de Treixedo, terra tŃo generosa, tŃo mal amanhada! ┴ borda do camapÚ, coberta pelos bellos cabellos que lavßra n'essa manhŃ e que cheiravam a alecrim, Gracinha comtemplava o irmŃo com ternura: --E do estomago, andas melhor? Continuam as ceias com o Titˇ? --Oh! esse animal! exclamou Gonšalo. Ha dias prometteu jantar na Torre, atÚ a Rosa assou um cabrito no espeto, magnifico... Depois falhou: creio que teve uma orgia infame, com bichas de rabear. Elle vem esta semana a Oliveira... E Ú verdade! vocŕs sabiam da intimidade do Titˇ com o Sanches Lucena? Historiou entŃo, com exagero alegre, o encontro da Bica-Santa, o horror que lhe causßra a bella D. Anna, a descoberta inesperada d'essa familiaridade do Titˇ na _Feitosa_. Barr˘lo recordou que uma tarde, antes do S. JoŃo, avistßra o Titˇ, deante do portŃo da _Feitosa_, a passear pela trela um cŃosinho branco de regašo... --Mas o que eu nŃo comprehendo, menino, Ú esse teu źhorror╗ pela D. Anna... Caramba! Mulher soberba! Um quebrado de quadris, uns olh§es, um peitoril... --Calle essa b˘ca impura, devasso! gritou Gonšalo. Pois aqui ao lado da sua mulher, que Ú a fl˘r das Grašas, ousa louvar semelhante peša de carne! Gracinha rindo, sem ciumes, comprehendia źa admirašŃo do JosÚ.╗ Realmente, a Anna Lucena, que vistosa, que bella!... --Sim, concedeu Gonšalo, bella como uma bella egoa... Mas aquella voz gorda, papuda... E a luneta, os modos... E źo cavalheiro pˇde fumar, o cavalheiro estß enganado...╗ Oh! senhores, pavorosa! Barr˘lo gingava, deante do sophß, com as mŃos nos bolsos da rabona: --Uvas verdes, Snr. D. Gonšalo, uvas verdes! O Fidalgo dardejou sobre o cunhado uns olhos ferozes: --Nem que ella se me offerecesse, de joelhos, em camisa, com os duzentos contos do Sanches n'uma salva d'ouro! Sorrindo, vermelha como uma pionia, com um źoh╗ escandalisado, Gracinha bateu no hombro de Gonšalo--que puxou por ella, galhofeiramente: --Venha lß essa bochecha, e outra beijoca, para purificar! Com effeito, sˇ pensar na D. Anna arrasta a gente ßs imagens brutaes... Dizias entŃo do estomago... Sim, filha, combalido. E ha dias mais pesado, desde o tal cabrito no espeto e da companhia beberrona do Manoel Duarte. Tu tens cß agua de Vidago?... EntŃo, Barr˘linho, sŕ angelico. Manda trazer jß uma garrafinha bem fresca. E olha! pergunta se subiram um ašafate e uma caixa de papelŃo que eu deixei na caleche? Que ponham no meu quarto. E nŃo desembrulhes, que Ú surpreza... Escuta! Que me levem agua bem quente. Preciso mudar toda a roupa... Estava uma poeirada por esse caminho! E quando o Barr˘lo abalou, a rebolar e a assobiar, Gonšalo, esfregando as mŃos: --Pois vocŕs ambos estŃo explendidos! E na harmonia que convem. Tu positivamente mais fˇrte, mais cheia. AtÚ pensei que fosse sobrinho. E o Barr˘lo mais delgado, mais leve... --Oh, agora o JosÚ passeia, monta a cavallo, jß nŃo adormece tanto depois de jantar... --E a outra familia? A tia Arminda, o rancho Mendonša? Bem?... Padre Sueiro, que Ú feito d'esse santo? --Teve um ataquesito de rheumatismo, muito ligeiro. Agora bom, sempre no Pašo do Bispo, na Bibliotheca... Parece que se entretem a fazer um livro sobre os Bispos. --Bem sei, a Historia da SÚ d'Oliveira... Pois eu tambem tenho trabalhado muito, Gracinha! Ando a escrever um Romance. --Ah! --Um Romance pequeno, uma Novella, para os _Annaes de Litteratura e de Historia_, uma Revista que fundou um rapaz meu amigo, o Castanheiro... ╔ sobre um facto historico da nossa gente... Sobre um av˘ nosso, muito antigo, Tructesindo. --Tem graša, que fez elle? --Horrores. Mas Ú pittoresco... E depois o Pašo de Santa Ireneia, no sÚculo XII, em todo o seu explendor! Emfim uma bella reconstrucšŃo do velho Portugal e sobre tudo dos velhos Ramires. Has-de gostar... NŃo ha amores, tudo guerras. Apenas, muito remotamente, uma das nossas antepassadas, uma D. Menda, que eu nem sei se realmente existiu. Tem seu chic, hein?... E tu comprehendes, como eu desejo tentar a Politica, preciso primeiramente apparecer, espalhar o meu nome... Gracinha sorria docemente para o irmŃo, no costumado enlevo: --E agora tens alguma idÚa? A tia Arminda lß continua sempre com a teima que devias entrar na Diplomacia. Ainda ha dias... źAi, o Gonšalinho, assim galante, e com aquelle nome, sˇ n'uma grande embaixada!╗ Gonšalo despegßra lentamente do vasto camapÚ, reabotoando o jaquetŃo claro: --Com effeito ando com uma idÚa, ha dias... Talvez me viesse d'um romance inglez, muito interessante, e que te recommendo, sobre as antigas Minas de Ophir, _King Salomon's Mines_... Ando com idÚas de ir para a Africa. --Oh Gonšalo, credo! Para a Africa? O escudeiro entrßra com duas garrafas de agua de Vidago, ambas desarrolhadas, n'uma salva. Precipitadamente, para aproveitar o źpiquesinho╗, Gonšalo encheu um copo enorme de crystal lavrado. Ah! que delicia d'agua!--E como o Barr˘lo voltava, annunciando que cumprira as ordens de S. Ex.^a: --Bem! entŃo logo conversamos ao almošo, Gracinha! Agora lavar, mudar de roupa, que nŃo paro com estas infames comich§es... Barr˘lo acompanhou o cunhado ao quarto, um dos mais espašosos e alegres do Palacete, forrado de cretones c˘r de canario com uma varanda para o jardim, e duas janellas de peitoril sobre a rua das Tecedeiras e os velhos arvoredos do convento das Monicas. Gonšalo impaciente despiu logo o casaco, saccudiu para longe o collete: --Pois tu estßs explendido, Barr˘lo! Deves ter perdido tres ou quatro kilos. SŃo naturalmente os kilos que Gracinha ganhou... Vocŕs, se assim se equilibram, ficam perfeitos. Deante do espelho Barr˘lo acariciava a cinta, com um risinho deleitado: --Realmente, parece que adelgacei... AtÚ sinto nas calšas... Gonšalo abrira o gavetŃo da rica commoda de ferragens douradas, onde conservava sempre roupa (atÚ duas casacas), para evitar o transporte de malas entre os Cunhaes e a Torre. E ria, aconselhava o bom Barr˘lo a źadelgašar╗ sem descanšo, para belleza da futura raša Barrolica--quando em baixo, na silenciosa rua das Tecedeiras as patas de um cavallo de luxo feriram as lages em cadencia lenta. Logo desconfiado, Gonšalo correu ß janella, ainda com a camisa que desdobrava. E era _elle_! Era o AndrÚ Cavalleiro, que descia ladeando, sopeando a rÚdea, para escarvar com garbo e fragor a rampa mal empedrada. Gonšalo virou para o Barr˘lo a face chammejante de fur˘r: --Isto Ú uma provocašŃo! Se este descarado d'este Cavalleiro passa outra vez na maldita pileca, por debaixo das janellas, apanha com um balde d'agua suja!... Barr˘lo, inquieto, espreitou: --Naturalmente vae para casa das Louzadas... Anda agora muito intimo das Louzadas... Sempre por aqui o vejo... E Ú para as Louzadas. --Que seja para o inferno! Pois, em toda a cidade, nŃo ha outro caminho para casa das Louzadas? Duas vezes em meia hora! Grande insolente! Tem uma chapada d'agua de sabŃo, pela grenha e pela bigodeira, tŃo certo como eu ser Ramires, filho de meu pae Ramires! Barr˘lo beliscava a pelle do pescošo, constrangido ante aquelles rancores ruidosos que desmanchavam o seu socego. Jß, por imposišŃo de Gonšalo, rompera desconsoladamente com o Cavalleiro. E agora antevia sempre uma bulha, um escandalo que o indisporia com os amigos do Cavalleiro, lhe vedaria o Club e as došuras da Arcada, lhe tornaria Oliveira mais enfadonha que a sua quinta da _Ribeirinha_ ou da _Murtosa_, solid§es detestadas. NŃo se conteve, arriscou o costumado reparo: --Ë Gonšalinho, olha que tambem todo esse espalhafato sˇ por causa da Politica... Gonšalo quasi quebrou o jarro, na furia com que o pousou sobre o marmore do lavatorio: --Politica! Ahi vens tu com a Politica! Por Politica nŃo se atira agua suja aos Governadores Civis. Que elle nŃo Ú Politico, Ú sˇ malandro! AlÚm d'isso... Mas terminou por encolher os hombros, emmudecer, diante do pobre bac˘co de bochechas pasmadas, que, n'aquellas rondas do Cavalleiro pelos Cunhaes, sˇ notava o źlindo cavallo╗ ou źo caminho mais curto para as Louzadas!...╗ --Bem! resumiu. Agora larga, que me quero vestir... Do bigodeira me encarrego eu. --EntŃo, atÚ logo... Mas se elle passar nada d'asneiras, hein? --Sˇ justiša, aos baldes! E bateu com a porta nas costas resignadas do bom Barr˘lo, que, pelo corredor, suspirando, lamentava o assomado genio do Gonšalinho, as coleras desproporcionadas em que o lanšava źa Politica.╗ Em quanto se ensaboava com vehemencia, depois se vestia n'uma pressa irada, Gonšalo ruminou aquelle intoleravel escandalo. Fatalmente, apenas se apeava em Oliveira, encontrava o homem da grande guedelha, caracolando por sob as janellas do palacete, na pileca de grandes clinas! E o que o desolava era perceber no corašŃo de Gracinha, pobre corašŃo meigo e sem fortaleza, uma teimosa raiz de ternura pelo Cavalleiro, bem enterrada, ainda vivaz, facil de reflorir... E nenhum outro sentimento forte que a defendesse, n'aquella ociosidade d'Oliveira--nem superioridade do marido, nem encanto d'um filho no seu beršo. Sˇ a amparava o orgulho, certo respeito religioso pelo nome de Ramires, o medo da pequena terra espreitadeira e mexeriqueira. A sua salvašŃo seria o abandono da cidade, o encerrado retiro n'uma das quintas do Barr˘lo, a _Ribeirinha_, sobretudo a _Murtosa_, com a linda matta, os musgosos muros de convento, a aldŕa em redor para ella se occupar como castellŃ benefica. Mas quŕ! Nunca o Barr˘lo, consentiria em perder o seu voltarete no Club, e a cavaqueira da tabacaria źElegante╗, e as chalašas do Major Ribas! Afogueado pelo calor, pela emošŃo, Gonšalo abriu a varanda. Em baixo, no curto terrašo ladrilhado, orlado de vasos de louša, precedendo o jardim, Gracinha, ainda soltos os cabellos por cima do penteador, conversava com outra senhora, muito alta, muito magra, de chapeu marujo enfeitado de papoulas, que segurava entre os brašos um repolhudo mˇlho de rosas. Era a źprima╗ Maria Mendonša, mulher de JosÚ Mendonša, condiscipulo do Barr˘lo em Amarante, agora capitŃo do Regimento de Cavallaria estacionado em Oliveira. Filha d'um certo D. Antonio, senhor (hoje Visconde) dos Pašos de Severim, devorada pela preoccupašŃo de parentescos fidalgos, de origens fidalgas, ligava sempre surrateiramente o vago solar de Severim a todas as casas nobres de Portugal--sobre tudo, mais gulosamente, ß grande casa de Ramires: e, desde que o regimento se aquartellßra em Oliveira, tratßra logo Gracinha por źtu╗ e Gonšalo por źprimo╗, com a intimidade especial, que convem a sangues superiores. Todavia mantinha amisades muito seguidas e activas com brazileiras ricas d'Oliveira--atÚ com a viuva Pinho, dona da loja de pannos, que (segundo se murmurava) lhe fornecia os dous filhos ainda pequenos de calš§es e de jalecas. Tambem convivia intimamente, jß na cidade, jß na _Feitosa_, com D. Anna Lucena. Gonšalo gostava da sua graša, da sua agudeza, da vivacidade maliciosa que a agitava n'uma linda crepitašŃo de galho, ardendo com alegria. E quando, ao rumor da janella perra, ella levantou os olhos lusidios e espertos, foi em ambos uma surpresa carinhosa: --Oh prima Maria! Que felicidade, logo que chego e que abro a janella... --E para mim, primo Gonšalo, que o nŃo via desde a sua volta de Lisboa!... Pois estß mais lindo, assim de bigode... --Dizem que estou lindissimo, absolutamente irresistivel! AtÚ aconselho ß prima Maria que se nŃo approxime muito de mim, para se nŃo incendiar. Ella deixou pender desoladamente nos brašos o seu pesado molho de rosas: --Ai Jesus, entŃo estou perdida, que ainda agora prometti ß prima Graša jantar cß esta tarde!... Oh Gracinha, por quem Ús, p§e um biombo entre os dois! Gonšalo gritou, pendurado da varanda, jß deliciado com os chistes da prima Maria: --NŃo! enfio eu um _abat-jour_ pela cabeša para attenuar o meu brilho!... E o maridinho, os pequenos? Como vae o nobre rancho? --Vivendo, com algum pŃo e muita graša de Deus... EntŃo atÚ logo, primo Gonšalo! E seja misericordioso! E ainda elle ria, encantado--jß a prima Maria depois de cochichar e d'estalar dois beijos apressados na face de Gracinha, desapparecŕra pela porta envidrašada da sala com a sua elegancia esgalgada. Gracinha, lentamente, subiu os tres degraus de marmore do jardim. Da varanda, Gonšalo ainda avistou atravez da ramaria leve, entre as sebes de buxo, o penteador branco, os fartos cabellos cabidos, relusindo no sol como uma cascata de azeviche. Depois o negro brilho, as claras rendas, desappareceram sob os loureiros da rua que conduzia ao Mirante. Mas Gonšalo nŃo se arredou d'entre as janellas, limando vagamente as unhas, espreitando pelas cortinas, n'uma desconfianša, quasi n'um terror que o Cavalleiro de novo surgisse na pileca--agora que Gracinha se embrenhßra para os lados d'esse commodo Mirante, construcšŃo do seculo XVIII, imitando um Templosinho do Amor, que rematava o longo terrašo do jardim e dominava a rua das Tecedeiras. Mas a calšada permanecia silenciosa, sob as derramadas sombras de arvoredo do Palacete e do Convento. E por fim decidiu descer, envergonhado da espionagem--certo que a irmŃ nŃo se mostraria ao Cavalleiro na varandinha do Mirante, assim com os cabellos em desalinho, por cima d'um penteador. E cerrava a porta, quando se encontrou deante dos brašos do Padre Sueiro, que o prenderam pela cinta com affago e respeito. --Oh! meu ingratissimo Padre Sueiro! exclamava Gonšalo, batendo ternamente nas gordas costas do CapellŃo. EntŃo que feia acšŃo foi esta? Mais de um mez sem apparecer na Torre! Agora para o Sr. Padre Sueiro jß nŃo ha Gonšalinho, ha sˇ Gracinha... Enternecido, quasi com uma lagrima a bailar nos mansos olhos miudos, que mais negrejavam entre a frescura rozea da face roliša e a cabecinha branca como algodŃo--Padre Sueiro sorria, fechando as mŃos sobre o peito da batina d'alpaca, d'onde surdia a ponta de um lenšo de quadrados vermelhos. E nŃo lhe escasseßra certamente o desejo d'ir ß Torre. Mas aquelle trabalhinho na Bibliotheca do Pašo do Bispo... Depois o seu rheumatismosito... Emfim a Sr.^a D. Graša sempre esperando S. Ex.^a, um dia, outro dia... --Bem, bem! acudiu alegremente Gonšalo, comtanto que o corašŃo nŃo se esquecesse da Torre... --Ah! esse! murmurou Padre Sueiro com commovida gravidade. E pelo corredor de paredes azues, adornadas com gravuras coloridas das batalhas de NapoleŃo, Gonšalo resumiu as novidades da Torre: --Como o Padre Sueiro sabe, rebentou aquelle escandalo do Relho... E ainda bem, porque conclui um negocio explendido. Imagine! Arrendei ha dias a quinta ao Pereira Brazileiro, ao Pereira da Riosa, por um conto cento e cincoenta mil rÚis... O capellŃo suspendeu a pitada, que colhera n'uma caixa de prata dourada, pasmado para o Fidalgo: --Ora ahi estß como as cousas se inventam! Pois por cß constou que V. Ex.^a tratßra com o JosÚ Casco, o JosÚ Casco dos Bravaes. AtÚ no Domingo, ao almošo, a Sr.^a D. Graša... --Sim, interrompeu o Fidalgo com uma fugidia c˘r na face fina. Effectivamente o Casco veio ß Torre, conversßmos. Primeiramente quiz, depois nŃo quiz. Aquellas cousas do Casco! Einfim, uma massada... NŃo ficou nada decidido. E quando o Pereira, uma bella manhŃ, me appareceu com a proposta, eu, inteiramente desligado, acceitei, e com que alvorošo!... Imagine! Um augmento soberbo de renda, o Pereira como rendeiro... O Padre Sueiro conhece bem o Pereira... --Homem entendido, concordou o CapellŃo cošando embarašadamente o queixo. NŃo ha duvida. E homem de bem... Depois nŃo havendo palavra dada ao Cas... ---Pois o Pereira para a semana vem ß cidade, atalhou apressadamente Gonšalo. O Padre Sueiro previne o tabelliŃo Guedes, e assignamos essa bella escriptura. SŃo as condiš§es costumadas. Creio que ha uma reserva a respeito da hortališa e do porco... Emfim o Padre Sueiro deve receber carta do Pereira. E immediatamente, descendo a escada, passando o lenšo perfumado pelo bigode, gracejou com o capellŃo sobre o famoso _Fado dos Ramires_ em que elle collaborava com o Videirinha. Oh! Padre Sueiro fornecera lendas sublimes! Mas aquella de Santa Aldonša, realmente, f˘ra ataviada com exagerašŃo... Quatro Reis a levarem a Santa aos hombros! --SŃo Reis de mais, Padre Sueiro! O bom capellŃo protestou, logo interessado e serio, no amor d'aquella obra que glorificava a Casa: --Ora essa! Com perdŃo de V. Ex.^a... Perfeitissimamente exacto. Lß o conta o Padre Guedes do Amaral, nas suas _Damas da C˘rte do Ceu_, livro precioso, livro rarissimo, que o Sr. JosÚ Barr˘lo tem na Livraria. NŃo especifica os Reis, mas diz quatro... źAos hombros de quatro Reis e com acompanhamento de muitos Condes.╗ Mas o nosso JosÚ Videira declarou que nŃo podia metter os Condes por causa da rima. O Fidalgo ria, dependurando n'um cabide, ao fundo da escada, o chapeu de palha com que descŕra: --Por causa da rima, pobres Condes... Mas o fado estß lindo. Eu trago uma copia para a Gracinha cantar ao piano... E agora outra cousa, Padre Sueiro. O que se conta por ahi do Governador Civil, d'esse Sr. AndrÚ Cavalleiro?... O capellŃo encolheu os hombros, desdobrando cautelosamente o seu vasto lenšo de quadrados vermelhos: --Eu, como V. Ex.^a sabe, nŃo entendo de Politica. Depois tambem nŃo frequento os cafÚs, os sitios onde se questiona Politica... Mas parece que gostam. No corredor um escudeiro gordo, de opulentas suissas ruivas, que Gonšalo nŃo conhecia, badalou a sineta do almošo. Gonšalo reparou, avisou o homem que a Snr.^a D. Maria da Graša andava para o fundo do jardim... --Entrou agora, Snr. D. Gonšalo! accudiu o escudeiro. E atÚ manda perguntar se V. Ex.^a deseja para o almošo vinho verde de Amarante, de _Vidainhos_. Sim, com certeza, vinho de _Vidainhos_. Depois sorrindo: --Oh Padre Sueiro, previna este escudeiro novo que eu nŃo tenho _Dom_. Sou simplesmente Gonšalo, grašas a Deus! O capellŃo murmurou que todavia, em documentos da Primeira Dynastia, appareciam Ramires com _Dom_. E, como Gonšalo parara deante do reposteiro corrido da sala, logo o bom velho se curvou, com as suas escrupulosas, reverentes ceremonias, para o Fidalgo passar. --EntŃo, Padre Sueiro, por quem Ú! Mas elle, com apegado respeito: --Depois de V. Ex.^a, meu senhor... Gonšalo afastou o reposteiro, empurrou docemente o capellŃo: --Padre Sueiro, jß nos documentos da Primeira Dynastia se estabeleceu que os Santos nunca andam atraz dos Peccadores! --V. Ex.^a manda, e sempre com que graša! Depois dos annos de Gracinha, uma tarde, pelas tres horas, Gonšalo, recolhendo com Padre Sueiro d'uma visita ß Bibliotheca do Pašo do Bispo, sentiu logo da antecamara o vozeirŃo do Titˇ, que rolava na sala azul em trovŃo lento. Franziu vivamente o reposteiro--e sacudiu o punho para o immenso homem que enchia um dos cadeir§es dourados, estirando por sobre as fl˘res do tapete umas botas novas de grossas tachas reluzentes: --Oh infame!... EntŃo n'outro dia assim me larga, sem escrupulo, depois de eu lhe preparar um cabrito estupendo, assado n'um espeto de cerejeira? E para quŕ?... Para uma orgia reles, com bolinhos de bacalhau e bichinhas de rabear! Titˇ nŃo desmanchou a sua conchegada beatitude: --Impossibilissimo. De tarde encontrei o JoŃo Gouveia no Chafariz. E sˇ entŃo nos lembrßmos de que eram os annos da D. Casimira. Dia sagrado! Aquellas ceias de Villa-Clara, as tresnoutadas źpandegas╗ com violŃo, impressionavam sempre Barr˘lo, que as appetecia. E com o olho agušado, do canto da mesa onde esfarelava cuidadosamente pacotes de tabaco dentro de uma terrina do JapŃo: --Quem Ú a D. Casimira? Vocŕs em Villa-Clara descobrem uns typos... Conta lß! --Um monstro! declarou Gonšalo. Uma matronaša bojuda como uma pipa, com um pŕllo nojento no queixo. Vive ao pÚ do Cemiterio, n'um cacifro que tresanda a petroleo, onde este senhor e as auctoridades vŃo jogar o quino, e derrišar com umas serigaitas de cazabeque vermelho e de farripas... Nem se pˇde decentemente contar deante do Snr. Padre Sueiro! O capellŃo, que sem rumor se esbatera n'uma sombra discreta, entre os franjados setins d'uma cortina e um pesado contador da India, moveu os hombros n'um consentimento risonho, como acostumado a todas as fealdades do Peccado. E, com pachorra, o Titˇ emendava o esbošo burlesco do Fidalgo: --A D. Casimira Ú gorda, mas muito aceada. AtÚ me pediu para eu lhe comprar hoje, na cidade, uma bacia nova d'assento. A casa nŃo cheira a petroleo e fica por traz do convento de Santa Theresa. As serigaitas sŃo simplesmente as sobrinhas, duas raparigas alegres que gostam de rir e de trošar... E o Snr. Padre Sueiro podia, sem medo... --Bem, bem! atalhou Gonšalo. Gente deliciosa! Deixemos a D. Casimira, que tem bacia nova para os seus semicupios... Vamos ß outra infamia do Sr. Antonio Villalobos! Mas Barr˘lo insistia, curioso: --NŃo, nŃo, conta lß, Titˇ... Noite d'annos, patuscada rija, hein? --Ceia pacata, contou o Titˇ com a seriedade que lhe merecia a festa das suas amigas. A D. Casimira tinha uma bella frangalhada com ervilhas. O JoŃo Gouveia trouxe do Gago uma travessa de b˘los de bacalhau que calharam... Depois, fogo de vistas na horta. O Videirinha tocou, as pequenas cantaram... NŃo se passou mal. Gonšalo esperava--irresistivelmente interessado pela ceia das Casimiras: --Acabou, hein?... Agora a outra infamia, mais grave! EntŃo o Snr. Antonio Villalobos Ú intimo do Sanches Lucena, frequenta todas as semanas a _Feitosa_, toma chß e torradas com a bella D. Anna, e esconde tenebrosamente dos seus amigos estes privilegios gloriosos?... --Sem contar, gritou o Barr˘lo deliciosamente divertido, que lhe passeia ß trela os cŃesinhos felpudos! --Sem contar que lhe passeia ß trela os cŃesinhos felpudos! echoou cavamente Gonšalo. Responda, meu illustre amigo! O Titˇ remecheu o vasto corpo dentro do cadeirŃo, recolheu as botas de tachas luzentes, afagou lentamente a face barbuda, que uma vermelhidŃo aquecŕra. E depois de encarar Gonšalo, intensamente, com um esforšo de sagacidade que mais o afogueou: --Tu jß alguma vez, por curiosidade, me perguntaste se eu conhecia o Sanches Lucena? Nunca me perguntaste... O Fidalgo protestou. NŃo! Mas constantemente na Assembleia, no Gago, na Torre, elles berravam, em quest§es de Politica, o nome do Sanches Lucena! Nada mais natural, atÚ mais prudente, do que alludir o Snr. Titˇ ß sua intimidade illustre! Ao menos para evitar que elle, ou os amigos, deante do Snr. Titˇ que comia as torradas da _Feitosa_, tratassem o Sanches Lucena como um trapo! O Titˇ despegou do cadeirŃo. E afundando as mŃos nos bolsos da quinzena d'alpaca, sacudindo desinteressadamente os hombros: --Cada um tem sobre o Sanches a sua opiniŃo... Eu apenas o conhešo ha quatro ou cinco mezes, mas acho que Ú serio, que sabe as cousas... Agora, lß nas Camaras... Gonšalo, indignado, bradava que se nŃo discutiam os meritos do Snr. Sanches Lucena--mas os segredos do Snr. Titˇ Villalobos! E o escudeiro novo, avanšando as suissas ruivas por uma fenda do reposteiro, annunciou que o Snr. Administrador de Villa-Clara procurava Suas Ex.^{as}... Barr˘lo largou logo a terrina de tabaco: --O Snr. JoŃo Gouveia! Que entre! Bravo! temos cß toda a rapaziada de Villa-Clara! E Titˇ, da janella onde se refugiara, lanšou o vozeirŃo, mais troante, abafando a importuna conversa do Sanches e da _Feitosa_: --Viemos ambos! Por signal n'uma traquitana infame... AtÚ se nos desferrou uma das pilecas e tivemos de parar na Vendinha. NŃo se perdeu tempo, que ha agora lß um vinhinho branco que Ú d'aqui da ponta fina!... Beliscava a orelha. Aconselhava ruidosamente Barr˘lo e Gonšalo a passarem na Vendinha, para provar a pinga celeste. --AtÚ aqui o Snr. Padre Sueiro lhe atišava uma caneca valente, apesar do Peccado! Mas JoŃo Gouveia entrou, encalmado, empoeirado, com um vinco vermelho na testa, do chapeu e do calor--e abotoado na sobrecasaca preta, de calšas pretas, de luvas pretas. Sem folego, apertou silenciosamente pela sala as mŃos amigas que o acolhiam. E desabou sobre o camapÚ, implorando ao amigo Barr˘lo a caridade d'uma bebidinha fresca! --Estive para entrar no cafÚ Monaco. Mas reflecti que n'esta grandiosa casa dos Barr˘los as bebidas sŃo de mais confianša. --Ainda bem! Vocŕ que quer? Orchata? Sangria? Limonada? --Sangria. E, limpando o pescošo e a testa, amaldišoou o indecente calor d'Oliveira: --Mas ha gente que gosta! Lß o meu chefe, o Snr. Governador Civil, escolhe sempre a hora do calor para passear a cavallo. Ainda hoje... Na repartišŃo atÚ ao meio dia; depois, cavallo ß porta; e larga atÚ ß estrada de Ramilde, que Ú uma Africa... NŃo sei como lhe nŃo fervem os miolos! --Oh! acudiu Gonšalo, Ú muito simples. Se elle os nŃo tem! O administrador saudou gravemente: --Jß cß faltava com a sua ferroadasinha o Snr. Gonšalo Mendes Ramires! NŃo comecemos, nŃo comecemos... Este seu cunhado, Barr˘lo, Ú bicho indomesticavel! Sempre reponta! O bom Barr˘lo gaguejou, constrangido, que Gonšalinho em Politica nŃo dispensava a piada... --Pois olhe! declarou o administrador, sacudindo o dedo para Gonšalo. Esse Snr. AndrÚ Cavalleiro, que nŃo tem miolos, ainda esta manhŃ na RepartišŃo gabou com immensa sympathia os miolos do Snr. Gonšalo Mendes Ramires!... E Gonšalo, muito serio: --Tambem nŃo faltava mais nada! Para esse Governador Civil ser perfeitamente absurdo sˇ lhe restava que me considerasse um asno! --PerdŃo! gritou o Administrador, que se erguera, desabotoando logo a sobrecasaca, para commodidade da contenda. Barr˘lo acudio, afflicto, carregando nos hombros do Gouveia--para o socegar e o rep˘r no camapÚ: --NŃo, meninos, nŃo! Politica, nŃo! E entŃo essa massada do Cavalleiro... Vamos ao que importa. Vocŕ janta comnosco, JoŃo Gouveia? --NŃo, obrigado. Jß prometti jantar com o Cavalleiro. Temos lß o Ignacio Vilhena. Vae lŕr um artigo que escreveu para o _Boletim de GuimarŃes_ sobre umas f˘rmas de fabricar ossos de martyres, descobertas nas obras do convento de S. Bento. Estou com curiosidade... E a Snr.^a D. Graša, bem? Quem eu nŃo avistava havia mezes era o Snr. Padre Sueiro. Nunca apparece agora pela Torre!... Mas sempre rijo, sempre višoso. Oh, Snr. Padre Sueiro, qual Ú o seu segredo para toda essa meninice? Do seu canto, o capellŃo sorriu timidamente. O segredo? Poupar a Vida--nŃo a consumindo nem com ambiš§es nem com decepš§es. Ora para elle, louvado Deus, a vida corria muito simples e muito pequenina. E fˇra o seu rheumatismo... Depois, cˇrando d'acanhamento, atravez das sentenšas evangelicas que lhe escapavam: --Mas mesmo o rheumatismo nŃo Ú mal perdido. Deus, que o manda, sabe porque o manda... Soffrer edifica. Por que enfim o que nˇs soffremos nos leva a pensar no que os outros soffrem... --Pois olhe, volveu com alegre incredulidade o Administrador, eu, quando tenho os meus ataques de garganta, nŃo penso na garganta dos outros! Penso sˇ na minha que me dß bastante cuidado. E agora a vou regalar n'aquella bella sangria... O escudeiro vergava, com a luzente bandeja de prata, carregada de copos de sangria onde boiavam rodellinhas de limŃo. E todos se tentaram, todos beberam, atÚ Padre Sueiro, para mostrar ao Snr. Antonio Villalobos que nŃo desdenhava o vinho, dadiva amavel de Deus--pois como ensina Tibulo com verdade, apezar de gentilico, _vinus facit dites animos, mollia corda dat_, enrija a alma e adoša o corašŃo. JoŃo Gouveia, depois d'um suspiro consolado, pousou na bandeja o copo que esvasißra d'um trago e interpellou Gonšalo: --Vamos a saber! EntŃo n'outro dia que historia phantastica foi essa d'uma festa na Torre, com senhoras, com a D. Anna Lucena?... Eu nŃo acreditei quando o pequeno do Gago me encontrou, me deu o recado. Depois... Mas d'entre as cortinas da janella, onde acabava a sangria, Titˇ novamente rebombou, interpellando tambem o Fidalgo: --Oh s˘ Gonšalo! E o que me contou ha pouco o Barr˘lo?... Que andavas com idÚas de abalar para a Africa? Ao espanto de JoŃo Gouveia quasi se misturou terror. Para a Africa?... O quŕ? Com um emprego para a Africa?... --NŃo! plantar c˘cos! plantar cacau! plantar cafÚ! exclamava o Barr˘lo, com divertidas palmadas na c˘xa. Pois Titˇ approvava a idÚa! Tambem elle, se arranjasse um capital, dez ou quinze contos, tentava a Africa, a traficar com o preto... E tambem se f˘sse mais pequeno, mais secco. Que homens do seu corpanzil, necessitando muita comezaina e muita vinhaša, nŃo aguentam a Africa, rebentam! --O Gonšalo sim! ╔ chupado, Ú rijo; nŃo carrega na agua-ardente; estß na conta para Africanista... E sempre te digo! Carreira bem mais decente que essa outra por que tens mania, de deputado! Para que? Para palmilhar na Arcada, para bajular Conselheiros. Barr˘lo concordou, com alarido. Tambem nŃo comprehendia a teima de Gonšalo em ser deputado! Que massada! Eram logo as intrigas, e as desandas nos jornaes, e os enxovalhos. E sobretudo aturar os eleitores. --Eu, nem que me nomeassem depois Governador Civil, com um titulo e uma gran-cruz a tiracollo, como o Freixomil! Gonšalo escutßra, n'um silencio risonho e superior, enrolando laboriosamente um cigarro com o tabaco do Barr˘lo: --Vocŕs nŃo comprehendem... Vocŕs nŃo conhecem a organisašŃo de Portugal. Perguntem ahi ao Gouveia... Portugal Ú uma fazenda, uma bella fazenda, possuida por uma parceria. Como vocŕs sabem ha parcerias commerciaes e parcerias ruraes. Esta de Lisboa Ú uma _parceria politica_, que governa a herdade chamada Portugal... Nˇs os Portuguezes pertencemos todos a duas classes: uns cinco a seis milh§es que trabalham na fazenda, ou vivem n'ella a olhar, como o Barr˘lo, e que pagam; e uns trinta sujeitos em cima, em Lisboa, que formam a _parceria_, que recebem e que governam. Ora eu, por gosto, por necessidade, por habito de familia, desejo mandar na fazenda. Mas, para entrar na _parceria politica_, o cidadŃo portuguez precisa uma habilitašŃo--ser deputado. Exactamente como, quando pretende entrar na Magistratura, necessita uma habilitašŃo--ser bacharel. Por isso procuro comešar como deputado para acabar como parceiro e governar... NŃo Ú verdade, JoŃo Gouveia? O Administrador voltßra ß bandeja das sangrias, de que saboreava outro copo, agora lentamente, aos goles: --Sim, com effeito, essa Ú a carreira... Candidato, Deputado, Politico, Conselheiro, Ministro, Mandarim. ╔ a carreira... E melhor que a d'Africa. Por fim na Arcada, em Lisboa, tambem cresce cacau e ha mais sombra! Barr˘lo no emtanto abrašßra o hombro possante do Titˇ, com quem mergulhou no vŃo da janella, n'uma confraternidade d'ideias, gracejando: --Pois eu, sem ser dos taes _parceiros_, tambem mando nos bocados de Portugal que mais me interessam por que me pertencem!... E sempre queria vŕr que esse S. Fulgencio, ou o Braz Victorino, ou lß os politicos do Terreiro do Pašo, se mettessem a disp˘r nas minhas terras, na _Ribeirinha_ ou na _Murtosa_... Era a tiro! Encostado ß vidraša, Titˇ cošava a barba, impressionado: --Pois sim, Barr˘lo! Mas vocŕ na _Ribeirinha_ e na _Murtosa_ tem de pagar as contribuiš§es que elles mandarem. E n'esses concelhos tem d'aguentar as auctoridades que elles nomearem. E goza para lß d'estradas se elles lh'as fizerem. E vende o carro de pŃo e a pipa de vinho com mais ou menos proveito, segundo as leis que elles votarem... E assim tudo. O Gonšalo nŃo deixa de acertar. ╔ o diabo! Quem manda Ú quem lucra... Olhe! o maroto do meu senhorio em Villa-Clara, agora para o S. Miguel, augmenta a renda da casa em que eu moro, um cochicho que ninguem quer, por que mataram lß o carrasco, que ainda lß apparece... E o Cavalleiro, esse, como _parceiro_, vive de graša n'este bello palacio de S. Domingos, com cocheira, com jardim, com horta... Barr˘lo atirou um _chut_, de mŃo espalmada, abafando o vozeirŃo do Titˇ, com medo que as regalias do Cavalleiro, assim proclamadas, renovassem as furias de Gonšalo. Mas o Fidalgo nŃo percebera, attento ao JoŃo Gouveia, que, enterrado no camapÚ depois da sangria, novamente contava o seu assombro, ao encontrar no chafariz, em Villa-Clara, o rapasola do Gago com o recado da grande festa na Torre: --E cheguei a desconfiar que realmente vocŕ dÚsse festa, quando bateram as nove, depois as nove e meia, e o Titˇ sem chegar para a ceia da D. Casimira!... Bem, pensei, tambem recebeu recado e abalou para a Torre! Por fim, apenas elle appareceu, de carapušo e de jaqueta, percebi que f˘ra troša do Snr. D. Gonšalo... EntŃo o Fidalgo pasmou com uma inesperada, estranha suspeita: --De carapušo e jaqueta? O Titˇ andava n'essa noite de carapušo e de jaqueta?... Mas bruscamente Barr˘lo, da funda janella, lanšou para dentro, para a sala, um brado de pavor: --Oh! rapazes! Santo Deus! Ahi veem as Louzadas! JoŃo Gouveia saltou do camapÚ, como n'um perigo, reabotoando arrebatadamente a sobrecasaca; Gonšalo, atarantado, esbarrou com o Titˇ e o Barr˘lo que recuavam, no terror de serem apercebidos atravez dos vidros largos; atÚ Padre Sueiro, prudente, abandonou o seu recanto onde corria os oculos pela _Gazeta do Porto_. E todos, d'entre a fenda das cortinas, como soldados na fresta de uma cidadella, espreitavam o Largo, que o sol das quatro horas dourava por sobre os telhados musgosos da Cordoaria. Do lado da rua das Pŕgas, as duas Louzadas, muito esgalgadas, muito sacudidas, ambas com manteletes curtos de seda preta e vidrilhos, ambas com guardasoes de xadresinbo desbotado, avanšavam, estirando pelo largo empedrado duas sombras agudas. As duas manas Louzadas! Seccas, escuras e garrulas como cigarras, desde longos annos, em Oliveira, eram ellas as esquadrinhadoras de todas as vidas, as espalhadoras de todas as maledicencias, as tecedeiras de todas as intrigas. E na desditosa Cidade nŃo existia nodoa, pÚcha, bule rachado, corašŃo dorido, algibeira arrasada, janella entreaberta, poeira a um canto, vulto a uma esquina, chapeu estreado na missa, bolo encommendado nas Mathildes, que os seus quatro olhinhos furantes d'azeviche sujo nŃo descortinassem--e que a sua solta lingoa, entre os dentes ralos, nŃo commentasse com malicia estridente! D'ellas surdiam todas as cartas anonymas que infestavam o Districto: as pessoas devotas consideravam como penitencias essas visitas em que ellas durante horas galravam, abanando os brašos escanifrados: e sempre por onde ellas passassem ficava latejando um sulco de desconfianša e receio. Mas quem ousaria rechašar as duas manas Louzadas? Eram filhas do decrepito e venerando General Louzada; eram parentas do Bispo; eram poderosas na poderosa confraria do Senhor dos Passos da Penha. E depois d'uma castidade tŃo rigida, tŃo antiga e tŃo resequida, e por ellas tŃo espaventosamente alardeada--que o Marcolino do Independente as alcunhßra de _Duas Mil Virgens_. --NŃo veem para cß! trovejou o Titˇ, com immenso allivio. Com effeito no meio do Largo, rente ß grade que circumda o antigo Relogio-de-Sol, as duas manas paradas, erguiam o bico escuro, farejando e espiando a Egrejinha de S. Matheus onde o sino lanšßra um repique de baptisado. --Oh, c'os diabos, que Ú para cß! As Louzadas, decididas, investiam contra o portŃo dos Cunhaes! EntŃo foi um panico! As gordas pernas do Barr˘lo, fugindo, abalaram, quasi derrubaram sobre os contadores, os potes bojudos da India. Gonšalo bradava que se escondessem no pomar. Desconcertado, o Gouveia rebuscava com desespero o seu chapeu c˘co. Sˇ o Titˇ, que as abominava e a quem ellas chamavam o _Polyphemo_, retirou com serenidade, abrigando o Padre Sueiro sob o seu brašo forte. E jß o bando espavorido se arremessßra sobre o reposteiro--quando Gracinha appareceu, com um fresco vestido de sedinha c˘r de morango, sorrindo, pasmada, para o tropel que rolava: --Que foi? Que foi?... Um clamor abafado envolveu a d˘ce senhora ameašada: --As Louzadas! --Oh! Fugidiamente o Titˇ e JoŃo Gouveia apertaram a mŃo que ella lhes abandonou, esmorecida. A sineta do portŃo tilintßra, temerosa! E a fila acavallada, onde Padre Sueiro rebolava a reboque, enfiou para a livraria que o Barr˘lo aferrolhou, gritando ainda a Gracinha, com uma inspirašŃo: --Esconde as sangrias! Pobre Gracinha! Atarantada, sem tempo de chamar o escudeiro, carregou ella para uma banqueta do corredor, n'um esforšo desesperado, a pesada salva--com que as Louzadas, se a descortinassem, edificariam por sobre a cidade, e mais alta que a Torre de S. Matheus, uma historia pavorosa de źvinhaša e bebedeira╗. Depois, offegando, relanceou no espelho o penteado. E direita como n'uma arena, com a temeridade simples e risonha dos antigos Ramires, esperou a arremettida das manas terriveis. * * * * * No outro domingo, depois do almošo, Gonšalo acompanhou a irmŃ a casa da tia Arminda Villegas, que na vespera, ao tomar (como costumava todos os sabbados) o seu banho aos pÚs, se escaldßra e recolhera ß cama, apavorada, reclamando uma junta dos cinco cirurgi§es d'Oliveira. Depois acabou o charuto sob as acacias do Terreiro da Louša, pensando na sua Novella abandonada na Torre durante essas semanas, e no lance famoso do Capitulo II que o tentava e que o assustava--o encontro de Lourenšo Ramires com Lopo de BayŃo, _o Bastardo_, no valle fatal de Cantapedra. E recolhia aos Cunhaes (porque promettera ao Barr˘lo uma trotada a cavallo, atÚ ao Pinhal de Estevinha, para aproveitar a došura do domingo ennevoado) quando, na rua das Vellas, avistou o tabelliŃo Guedes, que sahia da confeitaria das Mathildes com um grosso embrulho de pasteis. Ligeiramente, o Fidalgo atravessou logo a rua--emquanto o Guedes, da borda do passeio, pesado e barrigudo, na ponta dos botins miudinhos gaspeados de verniz, descobria, n'uma cortezia immensa, a calva, emplumada ao meio pelo famoso tufo de cabello grisalho que lhe valera a alcunha de źGuedes P˘pa╗: --Por quem Ú, meu caro Guedes, ponha o chapeu! Como estß? Sempre fÚro e mošo. Ainda bem!... Fallou com o meu Padre Sueiro? O Pereira da Riosa, por fim, sˇ vem ß cidade na quarta feira... Sim! Sim! O Snr. Padre Sueiro passßra pelo cartorio, para avisar--e elle apresentava os parabens a S. Ex.^a pelo seu novo rendeiro... --Homem muito competente, o Pereira! Jß ha vinte annos que o conhešo... E olhe V. Ex.^a a propriedade do Conde de Monte-Agra! Ainda me lembro d'ella, um chavascal; hoje que primor! Sˇ a vinha que elle tem plantado! Homem muito competente... E V. Ex.^a com demora? --Dois ou tres dias... NŃo se atura este calor de Oliveira. Hoje, felizmente, refrescou. E que ha de novo? Como vae a politica? O amigo Guedes sempre bom Regenerador, leal e ardente, hein? Subitamente o TabelliŃo, com o seu embrulho de doces conchegado ao collete de seda preta, agitou o brašo gordo e curto, n'uma indignašŃo que lhe esbraseou de sangue o pescošo, as orelhas cabelludas, a face rapada, toda a testa atÚ ßs abas do chapeu branco orlado de fumo negro: --E quem o nŃo ha-de ser, Snr. Gonšalo Mendes Ramires? Quem o nŃo ha-de ser?... Pois este ultimo escandalo! Os risonhos olhos de Gonšalo logo se alargaram, serios: --Que escandalo? O TabelliŃo recuou. Pois S. Ex.^a nŃo sabia da ultima prepotencia do Governador Civil, do Snr. AndrÚ Cavalleiro? --O quŕ, caro amigo?... O Guedes cresceu todo sobre o bico dos botins pequeninos, e bojou, e inchou, para exclamar: --A transferencia do Noronha!... A transferencia do desgrašado Noronha! Mas uma senhora, tambem obesa, de bušo carregado, toda a estalar em ricas e rugidoras sŕdas de missa, arrastando severamente pela mŃo um menino que rabujava, parou, fitou o Guedes--porque o digno homem com o seu ventre, o seu embrulho, a sua indignašŃo, atravancava a entrada das Mathildes. Apressadamente, o Fidalgo levantou, para ella entrar, o fecho da porta envidrašada. Depois, n'um alvorošo: --O amigo Guedes naturalmente vae para casa. ╔ o meu caminho. Andamos e conversamos... Ora essa! Mas o Noronha... Que Noronha? --O Ricardo Noronha... V. Ex.^a conhece. O pagador das Obras-Publicas! --Ah! sim, sim... EntŃo transferido? Transferido arbitrariamente? Na rua das Brocas por onde desciam, no silencio, a solidŃo das lojas cerradas, a colera do Guedes resoou, mais solta: --Infamemente, Snr. Gonšalo Mendes Ramires, infamissimamente! E para Almodovar, para os confins do Alemtejo!... Para uma terra sem recursos, sem distracš§es, sem familias!... Parßra, com os doces contra o corašŃo, os olhinhos esbugalhados para o Fidalgo, coriscando. O Noronha! Um empregado trabalhador, honradissimo! E sem Politica, absolutamente sem Politica. Nem dos Historicos, nem dos Regeneradores. Sˇ da familia, das tres irmŃs que sustentava, tres fl˘res... E homem estimadissimo na cidade, cheio de prendas! Um talento immenso para a musica!... Ah! o Snr. Gonšalo Ramires nŃo sabia? Pois compunha ao piano cousas lindas! Depois precioso para reuni§es, para annos. Era elle quem organisava sempre em Oliveira as representaš§es de curiosos... --Porque, como ensaiador, creia V. Ex.^a que nŃo ha outro, mesmo na capital... NŃo ha outro! E, zßs, de repente, para Almodovar, para o Inferno, com as irmŃs, com os tarecos! Sˇ o piano!... Veja V. Ex.^a sˇ o transporte do piano! Gonšalo resplandecia: --╔ um bello escandalo. Ora que felicidade esta de o ter encontrado, meu caro Guedes!... E nŃo se sabe o motivo? De novo caminhavam demoradamente pelo passeio estreito. E o tabelliŃo encolhia os hombros, com amargura. O motivo! Publicamente, como sempre n'estas prepotencias, o motivo era a conveniencia do Servišo... --Mas todos os amigos do Noronha, por toda a cidade, conhecem o verdadeiro motivo... O intimo, o secreto, o medonho! --EntŃo? Guedes relanceou a rua, com prudencia. Uma velha atravessava, coxeando, segurando uma bilha. E o tabelliŃo segredou cavamente, junto ß face deslumbrada do fidalgo.--╔ que o Snr. AndrÚ Cavalleiro, esse infame, se encantßra com a mais velha das irmŃs Noronhas, a D. Adelina, formosissima rapariga, alta e morena, uma estatua!... E repellido (porque a menina, cheia de juizo, uma perola, percebera a intenšŃo villissima) em quem se vinga, por despeito, o Snr. Governador Civil? No pagador! Para Almodovar com as meninas, com os tarecos!... Era o pagador quem pagava! --╔ uma bella maroteira! murmurou Gonšalo, banhado de gosto e riso. --E note V. Ex.^a! exclamava o Guedes, com a mŃo gorda a tremer por cima do chapeu. Note V. Ex.^a que o pobre Noronha, na sua innocencia, tŃo bom homem, gostando sempre d'agradar aos seus chefes, ainda ha semanas dedicßra ao Cavalleiro uma valsa linda!... A _Mariposa_, uma valsa linda! Gonšalo nŃo se conteve, esfregou as mŃos n'um triumpho: --Mas que preciosa maroteira!... E nŃo se tem fallado? Esse jornal d'opposišŃo, o _Clarim d'Oliveira_, nem uma denuncia, nem uma allusŃo?... O Guedes pendeu a cabeša, descoršoado. O Snr. Gonšalo Ramires conhecia bem essa gente do _Clarim_... Estylo--e estylo brincado, opulento... Mas para assoalhar, assim n'um caso gravissimo como o do Noronha, a verdade bem nua--pouco nervo, nenhuma valentia. E depois o Biscainho, o redactor principal, andava a passar surrateiramente para os Historicos. Ah! O Snr. Gonšalo Mendes Ramires nŃo se inteirßra? Pois esse torpissimo Biscainho bolinava. De certo o Cavalleiro lhe acenßra com posta... AlÚm d'isso, como provar a infamia? Cousas intimas, cousas de familia. NŃo se podia apresentar a declarašŃo da D. Adelina, menina virtuosissima--e com uns olhos!... Ah! se fosse no tempo do Manoel Justino e da _Aurora de Oliveira_!... Esse era homem para estampar logo na primeira pagina, em letra gra˙da: źAlerta! que a Auctoridade superior do Districto tentou levar a deshonra ao seio da familia Noronha!...╗ --Esse era um homem! Coitado, lß estß no cemiterio de S. Miguel... E agora, Snr. Gonšalo Ramires, o despotismo campeia, desenfreado! Bufava, arfava, esfalfado d'aquelle fogoso desabafo. Dobraram calados a esquina das Brocas para a bella rua, novamente calšada, da Princeza D. Amelia. E logo na segunda porta, parando, tirando da algibeira o trinco, o Guedes, que ainda resfolgava, offereceu a S. Ex.^a para descanšar. --NŃo, nŃo, obrigado, meu caro amigo. Tive immenso, immenso prazer, em o encontrar... Essa historia do Noronha Ú tremenda!... Mas nada me espanta do Snr. Governador Civil. Sˇ me espanta que o nŃo tenham corrido d'Oliveira, como elle merece, com pancada e assuada... Emfim, nem toda a gente boa jaz no cemiterio de S. Miguel... AtÚ ßmanhŃ, meu Guedes. E obrigado! Da rua da Princeza D. Amelia atÚ o Largo de El-Rei, Gonšalo correu com o deslumbramento de quem descobrisse um thesouro e o levasse debaixo da capa! E ahi levava com effeito o źescandalo, o rico escandalo╗, que tanto farejßra, por que tanto almejßra, para desmantelar o Snr. Governador Civil na sua fiel cidade de Oliveira que lhe levantava arcos de buxo! E, por uma mercŕ de Deus, o źrico escandalo╗ demoliria tambem o homem no corašŃo de Gracinha, onde, apezar do antigo ultraje, elle permanecia como um bicho n'um fructo, esfuracando e estragando... E nŃo duvidava da efficacia do escandalo! Toda a cidade se revoltaria contra a Authoridade femieira, que opprime, desterra um funccionario admiravel--por que a irmŃ do pobre senhor se recusou ß baba dos seus beijos. E Gracinha?... Como resistiria Gracinha ßquelle desengano--o seu antigo AndrÚ abrazado pela menina Noronha e por ella repellido com n˘jo e com mˇfa? Oh! o escandalo era soberbo! Sˇ restava que estalasse, bem ruidoso, sobre os telhados d'Oliveira e sobre o peito de Gracinha como trovŃo benefico que limpa ares corrompidos. E d'esse trovŃo, rolando por todo o Norte, se encarregava elle com delicia. Libertava a cidade d'um Governador detestavel, Gracinha d'um sonho errado. E assim, com uma certeira pennada, trabalhava _pro patria et pro domo_! Nos Cunhaes correu ao quarto do Barr˘lo, que se vestia trauteando o _Fado dos Ramires_, e gritou atravez da porta com uma decisŃo flammejante: --NŃo te posso acompanhar ß Estevinha. Tenho que escrever urgentemente. E nŃo subas, nŃo me perturbes. Necessito socego! Nem attendeu aos protestos desolados com que o Barr˘lo accudira ao corredor, em ceroulas. Galgou a escada. No seu quarto, depois de despir rapidamente o casaco, de excitar a testa com um borrifo d'agua de Colonia, abancou ß mesa--onde Gracinha collocava sempre entre flores, para elle trabalhar, o monumental tinteiro de prata que pertencera ao tio Melchior. E sem emperrar, sem rascunhar, n'um d'esses soltos fluxos de Prosa que brotam da paixŃo, improvisou uma Correspondencia rancorosa para a *Gazeta do Porto* contra o Snr. Governador Civil. Logo o titulo fulminava--_Monstruoso attentado_! Sem desvendar o nome da familia Noronha, contava miudamente, como um acto certo e por elle testemunhado, źa tentativa vill˘a e baixa da primeira Auctoridade do Districto contra a pudicicia, a paz de corašŃo, a honra de uma doce rapariga de dezeseis primaveras!╗ Depois era a resistencia desdenhosa--źque a nobre creanša oppuzera ao Don Juan administrativo, cujos bellos bigodes sŃo o espanto dos povos!╗ Por fim vinha--źa desforra torpe e sem nome que S. Ex.^a tomßra sobre o zeloso empresado (que Ú tambem um talentoso artista), obtendo d'este nefasto Governo que fosse transferido, ou antes arrojado, cruelmente exilado, com a familia de tres delicadas senhoras, para os confins do Reino, para a mais arida e escassa das nossas Provincias, por o nŃo poder empacotar para a Africa no porŃo sordido d'uma fragata!╗ Lanšava ainda alguns rugidos sobre źa agonia politica de Portugal╗. Com pavor triste, recordava os peiores tempos do Absolutismo, a innocencia soterrada nas masmorras, o prazer desordenado do Principe sendo a expressŃo unica da Lei! E terminava perguntando ao Governo se cobriria este seu agente--źeste grotesco Nero, que como outr'ora o outro, o grande, em Roma, tentava levar a seducšŃo ao seio das familias melhores, e commettia esses abusos de poder, motivados por lascivias de temperamento, que foram sempre, em todos os seculos e todas as civilisaš§es, a execrašŃo do justo!╗--E assignava _Juvenal_. Eram quasi seis horas quando desceu ß sala, ligeiro e resplandecente. Gracinha martellava o piano, estudando o _Fado dos Ramires_. E Barr˘lo (que nŃo se arriscßra a um passeio solitario) folheava, estendido no camapÚ, uma famosa _Historia dos Crimes da InquizišŃo_ que comešßra ainda em solteiro. --Estou a trabalhar desde as duas horas! exclamou logo Gonšalo, escancarando a janella. Fiquei derreado. Mas, louvado seja Deus, fiz obra de Justiša... D'esta vez o Snr. AndrÚ Cavalleiro vae abaixo do seu cavallo! Barr˘lo fechou immediatamente o livro, com o cotovello nas almofadas, inquieto: --Houve alguma coisa? E Gonšalo, plantado deante d'elle, com um risinho suave, um risinho feroz, remexendo na algibeira o dinheiro e as chaves: --Oh! quasi nada. Uma bagatella. Apenas uma infamia... Mas para o nosso Governador Civil infamias sŃo bagatellas. Sob os dedos de Gracinha o _Fado dos Ramires_ esmoreceu, apenas rošado, n'um murmurio incerto. O Barr˘lo esperava, esgaseado: --Desembucha! E Gonšalo desabafou, com estrondo: --Pois uma maroteira immensa, homem! O Noronha, o pobre Noronha, perseguido, espesinhado, expulso! Com a familia... Para o inferno, para o Algarve! --O Noronha pagador? --O Noronha pagador. Foi o infeliz pagador que pagou! E, regaladamente, desenrolou a historia lamentavel. O Snr. AndrÚ Cavalleiro namoradissimo, todo em chammas pela irmŃ mais velha do Noronha. E atacando a rapariga com ramos, cartas, versos, estropidos cada manhŃ por deante da janella, a ladear na pileca! AtÚ lhe soltßra, ao que parece, uma velha marafona, uma alcoviteira... E a rapariga, um anjo cheio de dignidade, impassivel. Nem se revoltava, apenas se ria. Era uma troša em casa das Noronhas, ao chß, com a leitura da versalhada ardente em que elle a tratava de źNympha, d'estrella da tarde...╗ Emfim uma sordidez funambulesca! O pobre _Fado dos Ramires_ debandou pelo teclado, n'um tumulto de gemidos desconcertados e asperos. --E eu nŃo ter ouvido nada! murmurava o Barr˘lo, assombrado. Nem no Club, nem na Arcada... --Pois, meu amiguinho, quem ouviu, e um famoso estampido, foi o pobre Noronha. Arremessado para o fundo do Alemtejo, para um sitio doentio, coalhado de pantanos. ╔ a morte... ╔ uma condemnašŃo ß morte! A esta apparicŃo da Morte, surdindo dos pantanos, Barr˘lo atirou uma palmada ao joelho, desconfiado: --Mas quem diabo te contou tudo isso? O Fidalgo da Torre encarou o cunhado com desdem, com piedade: --Quem me contou!? E quem me contou que D. SebastiŃo morreu em Alcacer-Kebir?... SŃo os factos. ╔ a Historia. Toda Oliveira sabe. Por acaso ainda esta manhŃ o Guedes e eu conversamos sobre o caso. Mas eu jß sabia!... E tenho tido pena. Que diabo! NŃo ha crime em se estar apaixonado como o pobre AndrÚ. Louco, perdido! AtÚ a chorar na RepartišŃo, deante do Secretario Geral. E a rapariga ßs gargalhadas!... Agora onde ha crime, e horrendo, Ú na perseguišŃo ao irmŃo, ao pagador, empregado excellente, d'um talento raro... E o dever de todo o homem de bem, que prese a dignidade da AdministrašŃo e a dignidade dos costumes, Ú denunciar a infamia... Eu, pela minha parte, cumpri esse bom dever. E com certo brilho, louvado Deus! --Que fizeste? --Enterrei na ilharga do Snr. Governador Civil a minha b˘a penna de Toledo, atÚ ß rama! O Barr˘lo, impressionado, beliscava a pelle do pescošo. O piano emmudecera: mas Gracinha nŃo se movia do m˘cho, com os dedos entorpecidos nas teclas, como esquecida deante da larga folha onde se enfileiravam, na lettra apurada do Videirinha, as quadras triumphaes dos Ramires. E subitamente Gonšalo sentiu n'aquella immobilidade suffocada o despeito que a trespassava. Sensibilisado, para a libertar, lhe poupar algum solušo escapando irresistivelmente, correu ao piano, bateu com carinho nos pobres hombros vergados que estremeceram: --Tu nŃo dßs conta d'esse lindo fado, rapariga! Deixa, que eu te cantarolo uma quadra, ß b˘a moda do Videirinha... Mas primeiramente sŕ um anjo... Grita ahi no corredor que me tragam um copo d'agua bem fresca do Pošo Velho. Ensaiou as teclas, entoou versos, ao accaso, n'um esforšo esganišado: Ora na grande batalha, Quatro Ramires valentes... Gracinha desapparecera por uma fenda do reposteiro, sem rumor. EntŃo o bom Barr˘lo, que deante da sua terrina da India enrolava um cigarro com pensativo cuidado, correu, desafogou, debrušado sobre Gonšalo, da certeza que lentamente o invadira: --Pois, menino, sempre te digo... Essa irmŃ do Noronha Ú um mulherŃo soberbo! Mas o que eu nŃo acredito Ú que ella se fizesse arisca. Com o Cavalleiro, bonito rapaz, Governador civil?... NŃo acredito. O Cavalleiro saboreou! E com as bochechas lusidias d'admirašŃo: --Aquelle velhaco! Para cavallos e para mulheres nŃo ha outro, em Oliveira! V A *Gazeta do Porto*, com a Correspondencia vingadora, devia desabar sobre Oliveira na quarta-feira de manhŃ, dia dos annos da prima Maria Mendonša. Mas Gonšalo, ainda que nŃo temesse (resalvado pelo seu pseudonymo de _Juvenal_) uma briga grosseira com o Cavalleiro nas ruas da Cidade, nem mesmo com algum dos seus partidarios servis e fašanhudos como o Marcolino do *Independente*--recolheu discretamente a Santa Ireneia na terša-feira, a cavallo, acompanhado pelo Barr˘lo atÚ ß Vendinha, onde ambos provaram o vinho branco celebrado pelo Titˇ. Depois, para recordar os logares memoraveis em que na sua Novella se encontravam, com desastrado choque d'armas, Lourenšo Ramires e o Bastardo de BayŃo--tomou o caminho que, atravessando os pomares da espalhada aldŕa de Canta-Pedra, entronca na estrada dos Bravaes. N'um trote folgado passßra ß Fabrica de Vidros, depois o Cruzeiro sempre coberto pelas pombas que esvoašam do pombal da Fabrica. E entrava no logar de Nacejas--quando, ß janella d'uma casinha muito limpa, rodeada de parreiras, appareceu uma linda rapariga, morena e fina, com jaquÚ de panno azul e lenšo de cambraieta bordada sobre fartos bandˇs ondeados. Gonšalo, sopeando a egua, saudou, sorriu suavemente: --PerdŃo, minha menina... Vou bem por aqui, para Canta-Pedra? --Vae, sim senhor. Em baixo, ß ponte, mette para a direita, para os alamos. E Ú sempre a seguir... Gonšalo suspirou, gracejando: --Antes desejava ficar! A moša corou. E o Fidalgo ainda se torceu no selim para gosar a fina face morena, entre os dous craveiros da janellinha, na casa tŃo bem caiada. N'esse momento, ao lado, d'uma quelha enramada, desembocava um cašador do campo, de jaleca e barrete vermelho, com a espingarda atravessada nas costas, seguido por dois perdigueiros. Era um latagŃo airoso, que todo elle, no bater dos sapat§es brancos, no menear da cinta enfaixada em seda, no levantar da face clara de suissas louras, transbordava de presumpšŃo e pimponice. N'um relance surprehendeu o sorriso, a attenšŃo galante do Fidalgo. E estacou, pregando sobre elle, com lenta arrogancia, os bellos olhos pestanudos. Depois passou desdenhosamente, sem se arredar da egua na ladeira estreita, quasi raspando pela perna do Fidalgo o cano da cašadeira. Mas adiante ainda atirou uma tossidela secca e de chasco--com um bater mais petulante dos tac§es. Gonšalo picou a egoa, colhido logo por aquelle desgrašado temor, aquelle desmaiado arrepio da carne, que sempre, ante qualquer risco, qualquer ameaša, o foršava irresistivelmente a encolher, a recuar, a abalar. Em baixo, na ponte, desesperado contra a sua timidez, deteve o trote, espreitou para traz, para a branca casa florida. O mocetŃo parßra, encostado ß espingarda, sob a janella onde a rapariga morena se debrušava entre os dous vasos de cravos. E assim encostado, depois de rir para a moša, acenou ao Fidalgo, n'um desafio largo, com a cabeša alta, a borla do barrete toda espetada como uma crista flammante. Gonšalo Mendes Ramires metteu a galope pelo copado caminho d'alamos que acompanha o riacho das Donas. Em Canta-Pedra nem se demorou a estudar (como tencionava para proveito da sua Novella) o valle, a ribeira espraiada, as ruinas do Mosteiro de RecadŃes sobre a collina, e no cabešo fronteiro o moinho que assenta sobre as denegridas pedras da antiga e tŃo fallada Honra d'Avellans. De resto o ceu, cinzento e abafado desde manhŃ, entenebrecia para os lados de Craquede e de Villa-Clara. Um bafo m˘rno remexeu a folhagem sedenta. E jß gotas pesadas se esmagavam na poeira--quando elle, sempre galopando, entrou na estrada dos Bravaes. Na Torre encontrou uma carta do Castanheiro. O patriota andava por saber źse essa _Torre de D. Ramires_ se erguia emfim para honra das letras, como a outra, a genuina, se erguera outr'ora, em seculos mais ditosos, para orgulho das armas...╗ E accrescentava n'um _Post-Scriptum_--źPlaneio immensos cartazes, pregados a cada esquina de cada cidade de Portugal, annunciando em letras de covado a apparišŃo salvadora dos *Annaes*! E, como tenciono prometter n'elles aos povos a sua preciosa Novellasinha, desejo que o amigo Gonšalo me informe se ella tem, ß moda de 1830, um saboroso sub-titulo, como _Episodios do seculo XII_, ou _Chronica do Reinado de Affonso II_, ou _Scenas da Meia-Idade Portugueza_... Eu voto pelo sub-titulo. Como o sub-solo n'um edificio, o sub-titulo n'um livro alteia e dß solidez. ┴ obra, pois, meu Ramires, com essa sua imaginašŃo feracissima!...╗ Esta invenšŃo de immensos cartazes, com o seu nome e o titulo da sua Novella em letras de c˘res estridentes, enchendo cada esquina de Portugal, deleitou o Fidalgo. E logo n'essa noite, ao rumor da chuva densa que estalava na folhagem dos limoeiros, retomou o seu manuscripto, parado nas primeiras linhas, amplas e sonoras, do Cap. II... Atravez d'ellas, e na frescura da madrugada, Lourenšo Mendes Ramires, com o trošo de cavalleiros e peonagem da sua mercŕ, corria sobre Monte-Mˇr em soccorro das senhoras Infantas. Mas, ao penetrar no valle de Canta-Pedra, eis que o esforšado filho de Tructesindo avista a mesnada do Bastardo de BayŃo, esperando desde alva (como annuncißra Mendo Paes) para tolher a passagem.--E entŃo, n'esta sombria Novella de sangue e homizios, brotava inesperadamente, como uma rosa na fenda d'um bastiŃo, um lance de amor, que o tio Duarte cantßra no *Bardo* com dolente elegancia. Lopo de BayŃo, cuja belleza loura de fidalgo godo era tŃo celebrada por toda a terra d'Entre Minho-e-Douro que lhe chamavam o _Claro-Sol_, amßra arrebatadamente D. Violante, a filha mais nova de Tructesindo Ramires. Em dia de S. JoŃo, no solar de Lanhoso, onde se celebravam lides de toiros e jogos de tavolagem, conhecera elle a donzella explendida, que o tio Duarte no seu Poemeto louvava com deslumbrado encanto: Que liquido fulgor dos negros olhos! Que fartas tranšas de lustroso ebano! E ella, certamente, rendera tambem o corašŃo ßquelle mošo resplandecente e c˘r d'ouro, que, n'essa tarde de festa, arremessando o rojŃo contra os toiros, ganhßra duas fachas bordadas pela nobre Dona de Lanhoso--e ß noite, no sarau, se requebrßra com tŃo repicado garbo na danša dos Marchatins... Mas Lopo era bastardo, d'essa raša de BayŃo, inimiga dos Ramires por velhissimas brigas de terras e precedencias desde o conde D. Henrique--ainda assanhadas depois, durante as contendas de D. Tareja e de Affonso Henriques, quando na curia dos Bar§es, em GuimarŃes, Mendo de BayŃo, bandeado com o Conde de Trava, e Ramires o _Cortador_, collašo do mošo Infante, se arrojaram ßs faces os guantes ferrados. E, fiel ao odio secular, Tructesindo Ramires recusßra com ßspera arrogancia a mŃo de Violante ao mais velho dos de BayŃo, um dos valentes de Silves, que pelo Natal, na Alcašova de S.^{ta} Ireneia, lh'a pedira para Lopo, seu sobrinho, o _Claro-Sol_, offerecendo avenšas quasi submissas d'allianša e doce paz. Este ultraje revoltßra o solar de BayŃo--que se honrava em Lopo, apezar de bastardo, pelo lustre da sua bravura e graša galante. E entŃo Lopo ferido doridamente no seu corašŃo, mais furiosamente no seu orgulho, para fartar o esfaimado desejo, para infamar o claro nome dos Ramires--tentou raptar D. Violante. Era na primavera, com todas as veigas do Mondego jß verdes. A donosa senhora, entre alguns escudeiros da Honra e parentes, jornadeava de Treixedo ao mosteiro de LorvŃo, onde sua tia D. Branca era abbadeša... Languidamente, no *Bardo*, descantßra o tio Duarte o romantico lance: Junto ß fonte mourisca, entre os ulmeiros, A cavalgadura pßra... E junto aos ulmeiros da fonte surgira o _Claro-Sol_--que, com os seus, espreitava d'um cabešo! Mas, logo no comešo da curta briga, um primo de D. Violante, o agigantado Senhor dos Pašos d'Avellim, o desarmou, o manteve um momento ajoelhado sob o lampejo e gume da sua adaga. E com vida perdoada, rugindo de surda raiva, o Bastardo abalou entre os poucos solarengos que o acompanhavam n'esta affouta arremettida. Desde entŃo mais fero ardera o rancor entre os de BayŃo e os Ramires. E eis agora, n'esse comešo da Guerra das Infantas, os dois inimigos rosto a rosto no valle estreito de Canta-Pedra! Lopo com um bando de trinta lanšas e mais de cem besteiros da Hoste Real. Lourenšo Mendes Ramires com quinze cavalleiros e noventa homens de pÚ do seu pendŃo. Agosto findava: e o demorado estio amarellecera toda a relva, as pastagens famosas do valle, atÚ a folhagem de amieiros e freixos pela beira do riacho das Donas que s'arrastava entre as pedras lustrosas, em fios escassos, com dormido murmurio. Sobre um outeiro, dos lados de Ramilde, avultava, entre possantes ruinas errišadas de saršas, a denegrida _Torre Redonda_, resto da velha Honra de Avellans, incendiada durante as cruas rixas dos de Salzedas e dos de Landim, e agora habitada pela alma gemente de Guiomar de Landim, a _Mal-casada_. No cabešo fronteiro e mais alto, dominando o valle, o mosteiro de RecadŃes estendia as suas cantarias novas, com o forte torreŃo, asseteado como o d'uma fortaleza--d'onde os monges se debrušavam, espreitando, inquietos com aquelle coriscar d'armas que desde alva enchia o valle. E o mesmo temor acossßra as aldeias chegadas--porque, sobre a crista das collinas, se apressavam para o santo e murado refugio do convento gentes com trouxas, carros toldados, magras filas de gados. Ao avistar tŃo rijo trošo de cavalleiros e pe§es, espalhado atÚ ß beira do riacho por entre a sombra dos freixos, Lourenšo Ramires soffreou, susteve a leva, junto d'um montŃo de pedras onde apodrecia, encravada, uma tosca cruz de pau. E o seu esculca que largßra redeas soltas, estirado sob o escudo de couro, para reconhecer a mesnada--logo voltou, sem que frecha ou pedra de funda o colhessem, gritando: --SŃo homens de BayŃo e da Hoste Real! Tolhida pois a passagem! E em que desigualado recontro! Mas o denodado Ramires nŃo duvidou avanšar, travar peleja. Sˇsinho que assomasse ao valle, com uma quebradiša lanša de monte, arremetteria contra todo o arraial do Bastardo...--No emtanto jß o adail de BayŃo se adeantßra, curveteando no rosilho magro, com a espada atravessada por cima do morriŃo que pennas de garša emplumavam. E pregoava, atroava o valle com o rouco pregŃo: --Deter, deter! que nŃo ha passagem! E o nobre senhor de BayŃo, em recado d'El-Rey e por mercŕ de Sua Senhoria, vos guarda vidas salvas se volverdes costas sem rumor e tardanša! Lourenšo Ramires gritou: --A elle, besteiros! Os virotes assobiaram. Toda a curta ala dos cavalleiros de Santa-Ireneia tropeou para dentro do valle, de lanšas ristadas. E o filho de Tructesindo, erguido nos estrib§es de ferro, debaixo do panno solto do seu pendŃo que apressadamente o alferes saccßra da funda, descerrou a vizeira do casco para que lhe mirassem bem a face destemida, e lanšou ao Bastardo injurias de furioso orgulho: --Chama outros tantos dos vill§es que te seguem que, por sobre elles e por sobre ti, chegarei esta noite a Monte-Mˇr! E o Bastardo, no seu fouveiro, que uma rŕde de malha cobria, toda acairelada d'ouro, atirava a mŃo calšada de ferro, clamava: --Para traz, d'onde vieste, voltarßs, bulrŃo traidor, se eu por mercŕ mandar a teu pae o teu corpo n'umas andas! Estes feros desafios rolavam em versos serenamente compassados no Poemeto do Tio Duarte. E depois de os reforšar, Gonšalo Mendes Ramires, (sentindo a alma enfunada pelo heroismo da sua raša como por um vento que sopra de funda compina) arrojou um contra o outro os dous bandos valorosos. Grande briga, grande grita... --Ala! Ala! --Rompe! Rompe! --Cerra por BayŃo! --Casca pelos Ramires! AtravÚs da grossa poeirada e do alevanto zunem os garruch§es, as rudes balas de barro despedidas das fundas. Almogavres de Santa-Ireneia, almogavres da Hoste Real, em turmas ligeiras, carregam, topam, com baralhado arremesso d'ascumas que se partem, de dardos que se cravam: e ambas logo refogem, refluem--em quanto, no chŃo revolto, algum mal-ferido estrebucha aos urros, e os atordoados cambaleando buscam, sob o abrigo do arvoredo, a fresquidŃo do riacho. Ao meio, no embate mais nobre da peleja, por cima dos corceis que se empinam, arfando ao peso das coberturas de malha, as lisas pranchas dos montantes lampejam, retinem, embebidas nas chapas dos broqueis:--e jß, dos altos arš§es de couro vermelho, desaba algum hirto e chapeado senhor, com um baque de ferragens sobre a terra molle. Cavalleiros e infanš§es, porÚm, como n'um torneio, apenas teršam lanšas para se derribarem, abolados os arnezes, com clamores de excitada ufania: e sobre a villanagem contraria, em quem cevam o furor da matanša, se abatem os seus espad§es, se despenham as suas achas, esmigalhando os cascos de ferro como bilhas de grŕda. Por entre a pionagem de BayŃo e da Hoste Real Lourenšo Ramires avanša mais levemente que ceifeiro apressado entre herva tenra. A cada arranque do seu rijo murzello, alagado d'espuma, que sacode furiosamente a testeira rostrada--sempre, entre pragas ou gritos por _Jesus!_ um peito verga trespassado, brašos se retorcem em agonia. Todo o seu afan era chocar armas com Lopo. Mas o Bastardo, tŃo arremessado e affrontador em combate, nŃo se arredßra n'essa manhŃ da lomba do outeiro onde uma fila de lanšas o guardava, como uma estacada: e com brados, nŃo com golpes, aquentava a lide! No ardor desesperado de romper a viva cerca Lourenšo gastava as foršas, berrando roucamente pelo Bastardo com os duros ultrajes de _churdo!_ e _marrano!_ Jß d'entre a trama falseada do camalho lhe borbulhavam do hombro, pela loriga, fios lentos de sangue. Um lanšo de virotŃo, que lhe partira as charneiras da greva esquerda, fendera a perna d'onde mais sangue brotava, ensopando o forro d'estopa. Depois, varado por uma frecha na anca, o seu grande ginete abateu, rolou, estalando no escoucear as cilhas pregueadas. E, desembrulhado dos loros com um salto, Lourenšo Ramires encontrou em roda uma sebe errišada de espadas e chušos, que o cerraram--em quanto do outeiro, debrušado na sella, o Bastardo bramava: --Tende! tende! para que o colhaes ßs mŃos! Trepando por cima de corpos, que se estorcem sob os seus sapatos de ferro, o valente mošo arremette, a golpes arquejados, contra as pontas luzentes que recuam, se furtam... E, triumphantes, redobram os gritos de Lopo de BayŃo: --Vivo, vivo! tomadel-o vivo! --NŃo, se me restar alma, villŃo! rugia Lourenšo. E mais raivosamente investia, quando um calhau agudo lhe acertou no brašo--que logo amorteceu, pendeu, com a espada arrastando, presa ainda ao punho pelo grilhŃo, mas sem mais servir que uma roca. N'um relance ficou agarrado por pe§es que lhe filavam a gorja, emquanto outros com varadas de ascuma lhe vergavam as pernas retesadas. Tombou por fim direito como um madeiro;--e nas cordas com que logo o amarraram, jazeu hirto, sem elmo, sem cervilheira, os olhos duramente cerrados, os cabellos presos n'uma pasta de poeira e de sangue. Eis pois captivo Lourenšo Ramires! E, deante das andas feitas de ramos e franšas de faias em que o estenderam, depois de o borrifarem ß pressa com a agua fresca do riacho,--o Bastardo, limpando ßs costas da mŃo o suor que lhe escorria pela face formosa, pelas barbas douradas, murmurava, commovido: --Ah! Lourenšo, Lourenšo, grande d˘r, que bem poderamos ser irmŃos e amigos! Assim, ajudado pelo tio Duarte, por Walter Scott por noticias do _Panorama_, compozera Gonšalo a mal-venturada lide de Canta-Pedra. E com este desabafo de Lopo, onde perpassava a magua do amor vedado, fechou o Cap. II, sobre que labutßra tres dias--tŃo embrenhadamente que em torno o Mundo como que se calßra e se fundira em penumbra. * * * * * Uma girandola de foguetes estoirou ao longe, para o lado dos Bravaes, onde no Domingo se fazia a romaria celebrada da Senhora das Candeias. Depois da chuva d'aquelles tres dias, uma frescura descia do ceu amaciado e lavado sobre os campos mais verdes. E como ainda restava meia hora farta antes de jantar, o Fidalgo agarrou o chapeu, e mesmo na sua velha quinzena de trabalho, com uma bengalinha de canna, desceu ß estrada, tomou pelo caminho que s'estreita entre o muro da Torre e as terras de centeio onde assentavam no seculo XII as barbacans da Honra de Santa Ireneia. Pela silenciosa vereda, ainda humida, Gonšalo pensava nos seus avˇs formidaveis. Como elles resurgiam, na sua Novella, solidos e resoantes! E realmente uma comprehensŃo tŃo segura d'aquellas almas Affonsinas mostrava que a sua alma conservava o mesmo quilate e sahira do mesmo rico bloco d'ouro. Porque um corašŃo molle, ou degenerado, nŃo saberia narrar coraš§es tŃo fortes, d'eras tŃo fortes:--e nunca o bom Manoel Duarte ou o Barr˘lo excellente entenderiam, bastante para lhes reconstruir os altos espiritos, Martim de Freitas ou Affonso de Albuquerque... N'esta fina verdade desejaria elle que os Criticos insistissem ao estudar depois a _Torre de D. Ramires_--pois que o Castanheiro lhe assegurßra artigos consideraveis nas *Novidades* e na *ManhŃ*. Sim! eis o que convinha marcar com relevo (e elle o lembraria ao Castanheiro!)--que os Ricos Homens de Santa-Ireneia reviviam no seu neto, senŃo pela continuašŃo heroica das mesmas fašanhas, pela mesma alevantada comprehensŃo do heroismo... Que diabo! sob o reinado do horrendo S. Fulgencio elle nŃo podia desmantelar o solar de BayŃo, desmantelado ha seiscentos annos por seu av˘ Lionel Ramires--nem retomar aos Mouros essa torreada Monforte onde o Antoninho Moreno era o languido Governador Civil! Mas sentia a grandeza e o prestimo historico d'esse arrojo que outr'ora impellia os seus a arrasar Solares rivaes, a escalar Villas mouriscas: resuscitava pelo Saber e pela Arte, arrojava para a vida ambiente, esses var§es temerosos, com os seus coraš§es, os seus trajes, as suas immensas cutiladas, as suas bravatas sublimes: dentro do espirito e das express§es do seu Seculo era pois um bom Ramires--um Ramires de nobres energias, nŃo fašanhudas, mas intellectuaes, como competia n'uma Edade d'intellectual descanšo. E os jornaes, que tanto motejam a decadencia dos Fidalgos de Portugal, deveriam em justiša affirmar (e elle o lembraria ao Castanheiro!):--źEis ahi um, e o maior, que, com as fˇrmas e os modos do seu tempo, continua e honra a sua raša!╗ AtravÚs d'estes pensamentos, que mais lhe enrijavam as passadas sobre chŃo tŃo calcado pelos seus--o Fidalgo da Torre chegßra ß esquina do muro da quinta, onde uma ladeirenta e apertada azinhaga a divide do pinheiral e da matta. Do portŃo nobre, que outr'ora se erguera n'esse recanto com lavores e brazŃo d'armas, restam apenas os dois humbraes de granito, amarellados de musgo, cerrados contra o gado por uma cancella de taboas mal pregadas, carcomidas da chuva e dos annos. E n'esse momento, da azinhaga funda, apagada em sombra, subia chiando, carregado de matto, um carro de bois, que uma linda boeirinha guiava. --Nosso Senhor lhe dŕ muito boas tardes! --Boas tardes, fl˘rzinha! O carro lento passou. E logo atraz surdio um homem, esgrouviado e escuro, trazendo ao hombro o cajado, d'onde pendia um mˇlho de cordas. O Fidalgo da Torre reconheceu o JosÚ Casco dos Bravaes. E seguia, como desattento, pela orla do pinheiral, assobiando, raspando com a bengalinha as silvas floridas do vallado. O outro porÚm estugou o passo esgalgado, lanšou duramente, no silencio do arvoredo e da tarde, o nome do Fidalgo. EntŃo, com um pulo do corašŃo, Gonšalo Mendes Ramires parou, foršando um sorriso affavel: --Olß! ╔ vossŕ, JosÚ! EntŃo que temos? O Casco engasgßra, com as costellas a arfar sob a encardida camisa de trabalho. Por fim, desenfiando das cordas o marmelleiro que cravou no chŃo pela choupa: --Temos que eu fallei sempre claro com o Fidalgo, e nŃo era para que depois me faltasse ß palavra! Gonšalo Ramires levantou a cabeša com uma dignidade lenta e custosa--como se levantasse uma massa de ferro: --Que estß vossŕ a dizer, Casco? Faltar ß palavra! em que lhe faltei eu ß palavra?... Por causa do arrendamento da Torre? Essa Ú nova! EntŃo houve por acaso escriptura assignada entre nˇs? Vocŕ nŃo voltou, nŃo appareceu... O Casco emmudecera, assombrado. Depois, com uma colera em que lhe tremiam os beišos brancos, lhe tremiam as seccas mŃos cabelludas, fincadas ao cabo do varapau: --Se houvesse papel assignado o Fidalgo nŃo podia recuar!... Mas era como se houvesse, para gente de bem!... AtÚ V. S.^a disse, quando eu acceitei: źviva! estß tratado!...╗ O fidalgo deu a sua palavra! Gonšalo, enfiado, apparentou a paciencia d'um senhor benevolo: --Escute, JosÚ Casco. Aqui nŃo Ú logar, na estrada. Se quer conversar commigo appareša na Torre. Eu lß estou sempre, como vossŕ sabe, de manhŃ... Vß ßmanhŃ, nŃo me encommˇda. E endireitava para o pinhal, com as pernas molles, um suor arripiado na espinha--quando o Casco, n'um rodeio, n'um salto leve, atrevidamente se lhe plantou diante, atravessando o cajado: --O Fidalgo ha-de dizer aqui mesmo! O Fidalgo deu a sua palavra!... A mim nŃo se me fazem d'essas desfeitas... O Fidalgo deu a sua palavra! Gonšalo relanceou esgaseadamente em redor, na ancia d'um soccorro. Sˇ o cercava solidŃo, arvoredo cerrado. Na estrada, apenas clara sob um resto de tarde, o carro de lenha, ao longe, chiava, mais vago. As ramas altas dos pinheiros gemiam com um gemer dormente e remoto. Entre os troncos jß se adensava sombra e nevoa. EntŃo, estarrecido, Gonšalo tentou um ref˙gio na ideia de Justiša e de Lei, que aterra os homens do campo. E como amigo que aconselha um amigo, com brandura, os beišos resequidos e tremulos: --Escute, Casco, escute, homem! As coisas nŃo se arranjam assim, a gritar. Pˇde haver desgosto, apparecer o regedor. Depois Ú o tribunal, Ú a cadeia. E vocŕ tem mulher, tem filhos pequenos... Escute! Se descobriu motivo para se queixar, vß ß Torre, conversamos. Pacatamente tudo se esclarece, homem... Com berros, nŃo! Vem o cabo, vem a enxovia... EntŃo de repente o Casco cresceu todo, no solitario caminho, negro e alto como um pinheiro, n'um furor que lhe esbugalhava os olhos esbraseados, quasi sangrentos: --Pois o Fidalgo ainda me ameaša com a justiša!... Pois ainda por cima de me fazer a maroteira me ameaša com a cadeia!... EntŃo, com os diabos! primeiro que entre na cadeia lhe hei-de eu esmigalhar esses ossos!... Erguera o cajado...--Mas, n'um lampejo de razŃo e respeito, ainda gritou, com a cabeša a tremer para traz, atravez dos dentes cerrados: --Fuja, fidalgo, que me perco!... Fuja que o mato e me perco! Gonšalo Mendes Ramires correu ß cancella entalada nos velhos humbraes de granito, pulou por sobre as taboas mal pregadas, enfiou pela latada que orla o muro, n'uma carreira furiosa de lebre acossada! Ao fim da vinha, junto aos milheiraes, uma figueira brava, densa em folha, alastrßra dentro d'um espigueiro de granito destelhado e desusado. N'esse esconderijo de rama e pedra se alapou o Fidalgo da Torre, arquejando. O crepusculo descera sobre os campos--e com elle uma serenidade em que adormeciam frondes e relvas. Affoutado pelo silencio, pelo socego, Gonšalo abandonou o cerrado abrigo, recomešou a correr, n'um correr manso, na ponta das botas brancas, sobre o chŃo molle das chuvadas, atÚ ao muro da MŃe d'Agua. De novo estacou, esfalfado. E julgando entrever, longe, ß orla do arvoredo, uma mancha clara, algum jornaleiro em mangas de camisa, atirou um berro ancioso:--źOh! Ricardo! Oh! Manoel! Eh lß! alguem! Vai ahi alguem?...╗--A mancha indecisa fundira na indecisa folhagem. Uma rŃ pinchou n'um regueiro. Estremecendo, Gonšalo retomou a carreira atÚ ao canto do pomar--onde encontrou fechada uma porta, velha porta mal segura, que abanava nos gonzos ferrugentos. Furioso, atirou contra ella os hombros que o terror enrijßra como trancas. Duas taboas cederam, elle furou atravez, esgašando a quinzena n'um prÚgo.--E respirou emfim no agazalho do pomar murado, deante das varandas da casa abertas ß frescura da tarde, junto da Torre, da sua Torre, negra e de mil annos, mais negra e como mais carregada d'annos contra a macia claridade da lua-nova que subia. Com o chapeu na mŃo, enxugando o suor, entrou na horta, costeou o feijoal. E agora subitamente sentia uma colera amarga pelo desamparo em que se encontrßra, n'uma quinta tŃo povoada, exameando de gentes e dependentes! Nem um caseiro, nem um jornaleiro, quando elle gritßra, tŃo afflicto, da borda da MŃe d'Agua! De cinco creados nenhum acudira,--e elle perdido, alli, a uma pedrada da eira e da abegoaria! Pois que dois homens corressem com paus ou enxadas--e ainda colhiam o Casco na estrada, o malhavam como uma espiga. Ao pÚ do gallinheiro, sentindo uma risada fina de rapariga, atravessou o pateo para a porta alumiada da cosinha. Dois mošos da horta, a filha da Crispola, a Rosa, tagarellavam, regaladamente sentados n'um banco de pedra, sob a fresca escuridŃo da latada. Dentro o lume estrallejava--e a panella do caldo, fervendo, rescendia. Toda a colera do Fidalgo rompeu: --EntŃo, que sarau Ú este? Vocŕs nŃo me ouviram chamar?... Pois encontrei lß em baixo, ao pÚ do pinheiral, um bebedo, que me nŃo conheceu, veiu para mim _com uma foice_!... Felizmente levava a bengala. E chamo, grito... Qual! Tudo aqui de palestra, e a ceia a cozer! Que desaforo! Outra vez que succeda, todos para a rua... E quem resmungar, a cacete! A sua face chammejava, alta e valente. A pequena da Crispola logo se escapulira, encolhida, para o recanto da cosinha, para traz da maceira. Os dois mošos, erguidos, vergavam como duas espigas sob um grande vento. E emquanto a Rosa, aterrada, se benzia, se derretia em lamentaš§es sobre źdesgrašas que assim s'armam!╗--Gonšalo, deleitado pela submissŃo dos dois homens, ambos tŃo rijos, com tŃo grossos varapaus encostados ß parede, amansava: --Realmente! sois todos surdos, n'esta pobre casa!... AlÚm d'isso a porta do pomar fechada! Tive de lhe atirar um empurrŃo. Ficou em pedašos. EntŃo um dos mošos, o mais alentado, ruivo, com um queixo de cavallo, pensando que o Fidalgo censurava a frouxidŃo da porta pouco cuidada, cošou a cabeša, n'uma desculpa: --Pois, com perdŃo do fidalgo!... Mas jß depois da saÝda do Relho se lhe p˘z uma travessa e fechadura nova... E valente! --Qual fechadura! gritou, o Fidalgo soberbamente. Despedacei a fechadura, despedacei a travessa... Tudo em estilhas! O outro mošo, mais desembarašado e esperto, riu, para agradar: --Santo nome de Deus!... EntŃo, Ú que o fidalgo lhe atirou com forša! E o companheiro, convencido, espetando o queixo enorme: --Mas que forša! a matar! Que a porta era rija... E fechadura nova, jß depois do Relho! A certeza da sua forša, louvada por aquelles fortes, reconfortou inteiramente o fidalgo da Torre, jß brando, quasi paternal: --Grašas a Deus, para arrombar uma porta, mesmo nova, nŃo me falta forša. O que eu nŃo podia, por decencia, era arrastar ahi por essas estradas um bebedo com uma foice atÚ casa do Regedor... Foi para isso que chamei, que gritei. Para que vossŕs o agarrassem, o levassem ao Regedor!... Bem, acabou. Oh! Rosa, dŕ a estes rapazes, para a ceia, mais uma caneca de vinho... A vŕr se para outra vez se affoutam, se apparecem... Era agora como um antigo senhor, um Ramires d'outros seculos, justo e avisado, que reprehende uma fraqueza dos seus solarengos--e logo perd˘a por conta e amor das fašanhas proximas. Depois com a bengala ao hombro, como uma lanša, subio pela lobrega escada da cozinha. E em cima no quarto, apenas o Bento entrßra para o vestir, recomešou a sua epopeia, mais carregada, mais terrifica--assombrando o sensivel homem, estacado rente da commoda, sem mesmo pousar a enfusa d'agoa quente, as botas envernisadas, a brašada de toalhas que o ajoujavam... O Casco! O JosÚ Casco dos Bravaes, bebedo, rompendo para elle, sem o conhecer, com uma foice enorme, a berrar--źMorra, que Ú marrŃo!...╗ E elle na estrada, deante do bruto, de bengalinha! Mas atira um salto, a foišada resvala sobre um tronco de pinheiro... EntŃo arremette desabaladamente, brandindo a bengala, gritando pelo Ricardo e pelo Manoel como se ambos o escoltassem--e ataranta o Casco, que recua, se some pela azinhaga, a cambalear, a grunhir... --Hein, que te parece? Se nŃo Ú a minha audacia, o homem positivamente me ferra um _tiro de espingarda_! O Bento, que quasi se babava, com o jarro esquecido a pingar no tapete, pestanejou, confuso, mais attonito: --Mas o Snr. Dr. disse que era uma foice! Gonšalo bateu o pÚ, impaciente: --Correu para mim com uma foice. Mas vinha atraz do carro... E no carro trazia uma espingarda. O Casco Ú cašador, anda sempre d'espingarda... Emfim estou aqui vivo, na Torre, por mercŕ de Deus. E tambem porque felizmente, n'estes casos, nŃo me falta decisŃo! E apressou o Bento--porque com o abalo, o esforšo, positivamente lhe tremiam as pernas de canšasso e de fome... AlÚm da sŕde! --Sobretudo sŕde! Esse vinho que venha bem fresco... Do Verde e do AlvaralhŃo, para misturar. O Bento, com um tremulo suspiro da emošŃo atravessada, enchera a bacia, estendia as toalhas. Depois, gravemente: --Pois, Snr. Dr., temos esse andašo nos sitios! Foi o mesmo que succedeu ao Snr. Sanches Lucena, na _Feitosa_... --Como, ao Snr. Sanches Lucena? O Bento desenrolou entŃo uma tremenda historia trazida ß Torre, durante a estada do Snr. Doutor em Oliveira, pelo cunhado da Crispola, o Ruy carpinteiro, que trabalhava nas obras da _Feitosa_. O Snr. Sanches Lucena descŕra uma tarde, ao lusco fusco, ß porta do Mirante, quando passam na estrada dous jornaleiros, bebedos ou facinoras, que implicam com o excellente senhor. E chufas, risinhos, momices... O Snr. Sanches, com paciencia, aconselhou os homens que seguissem, nŃo se desmandassem. De repente um d'elles, um rapazola, sacode a jaqueta do hombro, ergue o cajado! Felizmente o companheiro, que se affirmßra, ainda gritou:--źAi! rapaz, que elle Ú o nosso deputado!╗ O rapazola abalou, espavorido. O outro atÚ se atirou de joelhos deante do Snr. Sanches Lucena... Mas o pobre senhor, com o abalo, recolheu ß cama! Gonšalo acompanhßra a historia, seccando vagarosamente as mŃos ß toalha, impressionado: --Quando foi isso? --Pois disse ao Snr. Dr.... Quando o Snr. Dr. estava em Oliveira. Um dia antes ou um dia depois dos annos da Snr.^a D. Graša. O Fidalgo arremessou a toalha, limpou pensativamente as unhas. Depois com um risinho incerto e leve: --Emfim, sempre serviu d'alguma coisa ao Sanches Lucena ser deputado por Villa-Clara... E jß vestido, abastecendo a charuteira (porque resolvera passar a noite na Villa, a desabafar com o Gouveia)--de novo se voltou para Bento, que arrumava a roupa: --EntŃo o bebedo, quando o outro lhe gritou źAi, que Ú o nosso deputado,╗ cahiu em si, fugiu, hein?... Ora vŕ tu! Ainda vale ser deputado! Ainda inspira respeito, homem! Pelo menos inspira mais respeito que descender dos reis de LeŃo!... Paciencia, toca a jantar. * * * * * Durante o jantar, misturando copiosamente o Verde e o AlvaralhŃo, Gonšalo nŃo cessou de ruminar a ousadia do Casco. Pela vez primeira, na historia de Santa Ireneia, um lavrador d'aquellas aldŕas, crescidas ß sombra da Casa illustre, por tantos seculos senhora em monte e valle, ultrajava um Ramires! E brutamente, alšando o cajado, deante dos muros da quinta historica!... Contava seu pae que, em vida do bisav˘ Ignacio, ainda desde Ramilde atÚ Corinde os homens dobravam o joelho nos caminhos quando passava o Senhor da Torre. E agora levantavam a foice!... E porque? Por que elle nŃo se desfalcßra submissamente das suas rendas em proveito d'um fašanhudo!--Em tempos do av˘ Tructesindo, villŃo de tal attentado assaria, como porco montez, n'uma ruidosa fogueira, deante das barbacans da Honra. Ainda em dias do bisav˘ Ignacio apodreceria n'uma masmorra. E o Casco nŃo podia escapar sem castigo. A impunidade sˇ lhe incharia a audacia: e assomado, rancoroso, n'outro encontro, sem mais fallas, desfechava a cašadeira. Oh! nŃo lhe desejava um mal duravel, coitado, com dois filhos pequeninos--um que mamava. Mas que o arrastassem ß AdministrašŃo, algemado, entre dois cabos de policia--e que na triste saleta, d'onde se avistam as grades da cadeia, apanhasse uma reprehensŃo tremenda do Gouveia, do Gouveia muito secco, muito esticado na sobrecasaca negra... Assim se devia resguardar, por meios tortuosos--pois que nŃo era deputado, e que, com o seu talento, o seu nome, essa espantosa linhagem d'avˇs que edificßra o Reino, carecia o prestigio d'um Sanches Lucena, o precioso prestigio que suspende no ar os varapßus atrevidos! Apenas findou o cafÚ, mandou pelo Bento avisar os dous mošos da horta, o Ricardo e o outro de queixo de cavallo, que o esperassem no pateo, armados. Porque na Torre ainda sobrevivia uma źSala d'armas╗--cacifro tenebroso, junto ao Archivo, onde se amontoavam pešas aboladas d'armaduras, um lorigŃo de malha, um broquel mourisco, alabardas, espad§es, polvarinhos, bacamartes de 1820, e entre esta poeirenta ferralhagem negra tres espingardas limpas com que os mošos da quinta, na romaria de S. Gonšalo, atiravam descargas em louvor do Santo. Depois, elle, encafuou o revˇlver na algibeira, desenterrou do armario do corredor um velho bengalŃo de cabo de chumbo entranšado, agarrou um apito. E assim precavido, aquecido pelo Verde e pelo AlvaralhŃo, com os dous creados de cašadeira ao hombro, importantes e tesos, partiu para Villa-Clara, procurar o Snr. Administrador do Concelho. A noite envolvia os campos em socego e frescura. A lua nova, que alimpßra o tempo, rošava a crista dos outeiros de Valverde como a roda lustrosa d'um carro de ouro. No silencio os rijos sapat§es pregueados dos dous jornaleiros resoavam em cadencia. E Gonšalo adiante, de charuto flammante, gosava aquella marcha, em que de novo um Ramires trilhava os caminhos de Santa Ireneia com homens da sua mercŕ e solarengos armados. Ao comešo da villa, porÚm, recolheu discretamente a escolta na taverna da Serena: e elle cortou para o Mercado da Herva, para a Tabacaria do Sim§es, onde o Gouveia, ßquella hora, antes da partida da AssemblÚa, costumava pousar, comprar uma caixa de phosphoros, considerar pensativamente na vidraša as cautelas da Loteria. Mas n'essa noite o Snr. Administrador faltßra ao Sim§es costumado. Largou entŃo para a AssemblÚa: e logo em baixo, no bilhar, um sujeito calvo, que contemplava as carambolas solitarias do marcador, espapado na bancada, de collete desabotoado, mascando um palito--informou o Fidalgo da doenša do amigo Gouveia: --Cousa leve, inflammašŃo de garganta... V. Ex.^a de certo o encontra em casa. NŃo arreda do quarto desde Domingo. Outro cavalheiro porÚm, que remexia o seu cafÚ ß esquina d'uma mesa atulhada de garrafas de lic˘r, affianšou que o Snr. Administrador jß espairecera n'essa tarde. Ainda pelas cinco horas elle o encontrßra na Amoreira, com o pescošo atabafado n'uma manta de lŃ. Gonšalo, impaciente, abalou para a Calšadinha. E atravessava o Largo do Chafariz quando descortinou o desejado Gouveia, ß porta muito alumiada da loja de pannos do Ramos, conversando com um homemzarrŃo de forte barba retinta e de guarda-pˇ alvadio. E foi o Gouveia, que, de dedo espetado, investiu para Gonšalo: --EntŃo, jß sabe? --O quŕ? --Pois nŃo sabe, homem?... O Sanches Lucena! --O quŕ? --Morreu! O fidalgo embasbacou para o Administrador, depois para o outro cavalheiro, que repuxava na mŃo enorme, com um esforšo inchado, uma luva preta apertada e curta. --Santo Deus!... Quando? --Esta madrugada. De repente. źAngina pectoris,╗ nŃo sei quŕ no corašŃo... De repente, na cama. E ambos se consideraram, em silencio, no espanto renovado d'aquella morte que impressionava Villa-Clara. Por fim Gonšalo: --E eu ainda ha bocado, na Torre, a fallar d'elle! E, coitado, como sempre, com pouca admirašŃo... --E eu! exclamou o Gouveia. Eu, que ainda hontem lhe escrevi!... E uma carta comprida, por causa d'um empenho do Manoel Duarte... Foi o cadaver que recebeu a carta. --Boa piada! rosnou o sujeito obeso, que se debatia ferrenhamente contra a luva. O cadaver recebeu a carta... Boa piada! O Fidalgo torcia o bigode, pensativo: --Ora, ora... E que edade tinha elle? O Gouveia sempre o imaginßra um completo velho, de setenta invernos. Pois nŃo! apenas sessenta, em Dezembro. Mas consumido, arrasado. Casßra tarde, com fŕmea forte... --E ahi temos a bella D. Anna, viuva aos vinte e oito annos, sem filhos, naturalmente herdeira, com o seu mealheiro de duzentos contos... Talvez mais! --Boa maquia! roncou de novo o oupado homem que enfißra a luva, e agora gemia, com as veias tumidas, para lhe apertar o colchete. Aquelle cavalheiro constrangia o Fidalgo--ancioso por desafogar com o Gouveia sobre źa vacatura politica,╗ assim inesperadamente aberta, no circulo de Villa-Clara, pela brusca desapparišŃo do Chefe tradicional. E nŃo se conteve, puchou o Administrador pelo botŃo da sobrecasaca para a sombra favoravel da parede: --Oh! Gouveia! entŃo agora, hein?... Temos eleišŃo supplementar... Quem virß pelo circulo? E o Administrador, muito simplesmente, sem se resguardar do homemzarrŃo de guarda-pˇ, que, emfim enluvado, accendera o charuto, se acercava com familiaridade--deduziu os factos: --Agora, meu amigo, com o tio do Cavalleiro ministro da Justiša e o JosÚ Ernesto ministro do Reino, vae deputado pelo circulo quem o AndrÚ Cavalleiro mandar. ╔ claro... O Sanches Lucena manteve sempre o seu logar em S. Bento por uma indicašŃo natural do partido. Era aqui o primeiro homem, o grande homem dos Historicos... Bem! Hoje, para decidir o Governo, como falta a indicašŃo natural do partido, que resta? O desejo pessoal do Cavalleiro. Vocŕ sabe como o Cavalleiro Ú regionalista. Pelo circulo pois, logicamente, sahe quem se apresente ao Cavalleiro como um bom continuador do Lucena, pela influencia e pela estabilidade territorial... N'outro circulo ainda se podia encaixar ß pressa um deputado fabricado em Lisboa, nas Secretarias. Aqui nŃo! O deputado tem de ser local e Cavalleirista. E o proprio Cavalleiro, acredite vocŕ, estß a esta hora embarašado. O gordalhufo murmurou com importancia, atravez do immenso charuto que mamava: --AmanhŃ jß estou com elle, jß sei... Mas o Administrador emmudecera, cošava o queixo, cravando em Gonšalo os olhos espertos, que rebrilhavam, como se uma ditosa idÚa, quasi uma inspirašŃo, o illuminasse. E de repente, para o outro, que cofiava a barba retinta: --Pois, meu caro senhor, atÚ alÚm d'ßmanha. Ficamos entendidos. Eu remetto o cestinho dos queijos directamente ao Snr. Conselheiro. Tomou o brašo de Gonšalo, que apertou com impaciencia. E sem attender mais ao homemzarrŃo, que saudava rasgadamente, arrastou o Fidalgo para a Calšadinha silenciosa: --Oh, Gonšalo, ouša lß... Vossŕ agora tinha uma occasiŃo soberba! Vocŕ, se quizesse, dentro de poucos dias, estava deputado por Villa-Clara! O Fidalgo da Torre estacßra--como se uma estrella de repente se despenhasse na rua mal allumiada. --Ora escute! exclamou o Administrador, largando o brašo de Gonšalo, para desenrolar mais livremente a sua idÚa. Vocŕ nŃo tem compromissos serios com os Regeneradores. Vocŕ deixou Coimbra ha um anno, tenta agora a vida publica, nunca fez acto definitivo de partidario. Lß uma ou outra correspondencia para os jornaes, historias!... --Mas... --Escute, homem! Vocŕ quer entrar na Politica? Quer. EntŃo, pelos Historicos ou pelos Regeneradores, pouco importa. Ambos sŃo constitucionaes, ambos sŃo christŃos... A questŃo Ú entrar, Ú furar. Ora vocŕ, agora, inesperadamente, encontra uma porta aberta. O que o pˇde embarašar? As suas inimisades particulares com o Cavalleiro? Tolices! Atirou um gesto, largo e secco, como se varresse essas puerilidades: --Tolices! Entre vocŕs nŃo ha morte d'homem. Nem vocŕs, no fundo, sŃo inimigos. O Cavalleiro Ú rapaz de talento, rapaz de gosto... NŃo vejo outro, aqui no districto, com quem vocŕ tenha mais conformidade de espirito, de educašŃo, de maneiras, de tradiš§es... N'uma terra pequena, mais dia menos dia, fatalmente, se impunha a reconciliašŃo. EntŃo seja agora, quando a reconciliašŃo o leva ßs Camaras!... E repito. Pelo circulo de Villa-Clara sahe deputado quem o Cavalleiro mandar! O Fidalgo da Torre respirou, com esforšo, na emošŃo que o suffocava. E depois d'um silencio em que tirßra o chapÚo, abanßra com elle, pensativamente, a face descahida: --Mas o Cavalleiro, como vocŕ disse, Ú todo local todo regional... NŃo quererß imp˘r senŃo um homem como o Lucena, com fortuna, com influencia... O outro parou, alargou os brašos: --E entŃo, vocŕ?... Que diabo! Vocŕ tem aqui propriedade. Tem a Torre, tem Treixedo. Sua irmŃ hoje Ú rica, mais rica que o Lucena. E depois o nome, a familia... Vocŕs, os Ramires, estŃo estabelecidos, com solar em Santa Ireneia, ha mais de duzentos annos. O fidalgo da Torre ergueu com viveza a cabeša: --Duzentos?... Ha mil, ha quasi mil! --Ora ahi tem! Ha mil annos. Uma casa anterior ß monarchia. Pelo menos coeva! Vocŕ Ú portanto mais fidalgo que o Rei! E entŃo, isso nŃo Ú uma situašŃo muito superior ß do Lucena? Sem contar a intelligencia... Oh! diabo! --Que foi? --A garganta... Uma picadita na garganta. Ainda nŃo estou consolidado. E decidiu logo recolher, gargarejar, porque o Dr. Macedo prohibira as noitadas festivas. Mas Gonšalo acompanhava atÚ ß porta o amigo Gouveia. E, conchegando o abafo de lŃ, o Administrador resumiu a sua idÚa: --Pelo circulo de Villa-Clara, Gonšalinho, sahe quem o Cavalleiro mandar. Ora o Cavalleiro, creia vocŕ, tem immenso empenho de o eleger, de o lanšar na Politica. Se vocŕ portanto estender a mŃo ao Cavaleiro, o circulo Ú seu. O Cavalleiro tem o maior, o maiorissimo empenho, Gonšalinho! --Isso Ú que eu nŃo sei, JoŃo Gouveia... --Sei eu! E em confidencia, na solidŃo da Calšadinha, JoŃo Gouveia revelou ao Fidalgo que o Cavalleiro anciava pela occasiŃo de reatar a velha fraternidade com o seu velho Gonšalo! Ainda na semana passada o Cavalleiro lhe affirmßra (palavras textuaes):--źEntre os rapazes d'esta gerašŃo nenhum com mais seguro e mais largo futuro na Politica que o Gonšalo. Tem tudo! grande nome, grande talento, a seducšŃo, a eloquencia... Tem tudo! E eu, que conservo pelo Gonšalo todo o carinho antigo, gostava ardentemente, ardentissimamente, de o levar ßs Camaras.╗ --Palavras textuaes, meu amigo!... Ainda ha seis ou sete dias, em Oliveira, depois do jantar, a tomarmos ambos cafÚ no quintal. A face de Gonšalo ardia na sombra, devorando as revelaš§es do Administrador. Depois, com lentidŃo, como descobrindo candidamente todos os recantos da sua alma: --Eu, na realidade, tambem conservo a antiga sympathia pelo Cavalleiro. E certas quest§es intimas adeus!... Envelheceram, caducaram, tŃo obsoletas hoje como os aggravos dos Horacios e dos Curiacios... Como vocŕ lembrou ha pouco, com razŃo, nunca se ergueu entre nˇs morte de homem. Que diabo! Eu fui educado com o Cavalleiro, eramos como irmŃos... E acredite vocŕ, Gouveia! Sempre que o vejo, sinto um appetite doido, mas doido, de correr para elle, de lhe gritar: źOh! AndrÚ! nuvens passadas nŃo voltam, atira para cß esses ossos!╗ Creia vocŕ, nŃo o fašo por timidez... ╔ timidez... Oh! nŃo, lß por mim, estou prompto ß reconciliašŃo, todo o corašŃo m'a pede! Mas elle?... Porque, emfim, Gouveia, eu, nas minhas Correspondencias para a _Gazeta do Porto_, tenho sido feroz com o Cavalleiro! JoŃo Gouveia parou, de bengala ao hombro, considerando o fidalgo com um sorriso divertido: --Nas Correspondencias? Que lhe tem vocŕ dito nas Correspondencias? Que o Snr. Governador Civil Ú um despota, e um D. Juan?... Meu caro amigo, todo o homem gosta que, por opposišŃo politica, lhe chamem despota e D. Juan. Vocŕ imagina que elle se affligiu? Ficou simplesmente babßdo! O fidalgo murmurou, inquieto: --Sim! Mas as allus§es ß bigodeira, ß guedelha... --Oh! Gonšalinho! Bellos cabellos annellados, bellos bigodes torcidos, nŃo sŃo defeitos de que um macho se envergonhe... Pelo contrario! Todas as mulheres admiram. Vocŕ pensa que ridicularisou o Cavalleiro? NŃo! annunciou simplesmente ßs madamas e meninas, que lŕem a _Gazeta do Porto_, a existencia d'um mocetŃo esplendido que Ú Governador Civil d'Oliveira. E parando de novo (por que defronte, na esquina, luziam as duas janellas abertas da sua casa), o Administrador estendeu o dedo firme para um conselho supremo: --Gonšalo Mendes Ramires, vocŕ ßmanhŃ manda buscar a parelha do Torto, salta para a sua caleche, corre ß cidade, entra pelo Governo Civil de brašos abertos, e grita sem outro prologo:--źAndrÚ, o que lß vae, lß vae, venham essas costellas! E como o circulo estß vago, venha tambem esse circulo!╗--E vocŕ, dentro de cinco ou seis semanas, Ú o Snr. Deputado por Villa-Clara, com todos os sinos a repicar... Quer tomar chß? --NŃo, obrigado. --Bem, entŃo viva! Tipoia ßmanhŃ e Governo Civil. Estß claro, Ú necessario arranjar um pretexto... O fidalgo acudiu, com alvorošo: --Eu tenho um pretexto! NŃo!... Quero dizer, tenho necessidade real, absoluta, de fallar com o Cavalleiro ou com o Secretario Geral. ╔ uma questŃo de caseiro... AtÚ por causa d'essa infeliz trapalhada o procurava eu hoje a vocŕ, Gouveia! E aldravou a aventura do Casco, com trašos mais pesados que a ennegreciam. Durante semanas, afferradamente, esse fatal Casco o torturßra para lhe arrendar a Torre. Mas elle tratßra com o Pereira, o Pereira Brazileiro, por uma renda explendidamente superior ß que o Casco offerecia a gemer. Desde entŃo o Casco rugia, ameašava, por todas as tabernas da Freguezia. E, n'essa tarde, surde d'uma azinhaga, rompe para elle, de varapau erguido! Mercŕ de Deus, lß se defendera, lß sacudira o bruto, com a bengala. Mas agora, sobre o seu socego, sobre a sua vida, pairava a affronta d'aquelle cajado. E, se o assalto se renovasse, elle varava o Casco com uma bala, como um bicho montez... Urgia pois que o amigo Gouveia chamasse o homem, o reprehendesse rijamente, o entaipasse mesmo por algumas horas na cadeia... O Administrador, que escutßra palpando a garganta, atalhou logo, com a mŃo espalmada: --Governo Civil, caro amigo, Governo Civil! Esses casos de prisŃo preventiva pertencem ao Governo Civil. ReprehensŃo nŃo basta, com tal fÚra!... Sˇ cadeia, um dia de cadeia, a meia rašŃo... O Governo Civil que me mande um officio ou telegramma. Vocŕ realmente corre perigo. Nem um instante a perder!... AmanhŃ tipoia e Governo Civil. Mesmo por amor da Ordem Publica! E Gonšalo, compenetrado, com os hombros vergados, cedeu ante esta soberana razŃo da Ordem Publica: --Bem, JoŃo Gouveia, bem!... Com effeito Ú uma questŃo de Ordem Publica. Vou ßmanhŃ ao Governo Civil. --Perfeitamente, concluiu o Administrador puxando o cordŃo da campainha. Dŕ recados meus ao Cavalleiro. E sˇ lhe digo que havemos de arranjar uma votašŃo tremenda, e foguetorio, e vivas, e ceia magna no Gago... Vocŕ nŃo quer tomar chß, nŃo? EntŃo, boas noites... E olhe! D'aqui a dous annos, quando vocŕ f˘r ministro, Gonšalo Mendes Ramires, recorde esta nossa conversa, ß noite, na Calšadinha de Villa-Clara! Gonšalo seguiu pensativamente por defronte do Correio; torneou a branca escadaria da Egreja de S. Bento; metteu, alheado e sem reparar, pela estrada plantada de acacias que conduz ao Cemiterio. E, n'aquelle alto da Villa, d'onde, ao desembocar da Calšadinha, se abrange a largueza rica dos campos desde Valverde a Craquŕde--sentiu que tambem na sua vida, apertada e solitaria como a Calšadinha, se alargßra um arejado espašo cheio d'interessante bulicio e de abundancia. Era o muro, em que sempre se imaginßra irreparavelmente cerrado, que de repente rachava. Eis a fenda facilitadora! Para alÚm reluziam todas as bellas realidades que desde Coimbra appetecera! Mas...--Mas no atravessar da fenda fragosa de certo se rasgaria a sua dignidade ou se rasgaria o seu orgulho. Que fazer?... Sim! seguramente! Estendendo os brašos ao animal do Cavalleiro conquistava a sua EleišŃo. O circulo, infeudado aos Historicos, elegeria submissamente o Deputado que o chefe Historico ordenasse com indolente aceno. Mas essa reconciliašŃo importava a entrada triumphal do Cavalleiro na quieta casa do Barr˘lo... Elle vendia pois o socego da irmŃ por uma cadeira em S. Bento! NŃo! nŃo podia por amor de Gracinha!--E Gonšalo suspirou, com ruidoso suspiro, no luminoso silencio da estrada. Agora porÚm, durante tres, quatro annos, os Regeneradores nŃo trepavam ao Governo. E elle, alli, atravez d'esses annos, no buraco rural, jogando voltaretes somnolentos na AssemblÚa da Villa, fumando cigarros calaceiros nas varandas dos Cunhaes, sem carreira, parado e mudo na vida, a ganhar musgo, como a sua caduca, inutil Torre! Caramba! era faltar cobardemente a deveres muito santos para comsigo e para com o seu nome!... Em breve os seus camaradas de Coimbra penetrariam nos altos Empregos, nas ricas Companhias; muitos nas Camaras por vacaturas abenšoadas como a do Sanches; um ou outro mesmo, mais audaz ou servil, no Ministerio. Sˇ elle, com talentos superiores, um tal brilho historico, jazeria esquecido e resmungando como um c˘xo n'uma estrada quando passa a romaria. E por quŕ? Pelo receio pueril de p˘r a bigodeira atrevida do Cavalleiro muito perto dos fracos labios de Gracinha... E por fim esse receio constituia uma injuria, uma nojenta injuria, ß seriedade da irmŃ. Porque Portugal nŃo se honrava com mulher mais rigidamente seria, de mais grave e puro pensar! Aquelle corpinho ligeiro, que o vento levava, continha uma alma heroica. O Cavalleiro?... Podia sua exc.^a sacudir a guedelha com graša fatal, jorrar dos olhos pestanudos a languidez ßs ondas--que Gracinha permaneceria tŃo inaccessivel e solida na sua virtude como se fosse insexual e de marmore. Oh, realmente, por Gracinha, elle abriria ao Cavalleiro todas as portas dos Cunhaes--mesmo a porta do quarto d'ella, e bem larga, com uma solidŃo bem preparada!... E depois nŃo se cuidava de uma donzella, nem d'uma viuva. Na casa do Largo d'El-Rei governava, mercŕ de Deus, marido brioso, marido rijo. A esse, sˇ a esse, competia escolher as intimidades do seu lar--e n'elle manter quietašŃo e recato. NŃo! esse receio de uma imaginavel fragilidade de Gracinha, da sua honrada, altiva Gracinha--esse receio, perverso e louco, certamente o devia varrer, com o corašŃo desafogado e sorrindo.--E, na clara solidŃo da estrada, Gonšalo Mendes Ramires atirou um gesto decidido e terminante que varria. Restava porÚm a sua propria humilhašŃo. Desde annos, ruidosamente, conversando e escrevendo, em Coimbra, em Villa-Clara, em Oliveira, na *Gazeta do Porto*--elle demolira o Cavalleiro! E subiria agora, de espinhašo vergado, as escadarias do Governo Civil, murmurando o seu--_peccavi, mea culpa, mea maxima culpa_?... Que escandalo na cidade!--źO Fidalgo da Torre lß precisou e lß veio...╗ Era o transbordante triumpho do Cavalleiro. O unico homem que no Districto se conservava erguido, pelejando, trovejando as verdades--desarmava, emmudecia, e encolhidamente se enfileirava no sequito louvaminheiro de Sua Exc.^a! Bem duro!... Mas, que diabo, havia superiormente o interesse do paiz!--E, tŃo admiravel lhe appareceu esta razŃo, que a bradou com ard˘r na mudez da estrada:--źHa o paiz!...╗ Sim, o paiz! Quantas reformas a proclamar, a realisar! Em Coimbra, no quinto anno, jß se occupßra da InstrucšŃo Publica--d'uma remodelašŃo do Ensino, todo industrial, todo colonial, sem latim, sem ociosas bellas-lettras, creando um povo formigueiro de Productores e d'Exploradores... E os camaradas, nos sonhos ondeantes de Futuro, quando repartiam os Ministerios, concordavam sempre:--źO Gonšalo para a InstrucšŃo Publica!╗ Por essas ideas poderosas, pelo saber accumulado, todo elle se devia ß NašŃo--como outr'ora, pela forša, os grandes Ramires armados. E pela NašŃo cumpria que o seu orgulho de homem cedesse ante a sua tarefa de cidadŃo... Depois, quem sabe? Entre o Cavalleiro e elle afogadamente se enroscava todo um passado de camaradagem, apenas entorpecido--que talvez revivesse n'esse encontro, os enlašasse logo n'um abrašo penetrante, onde os antigos aggravos se sumiriam como um pˇ sacudido... Mas para que imaginar, remoer? Uma necessidade se sobrepunha, inilludivel--a de comparecer logo de manhŃ em Oliveira, no Governo Civil, requerendo a suppressŃo do Casco. D'essa pressa dependia o seu socego de vida e d'intelligencia. Nunca elle lograria trabalhar na Novella, trilhar folgadamente a estrada de Villa-Clara, sabendo que em torno o outro, pelas quÚlhas e sombras, rondava com a espingarda. E para nŃo regressar aos costumes bravios dos seus avˇs, circulando atravez do Concelho entre as carabinas dos creados, necessitava o Casco domado, immobilisado. Era pois inadiavel correr ao Governo Civil, para bem da Ordem. E depois, quando elle se encontrasse no gabinete do Cavalleiro, deante da mesa do Cavalleiro--a Providencia decidiria...--źA Providencia decidirß!╗ E ancorado n'esta resolušŃo, o Fidalgo da Torre parou, olhou. Levado pela quente rajada de pensamentos, chegßra ß grade do cemiterio da Villa que o luar branqueava como um lenšol estendido. Ao fundo da alameda que o divide, clara na claridade triste, o escarnado Christo chagado e livido, sobre a sua alta cruz negra, pendia, mais dolorido e livido no silencio e na solidŃo, com uma tristissima lampada aos pÚs esmorecendo. Em torno eram cyprestes, sombras de cyprestes, brancuras de lapides, as cruzes rasteiras das campas pobres, uma paz morta pesando sobre os mortos: e no alto a lua amarella e parada. EntŃo o Fidalgo sentiu um arripiado mŕdo do Christo, das lousas, dos defuntos, da lua, da solidŃo. E despedio n'uma carreira atÚ avistar as casas da Calšadinha, por onde descambou como uma pedra solta. Quando se deteve no Largo do Chafariz, um m˘cho piava na torre da Camara, melancolisando o repouso de Villa-Clara apagada e adormecida. Mais impressionado, Gonšalo correu ß taberna da Serena, recolheu os creados que esperavam jogando a bisca lambida. E com elles atravessou de novo a Villa atÚ ß cocheira do Torto--para recommendar que lhe mandassem ß Torre, ßs nove horas da manhŃ, a parelha russa. Atravez do postigo, que se abrira com cautella no portŃo chapeado, a mulher do Torto gemeu, indecisa: --Ai, meu Deus, nŃo sei se poderß... Elle ßs nove tem um servišo... Pois nŃo faria mais conta ao Fidalgo ahi pela volta das onze? --┴s nove! berrou Gonšalo. Desejava apear cŕdo ao portŃo do Governo Civil para evitar a curiosidade d'aquelles cavalheiros de Oliveira--que, depois do meio dia, se juntavam na Praša, vadiando por debaixo da Arcada. * * * * * Mas ßs nove e meia Gonšalo, que atÚ ao luzir da madrugada se agitßra pelo quarto n'um tumulto d'esperanšas e receios--ainda se barbeava, em camisa, deante do vasto espelho de coluninas douradas. Depois aproveitou a caleche para deixar na _Feitosa_ os seus bilhetes de pezames ß bella viuva, ß D. Anna. Ao meio dia, esfaimado, almošou na Vendinha emquanto a parelha resfolgava. E batia a meia depois das duas quando emfim se apeou em Oliveira deante do portŃo do antigo convento de S. Domingos, ao fundo da Praša, onde seu pae, quando Chefe do Districto, installßra faustosamente as repartiš§es do Governo Civil. ┴quella hora, jß na frescura e sombra da Arcada que orla um lado da Praša (outr'ora _Praša da Prataria_, hoje _Praša da Liberdade_) os cavalheiros d'Oliveira mais desoccupados, os źrapazes╗, preguišavam, em cadeiras de verga, ß porta da Tabacaria Elegante e da loja do LeŃo. Gonšalo, cautelosamente, baixßra as cortinas verdes da caleche. Mas no pateo do Governo Civil, ainda guarnecido de bancos monumentaes do tempo dos frades, esbarrou com o primo JosÚ Mendonša, que descia a escadaria, fardado. Foi um assombro para o alegre capitŃo, mošo esvelto, de bigode curto, picado levemente de bexigas. --Tu por aqui, Gonšalinho! E de chapeu alto! Caramba, deve ser coisa gorda! O Fidalgo da Torre confessou, corajosamente. Chegava n'esse instante de Santa Ireneia para fallar ao AndrÚ Cavalleiro... --Estß elle cß, esse illustre senhor? O outro recuou, quasi aterrado: --Ao Cavalleiro?! ╔ ao Cavalleiro que vens fallar?!... Santissima Virgem! EntŃo desabou Troia! Gonšalo gracejou, corando. NŃo! nŃo se passßra desgraša epica como a de Troia... De resto podia revelar ao amigo Mendonša o caso que o arrastava ß presenša augusta de Sua Exc.^a o Snr. Governador Civil. Era um homem dos Bravaes, um Casco, que, furioso por nŃo conseguir o arrendamento da Torre, o ameašßra, rondava agora a estrada de Villa-Clara de noite, ß espreita, com uma espingarda. E elle, nŃo ousando źfazer alta e boa justiša╗ pelas mŃos dos seus creados, como os Ramires feudaes--reclamava modestamente da Auctoridade Superior uma ordem para que o Gouveia mantivesse dentro da legalidade e dos Mandamentos de Deus o fašanhudo dos Bravaes... --Sˇ isto, uma pequenina questŃo de paz publica... E entŃo o grande homem estß lß em cima? Bem, atÚ logo, ZÚzinho... A prima, de saude? Eu naturalmente janto nos Cunhaes. Apparece! Mas o capitŃo nŃo despegava do degrau de pedra, abrindo pachorrentamente a cigarreira de couro: --E que me dizes tu ß novidade? O pobre Sanches Lucena?... Sim, Gonšalo soubera na Assembleia. Um ataque, hein?--Mendonša accendeu, chupou o cigarro: --De repente, com um aneurisma, a ler o _Noticias_!... Pois ainda ha tres dias a Maricas e eu jantamos na _Feitosa_. AtÚ eu toquei a duas mŃos, com a D. Anna, o quarteto do Rigoleto. E elle bem, conversando, tomando a sua aguardentesinha de canna... Gonšalo esbošou um gesto de piedade e tristeza: --Coitado... Tambem ha semanas o encontrei na Bica-Santa. Bom homem, bem educado... E ahi temos agora a bella D. Anna vaga. --E o circulo! --Oh, o circulo! murmurou o Fidalgo da Torre com risonho desdem. A mim antes me convinha a viuva. ╔ Venus com duzentos contos! Infelizmente tem uma voz medonha... O primo Mendonša accudiu, com interesse, uma convicšŃo dedicada: --NŃo! nŃo! na intimidade, perde aquelle tom empapado... NŃo imaginas! atÚ um timbre natural, agradavel... E depois, menino, que corpo! que pelle! --Deve ficar explendida agora com o luto! concluiu Gonšalo. Bem, adeusinho! Apparece nos Cunhaes... Eu corro ao Cavalleiro para que Sua Exc.^a me salve com o seu brašo forte! Sacudiu a mŃo do Mendonša, galgou a escadaria de pedra. Mas o capitŃo, que mettera para a travessa de S. Domingos, desconfiou d'aquella historia d'ameašas, d'espingardas... źQual! Aqui anda Politica!╗ E quando, passada uma hora lenta, repenetrou na Praša e avistou a caleche da Torre ainda encalhada ß porta do Governo Civil--correu ß Arcada, desabafou logo com os dois Villa-Velhas, ambos pensativamente encostados aos dois humbraes da Tabacaria Elegante: --Vocŕs sabem quem estß no Governo Civil?... O Gonšalo Ramires!... Com o Cavalleiro! Todos em roda se mexeram, como acordando, nas gastas cadeiras de verga--onde os estendera somnolentamente o silencio e a ociosidade da arrastada tarde de verŃo. E o Mendonša, excitado, contou que desde as duas horas e meia Gonšalo Mendes Ramires, źem carne e osso╗, se conservava fechado com o Cavalleiro, no Governo Civil, n'uma conferencia magna! O espanto e a curiosidade foram tŃo ardentes que todos se ergueram, se arremessaram para fˇra dos Arcos, a espiar a bojuda varanda do convento, sobre o portŃo--que era a do gabinete de Sua Excellencia. Precisamente, n'esse momento, JosÚ Barr˘lo, a cavallo, de calša branca, de rosa branca na quinzena d'alpaca, dobrava a esquina da rua das Vendas. E o interesse todo d'aquelles cavalheiros se precipitou para elle, na esperanša d'uma revelašŃo: --Oh Barr˘lo! --Oh Barrolinho, chega cß! --Depressa, homem, que Ú caso rijo! Barr˘lo, ladeando, abeirou da Arcada: e os amigos immediatamente lhe atiraram a nova formidavel, apertados em volta da egoa. O Gonšalo e o Cavalleiro cochichando secretamente toda a manhŃ! A caleche da Torre ß espera, com a parelha adormecida! E jß comešavam a repicar os sinos da SÚ! Barr˘lo, n'um pulo, desmontou. E emquanto um garoto lhe passeava a egoa--estacou entre os amigos, com o chicote detraz das costas, pasmando tambem para a varanda de pedra do Governo Civil. --Pois eu nŃo sei nada! O Gonšalo a mim nŃo me disse nada! affirmava elle, assombrado. Tambem jß ha dias nŃo vem ß cidade... Mas nŃo me disse nada! E da ultima vez que cß esteve, nos annos da Graša, ainda destemperou contra o Cavalleiro! A todos o caso parecia źd'estrondo!╗ E subitamente um silencio esmagou a Arcada, trespassada d'emošŃo. Na varanda, entre as vidrašas abertas vagarosamente, apparecera o Cavalleiro com o Fidalgo da Torre, conversando, risonhos, de charutos accesos. Os largos olhos do Cavalleiro pousaram logo, com malicia, sobre os źrapazes╗ apinhados em pasmo ß borda dos Arcos. Mas foi um lampejar de visŃo. S. Ex.^a remergulhßra no gabinete--o Fidalgo tambem, depois de se debrušar da varanda, espreitar a caleche da Torre. Entre os amigos rompeu um clamor: --Viva! ReconciliašŃo! --Acabou a guerra das Rosas! --E as correspondencias da _Gazeta do Porto_?... --╔ que houve peripecia tremenda! --Temos o Gonšalinho administrador d'Oliveira! --Upa, Ex.^{mo} Snr., upa! Mas de novo emmudeceram. O Cavalleiro e o Fidalgo reappareciam, n'uma enfronhada conversa, que os deteve um momento esquecidos, na evidencia da varanda escancarada. Depois o Cavalleiro, com uma familiaridade carinhosa, bateu nas costas do Gonšalo--como se publicasse a sua reconciliašŃo diante da Praša maravilhada. E outra vez se sumiram, n'esse passear conversado e intimo, que os trazia da sombra do gabinete para a claridade da janella, rošando as mangas, misturando o fumo leve dos charutos. Em baixo o bando crescia, mais excitado. Passßra o Mello Alboim, o BarŃo das Marges, o Dr. Delegado: e, chamados com ancia, cada um correra, devorßra esgazeadamente a novidade, embasbacßra para o velho balcŃo de pedra que o sol dourava. Os grossos ponteiros do relogio do Governo Civil jß se acercavam das quatro horas. Os dous Villa-Velhas, outros źrapazes╗, estafados, retrocederam ßs cadeiras de verga da Tabacaria. O Dr. Delegado, que jantava ßs quatro e soffria do estomago, despegou desconsoladamente dos Arcos, supplicando ao Pestana seu visinho źque apparecesse ao cafÚ, para contar o resto...╗ Mello Alboim, esse, enfißra para casa, defronte do Governo Civil, na esquina do Largo: e da janella, disfaršado por traz da mulher e da cunhada, ambas de chambres brancos e de papelotes, sondava o gabinete de S. Ex.^a com um binoculo. Por fim bateram, com estendida pancada, as quatro horas. EntŃo o BarŃo das Marges, na sua impaciencia borbulhante, decidiu subir ao Governo Civil, źpara farejar!...╗ Mas n'esse momento AndrÚ Cavalleiro assomava de novo ß varanda--sˇzinho, com as mŃos enterradas no jaquetŃo de flanella azul. E quasi immediatamente a caleche da Torre largou da porta do Governo Civil, atravessou a Praša, com os stores verdes meio corridos, descobrindo apenas, ßquelles cavalheiros avidos, as calšas claras do Fidalgo. --Vae para os Cunhaes! Lß o apanhava pois o Barr˘lo! E todos apressaram o bom Barr˘lo a que montasse, recolhesse, para ouvir do cunhado os motivos e os lances d'aquella paz historica! O BarŃo das Marges atÚ lhe segurou o estribo. Barr˘lo, alvorošadamente, trotou para o Largo d'El-Rei. Mas Gonšalo Mendes Ramires, sem parar nos Cunhaes, seguia para a Vendinha, onde decidira jantar, dando um descanšo ß parelha esfalfada. E logo depois das ultimas casas da cidade subiu as stores, respirou deliciosamente, com o chapeo sobre os joelhos, a luminosa frescura da tarde--mais fresca e de uma claridade mais consoladora que todas as tardes da sua vida... Voltava d'Oliveira vencedor! Furßra emfim atravez da fenda, atravez do muro! E sem que a sua honra ou o seu orgulho se esgašassem nas asperezas estreitas da fenda!... Abenšoado Gouveia, esperto Gouveia! E abenšoada a esperta conversa, na vespera, pela calšadinha de Villa-Clara!... Sim, de certo, f˘ra custoso aquelle mudo momento em que se sentßra seccamente, hirtamente, ß borda da poltrona, junto da pesada meza administrativa de S. Ex.^a. Mas mantivera muita dignidade e muita simplicidade...--źSou foršado (dissera) a dirigir-me ao Governador Civil, ß Auctoridade, por um motivo de ordem publica...╗ E a primeira avenša partira logo do Cavalleiro, que torcia a bigodeira, pallido:--ź Sinto profundamente que nŃo seja ao homem, ao velho amigo, que Gonšalo Mendes Ramires se dirija...╗ Elle ainda se conservßra retrahido, resistente, murmurando com uma frieza triste:--źAs culpas nŃo sŃo decerto minhas...╗ E entŃo o Cavalleiro, depois de um silencio em que lhe tremera o beišo:--źAo cabo de tantos annos, Gonšalo, seria mais caridoso nŃo alludir a culpas, lembrar somente a antiga amizade, que, pelo menos em mim, se conservou a mesma, leal e sÚria.╗ A esta sensibilisada invocašŃo, elle volvera, com došura, com indulgencia:--źSe o meu antigo amigo AndrÚ recorda a nossa antiga amizade, eu nŃo posso negar que em mim tambem ella nunca inteiramente se apagou...╗ Ambos balbuciaram ainda alguns confusos lamentos sobre os desaccordos da vida. E quasi insensivelmente se trataram por _tu_! Elle contou ao Cavalleiro a torpe ousadia do Casco. E o Cavalleiro, indignado como amigo, mais como Auctoridade, telegraphßra logo ao Gouveia um mandado forte para inutilisar o valentŃo dos Bravaes... Depois conversaram da morte do Sanches Lucena, que impressionava o Districto. Ambos louvaram a belleza da viuva, os seus duzentos contos. O Cavalleiro recordou a manhŃ, na _Feitosa_, em que entrando pela porta pequena do jardim, a surprehendera, dentro d'um caramanchŃo de rosas, a apertar a liga. Uma perna divina! Ambos se recusaram, rindo, a casar com a D. Anna, apezar dos duzentos contos e da divina perna...--Jß entre elles se restabelecera a antiga familiaridade de Coimbra. Era źtu Gonšalo, tu AndrÚ, oh menino, oh filho!╗ E f˘ra AndrÚ, naturalmente, que alludira ß desapparišŃo do Deputado do Governo, ß surpreza do circulo vago... Elle entŃo, com indifferenša, estirado na poltrona, rufando com os dedos na borda da mesa, murmurßra: --Sim, com effeito... Vocŕs agora devem estar embarašados, assim de repente... Mais nada! apenas estas indolentes palavras, murmuradas atravÚs do rufo. E o Cavalleiro, logo, sem preparašŃo, apressadamente, empenhadamente, lhe offerecera o Circulo!--Pousßra os olhos n'elle com lentidŃo, como para o penetrar, o escutar... Depois, insinuante e grave: --Se tu quizesses, Gonšalo, nŃo estavamos embarašados... Elle ainda exclamßra, com surpreza e riso: --Como, se eu quizesse? E o AndrÚ, sempre com os olhos n'elle cravados, os largos olhos lustrosos, tŃo persuasivos: --Se tu quizesses servir o Paiz, ser deputado por Villa-Clara, jß nŃo estavamos embarašados, Gonšalo! _Se tu quisesses_... E perante esta insistencia que rogava, tŃo sincera e commovida, em nome do Paiz, elle consentira, vergßra os hombros: --Se te posso ser util, e ao Paiz, estou ßs vossas ordens. E eis a fenda transposta, a aspera fenda, sem rasgŃo no seu orgulho ou na sua dignidade! Depois conversaram desafogadamente, passeando pelo gabinete, desde a estante carregada de papeis atÚ ß varanda--que AndrÚ abrira, por causa d'um cheiro persistente de petroleo entornado na vespera. AndrÚ tencionava partir n'essa noite para Lisboa--para conferenciar com o Governo, depois d'aquella inesperada desapparišŃo do Lucena. E, agora em Lisboa, imporia o querido Gonšalo como o unico Deputado, depois do Sanches de Lucena, seguro e substancial--pelo nome, pelo talento, pela influencia, pela lealdade. E eis a eleišŃo consummada! De resto (declarßra o Cavalleiro, rindo) aquelle Circulo de Villa-Clara constituia uma propriedade sua--tŃo sua como Corinde. Livremente, poderia eleger o servente da RepartišŃo que era gago e bebado. Prestava pois um servišo esplendido ao Governo, ß NašŃo, apresentando um m˘šo de tŃo alta origem e de tŃo fina intelligencia... Depois accrescentßra: --NŃo tens a pensar mais na eleišŃo. Vaes para a Torre. NŃo contas a ninguem, a nŃo ser ao Gouveia. Esperas lß, muito quietinho, telegramma meu de Lisboa. E, recebido elle, estßs Deputado por Villa-Clara, annuncias a teu cunhado, aos amigos... Depois, no domingo, vens almošar comigo a Corinde, ßs onze. EntŃo ambos se apertaram n'um abrašo que fundiu de novo, e para sempre, as duas almas apartadas. Depois, ao cimo da escadaria de pedra onde o acompanhßra, AndrÚ, repenetrando timidamente no Passado, murmurou com um riso pensativo:--źQue tens tu feito ultimamente, n'essa querida Torre?╗ E, ao saber da Novella para os *Annaes*, suspirou com saudade dos tempos de ImaginašŃo e d'Arte em Coimbra, quando elle amorosamente lapidava o primeiro canto d'um poema heroico, o _Fronteiro de Ceuta_. Emfim outro abrašo--e alli voltava deputado por Villa-Clara. Todos esses campos, esses povoados que avistava da portinhola da caleche, era elle que os representava em C˘rtes, elle, Gonšalo Mendes Ramires... E superiormente os representaria, mercŕ de Deus! Porque jß as idÚas o invadiam, višosas e ferteis. Na Vendinha, emquanto esperava que lhe frigissem um chourišo com ovos e duas postas de savel, meditou, para a Resposta ao Discurso da Cor˘a, um esbošo sombrio e ßspero da nossa AdministrašŃo na Africa. E lanšaria entŃo um brado ß NašŃo, que a despertasse, lhe arrastasse as energias para essa Africa portentosa, onde cumpria, como gloria suprema e suprema riqueza, edificar de costa a costa um Portugal maior!... A noite cerrßra, ainda outras idÚas o revolviam, vastas e vagas--quando o trote esfalfado da parelha estacou no portŃo da Torre. Ao outro dia (terša feira) ßs dez horas, o Bento entrou no quarto do Fidalgo com um telegramma, que chegara ß Villa de madrugada. Gonšalo pensou com um deslumbrado pulo do corašŃo:--ź╔ do Governo!╗--Era do Pinheiro, gritando pela Novella. Gonšalo amarrotou o telegramma. A Novella! Como poderia labutar na Novella, agora, todo na impaciencia e no esforšo da sua EleišŃo?... Nem almošou socegadamente--retendo, atravez dos pratos que arredava, um desejo desesperado de źcontar ao Bento.╗ E, sorvido o cafÚ n'um sorvo impaciente, atirou para Villa-Clara, a desafogar com o Gouveia. O pobre administrador jazia de novo no camapÚ de palhinha, com papas na garganta. E toda a tarde, na estreita sala forrada de papel verde-gaio, Gonšalo exaltou os talentos do AndrÚ, źhomem de governo e de idÚas, Gouveia!╗--celebrou o Ministerio Historico, źo unico capaz de salvar esta choldra, Gouveia!╗---desenrolou vistosos Projectos de Lei que meditava sobre a Africa, źa nossa esperanša magnifica, Gouveia!╗--Emquanto o Gouveia, estirado, sˇ rompia a mudez e a immobilidade, para murmurar ch˘chamente, apalpando o calor das papas: --E a quem deve vossŕ tudo isso, Gonšalinho?... Cß ao meco!╗ Na quarta-feira, ao accordar, tarde, o seu pensamento saltou logo soffregamente para o AndrÚ Cavalleiro, que a essa hora, em Lisboa, almošava no Hotel Central (sempre, desde rapaz, AndrÚ se conservßra fiel ao Hotel Central). E todo o dia, fumando cigarros insaciavelmente atravez do silencio da casa e da quinta, seguiu o Cavalleiro nos seus giros de Chefe de Districto, pela Baixa, pela Arcada, pelos Ministerios... Naturalmente jantaria com o tio Reis Gomes, Ministro da Justiša. Outro convidado certamente seria o JosÚ Ernesto, Ministro do Reino, condiscipulo do Cavalleiro, seu confidente politico... N'essa noite, pois, tudo se decidia! --┴manhŃ, pelas dez horas, tenho cß telegramma do AndrÚ. Nenhuma noticia chegou ß Torre:--e o Fidalgo passou a lenta quinta feira ß janella, vigiando a estrada poeirenta por onde surdiria o mošo do telegrapho, um rapaz gordo que elle conhecia pelo bonnÚ d'oleado e pela perna manca. ┴ noitinha, intoleravelmente inquieto, mandou um mošo a Villa-Clara. Talvez o telegramma arrastasse, esquecido, pela mesa d'aquella źbesta do Nunes do Telegrapho!╗ NŃo havia telegramma para o Fidalgo. EntŃo ficou certo de surgirem em Lisboa difficuldades! E toda a noite, sem socego, n'uma indignašŃo que rolava e crescia, imaginou o Cavalleiro cedendo mollemente a outras exigencias do Ministro--acceitando com servilismo para Villa-Clara a candidatura d'algum imbecil da Arcada, d'algum chulo escrevinhador do Partido! Pela manhŃ injuriou o Bento por lhe trazer tŃo tarde os jornaes e o chß: --E nŃo ha telegramma, nem carta? --NŃo ha nada. Bem, f˘ra trahido! Pois nunca, nunca, aquelle infame Cavalleiro transporia a porta dos Cunhaes! De resto, que lhe importava a burlesca EleišŃo? Mercŕ de Deus que lhe sobravam outros meios de provar soberbamente o seu valor--e bem superiores a uma ensebada cadeira em S. Bento! Que miseria, na verdade, curvar o seu espirito e o seu nome ao rasteiro servišo do S. Fulgencio, o obeso e horrendo careca! E resolveu logo regressar aos cimos puros da Arte, occupar altivamente todo o dia no nobre e elegante trabalho da sua Novella. Depois de almošo ainda abancou, com esforšo, remexeu nervosamente as tiras de papel. E de repente agarrou o chapÚo, abalou para Villa-Clara, para o telegrapho. O Nunes nŃo recebera nada para sua exc.^a!--Correu, coberto de suor e pˇ, ß AdministrašŃo do Concelho. O snr. Aministrador partira para Oliveira!... Positivamente vencera outra combinašŃo--eis a sua confianša burlada! E recolheu ß Torre, decidido a tomar um desforšo tremendo do Cavalleiro por tanta injuria amontoada sobre o seu nome, sobre a sua dignidade! Toda a abafada e enevoada Sexta-feira a consumio amargamente meditando esta vinganša, que queria bem publica e bem sangrenta. A mais saborosa, mais simples, seria rasgar a bigodeira do infame com chicotadas, na escadaria da SÚ, um domingo, ß sahida da missa! Ao escurecer, depois do jantar que mal debicßra, n'aquelle despeito e humilhašŃo que o pungiam, envergou o casaco para voltar a Villa-Clara. NŃo entraria no Telegrapho--jß com vergonha do Nunes. Mas gastaria a noite na AssemblÚa, jogando o bilhar, tomando um alegre chß, lendo risonhamente os Jornaes Regeneradores, para que todos recordassem a sua indifferenša--se por acaso, mais tarde, conhecessem a trama em que resvalßra. Desceu ao pßteo, onde as arvores adensavam a sombra do crepusculo carregado de fuscas nuvens. E abria o portŃo, quando esbarrou com um rapaz que s'esbaforia sobre a perna manca e gritava:--ź╔ um telegramma!╗ Com que voracidade lh'o arrancou das mŃos! Correu ß cozinha, ralhou desabridamente ß Rosa pela falta da luz tardia! E, com um phosphoro a arder nos dedos, devorou, n'um lampejo, as linhas bemditas:--ź_Ministro acceita, tudo arranjado_...╗ O resto era o Cavalleiro lembrando que no domingo o esperava em Corinde, ßs onze, para almošarem e conversarem... Gonšalo Mendes Ramires deu cinco tost§es ao mošo do telegrapho--galgou as escadas. Na livraria, ß claridade mais segura do candieiro, releu o telegramma delicioso. _Ministro acceita, tudo arranjado!_... Na sua transbordante gratidŃo pelo Cavalleiro, ideou logo um jantar soberbo, offerecido nos Cunhaes pelo Barr˘lo, cimentando para sempre a reconciliašŃo das duas Casas. E recommendaria a Gracinha que, para mais honrar a doce festa, se decotasse, pozesse o seu collar magnifico de brilhantes, a derradeira joia historica dos Ramires. --Aquelle AndrÚ! que fl˘r, que rapaz! * * * * * O relogio de charŃo, no corredor, rouquejou as nove horas. E sˇ entŃo Gonšalo percebeu a densa chuva que alagava a quinta, e a que elle, embebido na sua gloria, passeando pela livraria n'um luminoso rolo de imaginaš§es, nŃo sentira o rumor sobre a pedra da varanda, nem sobre a folhagem dos limoeiros. Para se calmar, occupar a noite encerrada, deliberou trabalhar na Novella. E realmente agora convinha que terminasse essa _Torre de D. Ramires_ antes do afan da EleišŃo--para que em Janeiro, ao abrir das C˘rtes, surgisse na Politica com o seu velho nome aureolado pela ErudišŃo e pela Arte. Envergou o roupŃo de flanella. E ß banca, com o costumado bule de chß inspirador, repassou lentamente o comešo do Capitulo II--que o nŃo contentava. Era no castello de Santa Ireneia, n'aquelle dia de Agosto em que Lourenšo Ramires cahira no valle de Canta-Pedra, mal ferido e captivo do Bastardo de BayŃo. Pelo Almocadem dos pe§es, que, com o brašo varado por uma chušada, voltßra em desesperada carreira ao Castello, jß Tructezindo Ramires conhecia o desventuroso desfecho da lide.--E n'este lance o tio Duarte, no seu poemeto do Bardo, com um lyrismo molle, mostrava o enorme Rico-Homem gemendo derramadamente atravez da sala-d'armas, na saudade d'esse filho, fl˘r dos Cavalleiros de Riba-Cavado, derrubado, amarrado n'umas andas, ß mercŕ da gente de BayŃo... Lagrimas irrepresas lhe rebentam, Arfa o arnez c'o solušar ardente!... Ora, levado no harmonioso sulco do tio Duarte, tambem elle, nas linhas primeiras do Capitulo, esbošßra o velho abatido sobre um escanho, com lagrimas relusentes sobre as barbas brancas, as duras mŃos descahidas como as de languida Dona--em quanto que nas lages, batendo a cauda, os seus dois lebreus o contemplam n'uma sympathia anciada e quasi humana. Mas, agora, este choroso desalento nŃo lhe parecia coherente com a alma tŃo indomavelmente violenta do av˘ Tructezindo. O tio Duarte, da casa das Balsas, nŃo era um Ramires, nŃo sentia hereditariamente a fortaleza da raša:--e, romantico plangente de 1848, inundßra logo de prantos romanticos a face ferrea de um lidador do seculo XII, d'um companheiro de Sancho I! Elle porÚm devia restabelecer os espiritos do Senhor de Santa Ireneia dentro da realidade epica. E, riscando logo esse descorado e falso comešo de Capitulo, retomou o lance mais vigorosamente, enchendo todo o castello de Santa-Ireneia d'uma irada e rija alarma. Na sua lealdade sublime e simples Tructezindo nŃo cuida do filho--adia a desforra do amargo ultraje. E o seu esforšo todo se commette a apressar os aprestos da mesnada, para correr elle sobre Montemor, e levar ßs Senhoras Infantas os soccorros de que as privßra a embuscada de Canta-Pedra! Mas quando o impetuoso Rico-Homem com o Adail, na sala-d'armas, regia a ordem da arrancada--eis que os esculcas, abrigados do calor d'Agosto nos miradouros, enxergam ao longe, para alÚm do arvoredo da Ribeira, coriscos d'armas, uma cavalgada subindo para Santa-Ireneia. O Villico, o gordo e azafamado Ordonho, galga arquejando aos eirados da torre albarrŃ--e reconhece o pendŃo de Lopo de BayŃo, o seu toque de trompas ß mourisca, arrastado e triste no silencio dos campos. EntŃo arqueia as cabelludas mŃos na b˘ca, atira o alarido: --Armas, armas! que Ú gente de BayŃo!... Besteiros, ßs quadrellas! Homens em chusma ßs lavadišas da carcova! E Gonšalo, cošando a testa com a rama da penna, rebuscava ainda outros veridicos brados, de bravo som Affonsino--quando a porta da livraria abriu cautellosamente, atravez d'aquelle perro rangido que o desesperava. Era o Bento, em mangas de camisa: --O Snr. Dr. nŃo poderia descer cß baixo ß cozinha? Gonšalo embasbacou para o Bento, pestanejando, sem comprehender: --┴ cozinha?... --╔ que estß lß a mulher do Casco a levantar uma celeuma. Parece que lhe prenderam o homem esta tarde... Appareceu ahi por baixo de agoa, com os pequenos, atÚ um de mama. Quer por forša fallar com o Snr. Dr. E nŃo se calla, lavada em lagrimas, de joelhos com os filhos, que Ú mesmo uma Ignez de Castro! Gonšalo murmurou--źque massada!╗ E que contrariedade! A mulher, n'uma agonia, entre gritos, arrastando os filhos supplicantes atÚ ao portŃo da Torre! E elle, nas vesperas da sua EleišŃo, apparecendo a todas as freguezias enternecidas como um fidalgo deshumano!...--Atirou a penna furiosamente: --Que massada! Dize ß creatura que me deixe, que se nŃo afflija... O Snr. Aministrador ßmanhŃ manda soltar o Casco. Eu mesmo vou a Villa-Clara, antes d'almošo, para pedir. Que se nŃo afflija, que nŃo aterre os pequenos... Corre, dize, homem! Mas o Bento nŃo despegava da porta: --Pois a Rosa e eu jß lhe dissemos... Mas a mulherzinha nŃo acredita, quer pedir ao Snr. Dr.! Veio por baixo d'agoa. AtÚ um dos pequenitos estß bem doentinho, ainda nŃo fez senŃo tremer... EntŃo Gonšalo, sensibilisado, atirou ß meza um murro que tresmalhou as tiras da Novella: --Ora se uma cousa d'estas se atura! Um homem que me quiz matar! E agora, por cima, Ú sobre mim que desabam as lagrimas, e as scenas, e a creanša doente! NŃo se pode viver n'esta terra! Um dia vendo casa e quinta, emigro para Mošambique, para o Transvaal, para onde nŃo haja massadas... Bem, dize ß mulher que jß desšo. O Bento approvou, com effusŃo: --Pois se o Snr. Dr. lhe nŃo custa... E como Ú para dar uma boa nova... Sempre consola a pobre mulherzinha!... --Lß vou, homem, lß vou! NŃo me masses tambem... Impossivel trabalhar n'esta casa! Outra noite perdida! Enfiou violentamente para o quarto, atirando as portas--com a ideia de metter na algibeira do roupŃo duas notas de dez tost§es que consolariam os pequenos. Mas, deante da gaveta, recuou, vexado. Que brutalidade, compensar com dinheiro creancinhas--a quem elle arrancßra o pae, algemado, para o trancar n'uma enxovia! Agarrou simplesmente n'uma boceta de alperces seccos--dos famosos alperces do Convento de Santa-Brigida de Oliveira, que na vespera lhe mandßra Gracinha. E, cerrando lentamente o quarto, jß se arrependia da sua severidade, tŃo estouvada, que assim desmanchava a quietašŃo de um casal. Depois no corredor, ante a chuva clamorosa que dos telhados se despenhava nas lages do pateo, ainda mais doridamente se impressionou, com a imagem da pobre mulher, tresloucada pela negra estrada, puxando os filhinhos encharcados, moÝdos, contra a tormenta solta. E ao penetrar no corredor da cozinha--tremia como um culpado. Atravez da porta envidrašada sentiu logo a Rosa e o Bento consolando a mulher, com palradora confianša, quasi risonhos. Mas os źais╗ d'ella, os ruidosos lamentos pelo źseu rico homem╗, resoavam, mais agudos, como a rebater e a abafar toda a consolašŃo. E apenas Gonšalo empurrou timidamente a porta--quasi acuou no espanto e medo d'aquella afflicšŃo estridente que se arremessava para elle e para a sua misericordia! De rojos nas lages, torcendo as magras mŃos sobre a cabeša, toda de negro, parecendo mais negra e dolorosa contra a vermelhidŃo do lenšol estendido que seccava ao lume forte da lareira--a creatura estalßra n'um tumulto de supplicas e gritos: --Ai, meu rico Senhor, tenha compaixŃo! Ai, que me prenderam o meu homem, que m'o vŃo mandar para a Africa degredado! Jesus, meus filhinhos da minha alma que ficam sem pae! Ai, pelas suas almas, meu senhor, e por toda a sua felicidade!... Eu sei que elle teve culpa! Aquillo foi perdišŃo que lhe deu! Mas tenha piedade d'estas creancinhas! Ai, o meu pobre homem que estß a ferros! Ai, meu rico Senhor, por quem Ú! Com as palpebras humedecidas, agarrando desesperadamente, a boceta d'alperces, Gonšalo balbuciava, atravez da emošŃo que o estrangulßra: --Oh mulher, socegue, jß o vŃo soltar! Socegue! Jß dei ordem! Jß o vŃo soltar! E d'um lado a Rosa, debrušada sobre a escura creatura que gemia, recomešava docemente:--źPois foi o que lhe dissemos, tia Maria! Logo pela manhŃ, o vŃo soltar!╗--E do outro o Bento, batendo na coxa, com impaciencia:--źOh mulher, acabe com esse escarceu! Pois se o Snr. Dr. prometteu! Logo pela manhŃ o vŃo soltar!╗ Mas ella nŃo se calmava, com o lenšo da cabeša desmanchado, uma tranša desprendida, solušando e clamando atravez dos solušos: --Ai que eu morro, se o nŃo vejo solto! Ai perdŃo, meu rico Senhor da minha alma!... EntŃo Gonšalo, que aquelle infindavel e obtuso queixume torturava, como um ferro cravado e recravado, bateu o chinello nas lages, berrou: --Escute, mulher! E olhe para mim! Mas de pÚ, de pÚ!... E olhe bem, olhe direita! Hirtamente erguida, atirando as mŃos para as costas como a escapar d'algemas que tambem a ameašassem--ella arregalou para o Fidalgo os olhos espavoridos, fundos olhos pretos, de fundas olheiras tristes, que lhe enchiam a face rechupada e morena. --Bem, perfeitamente! exclamava Gonšalo. E agora diga! Acha que tenho bojo de lhe mentir, quando vocemecŕ estß n'essa afflicšŃo? Pois entŃo socegue, acabe com os gritos, que, sob minha palavra, ßmanhŃ cedo, o seu homem estß solto! E a Rosa e o Bento, ambos triumphando: --Pois que lhe dizia a gente, creatura de Deus? Se o Snr. Dr. tinha promettido... ┴manhŃ lß tem o homem! Lentamente ella limpava as lagrimas, jß silenciosas, ß ponta do avental negro. Mas, ainda desconfiada, com os tenebrosos olhos mais arregalados, devorando Gonšalo. E o Fidalgo mandava com certeza a ordem, cedinho, de madrugada?...--Foi o Bento que a convenceu, com violencia: --Oh mulher, vossŕ atÚ parece atrevida! Ora essa! Pois duvida da palavra do Snr. Dr.? Ella soltou o avental, baixou a cabeša, suspirou simplesmente: --Ai, entŃo muito obrigada, seja pela felicidade de todos... E agora a curiosidade de Gonšalo procurava os pequenos que ella acarretßra desde os Bravaes atravez da chuva cerrada. A pequenina de mama dormia com beatitude sobre a tampa de uma arca, onde a boa Rosa a aconchegßra entre mantas e fronhas. Mas o pequeno, de sete annos, encolhido n'uma cadeira deante do lume, rente ao lenšol que seccava, seccando tambem, com a carinha afogueada de febre, tossia despedašadamente, n'um cabecear de somno e canšasso, a arquejar, a gemer contra a tosse que o esfalfava. Gonšalo pousou a boceta de alperces na arca, palpou a mŃo com que elle, sem cessar, raspava pela abertura da camisa encardida o peito ainda mais encardido. --Mas esta creanca tem febre!... E vossŕ, com uma noite d'estas, traz o pequeno assim desde os Bravaes, mulher? Da cadeirinha baixa, onde se sentßra prostrada, ella murmurou, sem erguer a magra face, torcendo a ponta do avental: --Ai! era para que elles tambem pedissem, que estavam sem pae, coitadinhos! --Vocemecŕ Ú doida, mulher! E pretende talvez voltar para os Bravaes, debaixo d'agoa, com as creanšas? Ella suspirou: --Ai! volto, volto... NŃo posso deixar sˇzinha a mŃe do meu homem, que tem oitenta annos e estß entrevada. EntŃo o Fidalgo cruzou descoršoadamente os brašos--no embarašo d'aquella aventura, em que, por culpa da sua ferocidade, se arriscavam duas creanšas. Mas a Rosa entendia que a pequenina, a de mama, nŃo soffreria com a caminhada, bem achegadinha ao collo da mŃe, debaixo de uma manta grossa. Agora o outro, com a tosse, com a febre... --Esse fica cß! exclamou logo Gonšalo, decidido. Como se chama elle? Manoel... Bem! O Manoel fica cß. E vß descanšada, que a Sr.^a Rosa toma cuidado. Precisa uma boa gemada, depois um bom suadoiro. Um d'estes dias lß lhe apparece nos Bravaes, curado e mais gordo... Vß socegada! De novo a mulher suspirou, no canšasso immenso que a invadira, a amollecia. E sem resistir, no seu longo e abatido habito de submissŃo: --Pois sim senhor, se o Fidalgo manda, estß muito bem... O Bento, entreabrindo a porta do pateo, annunciava uma źaberta╗, o negrume a levantar. Gonšalo immediatamente apressou a volta aos Bravaes: --E nŃo tenha medo, mulher. Vae um mošo da quinta com uma lanterna, e um guarda chuva para abrigar a pequena... Escute! Vocemecŕ atÚ podia levar uma capa de borracha!... Oh Bento, corre, desce a minha capa de borracha. A nova, a que comprei em Lisboa... E quando o Bento trouxe o źimpermeavel╗ de longa romeira, o lanšou por sobre os hombros da mulher, que o estofo rico intimidava, com o seu ruge-ruge de seda--foi na cozinha uma divertida risada. O pranto passßra, como a chuva. Agora era uma visita amoravel, findando n'um arranjo alegre d'agasalhos. A Rosa apertava as mŃos, banhada de gosto: --Assim Ú que vocemecŕ fica uma bonita Madama, hein!... Se fosse de dia, olhe que se juntava gente! A mulher sorria emfim, descoradamente, sem interesse: --Ai! nem sei que parešo... Que avantesma! Atravez do pateo, onde as acacias gottejavam docemente, Gonšalo acompanhou o rancho atÚ ß porta do pomar, gritando ainda--źAgasalhem bem a pequena!╗--quando jß a lanterna do mošo se fundia na humida espessura da noite acalmada. Depois, na cozinha, batendo contra as lages as solas dos chinellos molhados, apalpou novamente o Manoelsinho, que adormecera n'um somno rouquejado, torcido sobre as costas da cadeira. --Tem pouca febre... Mas precisa um suadoiro forte. E, antes de o cobrirem bem, um leite quente, quasi a ferver, com cognac... O que elle precisava tambem era esfregado a c˘co... Que porcaria de gente! Emfim fica para mais tarde, quando se curar... E agora, oh Rosa, mande acima alguma cousa para eu cear, cousa solida, que nŃo jantei, e o sarau foi tremendo! Na livraria, depois de mudar os chinellos, descanšar, Gonšalo escreveu ao Gouveia uma carta reclamando com commovida urgencia a liberdade do Casco. E accrescentava:--ź╔ o primeiro pedido que lhe faz o deputado por Villa-Clara (comprimente!), porque acabo de receber telegramma do nosso AndrÚ, annunciando que ź_tudo feito, ministro concorda, etc._╗ De sorte que precisamos communicar! Queira pois vossa mercŕ vir jantar ßmanhŃ a esta sua Torre, ß sombra do Titˇ e com acompanhamento de Videirinha. Estes dous benemeritos sŃo indispensaveis para que haja appetite e harmonia. E rogo, Gouveia amigo, que os avise do festim, para me evitar a remessa de circulares eloquentes...╗ Lacrada a carta, retomou languidamente o manuscripto da Novella. E, trincando a rama da penna, ainda procurou vozes, de bom sabor medieval, para aquelle lance em que o Villico e as roldas enxergavam a cavalgada do Bastardo, pela encosta da Ribeira, com refulgidos d'armas, sob o rijo sol d'Agosto... Mas a sua imaginašŃo, desde a carta escripta ao Gouveia pelo źDeputado de Villa-Clara╗ escapava desassocegadamente da velha Honra de Santa Ireneia--esvoašava teimosamente para os lados de Lisboa, da Lisboa do S. Fulgencio. E o eirado da torre albarran, onde o gordo Ordonho gritava esbaforido--incessantemente se desfazia como nevoa molle, para sobre elle surgir, appetitoso e mais interessante, um quarto do Hotel Braganša com varanda sobre o Tejo... Foi um allivio quando o Bento o apressou para a ceia. E ß mesa espalhou livremente a imaginašŃo por Lisboa, pelos corredores de S. Carlos, por sob as arvores da Avenida, atravez dos antiquados palacios dos seus parentes em S. Vicente e na Graša, atravez das salas mais modernas de cultos e alegres amigos--parando ßs vezes deante de vis§es que considerava com um riso deleitado e mudo. Alugaria aos mezes, certamente, uma carruagem da Companhia. E para as sess§es de S. Bento sempre luvas c˘r de perola, uma flor no peito. Por commodidade levava o Bento, bem apurado, com casaca nova... O Bento entrou com a garrafa do cognac n'uma salva. Dera a carta ao Joaquim da Horta com a recommendašŃo de correr logo ßs seis horas a casa do Snr. Administrador, de se demorar na Villa por deante da Cadeia atÚ soltarem o Casco. --E jß deitamos o pequeno no quarto verde. Fica perto de mim, que tenho o somno leve, se elle berrar... Mas jß dorme regaladamente. --Estß socegado, hein? acudiu Gonšalo, sorvendo ß pressa o calice de cognac. Vamos vŕr esse cavalheiro! E tomou um castišal, subiu ao quarto verde com o Bento, sorrindo, abafando os passos pela estreita escada. No corredor, junto da poria, n'um desbotado camapÚ de damasco verde, a Rosa dobrßra carinhosamente a roupa trapalhona do pequeno, o collete esgašado, as calšas enormes, sˇ com um botŃo. Dentro o leito de pau preto, vasto leito de ceremonia, atravancava a parede forrada d'um velho papel avelludado de ramagens verdes. Ao lado dos dous postes torneados, ß cabeceira, pendiam dous paineis, retratos de antigos Ramires, um Bispo obeso folheando um folio, um formoso Cavalleiro de Malta, de barba ruiva, appoiado ß espada, com um lašarote de rendas sobre a couraša polida. E nos altos colch§es o Manoelzinho resonava, sem tosse, quieto, abafado pela grossura dos cobertores, humedecido por um suor fresco e sereno. Gonšalo, caminhando sempre de leve, repuxou cuidadosamente a dobra do lenšol. Desconfiado das janellas decrepitas, experimentou que nŃo entrasse traišoeiro ar pelas gretas. Mandou pelo Bento buscar uma lamparina, que arranjou sobre o lavatorio, com a luz esbatida por traz d'uma vazilha. Ainda attentamente relanceou os olhos lentos pelo quarto, para se assegurar do socego, do silencio, da penumbra, do conforto. E sahiu, sempre na ponta dos pÚs, sorrindo, deixando o filho do Casco velado pelos dous nobres Ramires--o Bispo com o seu Tratado, o Cavalleiro de Malta com a sua pura espada. Recolhendo do Tanque-Velho, do fundo da quinta, onde passßra a calma, depois do almošo, na frescura do arvoredo, entre susurros de agoas correntes, a folhear um volume do _Panorama_--Gonšalo encontrou sobre a mesa da livraria, com o correio de Oliveira, uma carta que o surprehendeu, enorme, em papel almašo, fechada por uma obreia. E dentro a assignatura, desenhada a tinta azul, era um corašŃo chammejante. N'um relance devorou as linhas, pautadas a lapis, d'uma lettra gorda, arredondada com esmero:--źCaro e Ex.^{mo} Snr. Gonšalo Ramires. O galante Governador civil do Districto, o nosso atiradišo AndrÚ Cavalleiro, passeiava agora coastantemente por deante dos Cunhaes, olhando com ternura para as janellas e para o honrado brazŃo dos Barr˘los. Como nŃo era natural que andasse a estudar a architetura do Palacete (que nada tem de notavel), concluiu a gente seria que o digno Chefe do Districto esperava que V. Ex.^a apparecesse a alguma das janellas do Largo, ou das que deitam para a rua das Tecedeiras, ou sobretudo _no mirante do Jardim_, para reatar com V. Ex.^a a antiga e quebrada amizade. Por isso muito acertadamente procedeu V. Ex.^a em correr pessoalmente ao Governo Civil, e propor a reconciliašŃo, e abrir os brašos generosos ao velho amigo, evitando assim que a primeira Auctoridade do Districto continuasse a esbanjar um tempo precioso n'aquelles passeios, de olhos pregados no Palacete dos fidalguissimos Barr˘los. Enviamos portanto a V. Ex.^a os nossos sinceros parabens por esse acertado passo que deve calmar as impaciencias do fogoso Cavalleiro e redondar em beneficio dos servišos publicos!╗ Revirando o papel nas mŃos, Gonšalo pensou: --╔ das Louzadas! Ainda estudou a lettra, as express§es, descortinando que _redundar_ fora escripto com um O, _architectura_ sem C. E rasgou furiosamente a grossa folha, rosnando no silencio da livraria: --Aquellas bebadas! Sim, era d'ellas, das odiosas Louzadas! E essa origem mais o aterrava--porque maledicencia, lanšada por tŃo ardentes espalhadoras de maledicencias, jß certamente penetrßra em todas as casas d'Oliveira, mesmo na Cadeia, mesmo no'Hospital! E agora a cidade divertida, lambendo o escandalo, relacionava perfidamente os rodeios do AndrÚ pelos Cunhaes com essa sua visita ao Governo Civil que assombrßra a Arcada. Na ideia pois d'Oliveira, e sob a inspirašŃo das Louzadas--f˘ra elle, elle, Gonšalo Mendes Ramires, que arrancßra o Cavalleiro ß sua RepartišŃo, o conduzira servišalmente ao Largo d'El-Rei, lhe escancarßra as portas do Palacete atÚ ahi rondadas e miradas sem proveito, e com sereno descaro alcovitßra os amores da irmŃ! Se taes desavergonhadas nŃo mereciam que lhes arregašassem as sujas saias no meio da Praša, em manhŃ de Missa, e lhes fustigassem as nadegas melladas, furiosamente, atÚ que o sangue ensopasse as lages!... E, para maior damno, as apparencias todas se combinavam contra elle, traidoramente! Essa insistencia de AndrÚ, cocando Gracinha, estrondeando a calšada em torno do Palacete, crescera, impressionava, justamente agora, n'este Agosto, nas vesperas d'essa sua apparišŃo ß janella do Governo Civil, que Oliveira commentava como um misterio historico. Que inopportunamente morrera o animal do Sanches de Lucena! Mezes antes, nem mesmo a malicia das Louzadas ligaria a sua reconciliašŃo com AndrÚ a um cŕrco amoroso que nŃo comešßra, ou nŃo andava tŃo murmurado. Tres ou quatro mezes depois, AndrÚ, sem esperanša ante o Palacete inaccessivel, certamente findaria os seus giros pelo Largo, de rosa ao peito! Mas nŃo! infelizmente quando esse AndrÚ, com maior estrepito, ronda a porta almejada--Ú que elle acode, e abraša o rondador, e lhe facilita a porta! E assim a maledicencia das Louzadas encontrava uma base, a que todos na cidade podiam palpar a substancia, e a solidez, e sobre ella se erigia como Verdade Publica! Infames Louzadas! Mas agora? O que? manter rigidamente as suas relaš§es com o Cavalleiro dentro da Politica, evitando escorregadias intimidades que o tornassem logo nos Cunhaes, como outr'ora na Torre, o conviva desejado? Como poderia? Desde que elle se reconciliava com AndrÚ, logo e tŃo naturalmente como a sombra segue a inclinašŃo do ramo, se reconciliava tambem o Barr˘lo, seu cunhado e sua sombra... Mas como imp˘r ao Barr˘lo que a sua renovada familiaridade com o Cavalleiro se realisasse unicamente dentro da Politica como dentro d'um Lazareto?--źEu sou outra vez o velho amigo do AndrÚ, tu, Barr˘lo, tambem--mas nunca o convides para a tua mesa, nem lhe abras a tua porta!╗--ImposišŃo desconcertada, de dura impertinencia--e que, na pequena Oliveira, logo os faceis encontros, a simplicidade hospitaleira do Barr˘lo, quebrariam como um barbante poido... E depois que grotesca attitude a sua, hirto deante do portŃo do Palacete, como um Archanjo S. Miguel, de bengala de fogo na mŃo, para sustar a intrusŃo de Satanaz, Chefe do Districto! Mas tambem que toda a cidade largasse a cochichar pelos cantos o nome de Gracinha embrulhado ao nome de AndrÚ, com o nome d'elle, Gonšalo, emmaranhado atravez como o fio favoravel que os atßra--era horrivel. E na impaciencia d'esta difficuldade, de malhas tŃo asperas, que tanto o feriam, terminou por esmurrar a meza, revoltado: --Irra, que massada! SŃo tudo massadas, n'estas terras pequenas e coscovilheiras... Em Lisboa quem se importaria que o Snr. Governador civil passeasse n'um certo Largo--e que certo Fidalgo da Torre se reconciliasse com o Snr. Governador Civil?... Pois acabou! Romperia soberbamente para diante, como se habitasse Lisboa, desafogado de mexericos e de malignos olhinhos a cocar. Era Gonšalo Mendes Ramires, da casa de Ramires! Mil annos de nome e de solar! Dominava bem acima de Oliveira, de todas as suas Louzadas. E nŃo sˇ pelo nome, louvado Deus, mas pelo espirito... O AndrÚ era seu amigo, entrava em casa de sua irmŃ--e Oliveira que estoirasse! E nem consentiu que a suja carta das Louzadas desmanchasse a quieta manhŃ de trabalho para que se preparßra desde o almošo, relendo trechos do Poemeto do Tio Duarte, folheando artigos do _Panorama_ sobre as guerras de muralhas no seculo XII. Com um esforšo d'attenšŃo erudita abancou, mergulhou a penna no tinteiro de latŃo que servira a trez geraš§es de Ramires. E emquanto repassava as tiras trabalhadas, nunca o Castello de Santa Ireneia lhe parecera tŃo heroico, de tŃo soberana estatura, sobre tamanha collina d'Historia, sobranceando o Reino, que em torno d'elle se alargava, se cobria de villas e messes, pelo esforšo dos seus castell§es! Temerosa, com effeito, se erguia a antiga Honra de Santa Ireneia, n'essa Affonsina manhŃ d'Agosto e rijo sol, em que o pendŃo do Bastardo surgira, entre fulgidos d'armas, para alÚm dos arvoredos da Ribeira! Jß por todas as ameias se apinhavam os besteiros, espiando, encurvadas as bÚstas. Das torres e adarves subia o fumo grosso do breu, fervendo nas cubas, para despejar sobre os homens de BayŃo que tentassem a escalada. O Adail corria pelas quadrellas, relembrando as trašas de defeza, revistando os feixes de virot§es, os pedregulhos d'arremesso. E no immenso terreiro, por entre os alpendres colmados, surdiam velhos solarengos, servos do forno, servos da abegoaria, que se benziam com terror, puchavam pelo saiŃo d'algum apressado homem de rolda, para saberem da hoste que avanšava. No emtanto a cavalgada passßra a Ribeira sobre a rude ponte de pau--jß, por entre os alamos, serenamente se acercava do Cruzeiro de granito, outr'ora erguido nos confins da Honra por Gonšalo Ramires, o _Cortador_. E, no socego da manhŃ abrazada, mais fundamente resoaram as buzinas do Bastardo, e o seu toque lento e triste ß mourisca... Mas quando Gonšalo, enlevado no trabalho, tentava reproduzir, com termos bem sonoros, avidamente rebuscados no _Diccionario de Synonimos_, o toar arrastado das buzinas de BayŃo--sentiu realmente, do lado da Torre, um gemer de sons graves que crescia atravez dos limoeiros. Deteve a penna--e eis que o _Fado dos Ramires_ s'eleva offertadamente da horta, em serenada, para a varanda florida de madresilva: Ora, quem te vŕ solitaria, Torre de Santa Ireneia... O Videirinha!--Correu alvorošadamente ß janella. Um chapeu c˘co tremulou entre os ramos, um brado estrugio, acclamador: --Viva o deputado por Villa-Clara! Viva o illustre deputado Gonšalo Ramires! No violŃo rompera triumphalmente o Hymno da Carta. Videirinha, alšado na biqueira das botas gaspeadas de verniz, gritava--źViva a illustre casa de Ramires!╗ E por baixo do chapeu c˘co, sacudido com delirio, JoŃo Gouveia, sem poupar a garganta, urrava--źViva o illustre deputado por Villa-Clara! Viva!╗ Magestosamente, Gonšalo, alagado de riso, estendeu da varanda o brašo eloquente: --Obrigado, meus queridos concidadŃos! Obrigado!... A honra que me fazeis, vindo assim, n'esse formoso grupo, o chefe glorioso da AdministrašŃo, o inspirado Pharmaceutico, o... Mas reparou... E o Titˇ? --O Titˇ nŃo veio?... Oh JoŃo Gouveia, vocŕ nŃo avisou o Titˇ? Repondo sobre a orelha o chapeu c˘co, o Administrador, que arvorßra uma gravata de setim escarlate, declarou o Titˇ źum animal╗: --Estava combinado virmos todos trez. AtÚ elle devia trazer uma duzia de foguetes, para estalar aqui com o Hymno... A reuniŃo era ao pÚ da Ponte... Mas o animal nŃo appareceu. Em todo o caso ficou avisado, avisadissimo... E se nŃo vier, Ú traidor. --Bem, subam vocŕs! gritou Gonšalo. Eu n'um instante me visto. E, para agušar o appetite, proponho um vermouth, depois uma volta pela quinta atÚ ao pinhal!... Immediatamente Videirinha, tŕso, empinando o violŃo, metteu pela rua larga da horta, recoberta de parreira; e atraz JoŃo Gouveia atirava os passos em cadencia nobre, alšando o guarda-sol como um pendŃo. Quando Gonšalo entrou no quarto, berrando pelo Bento e por agoa quente--o _Fado dos Ramires_ soava, em trinados heroicos, atravez do feijoal, por sob a janella aberta onde seccava o lenšol do banho. E eram as quadras preferidas do Fidalgo, as quadras em que o grande av˘ Ruy Ramires, sulcando os mares de Mascate n'uma urca, encontra trez fortes naus inglezas, e, do alto do seu castello de pr˘a, vestido de gran-vermelha, com a mŃo no cinto d'anta tauxeado d'ouro e pedras, soberbamente as intima a que se rendam... Todo alegre, e a mŃo no cinto. Junto da Signa Real, Gritando ßs naus--źAmainae Por El-Rei de Portugal!...╗ Gonšalo abotoava ß pressa os suspensorios, retomßra o canto glorificador--_Todo alegre, a mŃo no cinto_... _Junto da Signa Real_...--E, atravez do esforšo esganišado, pensava que com tal linha d'avˇs, bem podia desprezar Oliveira e as suas Louzadas horrendas. Mas o trovŃo lento de Titˇ retumbou no corredor: --EntŃo esse deputado de Villa-Clara?... Jß estß a vestir a farda? Gonšalo correu ß porta do quarto, radiante: --Entra, Titˇ! Os deputados jß nŃo usam farda, homem! Mas se a tivesse, c'os diabos, ia hoje farda, e espadim e chapeu armado, para honrar hospedes tŃo illustres! O outro avanšßra vagarosamente, com as mŃos nas algibeiras da rabona de velludo c˘r d'azeitona, o vasto chapeu braguez atirado para a nuca, desafogando a honesta face barbuda, vermelha de saude e sol: --Eu, por farda, queria dizer librÚ... LibrÚ de lacaio. --Ora essa!? E o outro mais retumbante: --Pois o que vaes tu ser, homem, senŃo um sujeito ßs ordens do S. Fulgencio, _do horrendo careca_? NŃo lhe serves o chß, quando elle te mandar; mas, quando elle te mandar votar, votas! Alli, direitinho, ßs ordens! źOh Ramires, vote lß!╗ E Ramires, zßs, vota... ╔ de escudeiro, homem, Ú de escudeiro de librÚ... Gonšalo sacudiu os hombros, impaciente: --Tu Ús uma creatura das selvas, lacustre, quasi prehistorica... NŃo entendes nada das realidades sociaes!... Na sociedade nŃo ha principios absolutos!... Mas o Titˇ, imperturbavel: --E esse Cavalleiro? Tambem jß Ú rapaz de talento? Tambem jß governa bem o Districto? EntŃo Gonšalo protestou, picado, com uma roseta forte na face. E quando negßra elle ao AndrÚ talento ou geito de governar? Nunca! Sˇ rira, gracejando, da sua pompa, da bigodeira lustrosa... E de resto, o servišo do Paiz exigia que por vezes se alliassem homens que nem partilhavam os mesmos gostos, nem procuravam os mesmos interesses! --E emfim o Snr. Antonio Villalobos vem hoje um moralista muito terrivel, um CatŃo com quem se nŃo pode jantar!... Ora foi sempre o costume dos Philosophos muito rispidos fugir da sala do banquete onde triumpha o devasso, e protestar comendo na cosinha! Titˇ, serenamente, virou as costas magestosas. --Onde vaes, ˇ Titˇ? --Para a cosinha! E, como Gonšalo ria, Titˇ, junto da porta, girando como uma torre que gira, encarou o seu amigo: --SÚrio, sÚrio, Gonšalo! EleišŃo, reconciliašŃo, submissŃo, e tu em Lisboa ßs cortezias ao S. Fulgencio, e em Oliveira de brašo dado com o AndrÚ, tudo isso me parece que destoa... Mas emfim se a Rosa hoje se apurou, nŃo alludamos mais a cousas tristes! E Gonšalo bracejava, de novo protestava--quando o violŃo resoou no corredor, com as patadas bem marchadas do Gouveia, e o _Fado_ recomešou, mais meigo, mais glorificador: --Velha casa de Ramires, Honra e flor de Portugal! VI A casa do Cavalleiro em Corinde era uma edificašŃo dos fins do seculo XVIII, sem elegancia e sem arte, pintada d'amarello, lisa e vasta, com quatorze janellas de frente, quasi ao meio d'uma quinta chŃ, toda de terras lavradas. Mas uma avenida de castanheiros conduzia, com alinhada nobreza, ao pateo da frente, ornado por dois tanques de marmore. Os jardins conservavam a abundancia esplendida de rosas que os tornßra famosos--e lhes merecera em tempos do av˘ de AndrÚ, o Desembargador Martinho, uma visita da Snr.^a D. Maria II. E dentro todas as salas reluziam d'asseio e ordem, pelos cuidados da velha governanta, uma parenta pobre do Cavalleiro, a Snr.^a D. Jesuina Rollim. Quando Gonšalo, que viera da Torre na egoa, atravessou a ante-sala, ainda reconheceu um dos paineis da parede, fumarento combate de gali§es, que elle uma tarde rasgßra jogando o espadŃo com AndrÚ. Sob esse painel, ß borda do canapÚ de palhinha, esperava melancolicamente um amanuense do Governo Civil, com a sua pasta vermelha sobre os joelhos. E d'uma porta remota, ao fundo do corredor, AndrÚ, avisado pelo creado, o fiel Matheus, gritou alegremente: --Oh Gonšalo, entra para cß, para o quarto! Sahi da tina... Ainda estou em ceroulas! E em ceroulas o abrašou, n'um generoso abrašo de parabens. Depois, em quanto se vestia, por entre as cadeiras atravancadas com o recheio das malas--gravatas, peugas de sŕda, garrafas de perfumes--conversaram do calor, da jornada enfadonha, de Lisboa despovoada... --Um horror! exclamava o Cavalleiro aquecendo um ferro de frisar ß lampada d'alcool. Todas as ruas da Baixa em obras, cobertas de cališa, de poeirada. O Central enfestado de mosquitos. Muito mulato. Uma Tunis, Lisboa!... Mas emfim, lß combatemos bravamente o bom combate! Gonšalo sorria, do canto do divan onde se accommodßra, entre uma pilha de camisas de c˘r e outra de ceroulas com monogramma flammante: --E entŃo, AndrÚsinho, tudo arranjado, hein? O Cavalleiro, deante do toucador, frisava com enlevado esmero as pontas grossas do bigode. E sˇ depois de o ensopar em brilhantina, d'acamar as ondas da cabelleira rebelde, de se mirar, de se requebrar, assegurou a Gonšalo, jß inquieto, que a eleišŃo ficßra solida... --Mas imagina tu! Quando appareci em Lisboa, no Ministerio do Reino, encontrei o circulo promettido ao Pitta, ao Theotonio Pitta, o grande homem da _Verdade_... O Fidalgo pulou, despenhando a ruma de camisas: --E entŃo?... E entŃo elle mostrßra muito asperamente ao JosÚ Ernesto a inconveniencia de disp˘r do Circulo como d'um charuto, sem o consultar, a elle, Governador Civil--e dono do circulo... E como o JosÚ Ernesto se arrebitava, alludia ß conveniencia superior do Governo, elle logo, estendendo o dedo firme:--źPois ZÚsinho, fl˘r, ou trago o Ramires por Villa-Clara, ou me demitto, e arde Troia!...╗ Espantos, escarceus, berreiros--mas o JosÚ Ernesto cedŕra, e tudo findou jantando ambos em AlgÚs com o tio Reis Gomes, onde ß noite, ao źbluff╗, as senhoras lhe arrancaram quatorze mil reis. --Em resumo, Gonšalinho, precisamos conservar os olhos attentos. O JosÚ Ernesto Ú rapaz leal, meu velho amigo. E depois conhece o meu genio... Mas ha os compromissos, as press§es... E agora a novidade pittoresca. Sabes quem se prop§e contra ti, pelos Regeneradores?... Adivinha... O Julinho! --Que Julinho?... O Julio das photographias? --O Julio das photographias. --Diabo! O Cavalleiro encolheu os hombros, com piedade: --Arranja dez votos ß porta da quinta, tira o retrato a todos os taverneiros do circulo em mangas de camisa, e continua a ser o Julinho... NŃo! sˇ Lisboa me inquieta, a canalha politica de Lisboa! Gonšalo torcia o bigode, desconsolado: --Imaginei tudo mais solido, mais inabalavel... Assim com todas essas intrigas, ainda surde trapalhada... Ainda lß nŃo vou! O Cavalleiro, ao espelho, esticava o fraque--que experimentßra abotoado, depois repuxadamente aberto sobre o collete de fustŃo c˘r de azeitona onde, no trespasse largo, tufava a gravata de sedinha clara, prendida por uma saphira. Por fim, encharcando o lenšo com essencia de fŕno: --Nˇs estamos bem alliados, bem consagrados, nŃo Ú verdade? EntŃo, meu caro Gonšalo, socega, e almocemos regaladamente!... Creio que este fraque do nosso Amieiro assenta com certa graša, hein? --Magnifico! affirmou Gonšalo. --Bem. EntŃo agora descemos ao jardim, para tu reveres os velhos poisos e te florires com uma rosa de Corinde. E logo no corredor, ornado de jarr§es da India, de arcas de charŃo, enlašando o brašo de Gonšalo, do seu recuperado Gonšalo: --Pois, meu filho, aqui pisamos ambos de novo os nobres soalhos de Corinde, como ha cinco annos... E nada mudou, nem um creado, nem uma cortina! Agora, um d'estes dias, preciso visitar a Torre. Gonšalo accudiu ingenuamente: --Oh! a Torre estß muito mudada... Muito mudada! E um embarašado silencio pesou--como se entre elles surgisse a imagem entristecida da antiga quinta, no tempo dos amores e das esperanšas, quando AndrÚ e Gracinha procuravam as ultimas violetas d'Abril, sob o sorriso tutelar de Miss Rhodes, rente aos humidos muros da MŃe d'Agoa. Ainda em silencio desceram a escada de caracol--por onde ambos outr'ora se despenhavam cavalgando o corrimŃo. E em baixo, n'uma sala abobadada, rodeada de bancos de madeira com as armas dos Cavalleiros nas espaldas, AndrÚ quedou deante da porta envidrašada do jardim, ondeou um gesto desconsolado e languido: --Eu tambem, agora, pouco apparešo em Corinde. E, comprehendes bem que nŃo me reteem em Oliveira os cuidados da AdministrašŃo... Mas este casarŃo arrefeceu, alargou, desde a morte da mamŃ. Ando aqui como perdido. E acredita, quando cß me demoro, sŃo uns passeios tristonhos por esses jardins, pela Rua Grande... Ainda te lembras da Rua Grande?... Vou envelhecendo muito solitariamente, meu Gonšalo! Gonšalo murmurou, por concordancia, sympathia renovada: --Eu tambem m'aborrešo na Torre... --Mas tens outro genio!... E eu realmente sou um elegiaco. Correu, com um esforšo, o fecho perro da porta envidrašada. E limpando os dedos ao lenšo perfumado: --Eu creio que Corinde, agora, sˇ me encantava com grandes cerros escalvados, grandes rochedos agrestes... ┴s vezes, cß dentro d'alma, necessito o ermo de S. Bruno... Gonšalo sorria d'aquelle appetite ascetico, murmurado com preciosidade, atravez da bigodeira torcida a ferro, resplandecente de brilhantina. E no terrašo, junto ß balaustrada de pedra enramada d'hera, galhofou, louvando o areado alinho, o relusente višo do jardim: --Com effeito, para um discipulo de S. Bruno, que escandalo, todo este asseio! Mas para um peccador como eu, que delicia!... O jardim da Torre anda um chavascal. --A prima Jesuina gosta de fl˘res. Tu nŃo conheces a prima Jesuina? Uma velha parenta da mamŃ, que governa agora a casa. Coitada! e com um escrupulo, com um amor... Se nŃo fosse a santa creatura, os porcos fossavam nos canteiros... Meu filho, onde nŃo ha saia, nŃo ha ordem! Desceram a escadaria redonda, por entre os vasos de louša azul que trasbordavam de geranios, de secias, de canas da India. Gonšalo recordou a vespera de S. JoŃo em que rolßra por aquelles degraus, n'um trambulhŃo tremendo, com os brašos carregados de foguetes. E lentamente, atravez do jardim, evocavam memorias da camaradagem antiga. Lß se conservava o trapezio, dos tempos em que ambos cultivavam a religiŃo heroica da forša, da gymnastica, do banho frio... N'aquelle banco, sob a magnolia, lera uma tarde AndrÚ o primeiro canto do seu Poema, o _Fronteiro d'Arzilla_. E o alvo? O alvo onde se exerciam ß pistola, para os futuros duellos, inevitaveis na campanha que ambos meditavam contra o velho Syndicato Constitucional?...--Oh! toda essa parte do muro, que pegava com o lavadoiro, f˘ra derrubada depois da morte da mamŃ, para alargar a estufa... --De resto o alvo era inutil! accrescentou o Cavalleiro. Eu logo por esse tempo entrei tambem no Syndicato... E agora entras tu, pela porta que eu te abro! EntŃo Gonšalo, que colhŕra e esmagava entre os dedos, para lhe sorver o perfume, folhas de lucia-lima--acudiu com uma franqueza, que aquelle desenterrar de recordaš§es tornava mais penetrante e sentida: --E eu desejo entrar, e ardentemente, bem sabes. Mas tu afianšas a eleišŃo, com seguranša? NŃo surgirß difficuldade, AndrÚsinho?... Esse Pitta Ú um habil! O Cavalleiro murmurou apenas, mergulhando os dedos nas cavas do collete: --Da habilidade dos Pittas se ri a forša dos Cavalleiros... Por trez degraus de tijolo baixaram ao outro jardim, desafogado de arvoredo e sombra, onde desabrochava desde Maio, com explendor, o tŃo celebrado bosque de roseiras, orgulho da quinta de Corinde, que deleitßra uma Rainha. Aquelle facil desdem pelo Pitta confirmava a seguranša da EleišŃo. Gonšalo, caminhando respeitosamente como n'um Museu, regou de louvores deslumbrados as rosas do Cavalleiro: --Uma belleza, AndrÚ, uma maravilha! Tens aqui rosas sublimes... Aquellas repolhudas, alÚm, que luxo! E estas amarellas? deliciosas!... Olha este encanto! o ruborsinho a surdir, a raiar, do fundo das petalas brancas... Oh, que escarlate! Oh, que divino escarlate! O Cavalleiro cruzßra os brašos, com gracejadora melancolia: --Pois vŕ tu! Tal Ú a minha solidŃo social e sentimental que, com todas estas rosas abertas, nŃo tenho a quem mandar um ramo!... Estou reduzido a florir as Louzadas! Um escarlate, mais vivo do que as rosas que gabava, cobriu as faces do Fidalgo: --As Louzadas! Oh que desavergonhadas! AndrÚ atirou ao seu amigo os lustrosos olhos, n'um inquieto reparo de curiosidade: --Por quŕ?... Desavergonhadas, por quŕ? --Por quŕ? Por que o sŃo! Pela sua natureza, e pela vontade de Deus!... SŃo desavergonhadas como estas rosas sŃo vermelhas. E o Cavalleiro, tranquillisado: --Ah, genericamente... Com effeito tŕm immensa pešonha. Por isso eu as cubro de rosas. E em Oliveira, todas as semanas, meu filho, tomo com ellas um chß respeitoso! --Pois nŃo as amansas, rosnou o Fidalgo. Mas o Matheus apparecŕra nos degraus de tijolo com o guardanapo na mŃo, a calva rebrilhando ao sol. Era o almošo. O Cavalleiro colheu para Gonšalo uma źrosa triumphal╗--e para si um źbotŃo innocente...╗ E, enflorados, subiam para o terrašo entre o brilho e o perfume de outras roseiras--quando o Cavalleiro parou com uma ideia: --A que horas vaes tu para Oliveira, Gonšalinho? O Fidalgo hesitou. Para Oliveira?... NŃo tencionava apparecer em Oliveira, toda essa semana... --Por quŕ? ╔ urgente que vß a Oliveira? --Pois certamente, filho! ┴manhŃ mesmo precisamos conversar com o Barr˘lo, combinarmos, por causa dos votos da Murtosa!... Meu querido Gonšalo, nŃo podemos adormecer. NŃo Ú pelo Julio, Ú pelo Pitta! --Bem! bem! acudio logo Gonšalo, assustado. Parto para Oliveira. --Por que entŃo, continuava AndrÚ, vamos ambos logo, a cavallo. ╔ um bonito passeio pelos Freixos, sempre com sombra... Tens talvez de mandar ß Torre, por causa de roupa... NŃo! Gonšalo, para evitar a importunidade de malas, conservava nos Cunhaes um bragal inteiro, desde a chinella atÚ ß casaca. E entrava em Oliveira como o Philosopho Bias em Athenas--com uma simples bengala e paciencia infinita... --Delicioso! declarou AndrÚ. Fazemos entŃo logo a nossa entrada official em Oliveira. ╔ o comešo da campanha. O Fidalgo torcia o bigode, consternado, pensando nos risinhos perversos das Louzadas, de toda a cidade, perante uma entrada tŃo apparatosamente fraternal. E, quando o Cavalleiro recommendou ao Matheus que mandasse apromptar o _Rossilho_ e a egoa do Fidalgo para as quatro horas e meia, Gonšalo exagerou o seu receio do calor, da poeira. Antes partissem ßs sete, pela fresca! (Assim esperava penetrar em Oliveira desapercebidamente, esbatido no crepusculo). Mas AndrÚ protestou: --NŃo, Ú uma secca, chegamos ß noite. Precisamos entrar com solemnidade, ß hora da musica no Terreiro... ┴s cinco, hein? E Gonšalo, vergando os hombros sob a Fatalidade: --Pois sim, ßs cinco. Na sala de jantar, esteirada, com denegridos paineis de fl˘res e fructas sobre um papel vermelho imitando damasco, AndrÚ occupou a veneranda cadeira de brašos do av˘ Martinho. O brilho das pratas, a frescura das rosas n'uma floreira de Saxe, revelavam os desvelos da prima Jesuina--que, com d˘r d'entranhas n'essa manhŃ, nŃo se vestira, almošava no quarto... Gonšalo louvou aquella elegante ordem, tŃo rara n'uma casa de solteirŃo, lamentando a falta de uma prima Jesuina na Torre... E AndrÚ sorria deliciadamente, desdobrando o guardanapo, com a esperanša que Gonšalo contasse aos Barr˘los o confortavel luxo de Corinde. Depois, picando com o garfo uma azeitona: --Pois Ú verdade, meu querido Gonšalo, lß estive n'essa grande Capital, depois um dia em Cintra... O Matheus entre-abriu a porta para recordar a S. Ex.^a o amanuense do Governo Civil, que esperava. --Pois que espere! gritou S. Ex.^a. Gonšalo lembrou que talvez o digno homem se impacientasse, com fome... --Pois que almoce! gritou S. Ex.^a. Aquelle secco desprezo de AndrÚ pelo pobre empregado, esquecido no banco d'entrada, com a sua pasta sobre os joelhos--constrangia o Fidalgo. E espetando tambem uma azeitona: --Dizias entŃo, Cintra... --Semsabor, resumiu AndrÚ. Poeirada horrenda, femeašo mediocre... E jß me esquecia. Sabes quem lß encontrei, na estrada de Collares? O Castanheiro, o nosso Castanheiro, o dos _Annaes_, de chapÚo alto. Ergueu logo os brašos ao cÚo, desolado:--źE entŃo esse Gonšalo Mendes Ramires nŃo me manda o romance?╗ Parece que o primeiro numero da Revista sae em Dezembro, e elle precisa o original em comešos d'Outubro... Lß me supplicou que te saccudisse, que te recordasse a gloria dos Ramires. E tu devias acabar a Novella... AtÚ convem que, antes d'entrares na Camara, appareša um trabalho teu, um trabalho serio, d'erudišŃo forte, bem portuguez... --Pois convem! concordou vivamente Gonšalo. E ß Novella sˇ falta o Capitulo quarto. Mas esse justamente demanda mais preparašŃo, mais pesquizas... Para o acabar precisava o espirito bem socegado, a certeza d'esta infernal eleišŃo... NŃo Ú o animal do Julio que me inquieta. Mas a canalha intrigante de Lisboa... Que te parece? Cavalleiro riu, estendendo de novo o garfo para as azeitonas: --Que me parece, Gonšalinho? Que estßs como uma creanša pequena, afflicta, com medo que te nŃo chegue o prato de arroz doce. Socega, menino, apanhas o teu arroz doce!... Mas com effeito, encontrei o JosÚ Ernesto muito teimoso. Jß existiam compromissos antigos com o Pitta. _A Verdade_ tem sido furiosamente ministerial... E esse Pitta, agora quando souber que lhe tapei Villa-Clara, arde em furor contra mim. O que me Ú soberanamente indifferente; colerasinhas ou piadinhas do Pitta nŃo me tiram o appetite... Mas o JosÚ Ernesto admira o Pitta, necessita do Pitta, estß empenhado em pagar ao Pitta com um circulo... Ainda no ultimo dia me disse na Secretaria, atÚ lhe achei graša:--źEu vejo que os deputados por Villa-Clara morrem; ora se, por esse bom costume, o teu Ramires morrer em breve, entŃo entra o Pitta.╗ Gonšalo recuou a cadeira: --Se eu morrer!... Que animal! --Oh, se morreres para o Circulo! atalhou o Cavalleiro rindo. Por exemplo, se nos zangassemos, se ßmanhŃ entre nˇs surgisse uma dissidencia... Emfim o impossivel! O Matheus entrava com a terrina de caldo de gallinha, que rescendia. --A elle! exclamou AndrÚ. E nŃo se falle mais de Circulos, nem de Pittas, nem de Julios, nem da negregada Politica!... Conta antes o enredo da tua Novella... Historica, hein?... Meia-idade? D. JoŃo V?... Eu, se tentasse agora um Romance, escolhia uma epocha deliciosa, Portugal sob os Philippes... * * * * * Os tres quartos, depois das seis, batiam no relogio sempre adeantado da Egreja de S. ChristovŃo, em Oliveira, quando AndrÚ Cavalleiro e Gonšalo, descendo da rua Velha, penetraram no Terreiro da Louša (agora _Largo do Conselheiro Costa Barroso_). Todos os Domingos, tocando n'um coreto que o Conselheiro, quando Presidente da Camara, mandßra construir sobre o velho Pelourinho demolido, a charanga do Regimento ou a philarmonica _Lealdade_ tornavam aquelle Largo o centro mais sociavel da quieta e caseira cidade. N'essa tarde, porÚm, como comešßra no Convento de Santa Brigida o bazar patrocinado pelo Bispo, as senhoras rareavam nos bancos de pedra e nas cadeiras do Asylo espalhadas por sob as acacias. As Louzadas faltavam no seu pouso reservado, superiormente escolhido para espiarem todo o Terreiro, as casas que o cerram do lado de S. ChristovŃo e do lado das Trinas, a rua Velha e a rua das Vellas, a barraca da limonada, e atÚ outro retiro pudicamente disfaršado por uma cannišada de heras. E o unico rancho conhecido, D. Maria Mendonša, a Baroneza das Marges, as duas Alboins, conversavam com as costas para o Terreiro, junto da grade de ferro que o limita sobre a antiga muralha--d'onde se dominam campos, a cŕrca do Seminario Novo, todo o pinhal da Estevinha e as voltas lustrosas da ribeira de Crŕde. Mas entre os cavalheiros que trilhavam vagarosamente a alŕa do Largo denominada o źPicadeiro╗, gosando a _Marcha do Propheta_, o espanto reviveu (apezar de todos conhecerem a reconciliašŃo famosa do Governo Civil) quando os dous amigos appareceram, ambos de chapÚos de palha, ambos de polainas altas, ao passo solemne das duas egoas--a de Gonšalo airosa e baia de cauda curta ß ingleza, a do Cavalleiro pesada e preta, de pescošo arqueado, a cauda farta rojando as lages. Mello Alboim, o BarŃo das Marges, o Dr. Delegado, pararam n'uma fila pasmada, a que se juntou um dos Villa-Velhas, depois o morgado Pestana, depois o gordo major Ribas com a farda desabotoada, rebolando e galhofando sobre źaquella amigašŃo...╗ O tabelliŃo Guedes, o Guedes _p˘pa_, derrubou a cadeira no alvorošo com que se ergueu, indignado mas respeitoso, descobrindo a calva n'uma cortesia immensa em que o chapeu branco lhe tremia. E o velho Cerqueira, o advogado, que sahia do retiro encannišado d'hera e se abotoava, embasbacou, com os oculos na ponta do nariz alšado, os dedos esquecidos nos bot§es das calšas. No emtanto os dous amigos, gravemente, seguiam pela correnteza de casas que o palacete de D. Arminda Villegas domina, com o pesado brazŃo dos Villegas na cimalha, as suas dez nobres varandas de ferro opulentadas por cortinas de damasco amarello. Na varanda d'esquina, o Barr˘lo e JosÚ Mendonša fumavam, sentados em mochos de palhinha. E ao sentir as patas lentas das egoas, ao avistar tŃo inesperadamente o cunhado--o bom Barr˘lo quasi se despenhou da varanda: --Oh Gonšalo! Oh Gonšalo!... Vaes lß para casa? E nem esperou uma certeza, berrou de novo, bracejando: --Nˇs jß vamos! Jantßmos cß esta tarde... A Gracinha estß lß em cima, com a tia Arminda. Vamos jß tambem! ╔ um momento! O Cavalleiro acenou risonhamente ao capitŃo Mendonša. Jß Barr˘lo mergulhßra com enthusiasmo para dentro dos damascos amarellos. E os dois amigos, deixando pelo Terreiro aquelle sulco de espanto, penetraram na rua das Vellas onde um Policia se perfilou com a mŃo no bonet--o que foi agradavel ao Fidalgo da Torre. O Cavalleiro acompanhou Gonšalo ao Largo d'El-Rei. Deante do Palacete um homem de boina vermelha remoÝa no seu realejo o c˘ro nupcial da _Lucia_, espiando as janellas desertas. O Joaquim da Porta correu do pateo a segurar a egoa do Fidalgo. Com um mudo sorriso o tocador estendera a boina. E depois de lhe atirar um punhado de cobre--Gonšalo hesitou, murmurou emfim, com embarašo e corando: --NŃo queres entrar e descanšar, AndrÚ?... --NŃo, obrigado... EntŃo ßmanhŃ ßs duas, no Governo Civil, com o Barr˘lo, para combinarmos sobre os votos da Murtosa... Adeus, minha fl˘r! DÚmos um bello passeio e espantamos os povos! E S. Ex.^a, envolvendo o Palacete n'um demorado olhar, desceu pela rua das Tecedeiras. No seu quarto (sempre preparado, com a cama feita) Gonšalo acabava de se lavar, de se escovar, quando Barr˘lo se precipitou pelo corredor, esbofado, soffrego--e atraz d'elle Gracinha, offegante tambem, desapertando nervosamente as fitas escarlates do chapeu. Desde a tarde em que Barr˘lo źpresenceßra com os olhos bem acordados!╗ a palestra de Gonšalo e de AndrÚ na varanda do Governo Civil--fervera n'elle e em Gracinha uma impaciencia desesperada por penetrar os motivos, a encoberta historia d'aquella reconciliašŃo surprehendente. Depois a fuga de Gonšalo na caleche para a Torre, sem parar nos Cunhaes; a repentina jornada do Cavalleiro a Lisboa; o silencio que sobre aquelle caso se abatera mais pesado que uma tampa de ferro--quasi os aterrou. Gracinha ß noite, no Oratorio, murmurava atravez das resas distrahidas:--źOh, minha rica Nossa Senhora, que serß?╗--Barr˘lo nŃo ousßra correr ß Torre; mas atÚ sonhava com a varanda do Governo Civil, que lhe apparecia enorme, crescendo, atravancando Oliveira, rošando jß as janellas dos Cunhaes d'onde elle a repellia com o cabo d'uma vassoura... E eis agora Gonšalo e AndrÚ que entram na cidade a cavallo, muito serenamente, ambos de chapeus de palha, como companheiros constantes recolhendo d'um passeio! Logo ß porta do quarto, Barr˘lo atirou os brašos, rompeu aos brados: --EntŃo que tem sido tudo isto?... NŃo se falla n'outra coisa!... Tu com o AndrÚ! Gracinha, arfando, tŃo vermelha como as fitas do chapeu, sˇ balbuciava: --E nem vens, nem escreves... Nˇs com tanto cuidado... E mesmo rente da porta aberta, sem se sentarem, o Fidalgo aclarou o źMysterio╗, com a toalha ainda nas mŃos: --Uma cousa muito inesperada, mas muito natural. O Sanches Lucena morreu, como vocŕs sabem. Ficou vago o circulo de Villa-Clara. ╔ um circulo por onde sˇ pˇde sahir um homem da terra, com propriedade, com influencia. O governo immediatamente me mandou perguntar, pelo telegrapho, se eu me desejava prop˘r... Ora eu, no fundo, estou de bem com os Historicos, sou amigo do JosÚ Ernesto... Estimava entrar na Camara... Acceitei. O Barr˘lo esmagou a coxa com uma palmada triumphal: --EntŃo era certo, caramba! O Fidalgo continuava, enxugando interminavelmente as mŃos: --Acceitei, estß claro, com condiš§es; e muito fortes. Mas acceitei... N'este caso, como vocŕs sabem, convem que o candidato se entenda com o Governador Civil. Eu, ao principio, nŃo queria renovar relaš§es. Instado porÚm, muito instado de Lisboa, e por consideraš§es superiores de Politica, consenti n'esse sacrificio. Nas difficuldades em que se encontra o paiz todos devem fazer sacrificios. Eu fiz esse... O AndrÚ, de resto, foi muito amavel, muito affectuoso. De sorte que estamos outra vez amigos. Amigos politicos: mas muito bem, muito lealmente... Almocei hoje com elle em Corinde, viemos juntos pelos Freixos. Uma tarde linda!... Emfim renasceu a antiga harmonia. E a eleišŃo estß segura. --Venham de lß esses ossos! berrou o Barr˘lo, transportado. Gracinha terminßra por se sentar ß borda do leito, com o chapeu no regašo, enlevada para o irmŃo, n'um silencioso enternecimento em que os seus doces olhos se humedeciam e riam. O Fidalgo, que se desprendera do abrašo do Barr˘lo, dobrava a toalha com um vagar distrahido: --A eleišŃo estß segura, mas precisamos trabalhar. Tu, Barr˘lo, tens de conversar tambem com o Cavalleiro. Jß combinei. ┴manhŃ no Governo Civil, ßs duas horas. ╔ necessario que vocŕs se entendam por causa dos votos da Murtosa... --Prompto, menino! o que vocŕs quizerem! Votos, dinheiro... E Gonšalo, borrifando vagamente o jaquetŃo com agua de Colonia que pingava no soalho: --Desde o momento em que eu me reconciliei com o AndrÚ, tudo acabou. Tu, Barr˘lo, immediatamente te reconcilias tambem... Barr˘lo quasi pulou, no seu deslumbramento: --Pois estß claro! E ainda bem, que eu gosto immensamente do Cavalleiro! AtÚ sempre teimava com Gracinha... źOh senhores, esta tolice, por causa da Politica!...╗ --Bem! concluiu o Fidalgo. A Politica nos separou, a Politica nos reune... ╔ o que se chama a inconstancia dos Tempos e dos Imperios. E agarrou Gracinha pelos hombros, com um beijo brincalhŃo, estalado em cada face: --A tia Arminda? Boa, da escaldadella? Jß voltou ßs fašanhas de _Leandro o Bello_? Gracinha resplandecia, com o lento sorriso que se nŃo desfizera, a envolvia toda em claridade e došura: --A tia Arminda estß melhor, jß anda. Perguntou por ti... Mas, oh Gonšalo, tu de certo queres jantar! --NŃo, almocei tremendamente em Corinde... Vocŕs, como jantaram ß hora antiga da tia Arminda, ceiam, hein? EntŃo logo ceio... Agora apenas uma chavena de chß, muito forte! Gracinha correu, no alvorošo de servir o heroe querido. E pela escada, descendo com Barr˘lo que o contemplava, o Fidalgo da Torre lamentou os seus sacrificios: --╔ verdade, menino, Ú uma massada... Mas que diabo! todos devemos concorrer para tirar o paiz do atoleiro! Barr˘lo, maravilhado, murmurava: --E sem dizeres nada... Assim ß capucha! Assim ß capucha!... --E agora outra cousa, Barr˘lo. ┴manhŃ, no Governo Civil, deves convidar o AndrÚ a jantar... --Com certeza! gritou o Barr˘lo. Jantar d'estrondo? ---NŃo, homem! Jantar muito quieto, muito intimo. Unicamente o AndrÚ e o JoŃo Gouveia. Telegraphas ao JoŃo Gouveia. Tambem pˇdes convidar os Mendonšas... Mas jantar muito discreto, sˇ para conversarmos, para firmar a reconciliašŃo d'um modo mais sociavel, mais elegante. Ao outro dia, no Governo Civil, Barr˘lo e o Cavalleiro apertaram as mŃos com tanta singelleza, como se ambos, ainda na vespera, andassem jogando o bilhar e caturrando no club da rua das Pŕgas. De resto conversaram summariamente sobre a EleišŃo. Apenas o Cavalleiro alludira com indolencia aos votos de Murtosa--o bom Barr˘lo quasi se engasgou, na ancia de os offerecer: --E o que vocŕs quizerem... Votos, dinheiro, o que vocŕs quizerem!... Vocŕs digam! Eu vou para a Murtosa, e Ú comezaina, e pipa de vinho aberta, e a freguezia inteira a votar no meio de foguetorio... O Cavalleiro, rindo, amansou aquelle fervor faustoso: --NŃo, meu caro Barr˘lo, nŃo! Nˇs preparamos uma eleišŃo muito sobria, muito socegada. Villa Clara elege Gonšalo Mendes Ramires deputado, naturalmente, como o seu melhor homem. NŃo ha combate, o Julinho Ú uma sombra. Portanto... O Barr˘lo persistia, radiante, gingando: --PerdŃo, AndrÚ, perdŃo! Lß isso vinhaša, e vivorio, e foguetorio, e festanša magna... Mas Gonšalo, embarašado, ancioso por suster a garrulice do Barr˘lo, as palmadas carinhosas com que elle se atufava na intimidade do Cavalleiro, apontou para a mesa de S. Ex.^a: --Tu tens que fazer, AndrÚ. Vejo ahi uma papelada pavorosa... NŃo roubemos mais tempo ao chefe illustre do Districto! Ao trabalho! Trabalhar, meu irmŃo, que o trabalho ╔ AndrÚ, Ú virtude, Ú valor!... Agarrßra o chapeu, acenando ao cunhado. EntŃo Barr˘lo, com as bochechas a estalar de gosto, balbuciou o convite que firmaria a reconciliašŃo d'um modo sociavel e elegante: --Cavalleiro, para conversarmos melhor, se vocŕ nos quizer dar o gosto de vir jantar... Quinta feira, ßs seis e meia... Nˇs, quando cß estß o Gonšalo, jantßmos sempre mais tarde. O Cavalleiro, que corßra, agradeceu com discreta ceremonia: --╔ para mim um immenso prazer, uma immensa honra... E ß porta da antesala onde os acompanhßra, segurando o pesado reposteiro de baeta escarlate com as Armas Reaes bordadas--supplicou ao Barr˘lo que pozesse os seus respeitos aos pÚs da snr.^a D. Graša... Barr˘lo, descendo a larga escadaria de pedra, limpava a testa, o pescošo, humedecidos pela emošŃo. E no pßteo desabafou: --Muito sympathico este AndrÚ! Rapaz franco, de quem sempre gostei... Realmente estava morto que acabassem estas historias... E mesmo lß para os Cunhaes, para a companhia, para o cavaco, que bella acquisišŃo! Quinta feira de manhŃ depois do almošo, no terrašo do jardim onde tomavam cafÚ, Gonšalo recommendou ao Barr˘lo que źpara accentuar mais completamente a intimidade simples do jantar nŃo pozesse casaca...╗ --E tu, Gracinha, vestido afogado. Mas vestidinho claro, alegre... Gracinha sorriu, indecisamente, continuando a folhear um _Almanach de Lembranšas_ estendida n'uma cadeira de verga, com um gatinho branco no regašo. Depois do alvorošo e pasmo de Domingo, ella apparentava agora um desinteresse silencioso pela reconciliašŃo que ainda abalava Oliveira, pela EleišŃo, pelo jantar. Mas n'esses dias nŃo socegßra--tŃo impaciente e sensivel que o bom Barr˘lo incessantemente lhe aconselhava o grande remedio da MamŃ contra os nervos, źfl˘res d'alecrim, cosidas em vinho branco.╗ Gonšalo percebia claramente a perturbašŃo em que a lanšava aquella entrada triumphal de AndrÚ, do antigo AndrÚ, na sua casa de casada, nos Cunhaes. E para se tranquillisar evocava (como na estrada do cemiterio em Villa-Clara) a seriedade de Gracinha, o seu rigido e puro pensar, a altivez da sua almasinha heroica. N'essa manhŃ mesmo, todo no fresco e soffrego cuidado da sua EleišŃo, sˇ receava que Gracinha, por embarašo ou cautella, acolhesse seccamente o Cavalleiro, o esfriasse no seu renovado fervor pela casa de Ramires, no seu patrocinato Politico. E insistiu, gracejando: --Ouviste, Gracinha? Um vestido branco. Um vestidinho alegre, que sorria aos hospedes... Ella murmurou, mergulhada no seu _Almanach_: --Sim, realmente, com este calor... Mas Barr˘lo bateu uma palmada na c˘xa. Que pena! que pena nŃo ter em Oliveira, źpara o brinde de reconciliašŃo╗, um famoso vinho do Porto, da garrafeira da MamŃ, preciosissimo, velhissimo, do tempo de D. JoŃo II... --D. JoŃo II? rosnou Gonšalo. Estß estragado! Barr˘lo hesitou: --D. JoŃo II ou D. JoŃo VI... Um d'esses Reis. Emfim um vinho unico, do seculo passado! Sˇ restam ß mamŃ oito ou dez garrafas... E hoje, era dia para uma, hein? O Fidalgo deu um sorvo lento ao cafÚ: --O AndrÚ, antigamente, tambem gostava muito d'ovos queimados... Bruscamente Gracinha fechou o _Almanach_--e, com uma fuga e um silencio que emmudeceram Gonšalo, sacudiu do collo o gato dorminhoco, atravessou o terrašo, desappareceu entre os teixos altos do jardim. Mas ß tarde, quando o Fidalgo occupou o seu logar na mesa oval, junto da prima Maria Mendonša--logo notou, entre duas compoteiras, uma travessa d'ovos queimados. Apesar de jantar tŃo intimo serviam, com a louša da China, os famosos talheres dourados da baixella do tio Melchior. E duas jarras de Saxe transbordavam de cravos brancos e amarellos, c˘res heraldicas dos Ramires. D. Maria, que nŃo encontrßra o querido primo desde os annos de Gracinha, murmurou com um sorriso, uma grave cortezia, n'aquelle cerimonioso silencio em que se desdobravam os guardanapos: --Ainda lhe nŃo dei os parabens, primo Gonšalo... Elle acudiu, mechendo nervosamente nos copos: --Chut! prima, chut! Hoje aqui, jß estß decidido, nŃo se allude sequer a Politica... Estß muito calor para Politica. Ella suspirou de leve, como desfallecida: Ai, o calor... Que horrivel calor! Desde que entrßra nos Cunhaes com aquelle vestido preto que źera o seu pallio rico╗--ainda nŃo cessßra de invejar a frescura do vestido branco de Gracinha... --Que bem que lhe fica! Estß hoje linda! Era um vestido liso de crepon branco, que aclarava, remošava a sua graša quasi virginal. E nunca realmente tanto prendera, assim clara e fina, com os verdes olhos refulgindo como esmeraldas lavadas, uma ondulašŃo mais lustrosa nos pesados cabellos, um macio rubor transparente, todo um fresco brilho de fl˘r regada, de fl˘r revivida, apesar do acanhamento que lhe immobilisava os dedos ao erguer a colhÚr de prata dourada. E ao lado, superiormente robusto e largo, com o peitilho arqueado como uma couraša e cravejado de duas saphiras, uma rosa branca desabrochada na lapella, AndrÚ Cavalleiro, que recusßra a sopa (oh, no verŃo nunca comia sopa!) dominava a mesa, levemente commovido tambem, passando sobre o reluzente bigode um lenšo tŃo perfumado que afogava o perfume dos cravos. Mas foi elle que encadeou a animašŃo com risonhos queixumes sobre o calor--o escandaloso calor d'Oliveira... Ah! que Purgatorio abrasado--depois dos seus dois dias de Paraiso, na frescura deliciosa de Cintra! D. Maria Mendonša adošou os espertos olhos para o Snr. Governador Civil.--E entŃo Cintra? Animada? Muitos ranchos ß tarde, em Setiaes? Encontrßra a Condessa de Chellas--a prima Chellas?... Sim, na Pena, na sua visita ß Rainha, Cavalleiro conversßra durante um momento com a Snr.^a Condessa de Chellas... --Ah! e a Rainha?... --Oh, sempre encantadora... A Snr.^a Condessa de Chellas, essa, um pouco magra. Mas tŃo amavel, tŃo intelligente, tŃo verdadeiramente _grande dame_--nŃo Ú verdade? E, como se inclinßra para Gracinha, com uma došura infinita no simples mover da cabeša--ella, perturbada, mais vermelha, balbuciou que nŃo conhecia a Condessa de Chellas...--D. Maria Mendonša accusou logo a inercia dos primos Barr˘los, sempre encafurnados nos Cunhaes, sem nunca se aventurarem a Lisboa no inverno, para conviver, para conhecer os parentes... --E a culpa Ú do primo JosÚ, que detesta Lisboa... Oh nŃo! Barr˘lo nŃo detestava Lisboa! Se podesse acarretar para Lisboa as suas commodidades, o seu quarto, a sua cocheira, a boa agua do pomar, a rica varanda sobre o jardim--atÚ se regalava! --Mas entalado n'aquelles quartinhos do Braganša... E depois a mß comida, o barulho... A Gracinha em Lisboa nunca dorme... E a massada das manhŃs?... NŃo ha nada que fazer em Lisboa, de manhŃ! O Cavalleiro sorria para o Barr˘lo, como enlevado na sua graša e razŃo. Depois confessou que elle, apesar de habitar tambem (mercŕ do Estado!) um palacete confortavel, e gozar tambem uma agua excellente, a finissima agua do Pošo de S. Domingos, lamentava que os deveres de Politica, a disciplina de Partido o amarrassem a Oliveira. E toda a sua esperanša era a queda do Ministerio, para se libertar, passar tres mezes divinos em Italia... Do outro lado de Gracinha, JoŃo Gouveia (sempre acanhado e mudo deante de senhoras) exclamou, n'um impulso d'amisade, de convicšŃo: --Pois, AndrÚsinho, vae perdendo a esperanša! O S. Fulgencio nŃo arreia! Ainda cß te apanhamos uns tres ou quatro annos! E insistiu, debrušado sobre Gracinha, n'um esforšo d'amabilidade que o esbraseava: --O S. Fulgencio nŃo arreia. Ainda cß temos o nosso AndrÚ mais tres ou quatro annos. AndrÚ protestava, com um requebro, as espessas pestanas quasi cerradas: --Oh meu JoŃo! nŃo me queiras mal, nŃo me queiras mal!... E teimava. Ah, com certeza! ainda que desertasse o seu partido (e que importa em hoste poderosa uma lanša ferrugenta?) esses mezes d'Italia no inverno jß os sonhßra, jß os preparava...--E a Snr.^a D. Graša nŃo permittia que elle a servisse d'um pouco de vinho branco? Barr˘lo estendeu o brašo, com effusŃo: --Oh Cavalleiro! eu tenho empenho em que vocŕ prove esse vinho com cuidado... ╔ da minha propriedade do Corvello... Fašo muito gosto n'elle. Mas prove com attenšŃo! S. Ex.^a provou com devošŃo, como se commungasse. E com uma cortezia compenetrada para Barr˘lo que reluzia de gosto: --Uma delicia! uma verdadeira delicia! --Hein? NŃo Ú verdade? Eu, para mim, prefiro este vinho do Corvello a todos os vinhos francezes, os mais finos... AtÚ alli o nosso amigo Padre Sueiro, que Ú um Santo, o aprecia! Silencioso, esbatido por traz d'uma das altas jarras de cravos, Padre Sueiro corou, sorriu: --Com muita agua, infelizmente, Snr. JosÚ Barr˘lo... O gosto pede, mas o rheumatismo nŃo consente. Pois JosÚ Mendonša, que nŃo temia rheumatismos, atacava sempre bravamente aquelle bemdito Corvello... --Que lhe parece a vocŕ, JoŃo Gouveia? Oh! JoŃo Gouveia jß o conhecia, louvado Deus! E certamente nunca encontrßra em Portugal, como vinho branco, nenhum comparavel pela frescura, pelo aroma, pela seiva... --E cß lhe vou atišando com fervor, Barr˘lo amigo! Esta bella garrafa de crystal vae de vencida! Barr˘lo exultava. O seu desgosto era que Gonšalo nunca honrasse źaquelle nectar.╗--NŃo! Gonšalo nŃo tolerava vinhos brancos... --E entŃo hoje estou com uma d'estas sŕdes que sˇ me satisfaz vinho verde, assim um pouco espumante, e com gelo... Que este de Vidainhos tambem Ú do Barr˘lo. Oh, eu nŃo desprezo os vinhos da familia... Este Vidainhos sinceramente o considero sublime. EntŃo Cavalleiro desejou provar esse sublime vinho verde da quinta de Vidainhos, em Amarante. O escudeiro, a um aceno enthusiasmado do Barr˘lo, apresentou a Sua Ex.^a um copo esguio, especial para aquelle vinho que espumava. Mas o Cavalleiro, acariciando o fresco copo sem o erguer, repisou a idÚa de ferias, de viagens, como accentuando o seu canšasso e fastio d'Oliveira.--E sabia a Snr.^a D. Graša para onde elle seguiria, depois da Italia, n'esse Inverno, se por caridade de Deus o Ministerio cahisse?... Para a Asia Menor. --E era uma viagem para que eu, com certesa, tentava o nosso Gonšalo... TŃo facil, agora, com os caminhos de ferro!... De Veneza a Constantinopla um mero passeio. Depois, de Constantinopla a Smyrna, um dia, dous dias, n'um vapor excellente. E d'ahi n'uma b˘a caravana, por Tripoli, pela antiga Sidonia, penetravamos em GalilÚa... GalilÚa! Hein Gonšalo? Que belleza! Padre Sueiro, suspendendo o garfo, lembrou timidamente--que em GalilÚa o Snr. Gonšalo Ramires pisaria terra que outr'ora, por pouco, pertencera ß sua Casa: --Um dos antepassados de V. Ex.^a, Gutierres Ramires, companheiro de Tancredo na primeira Cruzada, recuzou o ducado de GalilÚa e de AlÚm-JordŃo... --Fez pessimamente! gritou Gonšalo, rindo. Oh, esse av˘ Gutierres andou pessimamente! Por que nŃo existia agora, n'este mundo, disparate mais divertido do que eu Duque de GalilÚa! O Snr. Gonšalo Mendes Ramires, Duque de GalilÚa e d'AlÚm-JordŃo!... Era simplesmente de rebentar! Cavalleiro protestou, com sympathia: --Ora essa! Por que? --NŃo acredite! acudiu, com os olhos coruscantes, D. Maria Mendonša. O primo Gonšalo, com todas estas grašas, no fundo, Ú muitissimo aristocrata... Mas terrivelmente aristocrata! O Fidalgo da Torre pousou o copo de Vidainhos, depois d'um trago saboreado e fundo: --Aristocrata... Estß claro que sou aristocrata. Sentiria com effeito certo desgosto em ter nascido, como uma herva, d'outras hervas vagas. Gˇsto de saber que nasci de meu pae Vicente, que nasceu de seu pae DamiŃo, que nasceu de seu pae Ignacio, e assim sempre atÚ nŃo sei que Rei Suevo... --Recesvinto! informou respeitosamente Padre Sueiro. --Pois atÚ esse Recesvinto. O peor Ú que o sangue de todos esses paes nŃo differe realmente do sangue dos paes do Joaquim da Porta. E que depois do Recesvinto, para traz, atÚ AdŃo, nŃo tenho mais paes! E, emquanto todos riam, D. Maria Mendonša, debrušada para elle, por traz do leque largamente aberto, murmurou: --O Primo estß com esses deprezos... Pois eu sei d'uma senhora que tem a maior admirašŃo pela casa de Ramires e pelo seu representante. Gonšalo enchia de novo o copo, com amor, attento ß espuma: --Bravo! Mas źconvÚm distinguir╗, como diz o Manoel Duarte. Por quem tem ella a verdadeira admirašŃo, por mim ou pelo Suevo, pelo Recesvinto? --Por ambos. --Diabo! Depois, pousando a garrafa, mais sÚrio: --Quem Ú? Oh! ella nŃo podia confessar. NŃo era ainda bastante velha para andar com recadinhos de sentimento. Mas Gonšalo dispensava o nome--sˇ desejava as qualidades... Nova? Bonita? --Bonita? exclamou D. Maria. ╔ uma das mulheres mais formosas de Portugal! Espantado, Gonšalo lanšou o nome: --A D. Anna Lucena! --Por quŕ? --Por que mulher assim tŃo formosa, e vivendo n'estes sitios, e tŃo conhecida da prima que lhe faz confidencias, sˇ a D. Anna. D. Maria, ageitando as duas rosas que lhe alegravam o corpete de sŕda preta, sorria: --Talvez seja, talvez seja... --Pois estou immensamente lisongeado. Mas ainda distingo, como o Manoel Duarte. Se, da parte d'ella, essa sympathia toda Ú para o bom fim, nŃo! NŃo, santo Deus, nŃo!... Mas se Ú para o mau fim, entŃo, prima, cumprirei honradamente o meu dever dentro das minhas foršas... D. Maria escondeu a face no leque, escandalisada. Depois, espreitando, com os agudos olhos a faiscar: --Oh primo, mas o bom fim Ú que convinha, por que a cousa Ú a mesma e sŃo duzentos contos a mais! Gonšalo gritou d'admirašŃo: --Oh! esta prima Maria! NŃo ha em toda a Europa ninguem mais esperto! Todos curiosamente anciaram por saber a nova graša da Snr.^a D. Maria. Mas Gonšalo deteve as curiosidades: --NŃo se pˇde contar. ╔ casamento. EntŃo JosÚ Mendonša recordou a novidade picante que desde a vespera remexia Oliveira: --Por casamento!... Que me dizem ao casamento da D. Rosa Alcoforado? Barr˘lo, depois o Gouveia, atÚ Gracinha, todos o proclamaram źum horror.╗ Aquella perfeita rapariga, de pelle tŃo c˘r de rosa, de cabello tŃo c˘r d'ouro, amarrada ao Teixeira de Carredes, um patriarcha carregado de netos... Que desastre! Pois ao Cavalleiro o casamento nŃo parecia assim źdesastrado.╗ O Teixeira de Carredes, alÚm de muito fino, de muito intelligente, era um velho verdejante, quasi sem rugas--atÚ bonito com aquelle contraste do bigode escuro e da grenha rišada e branca. E na Snr.^a D. Rosa, com todas as rosas da sua pelle e todo o ouro dos seus cabellos, dominava źum nŃo sei quŕ╗ de amollentado e de sorvado... Depois pouco esperta. E pouco cuidadosa--sempre mal penteada, sempre mal pregada... --Emfim, V. Ex.^{as} perdoem... Mas quem faz um casamento muito desenxabido Ú o pobre Teixeira de Carredes. D. Maria Mendonša considerava o Governador Civil com um espanto amavel: --Pois se o Snr. Cavalleiro nŃo admira a Rosinha Alcoforado, nŃo sei entŃo que rapariga admire dentro do seu Districto... Elle, logo, com galante rasgo: --Mas, alÚm de V. Ex.^{as}, nŃo admiro ninguem! Realmente eu governo, em Portugal, o Districto mais daprovido de belleza... Todos protestaram. E a Maria Marges? E a pequena Reriz, da Riosa? E a Mellosinho Alboim, com aquelles olhos?... Mas o Cavalleiro nŃo consentia, a todas demolia com um sarcasmo leve, ou pela pelle sem frescura, ou pelo pisar desairoso, ou pelo provincianismo de gosto e modos, sempre pela carencia das bellezas e grašas que ornavam Gracinha--lanšando assim disfaršadamente, aos pÚs de Gracinha, um r˘lo de senhoras vencidas e amarfanhadas. Ella percebera a subtil adulašŃo, os seus olhos allumiaram com um fulgor mais enternecido o rubor que a afogueava. Desejou repartir incenso tŃo accumulado--lembrou timidamente outra belleza de que se orgulhava o Districto: --A filha do Visconde de Rio-Manso, a Rosinha Rio-Manso... ╔ linda! O Cavalleiro triumphou com facilidade: --Mas tem doze annos, minha senhora! Nem Ú rosinha, Ú botŃosinho de rosa!... Quasi humildemente, Gracinha recordou a Luiza Moreira, filha d'um lojista, muito admirada aos domingos na missa da SÚ e no Terreiro da Louša: --╔ uma bella rapariga... Sobretudo a figura... Cavalleiro triumphou ainda, com requebrada seguranša: --Sim, mas os dentes tortos, Snr.^a D. Graša! Os dentes acavallados! V. Ex.^a nunca reparou... Oh! uma b˘ca muito desagradavel! E, alÚm dos dentes, o irmŃo, o Evaristo, com aquella cara mais chata que a alma, e a caspa, e a porcaria, e o jacobinismo... NŃo ha mulher bonita com irmŃo tŃo feio! Mendonša estendera o brašo, com outra curiosidade que occupava Oliveira: --E por Evaristo!... Elle sempre funda o novo jornal republicano, o _Rebate_? O Snr. Governador Civil encolheu os hombros com uma ignorancia superior e risonha. Mas JoŃo Gouveia, vermelho e luzidio depois da sua garrafa de Corvello e da sua garrafa de Douro, affianšou que o _Rebate_ apparecia em Novembro. AtÚ elle conhecia o patriota que esportulava a źmassa.╗ E a campanha do _Rebate_ comešava com cinco artigos esmagadores sobre a Tomada da Bastilha. O espanto de Gonšalo era como o Republicanismo alastrßra em Portugal--atÚ na velhota, na devota Oliveira... --Quando eu andava em preparatorios existiam simplesmente dois republicanos em Oliveira, o velho Salema, lente de Rhetorica, e eu. Agora ha partido, ha comitÚ, ha dous jornaes... E ha mesmo o BarŃo das Marges com a _Voz Publica_ na mŃo, debaixo da Arcada... Mendonša nŃo receava a Republica, gracejava: --Ainda vem longe, muito longe... Ainda nos dß tempo de comermos estes bellos ovos queimados. --Deliciosos, murmurou o Cavalleiro. --Sim, concordou Gonšalo, ainda temos tempo para os ovos... Mas que rebente uma revolušŃo em Hespanha, ou que morra o Reisinho na sua menoridade, que naturalmente morre... --Credo! Coitadinho! Pobre mŃe! murmurou Gracinha sensibilisada. Immediatamente o Cavalleiro a tranquillisou. Porquŕ, morrer o Reisinho d'Hespanha? Os republicanos espalhavam boatos sombrios sobre os males da excellente creanša. Mas elle conhecia a realidade--assegurava ß Snr.^a D. Graša que, felizmente para a Hespanha, ainda reinaria um Affonso XIII e mesmo um Affonso XIV. Em quanto aos nossos republicanos, esses... Meu Deus! mera questŃo de guarda municipal! Portugal, nas suas massas profundas, permanecia monarchico, de raiz. Apenas ao de cima, na burguezia e nas escolas, fluctuava uma escuma ligeira, e bastante suja, que se limpava facilmente com um sabre... --V. Ex.^a, Snr.^a D. Graša, que Ú uma dona de casa perfeita, conhece esta operašŃo que se faz ß panella do caldo... Escumar a panella. ╔ com uma colher. Aqui Ú com um sabre. Pois assim, com toda a simplicidade, se clarifica Portugal. E foi isto que ainda ultimamente eu declarei a El-rei. Alteßra a cabeša--o seu peitilho resplandecia, mais largo, como couraša bastante rija para defender toda a Monarchia. E, no compenetrado silencio que se alargou, duas rolhas de Champagne estalaram, por traz do biombo, na copa. Apenas o escudeiro, apressado, enchŕra as tašas--o Fidalgo da Torre com uma gravidade que o sorriso adošava: --AndrÚ, ß tua saude. NŃo Ú ao Governador Civil, Ú ao amigo! Todos os copos se ergueram n'um susuro acariciador. JoŃo Gouveia agitou o seu, com especial effusŃo, gritando:--źAndrÚsinho, meu velho!╗ S. Ex.^a apenas tocou de leve no calice de Gracinha. Padre Sueiro murmurou as źgrašas.╗ E Barr˘lo, atirando o guardanapo: --CafÚ aqui ou na sala?... Na sala estamos mais frescos. Na sala grande, a sala dos velludos vermelhos, o lustre rebrilhava solitariamente; pelas tres janellas abertas penetrava a serenidade da noite quente, o recolhido silencio d'Oliveira; e em baixo, no Largo, alguns sujeitos, mesmo duas senhoras de manta de lŃ branca pela cabeša, pasmavam para aquella claridade de festa que jorrava dos Cunhaes. O Cavalleiro e Gonšalo accenderam os charutos na varanda, respirando a frescura escassa. E o Cavalleiro, com beatitude: --Pois sempre te digo, Gonšalinho, que se janta sublimemente em casa de teu cunhado!... Gonšalo desejou que, no domingo, elle jantasse na Torre. Ainda restavam umas garrafas de Madeira do tempo do av˘ DamiŃo--a que se daria, com soccorro do Gouveia e do Titˇ, um assalto heroico. O Cavalleiro prometteu, jß deliciado--tomando da pesada bandeja de prata, que derreava o escudeiro, a sua chavena de cafÚ, sem assucar. --E tu, com effeito, Gonšalo, agora nŃo deves arredar da Torre. O teu papel Ú todo de presenša na localidade. O Fidalgo da Torre estß no meio das suas terras, por onde vae ser eleito para as C˘rtes. ╔ o teu papel... O Barr˘lo com um riso enlevado, surdiu entre os dous amigos que enlašou ternamente pela cinta: --E nˇs cß ficamos, ambos a trabalhar, o Cavalleiro e eu!... Mas D. Maria, do canapÚ onde se enterrßra, reclamou o primo Gonšalo źpara negocios.╗ Junto d'uma console, JoŃo Gouveia e Padre Sueiro, remexendo o seu cafÚ, concordavam na necessidade d'um Governo forte. E Gracinha, com o primo Mendonša, revolvia as musicas sobre a tampa do piano, procurando o _Fado dos Ramires_. Mendonša tocava com corredio brilho, composera valsas, um hymno ao Coronel Trancoso, o heroe de Machumba--e mesmo o primeiro acto d'uma opera, _A Pegureira_. E como nŃo descortinavam o _Fado_ com as quadras do Videirinha--foi justamente uma das suas valsas, a _Perola_, d'uma cadencia amorosa e canšada lembrando a valsa do Fausto, que elle atacou, sem largar o charuto. EntŃo AndrÚ Cavalleiro, que repenetrßra vagarosamente na sala, repuxou o collete, afagou o bigode, e avanšando para Gracinha, com um modo meio grave, meio folgazŃo: --Se V. Ex.^a me quer dar a grande honra?... Offerecia, abria os brašos. E Gracinha, toda escarlate, cedeu, levada logo nos largos passos deslisados que o Cavalleiro lanšou sobre o tapete. Barr˘lo e JoŃo Gouveia correram a afastar as poltronas, clareando um espašo, onde a valsa se desenrolou com o suave sulco branco do vestido de Gracinha. Pequenina e leve, toda ella se perdia, como se fundia, na forša mascula do Cavalleiro, que a arrebatava em giros lentos, com a face pendida, respirando os seus cabellos magnificos. Da borda do canapÚ, com os finos olhos a fusilar, D. Maria Mendonša pasmava: --Mas que bem que valsa, que bem que valsa o Snr. Governador Civil!... Ao lado Gonšalo torcia nervosamente o bigode, na surpreza d'aquella familiaridade, assim renovada pelo Cavalleiro com tŃo serena confianša, por Gracinha com tanto abandono... Elles torneavam, enlašados. Dos labios do Cavalleiro escorregava um sorriso, um murmurio. Gracinha arfava, os seus sapatos de verniz reluziam sob a saia que se enrolava nas calšas do Cavalleiro. E Barr˘lo, em extasi, quando elles o rošavam, atirava palmas carinhosas, bradava: --Bravo! Bravo! Lindamente!... Bravissimo! VII Gonšalo recolhia para o almošo depois d'um passeio no pomar percorrendo a _Gazeta do Porto_, quando avistou no banco de pedra, rente ß porta da cosinha, onde a Rosa mudava o painšo na gaiola do seu canario, o Casco, o JosÚ Casco dos Bravaes, que esperava, pensativo e abatido, com o chapeu sobre os joelhos. Vivamente, para se esquivar, remergulhou no jornal. Mas percebeu a esgalgada magreza do homem, que surdia da sombra da latada, avanšava na claridade faiscante do pateo, hesitando, como assustada... E, animado pela visinhanša da Rosa, parou, foršando um sorriso--em quanto o Casco enrolava nas mŃos tremulas a aba dura do chapeu, balbuciava: --Se o Fidalgo me fizesse a esmola de uma palavra... --Ah! Ú vossŕ, Casco! Homem, nŃo o conheci... E entŃo? Dobrou o jornal, tranquillisado--gozando mesmo a submissŃo d'aquelle valente que tanto o apavorßra, erguido e negro como um pinheiro, na solidŃo do pinheiral. E o Casco, engasgado, repuchava, esticava o pescošo de dentro dos grossos collarinhos bordados--atÚ que atirou toda a alma n'uma supplica solušada, retendo as lagrimas que marejavam: --Ai, meu Fidalgo, perd˘e por quem Ú! Perd˘e, que eu nem lhe sei pedir perdŃo!... Gonšalo atalhou o homem, com generosidade e došura. Elle bem o avisßra! Nada se emenda, a gritar, com o pau alšado... --E olhe, Casco! Quando vossŕ me sahiu ao pinhal eu levava um revˇlver na algibeira... Trago sempre um revˇlver. Desde que uma noite em Coimbra, no Choupal, dous bebados me assaltaram, ando sempre ß cautella com o revˇlver... Pense vocŕ agora que desgraša se tiro o revˇlver, se desfecho!... Que desgraša, hein?... Felizmente, n'um relance, pensei que me perdia, que o matava, e fugi. Foi por isso que fugi, para nŃo desfechar o revˇlver... Emfim tudo passou. E eu nŃo sou homem de rancores, jß esqueci. Comtanto que vossŕ, agora socegado e no seu juizo, esqueša tambem. O Casco amassava as abas do chapeu, com a cabeša derrubada. E sem a erguer, sem ousar, rouco dos solušos que o entalavam: --Pois agora Ú que eu me lembro, meu Fidalgo! Agora Ú que me ralo por aquella doidice! Agora! depois do que o Fidalgo fez pela mulher e pelo pequeno!... Gonšalo sorriu, encolheu os hombros: --Que tolice, Casco!... Pois a sua mulher apparece ahi n'uma noite d'agua... E o pequenito doente, coitadito, com febre... Como vae elle, o Manelsinho? O Casco murmurou do fundo da sua humildade: --Louvado seja Deus, meu senhor, muito sŃosinho, muito rijinho. --Ainda bem... Ponha o chapeu. Ponha o chapeu, homem! E adeus!... Vossŕ nŃo tem que agradecer, Casco... E olhe! Traga cß um dia o pequeno. Eu gostei do pequeno. ╔ espertinho. Mas o Casco nŃo se arredava, pregado ßs lages. Por fim, n'um solušo que rebentou: --╔ que eu nŃo sei como hei-de dizer, meu Fidalgo... Lß o dia de cadeia, acabou! Tenho genio, fiz a asneira, com o corpo a paguei. E pouco paguei, grašas ao Fidalgo... Mas depois quando sahi, quando soube que a mulher viera de noite ß Torre, e que o Fidalgo atÚ a embrulhßra n'uma capa, e que nŃo deixßra sahir o pequeno... Estacou, afogado pela emošŃo. E como Gonšalo, tambem commovido, lhe batia risonhamente no hombro, źpara acabar, nŃo se fallar mais n'essas bagatellas...╗--o Casco rompeu, n'uma grande voz dolorosa e quebrada: --Mas Ú que o Fidalgo nŃo sabe o que Ú para mim aquelle pequeno!... Desde que Deus m'o mandou tem sido uma paixŃo cß por dentro que atÚ parece mentira!... Olhe que na noite que passei na cadeia da villa nŃo dormi... E Deus me perd˘e, nŃo pensei na mulher, nem na pobre da velha, nem na pouquita terra que amanho, tudo ao desamparo. Toda a noite se foi a gemer:--źai o meu querido filhinho! ai o meu querido filhinho!...╗ Depois quando a mulher, logo pela estrada, me diz que o Fidalgo ficßra com elle na Torre, e o deitßra na melhor cama, e mandßra recado ao medico... E depois quando soube pelo snr. Bento que o Fidalgo de noite subia a vŕr se elle estava bem coberto, e lhe entalava a roupa, coitadinho... E arrebatadamente, n'um choro solto, gritando:--źAi meu Fidalgo! meu Fidalgo!...╗--o Casco agarrou as mŃos de Gonšalo, que beijava, rebeijava, alagava de grossas lagrimas. --EntŃo, Casco! Que tolice!... Deixe homem! Pallido, Gonšalo saccudia aquella gratidŃo furiosa--atÚ que ambos se encararam, o Fidalgo com as pestanas molhadas e tremulas, o lavrador dos Bravaes solušando, n'uma confusŃo. E foi elle por fim que, recalcando um derradeiro solušo, se recobrou, desafogou da idÚa que o trouxera, que de certo fundamente o trabalhßra, e que agora lhe enrijava a face e o gesto n'uma determinašŃo que nunca vergaria: --Meu Fidalgo, eu nŃo sei fallar, nŃo sei dizer... Mas se d'hoje em deante, seja para que f˘r, o Fidalgo necessitar da vida d'um homem, tem aqui a minha! Gonšalo estendeu a mŃo ao lavrador, muito simplesmente--como um Ramires d'outr'ora recebendo a preitezia d'um vassallo: --Obrigado, JosÚ Casco. --Entendido, meu Fidalgo, e que Deus nosso Senhor o abenš˘e! Gonšalo, perturbado, galgou pela escadinha da varanda--emquanto o Casco atravessava o pßteo vagarosamente, com a cabeša bem erguida, como homem que devŕra e que pagßra. E em cima, na livraria, Gonšalo pensava com espanto:--źAhi estß como n'este mundo sentimental se ganham dedicaš§es gratuitamente!...╗ Por que emfim! quem nŃo impediria que uma criancinha com febre affrontasse de noite uma estrada negra, sob a chuva e o vendaval? Quem a nŃo deitaria, nŃo lhe adošaria um grog, nŃo lhe entalaria os cobertores para a conservar bem abafada? E por esse grog e por essa cama--corre o pae, tremendo e chorando, a offerecer a sua vida! Ah! como era facil ser Rei--e ser Rei popular! E esta certeza mais o animava a obedecer ßs recommendac§es do Cavalleiro--a comešar immediatamente as suas visitas aos Influentes eleitoraes, essas aduladoras visitas que assegurariam ß EleišŃo uma unanimidade arrogante. Logo ao fim do almošo, mesmo sobre a toalha, arredando os pratos, copiou a lista d'esses Magnates--por um rascunho annotado que lhe fornecera o JoŃo Gouveia. Era o Dr. Alexandrino; o velho Gramilde, de Ramilde; o Padre JosÚ Vicente, da Finta; outros menores:--e o Gouveia marcßra com uma cruz, como o mais poderoso e mais difficil, o Visconde de Rio-Manso, que dispunha da immensa freguezia de Canta-Pedra. Gonšalo conhecia esses senhores, homens de propriedade e de dinheiro (com todos outr'ora o papß andßra endividado)--mas nunca encontrßra o Visconde de Rio-Manso, um velho brazileiro, dono da quinta da _Varandinha_, onde vivia solitariamente com uma neta de onze annos, essa linda Rosinha que chamavam źo botŃo de Rosa╗, a herdeira mais rica de toda a Provincia. E logo n'essa tarde, em Villa-Clara, reclamou ao JoŃo Gouveia uma carta d'apresentašŃo para o Rio-Manso: O Administrador hesitou: --Vossŕ nŃo precisa carta... Que diabo! Vossŕ Ú o Fidalgo da Torre! Chega, entra, conversa... AlÚm d'isso na EleišŃo passada o Rio-Manso ajudou os Regeneradores; de modo que estamos um pouco sŕccos. O Rio-Manso Ú um casmurro... Mas com effeito, Gonšalinho, convem comešar essa caša ß popularidade! N'essa noite, na Assembleia, o Fidalgo, encetando a źcaša ß popularidade╗, acceitou um convite do Commendador RomŃo Barros (do massador, do burlesco Barros) para o brodio faustoso com que elle celebrava, na sua quinta da _Roqueira_, a festa de S. RomŃo. E essa semana inteira, depois outra, as gastou assim por Villa-Clara, amimando eleitores--a ponto de comprar horrendas camisas de chita na loja do Ramos, de encommendar um sacco de cafÚ na mercearia do Tello, de offerecer o brašo no largo do Chafariz ß nojenta mulher do bebedissimo Marques Rosendo, e de frequentar, de chapeu para a nuca, o bilhar da rua das Pretas. JoŃo Gouveia nŃo approvava estes excessos--aconselhando antes źboas visitas, com todo o _chic_, aos influentes sÚrios.╗ Mas Gonšalo bocejava, adiava, na insuperavel preguiša de affrontar a maledicencia rabujenta do velho Gramilde ou a solemnidade forense do Dr. Alexandrino. Agosto findava:--e por vezes, na livraria, Gonšalo, cošando desconsoladamente a cabeša, considerava as brancas tiras d'almašo, o Capitulo III da _Torre de D. Ramires_ encalhado... Mas quŕ! nŃo podia, com aquelle calor, com o afan da EleišŃo, remergulhar nas eras Affonsinas! Quando refrescavam as tardes lentas montava, alongava o passeio pelas freguezias, nŃo se descuidando das recommendaš§es do Cavalleiro--enchendo sempre o bolso de rebušados d'avenca para atirar ßs creanšas. Mas, n'uma carta ao querido AndrÚ, jß confessßra que źa sua popularidade nŃo crescia, nŃo enfunava...╗--źNŃo! positivamente, velho amigo, nŃo tenho o dom! Sei apenas palestrar familiarmente com os homens, comprimentar pelo seu nome as velhas ßs soleiras das portas, gracejar com a pequenada, e se encontro uma boeirinha de saiasita rota dar cinco tost§es ß boeirinha para uma saiasita nova... Ora todas estas cousas tŃo naturaes sempre as fiz naturalmente, desde rapaz, sem que me conquistassem influencia sensivel... Necessito portanto que essa querida Authoridade m'empurre com o seu brašo possante e destro...╗ Todavia jß uma tarde, encontrando junto da Torre o velho Cosme de Nacejas, e depois, n'um domingo, crusando ßs _Ave-Marias_ na Bica-Santa o AdriŃo Pinto do logar da Levada, ambos lavradores considerados e remexedores d'eleiš§es--lhes pedira os votos, desprendidamente e rindo. E quasi se assombrßra da promptidŃo, do fervor, com que ambos se offereceram.--źPara o Fidalgo? Pois isso estß entendido! Ainda que se votasse contra o Governo, que Ú pae!╗--E em Villa-Clara, com o Gouveia, Gonšalo deduzia d'estas offertas tŃo acaloradas źa intelligencia politica da gente do campo╗: --Estß claro que nŃo Ú pelos meus lindos olhos! Mas sabem que eu sou homem para fallar, para luctar pelos interesses da terra... O Sanches Lucena nŃo passava d'um Conselheiro muito rico e muito mudo! Esta gente quer deputado que grite, que lide, que imponha... Votam por mim por que sou uma intelligencia. E o Gouveia volvia, contemplando pensativamente o Fidalgo: --Homem! quem sabe? Vossŕ nunca experimentou, Gonšalo Mendes Ramires. Talvez seja realmente pelos seus lindos olhos! * * * * * N'um d'esses passeios, n'uma abrazada sexta-feira, com o sol ainda alto, Gonšalo atravessava o logarejo da Velleda, no caminho de Canta-Pedra. Ao fim dos casebres que se apertam ß orla da estrada alveja, muito caiada, n'um terreiro defronte da Egreja, a taverna famosa "do Pintainho", onde os caramanch§es do quintal e a nomeada do coelho guizado attrahem vasto povo nos dias da feira da Velleda. N'essa manhŃ o Titˇ, depois d'uma madrugada ßs perdizes, em Valverde, apparecera na Torre para almošar, urrando, d'esfomeado. Era sexta-feira--a Rosa preparßra uma pescada com tomates, depois um bacalhau assado, formidaveis. E Gonšalo, toda a tarde torturado com sŕde, mais resequido pela poeira da estrada, parou avidamente deante do portŃo da venda, gritou pelo Pintainho. --Oh meu Fidalgo!... --Oh Pintainho! depressa! Uma sangria! Uma grande sangria bem fresca, que morro... O Pintainho, velhote rolišo de cabello amarello, nŃo tardou com o copo appetitoso e fundo onde boiava, na espumasinha do assucar, uma rodella de limŃo. E Gonšalo saboreava a sangria com ineffavel delicia--quando da janella terrea da venda partiu um assobio lento, fino e trinado, como os dos arrieiros que animam as bestas a beber nos riachos. Gonšalo deteve o copo, varado. ┴ janella assomßra um latagŃo airoso, de face clara e suissas louras, que, com os punhos sobre o peitoril e a cabeša levantada, n'um descarado modo de pimponice e desafio, o fitava atrevidamente. E n'um lampejo o Fidalgo reconheceu aquelle cašador que jß uma tarde, no logar de Nacejas, ao pÚ da Fabrica de vidros, o mirßra com arrogancia, lhe raspßra a espingarda pela perna, e ainda depois, parado sob a varanda d'uma rapariga de jaquÚ azul, lhe acenßra chasqueando emquanto elle descia a ladeira... Era esse! Como se nŃo percebesse o ultraje--Gonšalo bebeu apressadamente a sangria, atirou uma placa ao pobre Pintainho enfiado, e picou a fina egoa. Mas entŃo da janella rolou uma risadinha, cacarejada e trošante, que o colheu pelas costas como o estalo d'uma vergasta. Gonšalo soltou a galope. E adiante, sopeando a egoa no refugio d'uma azinhaga, pensava, ainda tremulo:--źQuem serß o desavergonhado?... E que lhe fiz eu, Santo Deus? que lhe fiz eu?...╗ Ao mesmo tempo todo o seu ser se desesperava contra aquelle desgrašado _mŕdo_, encolhimento da carne, arrepio da pelle, que sempre, ante um perigo, uma ameaša, um vulto surdindo d'uma sombra, o estonteava, o impellia furiosamente a abalar, a escapar! Por que ß sua alma, Deus louvado, nŃo faltava arrojo! Mas era o corpo, o traišoeiro corpo, que n'um arrepio, n'um espanto, fugia, se safava, arrastando a alma--emquanto dentro a alma bravejava! Entrou na Torre, mortificado, invejando a afouteza dos seus mošos da quinta, remoendo um rancor soturno contra aquelle bruto de suissas louras, que certamente denunciaria ao Cavalleiro e enterraria n'uma enxovia!--Mas, logo no corredor, o Bento lhe debandou os pensamentos, apparecendo com uma carta źque trouxera um mošo da _Feitosa_...╗ --Da _Feitosa_? --Sim senhor, da quinta do snr. Sanches Lucena, que Deus haja. Diz que vinha de mandado das senhoras... --Das senhoras!... Que senhoras? Sem tarja de luto, a carta nŃo era da bella D. Anna... Mas era de D. Maria Mendonša, que assignava--źprima muito amiga, Maria Severim.╗ N'um relance a leu, colhido logo por esta surpreza nova, distrahido da venda do Pintainho e da affronta:--źMeu querido Primo. Estou ha tres dias aqui com a minha amiga Annica, e como passou o mez inteiro do nojo e ella jß pˇde sahir (e atÚ precisa porque tem andado fraca) eu aproveito a occasiŃo para percorrer estes arredores que dizem tŃo bonitos, e pouco conhešo. Tencionamos no Domingo visitar Santa Maria de Craquŕde, onde estŃo os tumulos dos antigos tios Ramires. Que impressŃo me vae fazer!... Mas, ao que parece, alÚm dos tumulos do claustro, ha outros, ainda mais antigos, que foram arrombados no tempo dos Francezes, e que ficam n'um subterraneo, onde se nŃo pˇde entrar sem licenša e sem que tragam a chave. Pešo pois, querido Primo, que dŕ as suas ordens para que no Domingo possamos descer ao subterraneo, que todos affianšam muito interessante, por que ainda lß restam ossos e armas. Se na Torre houvesse uma senhora, eu mesma iria, para lhe fazer este pedido... Mas nŃo se pˇde visitar um solteirŃo tŃo perigoso. Case depressa!... D'Oliveira boas noticias. Creia-me sempre, etc.╗ Gonšalo encarou o Bento--que esperava, interessado com aquelle assombro do Snr. Doutor: --Tu sabes se em Santa Maria de Craquŕde ha outros tumulos, n'um subterraneo? O assombro entŃo saltou para o Bento: --N'um subterraneo?... Tumulos? --Sim, homem! AlÚm dos que estŃo no claustro parece que ha outros, mais antigos, debaixo da terra... Eu nunca vi, nŃo me lembro. Tambem ha que annos nŃo entro em Santa Maria de Craquŕde! Desde pequeno!... Tu nŃo sabes? O Bento encolheu os hombros. --E a Rosa nŃo saberß? O Bento abanou a cabeša, duvidando. --Tambem vossŕs nunca sabem nada! Bem! AmanhŃ cŕdo corre a Santa Maria de Craquŕde e pergunta na Egreja, ao sachristŃo, se existe esse subterraneo. Se existir que o mostre no Domingo a umas senhoras, ß snr.^a D. Anna Lucena, e ß snr.^a D. Maria Mendonša, minha prima Maria... E que tenha tudo varrido, tudo decente! Mas, repassando a carta, reparou n'um _Post-Scriptum_ em lettra mais miudinha, ao canto da folha:--źNo Domingo, nŃo se esqueša, a visita serß _entre as cinco e cinco e meia da tarde_!╗ Gonšalo pensou:--źSerß uma entrevista?╗ E na livraria, atirando para uma cadeira o chapeu e o chicote, assentou que era uma entrevista, bem clara, bem marcada! E talvez nem existisse esse subterraneo--e Maria Mendonša, com a sua tortuosa esperteza, o inventasse, como natural motivo de lhe escrever, de lhe annunciar que no Domingo, ßs cinco e meia, a bella D. Anna e os seus duzentos contos o esperavam em Santa Maria de Craquŕde. Mas entŃo a prima Maria nŃo gracejßra, em Oliveira? Gostava d'elle, realmente, essa D. Anna?... E uma emošŃo, uma curiosidade voluptuosa atravessaram Gonšalo ß idÚa de que tŃo formosa mulher o desejava.--Ah! mas certamente o desejava para marido, por que se o appetecesse para amante nŃo se soccorria dos servišos da D. Maria Mendonša--nem a prima Maria, apesar de tŃo sabuja com as amigas ricas, os prestaria assim descaradamente como uma alcoviteira de Comedia! E caramba! casar com a D. Anna--nŃo! E subitamente anciou por conhecer a vida da D. Anna! Aturßra ella tantos annos, em severa fidelidade, o velho Sanches? Sim, talvez, na _Feitosa_, na solidŃo dos grandes muros da _Feitosa_--por que nunca sobre ella esvoašßra um rumor, em terriolas tŃo gulosas de rumores malignos. Mas em Lisboa?... Esses źamigos estimabilissimos╗ de que se ufanava o pobre Sanches, o D. JoŃo nŃo sei quŕ, o pomposo Arronches Manrique, o Philippe Lourenšal com o seu cornetim?... Algum de certo a attacßra--talvez o D. JoŃo, por dever tradicional do nome. E ella?... Quem o informaria sobre a historia sentimental da D. Anna? Depois, ao jantar, de repente pensou no Gouveia. Uma irmŃ do Gouveia, casada em Lisboa com certo Cerqueira (arranjador de Magicas e empregado na Misericordia) costumava mandar ao mano Administrador relatorios intimos sobre todas as pessoas conhecidas d'Oliveira, de Villa-Clara, que se demoravam em Lisboa--e que interessavam o mano ou por Politica, ou por mexeriquice. E de certo, pela irmŃ Cerqueira, o querido Gouveia conhecia miudamente os annaes da D. Anna, durante os seus invernos de Lisboa, nas delicias da sua źroda fina╗. N'essa noite, porÚm, o Administrador nŃo apparecera na Assembleia. E Gonšalo, desconsolado, recolhia ß Torre--quando no Largo do Chafariz o encontrou com o Videirinha, ambos sentados n'um banco, sob as olaias escuras. --Chegou lindamente! exclamou o Gouveia. Estavamos mesmo a marchar para minha casa, tomar chß. Quer vossŕ, tambem?... Vossŕ costuma gostar das minhas torradinhas. O Fidalgo acceitou--apezar de canšado. E logo pela Calšadinha, enlašando o brašo do Administrador, contou que recebera uma carta de Lisboa, d'um amigo, com uma nova estupenda... O que?--O casamento da D. Anna Lucena. O Gouveia parou, assombrado, atirando o c˘co para a nuca: --Com quem?! Gonšalo que inventßra a carta--inventou o noivo: --Com um vago parente meu, ao que parece, um D. JoŃo Pedroso ou da Pedrosa. Muitas vezes o Sanches Lucena me fallou n'elle... Conviviam muito em Lisboa... Gouveia bateu com a ponta da bengala nas pedras: --NŃo pˇde ser!... Que disparate! A D. Anna nŃo ajustava casamento sete semanas depois de lhe morrer o marido... Olhe que o Lucena morreu no meado de Julho, homem! Ainda nem teve tempo de se acostumar ß sepultura! --Sim, com effeito! murmurou Gonšalo. E sorria, sob uma doce baforada de vaidade--pensando que, sete semanas depois de viuva, ella, sem resistir, calcando decencia e luto, lhe offerecia a elle uma entrevista nas ruinas de Craquŕde. A mentira de resto, apesar de disparatada, aproveitßra--porque, depois de subirem ß saleta verde do Administrador, o espanto recomešou. Videirinha esfregava as mŃos, divertido: --Oh snr. Dr., olhe que tinha graša!... Se a snr.^a D. Anna, depois d'apanhar os duzentos contos do velhote, logo passadas semanas, zßs, se engancha com um rapazote novo... NŃo, nŃo!... Gonšalo agora, reparando, tambem considerava despropositada a noticia do casamento, assim com o pobre Sanches ainda m˘rno... --Naturalmente entre ella e esse D. JoŃo havia namorico, olhadella... Por isso imaginaram. Com effeito, alguem me contou, ha tempos, que o tal D. JoŃo se atirava valentemente, como cumpre a um D. JoŃo, e que ella... --Mentira! atalhou o Administrador, debrušado sobre a chaminÚ do candieiro para accender o cigarro. Mentira! Sei perfeitamente, e por excellente canal... Em fim, sei por minha irmŃ! Nunca, em Lisboa, a D. Anna deu azo a que se rosnasse. Muito sÚria, muitissimo sÚria. Estß claro, nŃo faltou por lß maganŃo que lhe arrastasse a aza languida... Talvez esse D. JoŃo, ou outro amigo do marido, segundo a boa lei natural. Mas ella, nada! Nem ˘lho de lado! Esposa romana, meu amigo, e dos bons tempos romanos! Gonšalo, enterrado no camapÚ, torcia lentamente o bigode, regalado, recolhendo as revelaš§es. E o Gouveia, no meio da sala, com um gesto convencido e superior: --Nem admira! Estas mulheres muito formosas sŃo insensiveis. Bellos marmores, mas frios marmores... NŃo, Gonšalinho, lß para o sentimento, e para a alma, e mesmo para o resto, venham as mulheres pequeninas, magrinhas, escurinhas! Essas sim!... Mas os grandes mulher§es brancos, do genero Venus, sˇ para vista, sˇ para museo. Videirinha arriscou uma duvida: --Uma senhora tŃo bonita como a snr.^a D. Anna, e com aquelle sangue, assim casada com um velhote... --Ha mulheres que gostam de velhotes por que ellas mesmas teem sentimentos velhotes!--declarou o Gouveia, de dedo erguido, com immensa auctoridade e immensa philosophia. Mas a curiosidade de Gonšalo nŃo se contentava. E na _Feitosa_? Nunca se rosnßra d'alguma aventura escondida? Parece que com o Dr. Julio... De novo o Fidalgo inventava. De novo Gouveia, repelliu a źmentira╗: --Nem na _Feitosa_, nem em Oliveira, nem em Lisboa... De resto, Ú o que lhe digo, Gonšalo Mendes. Mulher de marmore! Depois, saudando, em submissa admirašŃo: --Mas, como marmore... Vossŕs, meninos, nŃo imaginam a belleza d'aquella mulher decotada! Gonšalo pasmou: --E onde a viu vossŕ decotada? --Onde a vi decotada? Em Lisboa, n'um baile do Pašo... AtÚ foi justamente o Lucena que me arranjou o convite para o Pašo. Lß me espanejei, de calšŃo... Uma semsaboria. E mesmo uma vergonha, toda aquella turba acavallada por cima dos buffetes, aos berros, a agarrar furiosamente pedašos de per˙... --Mas entŃo, a D. Anna? --Pois a D. Anna uma belleza! Vossŕs nŃo imaginam!... Santo nome de Deus! que hombros! que brašos! que peito! E a brancura, a perfeišŃo... De endoidecer! Ao principio, como havia muita gente, e ella estava para um canto, acanhadota, nŃo fez sensašŃo. Mas depois lß a descobriram. E eram correrias, magotes embasbacados... E źquem serß?╗ E źque encanto!╗ Todo o mundo perdidinho, atÚ o Rei! E um momento os tres homens emmudeceram na impressŃo do formoso corpo evocado, que entre elles surgia, quasi despido, inundando com o explendor da sua brancura a modesta sala mal alumiada. Por fim Videirinha acercou a cadeira, em confidencia, para fornecer tambem a sua informašŃo: --Pois, por mim, o que posso affirmar Ú que a snr.^a D. Anna Ú uma mulher muito aceada, muito lavada... E como os outros s'espantavam, rindo, de uma certeza tŃo intima--Videirinha contou que todas as semanas apparecia um mošo da _Feitosa_, na botica do Pires, a comprar tres e quatro garrafas de agua de Colonia portugueza, da receita do Pires. --AtÚ o Pires dizia sempre, a esfregar as mŃos, que na Feitosa regavam as terras com agua de Colonia. Depois Ú que soubemos pela creada... A snr.^a D. Anna toma todos os dias um grande banho, que nŃo Ú sˇ para lavar, mas para prazer. Fica uma hora dentro da tina. AtÚ lŕ o jornal dentro da tina. E em cada banho, zßs, meia garrafa d'agua de Colonia... Jß Ú luxo! EntŃo Gonšalo sentiu como um aborrecimento de todas aquellas revelaš§es do Administrador, do ajudante da Pharmacia, sobre os decotes e as lavagens da linda mulher que o esperava entre os tumulos dos Ramires seculares. Saccudiu o jornal com que se abanava, exclamou: --Bem! E passando a cantiga mais sÚria... Oh Gouveia, vossŕ que tem sabido do Dr. Julio? O homem trabalha na eleišŃo? A creada entrßra com a bandeja do chß. E em torno da mesa, trincando as torradas famosas, conversaram sobre a EleišŃo, sobre os informes dos Regedores, sobre a reserva do Rio-Manso--e sobre o Dr. Julio, que Videirinha encontrßra nos Bravaes pedinchando votos pelas portas, acompanhado por um m˘šo com a machina photographica ßs costas. Depois do chß Gonšalo, canšado e jß provido źde revelaš§es╗, accendeu o charuto para recolher ß Torre. --Vossŕ nŃo acompanha, Videirinha? --Hoje, Snr. Dr., nŃo posso. Parto de madrugada para Oliveira, na diligencia. --Que diabo vae vossŕ fazer a Oliveira? --Por causa d'uns sapatos de praia e d'um fato de banho lß da minha patr˘a, da D. Josepha Pires... Tenho de os trocar nos Emilios, levar as medidas. Gonšalo ergueu os brašos, desolado: --Ora vejam este paiz! Um grande artista, como o Videirinha, a carregar para Oliveira com os sapatos de banho da patr˘a Pires!... Oh Gouveia! quando eu f˘r deputado precisamos arranjar um bom logar para o Videirinha, no Governo Civil. Um logar facil e com vagares, para elle nŃo esquecer o violŃo! Videirinha cˇrou de g˘sto e de esperanša--correndo a despendurar do cabide o chapÚo do Fidalgo. Pela estrada da Torre, os pensamentos de Gonšalo esvoašaram logo, com irresistida tentašŃo, para D. Anna--para os seus decotes, para os languidos banhos em que se esquecia lendo o jornal. Por fim, que diabo!... Essa D. Anna assim tŃo honesta, tŃo perfumada, tŃo explendidamente bella, sˇ apresentava, mesmo como esposa, um feio _senŃo_--o papß carniceiro. E a voz tambem--a voz que tanto o arripißra na Bica-Santa... Mas o Mendonša assegurava que aquelle timbre rolante e gordo, na intimidade, se abatia, liso e quasi doce... Depois, mezes de convivencia habituam ßs vozes mais desagradaveis--e elle mesmo, agora, nem percebia quanto o Manoel Duarte era fanhoso! NŃo! mancha teimosa, realmente, sˇ o pae carniceiro. Mas n'esta Humanidade nascida toda d'um sˇ homem, quem, entre os seus milhares d'avˇs atÚ AdŃo, nŃo tem algum av˘ carniceiro? Elle, bom fidalgo, d'uma casa de Reis d'onde Dynastias irradiavam, certamente, escarafunchando o Passado, toparia com o Ramires carniceiro. E que o carniceiro avultasse logo na primeira gerašŃo, n'um talho ainda afreguezado, ou que apenas s'esfumasse, atravez d'espessos seculos, entre os trigesimos avˇs--lß estava, com a faca, e o cepo, e as postas de carne, e as nodoas de sangue no brašo suado!... E este pensamento nŃo o abandonou atÚ ß Torre--nem ainda depois, ß janella do quarto, acabando o charuto, escutando o cantar dos ralos. Jß mesmo se deitßra, e as pestanas lhe adormeciam, e ainda sentia que os seus passos impacientes se embrenhavam para traz, para o escuro passado da sua Casa, por entre a emmaranhada Historia, procurando o carniceiro... Era jß para alÚm dos confins do Imperio Visigodo, onde reinava com um globo d'ouro na mŃo o seu barbudo av˘ Recesvinto. Esfalfado, arquejando, transpozera as cidades cultas, povoadas de homens cultos--penetrßra nas florestas que o mastodonte ainda sulcava. Entre a humida espessura jß crusßra vagos Ramires, que carregavam, grunhindo, rezes mortas, molhos de lenha. Outros surdiam de tocas fumarentas, arreganhando agudos dentes esverdeados para sorrir ao neto que passava. Depois por tristes ermos, sob tristes silencios, chegßra a uma lag˘a ennevoada. E ß beira da agoa limosa, entre os canaviaes, um homem monstruoso, pelludo como uma fÚra, agachado no lodo, partia a rijos golpes, com um machado de pedra, postas de carne humana. Era um Ramires. No ceu cinzento voava o Ašor negro. E logo, d'entre a neblina da lag˘a, elle acenava para Santa Maria de Craquŕde, para a formosa e perfumada D. Anna, bradando por cima dos Imperios e dos Tempos:--źAchei o meu av˘ carniceiro!╗ * * * * * No Domingo, Gonšalo acordou com uma źesperta ideia!╗ NŃo correria a Santa Maria de Craquŕde com uma pontualidade sofrega, ßs cinco horas (as cinco horas marcadas no _Post-Scriptum_ da prima Maria)--mostrando o seu alvorošo em encontrar a tŃo bella e tŃo rica D. Anna Lucena! Mas ßs seis horas, quando findasse a romaria das senhoras aos tumulos, appareceria elle indolentemente, como se, recolhendo d'um passeio pelas frescas cercanias, se recordasse, parasse nas ruinas para conversar com a prima Maria. Logo ßs quatro horas porÚm se comešou a vestir com tantos esmeros, que o Bento, canšado das gravatas que o Snr. Dr. experimentava e arremessava amarfanhadas para o divan, nŃo se conteve: --Ponha a de sedinha branca, Snr. Dr.! Ponha a branca, que lhe fica melhor! E refresca mais, com este calor. Na escolha d'um ramo para o casaco ainda requintou, juntando as c˘res heraldicas dos Ramires, um cravo amarello com um cravo branco. Ao portŃo, apenas montßra na egoa, temeu que as senhoras (nŃo o encontrando no Claustro) encurtassem a visita, estugou o trote pelo atalho da Portella. Depois adiante, ao desembocar na antiga estrada real, soltou n'um galope impaciente que o branqueou de poeira. Sˇ retomou um passo indifferente, ao acercar da linha do Caminho de Ferro, onde um carro de lenha e dois homens esperavam deante da cancella, que se fechßra para a lenta passagem d'um trem carregado de pipas. Um d'esses homens, d'alforge aos hombros, era o Mendigo--o vistoso Mendigo que passeava por aquellas aldeias a rendosa magestade das suas barbašas de Deus fluvial. Erguendo gravemente o chapÚo de vastas abas, desejou ao Fidalgo a companhia de Nosso Senhor. --EntŃo hoje a ganhar a rica vida por Craquŕde?... --Cß me arrasto ßs vezes para a passagem do comboio d'Oliveira, meu Fidalgo. Os passageiros gostam de me vŕr de pÚ no talude, correm sempre ßs janellas... Gonšalo, rindo, recordou que o encontro d'aquelle anciŃo precedia sempre um encontro seu com a bella D. Anna.--źQuem sabe? pensou. ╔ talvez o Destino! Os antigos pintavam assim o Destino, com longas barbas e longas guedelhas, e o alforge ßs costas contendo as sortes humanas...╗--E com effeito ao cabo do pinheiral silencioso, que estiradas resteas de sol docemente douravam--avistou a caleche da _Feitosa_, parada sob uma carvalha, com o cocheiro fardado de negro dormitando na almofada. A estrada real de Oliveira costeia ahi o antigo adro do mosteiro de Craquŕde, queimado pelo fogo do cÚo, n'aquella irada tempestade que chamam _de S. SebastiŃo_, e que aterrou Portugal em 1616. Uma herva agora alfombra o chŃo, crescida e verde, entre os poderosos troncos dos castanheiros velhissimos. A Egrejinha nova alveja, bem caiada, ao fundo da ramaria: e, ligada a ella por um muro esbrechado que densa hera veste, tomando todo o lado nascente do Terreiro--sobe, enche ainda magnificamente o cÚo lustroso, a fachada da Egreja do vetusto Mosteiro, suavemente amarellecida e brunida pelos tempos, com o seu immenso portal sem portas, a rosacea desmantelada, e esvasiados os nichos d'enterramento onde outr'ora se estirašavam as imagens dos fundadores, Froylas Ramires e sua mulher Estevaninha, condessa d'Orgaz, por alcunha a _Queixa-perra_. Duas casas terreas povoam o lado fronteiro do adro--uma limpa, com as hombreiras das janellas pintadas d'azul estridente, a outra deserta, quasi sem telhado, afogada na verdura d'um quinteiro bravo onde gira-soes resplandecem. Um pensativo silencio envolvia o arvoredo, as altivas ruinas. E nem o quebrava, antes serenamente o emballava, o susurro d'uma fonte, que a estiagem adelgašßra em fio lento, e mal enchia o seu tanque de pedra, toldado pela pallida e rala folhagem d'um chorŃo muito alto. O trintanario da _Feitosa_, ao enxergar o Fidalgo, saltou risonhamente da borda do tanque onde picava tabaco, para segurar a egoa. E Gonšalo, que desde pequeno nŃo penetrava nas ruinas de Craquŕde, seguia por um carreirinho cortado na relva, attentamente, encantado com aquella romantica solidŃo de lenda e verso, quando, sob o arco do portal, appareceram as duas senhoras voltando do velho Claustro. D. Maria Mendonša, com a sua sacudida vivacidade, agitou logo o guarda-sol de xadrezinho, semelhante ao vestido, cujas mangas, tufando desmedidamente nos hombros, lhe vincavam mais a elegancia esgalgada. E ao lado, na claridade, D. Anna era uma silenciosa e esvelta fˇrma negra, de lŃ negra e d'escumilha negra, onde apenas transparecia, suavisada sob o vÚo negro, a brancura explendida da sua face sensual e sÚria. Gonšalo correra, erguendo o chapÚo de palha, balbuciando o seu źprazer por aquelle encontro...╗ Mas jß D. Maria o reprehendia, sem lhe consentir a fabula do źencontro╗: --O primo nŃo Ú nada amavel, nada amavel... --Oh prima!... --Pois sabia que vinhamos, pela minha carta! E nem estß ß hora aprazada, para fazer as honras, como devia... Elle, rindo, com o seu desembarašo airoso, negou esse dever! Aquella casa nŃo era sua, mas do Bom Deus! Ao Bom Deus competia źfazer as honras╗--acolher tŃo doces romeiras com algum milagre amavel... --E entŃo, gostaram? V. Ex.^a, Snr.^a D. Anna, gostou das ruinas?... Muito interessantes, nŃo Ú verdade? AtravÚs do vÚo, com uma lentidŃo que a espessa renda negra tornava mais grave, ella murmurou: --Eu jß conhecia... Vim cß uma tarde, com o pobre Sanches que Deus haja. --Ah... ┴quella evocašŃo do pobre morto, Gonšalo sumira todo o sorriso, com polida tristeza. Mas D. Maria Mendonša acudio, atirando um dos seus magros gestos, como para arredar a sombra importuna: --Ai! nŃo imagina o que gostei, primo! ╔ d'appetite todo o claustro... Logo aquella espada enferrujada, chumbada por cima do tumulo... NŃo ha nada que impressione como estas cousas antigas... Oh primo, e pensar que estŃo alli antepassados nossos! O sorriso de Gonšalo de novo lampejou, alegre e acolhedor, como sempre que D. Maria se empurrava com desesperada gula para dentro da Casa de Ramires. E gracejou, affavelmente. Oh, antepassados... Simples punhados de cinsa vŃ!--Pois nŃo era verdade, Snr.^a D. Anna?... Realmente! quem conceberia que a prima Maria, tŃo viva, tŃo sociavel, tŃo engrašada, descendesse d'uma poeira tristonha guardada dentro d'uma pia de pedra? NŃo! nŃo se podia ligar tanto _ser_ a tanto _nŃo-ser_...--E como D. Anna sorria, n'uma vaga concordancia, encostando as duas mŃos fortes e muito apertadas na pellica negra ao alto cabo d'aljofar da sombrinha, elle atalhou com interesse: --V. Ex.^a estß talvez canšada, Snr.^a D. Anna? --NŃo, nŃo estou canšada... Ainda vamos mesmo entrar na capella, um bocadinho... Eu nunca me canšo. E pareceu a Gonšalo que a voz da formosa creatura nŃo rolava do papo, tŃo grossa e gorda--mas que se afinßra, adošada e velada pelo luto d'escomilha e lŃ, como esses grossos e rolantes rumores que a noite e o arvoredo adelgašam. Mas D. Maria confessou o seu immenso canšasso! Nada a esfalfava como visitar curiosidades... E alÚm d'isso a emošŃo, a ideia de heroes tŃo antigos! --Se nos sentassemos n'aquelle banco, hein? ╔ muito cedo para recolhermos, nŃo Ú verdade, Annica? E estß tŃo agradavel n'este socego, n'esta frescura... Era um banco de pedra, rente ao muro esbrechado que a hera afogava. Em torno a relva crescia, mais silvestre e florida com os derradeiros malmequeres e bot§es d'ouro que o sol d'Agosto poupßra. Um aromasinho fino, d'algum jasmineiro emmaranhado na hera, errava, adocicava a serena tarde. E na rama d'um alamo, defronte do portŃo da Capella, duas vezes um melro cantßra. Gonšalo sacudiu todo o banco cuidadosamente, com o lenšo. E sentado na ponta, junto de D. Maria, louvou tambem a frescura, o recolhimento d'aquelle cantinho de Craquŕde... E elle que nunca se aproveitßra de refugio tŃo santo, e quasi seu, nem mesmo para um almošo bucolico! Pois agora certamente voltaria fumar um charuto, revolver ideias de paz sob a paz das carvalheiras, na visinhanša dos vovˇs mortos... Depois, com uma curiosidade: --╔ verdade, prima! E o subterraneo? Oh! nŃo existia subterraneo!... Sim, existia--mas entulhado, sem sepulturas, sem antiguidades. E o sachristŃo logo lhes affianšßra que źnŃo valia a pena sujarem as saias...╗ --╔ verdade, oh Annica, dÚste alguma cousa ao sachristŃo? --Oh filha, dei cinco tost§es... NŃo sei se foi bastante. Gonšalo assegurou que se pagßra sumptuosamente ao sachristŃo. E, se prevesse tamanha generosidade da Snr.^a D. Anna, agarrava elle um mˇlho de chaves, atÚ enfiava uma opa preta, para mostrar--e para embolsar... --Pois Ú o que devia ter feito! exclamou D. Maria, com um corisco nos espertos olhos. E decerto se lhe davam os cinco tost§es! Porque sempre serÝa mais instructivo que o homemsinho, que mascava, nŃo sabia nada!... Semelhante morcŃo! E eu com tanta curiosidade por aquelle tumulo aberto, com a tampa rachada... O m˘no sˇ soube resmungar que źeram historias muito antigas lß do Fidalgo da Torre...╗ Gonšalo ria: --Pois essa historia por acaso sei eu, prima Maria! Sei agora pelo _Fado dos Ramires_, o fado do Videirinha... D. Maria Mendonša levantou as compridas mŃos aos cÚos, revoltada com aquella indifferenša pelas tradiš§es heroicas da Casa. Conhecer sˇmente os seus Annaes desde que elles andavam repicados n'um fado!... O primo Gonšalo nŃo se envergonhava? --Mas por quŕ, prima, porquŕ? O fado do Videirinha estß fundado em documentos authenticos que o Padre Sueiro estudou. Todo o recheio historico foi fornecido pelo Padre Sueiro. O Videirinha sˇ poz as rimas. AlÚm d'isso antigamente, prima, a Historia era perpetuada em verso e cantada ao som da lyra... Em fim quer saber esse caso do tumulo aberto, segundo as quadras do Videirinha? Eu sempre conto! Mas sˇ para a Snr.^a D. Anna, que nŃo soffre d'esses escrupulos... --NŃo! acudiu D. Maria. Se o Videirinha tem essa auctoridade historica entŃo conte tambem para mim, que sou da Casa! Gonšalo, por gracejo, tossio, passou o lenšo pelos beišos: --Pois eis o caso! N'esse tumulo habitava, naturalmente morto, um dos meus avˇs... NŃo me lembro o nome, Gutierres ou Lopo. Creio que Gutierres... Emfim, lß jazia quando foi da batalha das Navas de Tolosa... A prima Maria conhece a batalha das Navas, os cinco reis mouros, etc... Como o tal Gutierres soube da batalha nŃo contam os versos do Videirinha. Mas, apenas lß dentro lhe cheirou a carnificina, arromba o tumulo, sahe por este pateo como um desesperado, desenterra o seu cavallo que f˘ra enterrado no adro onde agora crescem estes carvalhos, monta n'elle todo armado, e, Cavalleiro morto sobre cavallo morto, larga a galope atravÚs da Hespanha, chega ßs Navas, arranca a espada, e destroša os mouros... Que lhe parece, Snr.^a D. Anna? Dedicßra a historia a D. Anna, procurando nos seus bellos olhos a attenšŃo e o interesse. E ella, que a furto, atravÚs do dec˘ro melancolico a que se esforšava, adošßra o sorriso, attrahida e levada, murmurou apenas:--źTem graša!╗--D. Maria, porÚm, quasi esvoašou sobre o banco de pedra, n'um extasis:--źLindo! Lindo! Que poesia!... Oh! uma lenda de todo o appetite!╗--E, para que Gonšalo desenrolasse ainda a graša do seu dizer, outras maravilhas da sua Chronica: --Conte, primo, conte... E voltou para Craquŕde esse tio Ramires? --Quem, prima, o Gutierres?... Ou fosse elle tolo! Apenas se apanhou livre da massada da sepultura nŃo appareceu mais em Santa Maria de Craquŕde. O tumulo vasio, como estß, e elle por Hespanha n'uma pandega heroica!... Imagine! um defunto que por milagre se safa do seu jazigo, d'aquella postura eterna, tŃo apertada, tŃo esticada!... Subitamente emmudeceu, lembrando o Sanches Lucena, tambem esticado no seu caixote de chumbo, sob o seu vistoso jazigo d'Oliveira...--D. Anna baixßra a face, mais sumida no vÚo, esfuracando a herva com a ponta da sombrinha. E a esperta D. Maria, para desfazer a sombra impertinente que de novo os rošßra, rompeu n'outra curiosidade, que ainda se encadeava na nobreza dos Ramires: --╔ verdade! Sempre me esquece de lhe perguntar. O primo ainda tem muitos parentes em Franša... Talvez tambem nŃo saiba? Sim! Gonšalo, casualmente, conhecia essa historia dos seus parentes de Franša--apezar de que o Videirinha os nŃo cantßra no Fado! --EntŃo conte! Mas que seja historia alegre! Oh, nŃo era prodigiosamente divertida! Um av˘ Ramires, Garcia Ramires, acompanhßra nas suas famosas jornadas o Infante D. Pedro, o filho d'El-Rei D. JoŃo I... A Prima Maria sabia--o Infante D. Pedro, o que correu as Sete Partidas do mundo... Pois o Infante D. Pedro e os seus fidalgos, de volta da Palestina, pousaram um anno inteiro na Flandres, com o Duque de Borgonha. AtÚ se celebraram entŃo festas maravilhosas, com um banquete que durou sete dias, e que anda nos compendios da Historia de Franša. Onde ha danšas ha amores. A av˘ Ramires sobejava imaginašŃo e arrojo... F˘ra elle que deante de Jerusalem, no Valle de Josaphat, lembrßra que se erguesse um _signal_ para que o Infante e os seus companheiros de romagem se reconhecessem no grande Dia de Juizo. Depois, naturalmente, bello mocetŃo, de barba negra e cerrada ß Portugueza... Emfim casßra com uma irmŃ do Duque de ClŔves, uma tremenda Senhora, sobrinha do Duque de Borgonha e Brabante. Mais tarde, atravÚs d'essas ligaš§es, uma avˇ Ramires, jß viuva, casou tambem em Franša com o conde de Tancarville. Esses Tancarvilles, Gran-Mestres de Franša, possuiam o mais formidavel castello da Europa, e... D. Maria bateu as palmas, rindo: --Bravo! lindamente! Sim, senhor!... EntŃo o primo que se gaba de nŃo saber nada de fidalguias... Olhe como conhece pelo miudo a historia d'esses grandes casamentos! Hein, Annica?... ╔ uma Chronica viva! Gonšalo vergou os hombros, confessou que se occupßra de toda essa heraldica historia por um motivo bem rasteiro--por miseria!... --Por miseria? --Sim, prima Maria, por pen˙ria de moeda, de cobres... --Conte! conte! Olhe, a Annica estß anciosa... --Quer saber, Snr.^a D. Anna?... Pois foi em Coimbra, no meu segundo anno de Coimbra. Os companheiros e eu chegamos a nŃo juntar entre todos um vintem. Nem para cigarros! Nem para o sagrado decilitro de carrascŃo e as tres azeitonas do dever... Um d'elles entŃo, rapaz muito engrašado, de Melgašo, surdiu com a idÚa estupenda de que eu escrevesse aos meus parentes de Franša, a esses ClŔves, a esses Tancarvilles, senhores de certo immensamente ricos, e sollicitasse, com desembarašo, um emprestimosinho de trezentos francos. D. Anna nŃo conteve um riso, sinceramente divertido: --Ai! tem muita graša! --Mas nŃo teve resultado, minha senhora... Jß nŃo existem ClŔves, nem Tancarvilles! Todas essas grandes familias feudaes findaram, se fundiram n'outras casas, atÚ na Casa de Franša. E o meu padre Sueiro, apezar de todo o seu saber genealogico, nunca conseguiu descobrir quem as representava com bastante affinidade para me emprestar, a mim parente pobre de Portugal, esses trezentos francos. Aquella penuria de Gonšalo, de tamanho fidalgo, quasi enternecera D. Anna: --Ora estarem assim sem vintem! Quem soubesse... Mas tem graša! Essas historias de Coimbra teem sempre muita graša. O D. JoŃo de Pedrosa, em Lisboa, tambem contava muitas... D. Maria Mendonša, porÚm, atravÚs d'essa facecia d'estudantes, descortinßra outra prova inesperada da grandeza dos Ramires. E immediatamente a estendeu deante de D. Anna com habilidade: --Ora vejam!... Todas essas grandes casas de Franša, tŃo ricas, tŃo poderosas, acabaram, desappareceram. E cß no nosso Portugalsinho ainda dura a casa de Ramires! Gonšalo acudiu: --Acaba agora, prima!... NŃo olhe para mim assim espantada. Acaba agora... Pois se eu nŃo caso! EntŃo D. Maria recuou o magro peito--como se esse casamento do primo dependesse de doces influencias, que convinha se trocassem bem chegadamente, sem Marias Mendonšas de permeio no estreito banco com grandes mangas bufantes tolhendo as correntes de effluvio. E sorria, quasi languidamente: --Ora nŃo casa... Mas por quŕ, primo, por quŕ? --Por que nŃo tenho geito, prima. O casamento Ú uma arte muito delicada que necessita vocašŃo, genio especial. As Fadas nŃo me concederam esse genio. E se me dedicasse a semelhante obra, ai de mim! com certeza a estragava. D. Anna, como se outra idÚa a occupasse, puxßra lentamente do cinto o relogio preso por uma fita de cabello. E D. Maria insistia, recusava os motivos do Fidalgo: --SŃo tolices. O primo que gosta tanto de creanšas... --Gosto, gosto muito de creancas, atÚ de creancinhas de mama. As creanšas sŃo os unicos seres divinos que a nossa pobre humanidade conhece. Os outros anjos, os d'azas, nunca apparecem. Os santos, depois de santos, ficam na Bemaventuranša a preguišar, ninguem mais os enxerga. E, para concebermos uma ideia das cousas do cÚo, sˇ temos realmente as creancinhas... Sim, com effeito, prima, gosto muito de creanšas. Mas tambem gosto de fl˘res, e nŃo sou jardineiro, nem tenho geito para a jardinagem. E D. Maria com uma faisca no olhar promettedor: --Socegue, que ainda vem a aprender! Depois, para D. Anna que se esquecera na contemplašŃo do relogio: --Achas que vŃo sendo horas? EntŃo, se queres, entramos na Capella... Oh primo, veja se estß aberta. Gonšalo correu, empurrou a porta da Capella. Depois acompanhou as duas senhoras pela pequenina nave soalhada, entre delgados pilares recobertos de uma cal aspera e crua--que recamava tambem as paredes lisas, apenas guarnecidas, na sua rigida nudez, por lithographias de Santos dentro de caixilhos de pinho. Deante do altar as senhoras ajoelharam--a prima Maria enterrando a face nas mŃos juntas como n'um vaso de Piedade. Gonšalo dobrou o joelho de leve, engrolou uma Ave-Maria. Depois voltou para o adro, accendeu um cigarro. E, pisando lentamente a relva, considerava quanto a viuvez melhorßra D. Anna. Sob o negrume do luto, como n'uma penumbra que esfuma a grosseira deselegancia das cousas, todos os seus defeitos se fundiam--os defeitos que tanto o horripilavam na tarde da Bica Santa, o rolar gordo da voz, o peito empinado, a ostentašŃo de burgueza ricassa pinguemente repimpada na vida. AtÚ jß nem dizia--źo cavalheiro!╗ E alli, no adro melancolico de Craquŕde, certamente parecia interessante e desejavel. As senhoras desciam os dois degraus da Capella. Um melro esvoašou na ramagem dos alamos. E Gonšalo encontrou o lampejo dos olhos serios de D. Anna que o procuravam. --Pešo perdŃo de nŃo lhes ter offerecido agua benta ß sahida, mas a concha estß secca... --Jesus, primo, que Egreja tŃo feia! D. Anna arriscou, com timidez: --Depois das ruinas e dos tumulos, atÚ parece pouco religiosa. A observašŃo impressionou Gonšalo, como muito fina. E junto d'ella, demorando os passos com agrado, sentia, esparzido pelos seus movimentos, pelo rošar do vestido, um aroma tambem fino, que nŃo era o da horrenda agua de Colonia da botica do Pires. Em silencio, sob a ramagem das carvalhas, caminharam para a caleche, onde o cocheiro se aprumßra, bem estilado, tirando o chapeu. Gonšalo notou que elle rapßra o bigode. E a parelha reluzia, atrelada com esmero. --E entŃo, prima Maria, ainda se demora pelos nossos sitios? --Sim, primo, mais uns quinze dias... A Annica Ú tŃo amavel, quiz que eu trouxesse os pequenos. O que elles se tŕm divertido na quinta, nŃo imagina! D. Anna murmurou, sempre sÚria: --SŃo muito engrašados, fazem muita companhia... Eu tambem gosto muito de creanšas. --Ai, a Annica adora creanšas! accudiu D. Maria com fervor. O que ella atura os pequenos! AtÚ joga com elles o mafarrico. Perto da caleche, Gonšalo pensou que outra volta pelo adro, mais lenta, com a D. Anna e o seu fino aroma, seria doce, n'aquelle socego da tarde que findava, tingida de tŃo lindas c˘res de rosa sobre os pinheiraes escurecidos. Mas jß o trintanario se acercava segurando a sua egoa. E D. Maria, depois de admirar e acariciar a egoa, chamou o primo discretamente--para saber a distancia da _Feitosa_ a Treixedo, a outra quinta historica dos Ramires. --A Treixedo, prima?... Cinco legoas fartas, com maus caminhos. E immediatamente se arrependeu, antevendo um passeio, um novo encontro: --Mas na estrada ultimamente andaram obras. E Ú muito bonito sitio, n'um alto, com um resto de muralhas... Treixedo era um castello enorme... Na quinta ha uma lag˘a entre arvoredo antigo... Oh! sitio delicioso para um pic-nic! D. Maria hesitou: --╔ um pouco longe, veremos, talvez. E como D. Anna esperava em silencio--Gonšalo abriu a portinhola, tomou ao trintanario as rÚdeas da egoa. D. Maria Mendonša, no seu contentamento por tŃo proveitosa tarde, sacudiu ardentemente a mŃo do primo jurando źque ia apaixonada por Craquŕde!╗ D. Anna mal rošou os dedos de Gonšalo, acanhada e cˇrando. Sˇzinho, com a rÚdea da egoa enfiada no brašo, Gonšalo sorria. Na verdade, n'essa tarde, D. Anna nŃo lhe desagradßra. Outros modos, outra singeleza grave, outra došura na sua possante belleza de Venus rural... E aquella observašŃo sobre a Capella, źpouco religiosa╗ depois das ruinas seculares do claustro, era uma observašŃo fina. Quem sabe? Talvez sob carne tŃo sensual se escondesse uma natureza delicada. Talvez a influencia d'outro homem, que nŃo o estupidissimo Sanches, desenvolvesse na filha explendida do carniceiro qualidades de muito encanto... Oh, evidentemente, a observašŃo sobre os tumulos e a sua religiosidade emanando da Lenda e da Historia--era fina. E entŃo tambem o tomou a curiosidade de visitar esse claustro onde nŃo entrßra desde pequeno--quando ainda a Torre conservava as suas carruagens montadas e a romantica Miss Rhodes escolhia sempre o passeio de Craquŕde para as tardes pensativas d'outomno. Puxou a egoa, transpoz o portal, atravessou o espašo descoberto que f˘ra a nave--atulhado de cališa, de cacos, de pedras despegadas da abobada e afogadas nas hervas bravas. E pela brecha d'um muro a que ainda se amparava um pedašo d'altar--penetrou na silenciosa crasta Affonsina. Sˇ d'ella restam duas arcadas em angulo, atarracadas sobre rudes pilares, lageadas de poderosas lages poidas que n'essa manhŃ o sachristŃo cuidadosamente varrera. E contra o muro, onde rijas nervuras desenham outros arcos, avultam os sete immensos tumulos dos antiquissimos Ramires, denegridos, lisos, sem um lavor, como toscas arcas de granito, alguns pesadamente encravados no lagedo, outros pousando sobre bolas que os seculos lascaram. Gonšalo seguia um carreiro de tijolo, rente aos arcos, recordando quando elle outr'ora e Gracinha pulavam ruidosamente por sobre essas campas, em quanto no pateo do claustro, entre as pilastras tombadas e a verdura das ruinas, a boa Miss Rhodes agachada procurava florinhas silvestres. Na abobada, sobre o mais vasto tumulo, lß negrejava chumbada a espada, a famosa espada, com a sua corrente de ferro pendendo do punho, a folha roida pela ferrugem das longas idades. Sobre outro lß ardia a lampada, a estranha lampada mourisca, que nŃo se apagßra desde a tarde remota em que algum monge, com uma tocha de sahimento, silenciosamente a accendera... Quando se accendera ella, a eterna lampada? Que Ramires jazeriam n'esses cofres de granito, a que o tempo raspßra as inscripš§es e as datas, para que n'ellas toda a Historia se sumisse, e mais escuramente se volvessem em leve pˇ sem nome aquelles homens de orgulho e de forša?... Depois na ponta do claustro era o tumulo aberto, e ao lado, derrubada em dous pedašos, a tampa que o esqueleto de Lopo Ramires arrombßra para correr ßs Navas de Tolosa e bater os cinco Reis mouros. Gonšalo espreitou para dentro, curiosamente. A um canto da funda arca alvejava um montŃo d'ossos, limpos e bem arrumados! Esquecera o velho Lopo, na sua pressa heroica, esses poucos ossos, jß despegados do seu esqueleto?... O crepusculo cerrßra, e com elle uma melancolica sombra que se adensava sob as abobadas da crasta, cobria de tristeza morta aquella jazida de mortos. EntŃo Gonšalo sentiu a desolada solidŃo que o envolvia, o separava da vida, alli desgarrado, e sem soccorro entre a poeira e a alma errante dos seus avˇs temerosos! E de repente estremeceu, no arripiado mŕdo de que outra tampa estalasse com fragor e atravez da fenda surdissem lividos dedos sem carne! Repuxou desesperadamente a egoa pelo muro desmantelado, nas ruinas da nave pulou para o selim, e varou n'um trote o portal, galgou o adro com ancia--sˇ socegou ao avistar, ao fim do pinhal, a cancella do Caminho de Ferro aberta, e uma velha que a passava tangendo o seu burro carregado d'herva. VIII Ao fim da semana Gonšalo, que desde a visita a Santa Maria de Craquŕde arrastava o remorso incommodo da sua preguiša, do tŃo longo abandono da Novella--recebeu de manhŃ, ao sahir do banho, uma carta do Castanheiro. Era curta:--e declarava ao amigo Gonšalo que, se em meado de Outubro nŃo chegassem a Lisboa tres Capitulos do original, elle, com pezar seu e da Arte, publicaria no primeiro numero dos Annaes, em vez da _Torre de D. Ramires_, um drama do Nuno Carreira n'um acto, intitulado _Em Casa do Temerario_... źApezar de drama e de phantasia (accrescentava) convem ß indole erudita dos Annaes por que este _Temerario_ Ú Carlos o Temerario, e a acšŃo toda, fortemente tecida, se passa no Castello de Peronne, onde se encontram nada menos que Luiz XI de Franša, e o nosso pobre Affonso V, e Pero da Covilhan que o acompanhava, e outros figur§es de rija estatura historica. Imagine!... Estß claro, o _chic_ supremo seria _Tructezindo Mendes Ramires_ contado pelo nosso Gonšalo Mendes Ramires! Mas, pelo que vejo, esse _chic_ supremo estß impedido por uma indolencia suprema. _Sunt Lacrymae Revistarum_!╗ Gonšalo atirou a carta, gritou pelo Bento: --Leva para a livraria chß verde, forte, com torradas. Hoje sˇ almošo tarde, ßs duas... Talvez nem almoce! E, enfiando o roupŃo de trabalho, decidiu amarrar ß banca, como um captivo ao remo, atÚ que rematasse esse difficil Capitulo III, onde resaltava o barbaro e sublime rasgo do av˘ Tructezindo. NŃo, que diabo! nŃo lhe convinha perder a apparišŃo da Novella em tŃo proveitoso momento, nas vesperas da sua chegada a Lisboa, quando para a influencia Politica e para o prestigio social necessitava d'esse brilho que, segundo o velho Vigny, źuma penna de ašo accrescenta a um elmo dourado de Fidalgo...╗ Felizmente, n'essa luminosa manhŃ em que as agoas da horta fartamente cantavam, elle sentia tambem a veia borbulhando, contente em se soltar e correr. Depois da visita ß crasta de Craquŕde a sua imaginašŃo concebia menos ennevoadamente os seus avˇs Affonsinos:--e como que os palpava emfim no seu viver e pensar desde que contemplßra os grandes tumulos onde se desfaziam as suas grandes ossadas. Na Livraria retomou com appetite, depois de lhes sacudir a poeira, as tiras da Novella sobre que emperrßra, n'aquelle atarantado lance de susto e alarme--quando o Villico, o velho Ordonho, reconhecia o pendŃo do Bastardo surgindo ß borda da Ribeira do Coice entre o coriscar de lanšas empinadas, passando a antiga ponte de madeira, e, um momento sumido na verdura dos alamos, de novo avanšando, alto e tendido, atÚ ao rude Cruzeiro de pedra de Gonšalo Ramires o _Cortador_... O gordo Ordonho entŃo, atirando o brado de--źPrestes, prestes! que Ú gente de BayŃo!╗--descambava pelo escalŃo da muralha como um fardo que rola. No emtanto Tructezindo Ramires, no empenho d'aprestar a sua mesnada e abalar sobre Montemˇr, regera jß com o Adail a ordem da arrancada, mandando que as buzinas soassem mal o sol batesse na margella do Pošo grande. E agora, na sala alta da Alcašova, conversava com o seu primo de Riba-Cavado e costumado camarada d'armas, D. Garcia Viegas--ambos sentados nos poiaes de pedra d'uma funda janella, onde uma bilha d'agoa com o seu pucaro refrescava entre vasos de manjaricŃo. D. Garcia Viegas era um velho esgalgado e agil, d'escuro carŃo rapado, com uns miudos olhos coruscantes--que merecŕra a alcunha de _Sabedor_ pela viveza e succulencia do seu dizer, as suas infinitas manhas de guerra, e a prenda de fallar latim mais doutamente que um Clerigo da Curia. Convocado por Tructezindo, como os outros parentes de solar, para engrossar a mesnada dos Ramires em servišo das infantas, corrŕra logo a Santa Ireneia fielmente com o seu pequeno poder de dez lanšas--comešando por saquear no caminho a herdade de Palha-CŃ, dos de Severosa, que andavam com pendŃo alto na Hoste Real contra as Donas opprimidas. TŃo rijamente se apressßra que, desde a madrugada, apenas comŕra sobre a sella, em Palha-CŃ, duas rodelas dos chourišos roubados. E com a sŕde da afogueada correria, ainda na emošŃo de tŃo amarga nova, a derrota de Lourenšo Ramires seu afilhado, novamente enchia d'agoa o pucaro de barro--quando pela porta da sala de armas, que tres cabešas de javali dominavam, rompeu o velho Ordonho esbaforido: --Snr. Tructezindo! Snr. Tructezindo Ramires! o Bastardo de BayŃo passou a Ribeira, vem sobre nˇs com grande trošo de lanšas! O velho Rico-Homem saltou do poial. E arremessando a mŃo cabelluda, cerrada com sanha, como se jß pela gorja empolgasse o Bastardo: --Pelo Sangue de Christo! em boa hora vem que nos poupa caminho! Hein, Garcia Viegas? A cavallo e sobre elle...? Mas, rente aos tropegos calcanhares de Ordonho, correra um Coudel de Besteiros, que gritou dos humbraes, saccudindo o capello de couro: --Senhor! Senhor! A gente de BayŃo parou ao Cruzeiro! E um cavalleiro mošo, com um ramo verde, estß deante das barbacans, como trazendo mensagem... Tructesindo bateu o sapato de ferro sobre as lages, indignado com tal embaixada mandada por tal villŃo...--Mas Garcia Viegas, que d'um sorvo enxugßra o pucaro, recordou serenamente e lealmente os preceitos: --Tende, tende, primo e amigo! Que, por uso e lei d'aquem e d'alÚm serras, sempre mensageiro com ramo se deve escutar... --Seja pois! bradou Tructesindo. Ide vˇs fˇra ßs barreiras com duas lanšas, Ordonho, e sabei do recado! O Villico rebolou pela denegrida escada de caracol atÚ ao patim da Alcašova. Dous accostados, de lanša ao hombro, recolhendo d'alguma rolda, conversavam com o armeiro, que sarapintßra de amarello e escarlate cabos d'ascumas novas e as enfileirava contra o muro para seccarem. --Por ordem do Senhor! gritou Ordonho. Lanša direita, e commigo ßs barbacans, a receber mensagem!... Ladeado pelos dous homens que se aprumaram, atravessou as barreiras; e pelo postigo da barbacan, que uma quadrilha de besteiros guardava, sahiu ao terreiro da Honra, largueza de terra calcada, sem relva ou arvore, onde se erguiam ainda as traves carcomidas d'uma antiga forca, e se amontoavam agora, para os concertos da Alcašova, ripas de madeira, e grossas cantarias lavradas. Depois, sem arredar do humbral, empinando o ventre entre os dous accostados, bradou ao mošo Cavalleiro, que esperava sob o rijo sol, sacudindo os moscardos com o seu ramo d'amoreira: --Dizei de que gente sois! e a que vindes! e que credencia trazeis!... E como arqueßra logo a mŃo inquieta sobre a orelha--o Cavalleiro, serenamente, entalando o ramo entre o coxote e o aršŃo, arqueou tambem os dous guantes relusentes d'escamas na abertura do casco, bradou: --Cavalleiro do solar de BayŃo!... Credencia nŃo trago que nŃo trago embaixada... Mas o Snr. D. Lopo ficou alÚm ao Cruzeiro, e deseja que o nobre senhor da Honra, o Snr. Tructezindo Ramires, o escute do eirado da barbacan... O Villico saudou--recolheu pela poterna abobadada da torre albarran, murmurando para os dous accostados: --O Bastardo vem a tratar o resgate do Snr. Lourenšo Ramires... Ambos rosnaram: --Feio feito. Mas, quando Ordonho offegante se apressava para a Alcašova, encontrou no pateo Tructezindo Ramires--que, na irada impaciencia d'aquellas delongas do Bastardo, descera, todo armado. Sobre o comprido brial de lŃ verde-negra, que recobria a vestidura de malha, as suas barbas rebrilhavam, mais brancas, atadas n'um grosso nˇ como a cauda d'um corcel. Do cinturŃo tauxeado de prata pendia a um lado o punhal recurvo, a bozina de marfim--ao outro uma espada g˘da, de folha larga, com alto punho dourado onde scintillava uma pedra rara trazida outr'ora da Palestina por Gutierres Ramires, o _d'Ultramar_. Um sergente conduzia sobre uma almofada de couro os seus guantes, o seu capello redondo, de vizeira gradada, como usßra El-Rei D. Sancho: outro carregava o immenso broquel, da fˇrma d'um corašŃo, revestido de couro escarlate, com o Aš˘r negro rudemente pintado, esgalhando as garras furiosas. E o Alferes, Affonso Gomes, seguia com o guiŃo enrolado na funda de lona. Com o velho Rico-Homem descŕra D. Garcia Viegas, e os outros parentes do Solar--o decrepito Ramiro Ramires, um veterano da tomada de Santarem, torcido pelos rheumatismos como a raiz de um roble, e arrimando os passos tremulos, nŃo a um bastŃo, mas a um chusso; o formoso Leonel, o mais mošo dos Samoras de Cendufe, o que matßra os dois ursos nos brejos de Cacham˙z e que tŃo bem trovava; Mendo de Briteiros, o das barbas vermelhas, grande queimador de bruxas, lŕdo arranjador de folgares e danšas; e o agigantado Senhor dos Pašos de Avellim, todo coberto, como um peixe fabuloso, de escamas que reluziam. Como o sol se acercava da margella do Pošo grande, marcando a hora da arrancada sobre Monte-mˇr--jß, dos fundos alpendres que escondiam os campos do tavolado, os cavallarišos puxavam os ginetes de guerra, com as suas altas sellas pregueadas de prata, as ancas e os peitos resguardados por coberturas de couro franjado que rojavam nas lagens. Por todo o Castello se espalhßra que o Bastardo, depois da lide fatal aos Ramires, correra de Canta-Pedra, ameašava a Honra:--e debrušados dos passadišos que ligavam a muralha aos contrafortes da Alcašova, ou mettidos por entre os engenhos d'arremesso que atulhavam as corredoiras, os mošos da ucharia, os servos das hortas, os vill§es acolhidos para dentro das barbacans, espreitavam o Senhor de Santa Ireneia e aquelles Cavalleiros fortes, com anciedade, tremendo do assalto dos de BayŃo e d'essas horrendas bolas de ferro, cheias de fogo, que agora as mesnadas ChristŃs arrojavam tŃo destramente como as hordas Sarracenas.--No emtanto com a sua gorra esmagada contra o peito, Ordonho, arfando, apresentava a Tructesindo o recado do Bastardo: --╔ cavalleiro mošo, nŃo traz credencia... O Snr. Bastardo espera ao Cruzeiro... E pede que o attendaes da quadrella das barbacans... --Que se acerque pois! gritou o velho. E com quantos queira dos vill§es que o seguem! Mas Garcia Viegas, o _Sabedor_, sempre avisado, com a sua esperta mansidŃo: --Tende, primo e amigo, tende! NŃo subaes vˇs ß tranqueira antes que eu me assegure se BayŃo nos vem com arteirice ou falsura. E entregando a sua pesada lanša de faia a um donzel, enfiou pela escada soturna da Torre albarran. Em cima no eirado, sussurrando um _chuta! chuta!_ ß fila de besteiros que guarnecia as ameias, attenta e com a bÚsta encurvada--penetrou no miradouro, espiou pela setteira. O arauto de BayŃo galopßra para o Cruzeiro, que uma selva movediša de lanšas rodeava coriscando. E curto recado lanšou--porque logo, no seu fouveiro acobertado por uma rŕde de malha acairellada d'ouro, Lopo de BayŃo despegou do denso trošo de cavalleiros, com a viseira erguida, sem lanša ou ascuma de monte, e ociosas sobre o aršŃo da sella mourisca as mŃos onde se enrodilhavam as bridas de couro escarlate. Depois, a um toque arrastado de buzina, avanšou para as barbacans da Honra, vagarosamente, como se acompanhasse um sahimento. NŃo movera o seu pendŃo amarello e negro. Apenas seis infanš§es o escoltavam, tambem sem lanša ou broquel, com sobrevestes de panno r˘xo sobre os saios de malha. Atraz quatro alentados besteiros carregavam aos hombros umas andas, toscamente armadas com troncos de arvores, onde um homem jazia estirado, como morto, coberto, contra o calor e os moscardos, por leves folhagens de acacia. E um monge seguia n'uma mula branca, segurando misturadamente com as rÚdeas um crucifixo de ferro, sobre que pendia a orla do seu capuz e uma ponta de barba negra. Da setteira, mesmo sem descortinar por entre a camada de ramagens a face do homem estendido nas andas, o _Sabedor_ adivinhou Lourenšo Ramires, o doce afilhado que tanto amßra, que tŃo bem ensinßra a teršar lanšas e a treinar falc§es. E cerrando os punhos, gritando surdamente--źBem prestos! bÚsteiros, bem prestos!╗--desceu a escura escadaria, tŃo arremessado pela colera e pela magoa que o seu elmo cavamente bateu contra o arco da porta, onde o esperava Tructesindo com os Cavalleiros parentes. --Senhor primo! bradou. Vosso filho Lourenšo estß deante das barreiras da Honra deitado sobre umas andas! Com um rosnar d'espanto, um atropelo dos sapatos de ferro sobre as lages sonoras, todos seguiram pela poterna da albarran o Rico Homem--atÚ ao escadŃo de madeira que se empurrava contra a quadrella das barbacans. E, quando o enorme velho surdio no eirado, um silencio pesou, tŃo ancioso, que se sentia para alÚm do vergel o chiar triste e lento da nora e o latir dos mastins. No terreiro, em frente ß cancella gateada, o Bastardo esperava, immovel sobre o seu ginete, com a formosa face bem levantada, a face de _Claro-sol_, onde as barbas anelladas, cahindo nas solhas do arnez, rebrilhavam como ouro novo. Vergando o capello d'ouropel, saudou Tructesindo com gravidade e preito. Depois alšou a mŃo, que descalšßra do guante. E n'um considerado e sereno fallar: --Senhor Tructesindo Ramires, n'estas andas vos trago vosso filho Lourenšo, que em lide leal, no valle de Canta-Pedra, colhi prisioneiro e me pertence pelo foro dos Ricos-Homens d'Hespanha. E de Canta-Pedra caminhei com elle para vos pedir que entre nˇs findem estes homizios e estas feias brigas que malbaratam sangue de bons ChristŃos... Senhor Tructesindo Ramires, como vˇs venho de Reis. De D. Affonso de Portugal recebi a pranchada de Cavalleiro. Toda a nobre raša de BayŃo se honra em mim... Consenti em me dar a mŃo de vossa filha D. Violante, que eu quero e que me quer, e mandae erguer a levadiša para que Lourenšo ferido entre no seu solar e eu vos beije a mŃo de pae. Das andas, que estremeceram sobre os hombros dos besteiros, um desesperado brado partio: --NŃo, meu pae! E hirto na borda do eirado, sem descrusar os brašos, o velho Tructesindo retomou o brado--que por todo o terreiro da Honra rolou, mais arrogante e mais cavo: --Meu filho, antes de mim, te respondeu, villŃo! Como se uma pontoada de lanša lhe topasse o peito, o Bastardo vacillou na alta sella: e, colhido pelo repuxŃo das rÚdeas, o seu fouveiro recuou alteando a testeira dourada. Mas, a um novo arremesso, repulou contra a cancella. E Lopo de BayŃo erguido sobre os estribos, gritava com ancia, com furor: --Snr. Tructesindo Ramires, nŃo me tenteis!... --Arreda, villŃo e filho de vill˘a, arreda!--clamou soberbamente o velho, sem desprender os brašos de sobre o levantado peito, na sua rija immobilidade e teima, como se todo o corpo e alma fossem de rijo ferro. EntŃo o Bastardo, arrojando o guante contra o muro da barbacan, rugio, chammejante e rouco: --Pois pelo sangue de Christo e pela alma de todos os meus te juro, que se me nŃo dßs n'este instante essa mulher que eu quero e que me quer, sem filho ficas, que por minhas mŃos, deante de ti e nem que todo o CÚo accuda, lhe acabo o resto da vida! Jß na mŃo lhe lampejava um punhal. Mas n'um impeto de sublime orgulho, um impeto sobrehumano, em que cresceu como outra escura torre entre as torres da Honra, Tructesindo arrancßra a espada: --Com esta, covarde! com esta! Para que seja puro, nŃo vil como o teu, o ferro que atravessar o corašŃo de meu filho! Furiosamente, com as duas possantes mŃos, arremessou a espada, que rodopiou silvando e faiscando, se cravou no duro chŃo, onde tremia, ainda faiscava, como se uma colera heroica tambem a animasse. E no mesmo relance, com um urro, um salto do ginete, o Bastardo, debrušado do aršŃo, enterrßra o punhal na garganta de Lourenšo--em golpe tŃo cravado que o esguicho do sangue lhe salpicou a clara face, as barbas d'ouro. Depois foi uma bruta abalada. Os quatro besteiros sacudiram para o chŃo as andas, o corpo morto enrodilhado nos ramos--e atiraram pelo terreiro, como lebres em clareira, atraz do monge que se agachava agarrado ßs crinas da mula. N'uma curta desfilada o Bastardo, os seis cavalleiros, gritando o alarme, mergulharam no arraial que estacßra ao Cruzeiro. Um tumulto remoinhou em torno ao devoto pilar. E em rodilhado tropel a mesnada desenfreou para a Ribeira, varou a velha ponte, logo ennublada em pˇ e sumida para alÚm do arvoredo, n'um fugidio coriscar de capellinas e de lanšas apinhadas. Uma alta grita, no emtanto, atroßra as muralhas de Santa Ireneia! Virotes, flechas, balas de fundas assobiavam, despedidas no mesmo furioso repente, sobre o bando de BayŃo:--mas apenas um dos besteiros que carregßra as andas tombou, estrebuchando, com uma flecha na ilharga. Pela cancella das barreiras jß Cavalleiros e donzeis d'armas se empurravam desesperadamente para recolher o corpo de Lourenšo Ramires. E Garcia Viegas, os outros parentes, galgaram ao eirado da barbacan, d'onde Tructesindo se nŃo arredßra, rigido e mudo, fitando as andas e seu filho estatelado com ellas sobre o terreiro da sua Honra. Quando, ao rumor, elle pesadamente se voltou--todos emmudeceram ante a serenidade da sua face, mais branca que as brancas barbas, d'uma morta brancura de lapide, com os olhos resequidos e c˘r de braza, a latejar, a refulgir, como os dous buracos d'um forno. Com a mesma sinistra serenidade, tocou no hombro do velho Ramiro, que tremia arrimado ao seu chusso. E n'uma vagarosa e vasta voz: --Amigo! cuida tu do corpo de meu filho, que a alma ainda hoje, por Deus! lh'a vou eu socegar!... Afastou aquelles senhores emmudecidos d'assombro e d'emošŃo--e baixou pela gasta escada de madeira, que rangia sob o peso do enorme Rico-Homem carregado de ira e d˘r. N'esse momento, entre besteiros e servišaes que se atropellavam--o corpo de Lourenšo Ramires transpunha o portello das barbacans, segurado pelo formoso Leonel e por Mendo de Briteiros, ambos affogueados de lagrimas e rouquejando ameašas furiosas contra a raša de BayŃo. Atraz o tropego Ordonho gemia, abrašado ß espada de Tructesindo, que apanhßra no chŃo do Terreiro e que beijava como para a consolar. ┴ borda do fosso uma aveleira espalhava a sombra leve n'um bronco taboŃo pregado sobre toros--d'onde, aos domingos, com o adanel dos besteiros, Lourenšo dirigia os jogos de bÚsta e frecha, distribuindo fartamente as recompensas de bolos de mel e de vinho em picheis. Sobre essas taboas o estiraram--recuando todos depois, em quanto aterradamente se benziam. Um cavalleiro de Briteiros, temendo por aquella alma desamparada e sem confissŃo, correra ß capella da Alcašova procurar Frei Muncio. Outros, rodeando toda a muralha atÚ ao Baluarte-Velho, gritavam, com desesperados acenos, para o torreŃo escalavrado, onde, como um m˘cho, habitava o Physico. Mas o certeiro punhal do Bastardo acabßra o denodado Lourenšo, flor e regra de cavalleiros por toda a terra de Riba-Cavado... E que lastimoso e desfeito--com suja terra na face, a garganta empastada de sangue negro, as malhas do saio rotas sobre os hombros e embebidas nas carnes retalhadas, e nua, sem grŕva, toda inchada e r˘xa, a perna ferida em Canta-Pedra, onde mais sangue e lama se empastavam! Tructesindo descia, lento e rigido. E as seccas brazas dos seus olhos mais se incendiam, em quanto, atravez do dorido silencio, se acercava do corpo de seu filho. Deante do banco ajoelhou, agarrou a arrefecida mŃo que pendia; e, junto ß face manchada de sangue e terra, segredou, de alma para alma, n'um abafado murmurio, que nŃo era de despedida mas d'alguma suprema promessa, e que findou n'um beijo demorado sobre a testa, onde uma restea de sol rebrilhou, dardejada d'entre as folhas da aveleira. Depois erguido n'um arrebate, atirando o brašo como para n'elle recolher toda a forša da sua raša, gritou: --E agora, senhores, a cavallo, e vinganša brava! Jß pelos pßteos, em torno da Alcašova, corria um precipitado fragor d'armas. Aos asperos commandos dos almocadens as filas de besteiros, d'archeiros, de fundibularios, rolavam dos adarves dos muros para cerrar as quadrilhas. Rapidamente, os cavallarišos da carga amarravam sobre o dorso das mulas os caixotes do almazem, os alforges da trebalha. Pelas portas baixas da cosinha, pe§es e sergentes, antes de largar, bebiam ß pressa uma conca de cerveja. E no campo das barreiras os cavalleiros, chapeados de ferro, carregadamente se išavam, com a ajuda dos donzeis, para as altas sellas dos ginetes--logo ladeados pelos seus infanš§es e acostados, que aprumavam a lanša sobre o coxote assobiando aos lebreus. Emfim o Alferes, Affonso Gomes, saccou da funda e desfraldou o pendŃo n'um embalanšo largo em que as azas do Ašor negrejaram, abertas, como soltando o v˘o enfurecido. O grito agudo do Adail resoßra por toda a cerca--_ala! ala!_ De cima de um marco de pedra, junto ao postigo do barbacan, Frei Muncio estendia as magras mŃos ainda tremulas, abenšoava a hoste. EntŃo Tructesindo, sobre o seu murzello, recebeu do velho Ordonho a espada, de que tŃo terrivelmente se apartßra. E estendendo a reluzente folha para as torres da sua Honra como para um altar, bradou: --Muros de Santa Ireneia, nŃo vos torne eu a vŕr, se em tres dias, de sol a sol, ainda restar sangue maldito nas veias do traidor de BayŃo! E, escancaradas as barreiras, a cavalgada tropeou em torno ao pendŃo solto,--em quanto, na torre d'Almenara, sob o parado explendor da sÚsta d'Agosto, o sino grande comešava a tanger a finados. * * * * * Quando Gonšalo ß tarde, enterrado na poltrona ß varanda, releu este Capitulo de sangue e furor sobre que se esfalfßra durante a semana, pensou źque o lance impressionaria.╗ Sentiu entŃo o appetite de recolher sem demora os louvores merecidos--e de mostrar a Gracinha e ao Padre Sueiro os tres Capitulos completos antes de remetter o manuscripto para os *Annaes*. E mesmo lhe convinha--porque a erudišŃo archeologica do Padre Sueiro forneceria talvez algum trašo novo, bem Affonsino, que mais avivasse aquella resurreišŃo da Honra de Santa-Ireneia e dos seus senhores formidaveis. Immediatamente resolveu partir de manhŃ para Oliveira com o seu trabalho--que, depois de esmiušado pelo Padre Sueiro, confiaria ao procurador de D. Arminda Viegas para elle o copiar n'aquella sua formosa lettra, tŃo celebrada em todo o Districto, e apenas egualada (nas maiusculas) pela do EscrivŃo da Camara Ecclesiastica. Sacudia jß da poeira uma antiga pasta de marroquim para transportar a Obra amada--quando o Bento empurrou a porta, ajoujado com uma cesta de vime que uma toalha de rendas cobria. --Um presente. --Um presente... De quem? --Da _Feitosa_, das senhoras. --Bravo! --E com uma carta, que vem pregada na toalha. Com que curiosidade Gonšalo despedašou o sobrescripto! Mas, apezar de lacrado com um pomposo sello d'Armas, apenas continha linhas a lapis n'um bilhete de visita da prima Maria Mendonša:--źHontem ao jantar contei quanto o primo Gonšalo gosta de pŕcegos sobretudo aboborados em vinho, e a Annica toma por isso a liberdade de lhe mandar esse cestinho de pŕcegos da _Feitosa_, que como sabe sŃo fallados em todo o Portugal... Mil saudades.╗--Gonšalo imaginou logo no fundo da cesta, debaixo dos pŕcegos, docemente escondida, uma cartinha da D. Anna! --Bem! SŃo pŕcegos... Deixa ahi sobre uma cadeira... --Era melhor que os levasse jß para a copa, Snr. Dr., para os arrumar na prateleira... --Deixa sobre a cadeira! Apenas o Bento cerrßra a porta, estendeu no chŃo a toalha, entornou cuidadosamente por cima os pŕcegos formosos que perfumavam a livraria. No fundo da cesta encontrou apenas folhas de parra. Levemente desconsolado, cheirou um pŕcego. Depois considerou que os pŕcegos, arranjados por ella, com parra que ella apanhßra na latada, sob toalha que ella escolhera no armario, formavam na sua mudez cheirosa um recadinho sentimental. Ainda agachado na esteira, comeu o pŕcego:--e recollocou os outros na cesta para os levar a Gracinha. Mas, ao outro dia, ßs duas horas, jß com a parelha do Torto engatada ß caleche, jß com as luvas calšadas para a jornada d'Oliveira, recebeu uma inesperada visita--a visita do Snr. Visconde de Rio-Manso. Descalšando as luvas o Fidalgo pensava:--źO Rio-Manso! Que me quererß esse casmurro?╗--Na sala, pousado ß beira do canapÚ de velludo verde e esfregando os joelhos, o Visconde contou que de volta de Villa Clara e deante do portŃo da Torre vencera o seu teimoso acanhamento para apresentar os seus respeitos ao Snr. Gonšalo Ramires. E nŃo sˇ para esse gostoso dever--mas tambem (como soubera que S. Ex.^a se propunha Deputado pelo Circulo) para lhe offerecer na freguezia de Canta-Pedra o seu prestimo e os seus votos... Gonšalo, risonho e pasmado, saudava, torcia embarašadamente o bigode. E o Visconde de Rio-Manso nŃo estranhava aquelle pasmo por que de certo o Snr. Gonšalo Ramires o conhecŕra sempre como ferrenho Regenerador... Mas entŃo! Elle pertencia ß gerašŃo, agora bem rareada, que antepunha aos deveres da Politica os deveres da gratidŃo:--e alÚm da sympathia que lhe merecia o Snr. Gonšalo Ramires (pelo que constava em todo o Districto do seu talento, da sua affabilidade, da sua caridade) tambem conservava para com S. Ex.^a uma divida de gratidŃo, ainda aberta, nŃo por indifferenša, mas por timidez... --V. Ex.^a nŃo adivinha, Snr. Gonšalo Mendes Ramires?... NŃo se lembra? --NŃo, realmente, Snr. Visconde, nŃo me... Pois uma tarde o Snr. Gonšalo Mendes Ramires passava a cavallo pela quinta da _Varandinha_, quando a sua neta, brincando no terrašo (aquelle terrašo gradeado d'onde se curva uma magnolia), deixou escapar uma pÚla para a estrada. O Snr. Gonšalo Mendes Ramires, rindo, apeou immediatamente, apanhou a pÚla, e, para a restituir ß menina debrušada da grade, abeirou a egoa do muro depois de montar--e com que ligeiresa e garbo!... --V. Ex.^a nŃo se lembrava? --Sim, sim, agora... Pois no ladrilho do terrašo, rente da grade, pousava um jarro cheio de cravos. O Snr. Gonšalo Mendes, depois de gracejar com a menina (que, louvado Deus, nŃo era acanhada!) pediu um cravo, que ella escolheu--e que lhe deu, toda sÚria, como uma senhora. E elle, que observßra da janella do seu quarto, pensava:--źOra ahi estß! Este Fidalgo da Torre, um tŃo grande Fidalgo, que amavel!╗--Oh S. Ex.^a nŃo tinha que rir e corar... A gentileza f˘ra grande--e a elle, av˘, parecŕra immensa! Mas nŃo ficßra sˇmente na pÚla apanhada... --O Snr. Gonšalo Mendes Ramires nŃo se recorda?... --Sim, Snr. Visconde, com effeito, agora... Pois, logo no outro dia, o Snr. Gonšalo Mendes Ramires mandßra da Torre um precioso cesto de rosas, com o seu bilhete, e n'uma linha este gracejo:--źEm agradecimento d'um cravo, rosas ß Snr.^a D. Rosa.╗ Gonšalo quasi pulou na cadeira, divertido: --Sim, sim, Snr. Visconde, perfeitamente!.. Agora me recordo! Pois desde essa tarde elle sempre almejßra por uma opportunidade de mostrar ao Snr. Gonšalo Mendes Ramires o seu reconhecimento, a sua sympathia. Mas que! era timido, vivia muito retirado... N'essa manhŃ porÚm, em Villa Clara, soubera pelo Gouveia que S. Ex.^a se apresentava deputado pelo Circulo. Apezar de ser eleišŃo tŃo segura, jß pela influencia do Snr. Ramires, jß pela influencia do Governo, logo pensßra--źBem, ahi estß a occasiŃo!╗ E, agora offerecia a S. Ex.^a, na freguezia de Canta-Pedra, o seu prestimo e os seus votos. Gonšalo murmurou, enternecido: --Realmente, Snr. Visconde, nada me podia sensibilisar mais do que uma offerta tŃo espontanea, tŃo... --Sou eu que me sensibiliso por V. Ex.^a acceitar. E agora nŃo fallemos mais n'esse meu pobre prestimo e n'esses meus pobres votos... Pois V. Ex.^a tem aqui uma veneravel vivenda. E como o Visconde alludia ao desejo, jß n'elle antigo, de admirar de perto a famosa torre, mais velha que Portugal--ambos desceram ao pomar. O Visconde, com o guarda-sol ao hombro, pasmou em silencio para a torre; reconheceu (apezar de liberal) o prestigio que resulta d'uma tŃo alta linhagem como a dos Ramires; e gabou sinceramente o laranjal. Depois, sabendo que o Pereira da Riosa arrendßra a quinta, invejou ao Snr. Ramires tŃo cuidadoso e honrado rendeiro...--Deante do portŃo, o _char-Ó-bancs_ do Visconde esperava, atrelado de duas mulas lustrosas e nedias. Gonšalo admirou as mulas. E, abrindo a portinhola, supplicou ao Snr. Visconde que beijasse por elle a mŃosinha da Snr.^a D. Rosa. Commovido, o Visconde confessou uma ousadia, uma esperanša--e era que S. Ex.^a um dia, ß sua escolha, parasse em Canta-Pedra, jantasse na quinta, para conhecer mais intimamente a menina da pÚla e do cravo... --Mas com immensa honra!... E desde jß me proponho a ensinar ß Snr.^a D. Rosa, se ella o nŃo sabe, o jogo da pÚla ß antiga portugueza. O Snr. Visconde saudou, banhado de gosto e riso, com a mŃo sobre o corašŃo. Gonšalo, trepando as escadas, murmurava:--źOh senhores, que sympathico homem! E que generoso homem, que paga rosas com votos! Ora vejam como ßs vezes, por uma pequenina attenšŃo, se ganha um amigo! Com certeza, para a semana vou a Canta-Pedra jantar!... Homem encantador!╗ E foi n'um ditoso estado d'alma que accommodou na caleche a pasta de marroquim com o manuscripto, o cesto sentimental dos pŕcegos da D. Anna--e accendeu um charuto, e saltou ß almofada, e tomou as redeas para lanšar, n'um trote alegre atÚ Oliveira, a parelha branca do Russo. No largo d'El-Rey, antes d'apear, perguntou logo ao Joaquim da Porta noticias dos senhores. Os senhores todos muito bem, grašas a Deus... O Snr. JosÚ Barr˘lo partira de manhŃ a cavallo para a quinta do Snr. BarŃo das Marges, sˇ recolhia ß noite... --E o Snr. Padre Sueiro? --O Snr. Padre Sueiro, creio que estß para casa da Snr.^a D. Arminda... --E a Snr.^a D. Graša? --A Snr.^a D. Graša desceu ha um bocadinho grande para o Mirante, de chapeu... Naturalmente ia ß Egreja das Monicas. --Bem. Leva esse cesto de pŕcegos e dize ao Joaquim da Copa que o ponha na mesa, assim mesmo no cesto, com as folhas... E que me subam ao quarto agoa quente. O relogio de parede, na sala de espera, gemia preguišosamente as cinco horas. O palacete repousava n'um claro silencio. E depois da poeira e dos solavancos da estrada, pareceu mais doce a Gonšalo a frescura do seu quarto com as quatro janellas abertas sobre o jardim regado e sobre a cerca das Monicas. Cuidadosamente, guardou logo n'uma gaveta da commoda a pasta preciosa de marroquim. Uma creada de olhos repolhudos entrßra com o jarrŃo d'agua quente:--e o Fidalgo, como sempre, chasqueou a moša sobre os lindos sargentos de Cavallaria, cujo quartel tentador dominava o lavadouro da quinta, e retinha as raparigas da casa ensaboando todo o dia com paixŃo. Depois ainda se demorou, mudando o fato empoeirado, assobiando vagamente, encostado ß varanda sobre a callada rua das Tecedeiras. O sino das Monicas lanšou um lindo repique... E Gonšalo, enfastiado da sua solidŃo, decidiu descer pelo terrašo do jardim, e surprehender Gracinha nas suas devoš§es, na Egrejinha. Em baixo, no corredor, crusou o Joaquim da Copa: --EntŃo o Snr. Barr˘lo hoje nŃo janta? --O Snr. Barr˘lo foi jantar com o Snr. BarŃo das Marges, na quinta... SŃo os annos da menina. Naturalmente sˇ recolhe ß noite. Gonšalo, no jardim, ainda tardou por entre os alegretes, compondo para o casaco um ramo de fl˘res ligeiras. Depois rodeou a estufa, sorrindo da porta com que o Barr˘lo a enriquecera, uma porta envidrašada, arqueada em ferradura, com um monogramma de c˘res rutilantes: e metteu pela rua que conduzia ao repuxo, coberta de silencio e penumbra pela rama enlašada dos seus altos loureiros. Adiante, circumdado de bancos de pedra, d'arvores de aroma e fl˘r, cantava dormentemente o fino repuxo n'um tanque redondo, de borda larga, onde s'espašavam grossos vasos de louša branca com o brazŃo ramalhudo dos Sßs. Certamente na vÚspera ou de manhŃ se lavßra o tanque, por que na agoa muito transparente, sobre as lages muito claras, nadavam com redobrada vivacidade, em lampejos rosados, os peixes que Gonšalo assustou mergulhando e agitando a bengala. E d'aquella borda do tanque jß elle avistava ao fundo de outra rua, debruada de dhalias abertas, o Mirante--uma construcšŃo do seculo XVIII, simulando um Templosinho grego, c˘r de rosa desbotada, com um gordo Cupido sobre a cupula, e janellinhas de rocalha entre o meio relevo das columnas canelladas por onde trepavam jasmineiros. Gonšalo arrancou, como costumava, folhas d'um ramo de lucia-lima, para esmagar e perfumar as mŃos: e continuou para o Mirante, vagarosamente, por entre as dhalias apinhadas. Na allea, novamente ensaibrada, os sapatos finos de verniz que calšßra pousavam sem rumor no saibro molle. E assim, n'um silencio de sombra indolente, se acercou do Mirante--e d'uma das janellinhas que, mal cerrada, conservava corrida por dentro a persiana de taboinhas verdes. Rente d'essa janella era a escada de pedra, que, do elevado e comprido terrašo sobre que se estendia o jardim, communicava com a encovada rua das Tecedeiras, quasi em frente ß Capella das Monicas. E Gonšalo, sem pressa, descia--quando, atravez da persiana rala, sentiu dentro do Mirante um susurro, um cochichar perturbado. Sorrindo, pensou que alguma das creadas da casa se refugißra n'esse Templosinho de Amor com um dos sargentos terriveis de Cavallaria... Mas, nŃo! impossivel! Pois se, momentos antes, Gracinha rošßra aquella janella e pisßra aquella escada, no seu caminho para as Monicas! E entŃo outra idÚa o varou como uma espada--e tŃo dolorosa que recuou com terror da beira do Mirante d'onde ella perversamente o assaltßra. Jß porÚm uma desesperada curiosidade a agarrßra, o empurrava--e collou a face ß persiana com a cautella d'um espiŃo. O Mirante recahira em silencio--Gonšalo temia que o trahissem as pancadas do seu corašŃo... Santo Deus! De novo o murmurio recomešßra, mais apressado, mais turbado. Alguem supplicava, balbuciava:--źNŃo, nŃo, que loucura!╗--Alguem urgia, impaciente e ardente:--źSim, meu amor! sim, meu amor!╗ E a ambos os reconheceu--tŃo claramente como se a persiana se erguesse e por ella entrasse toda a vasta claridade do jardim. Era Gracinha! Era o Cavalleiro! Colhido por uma immensa vergonha, no atarantado pavor de que o surprehendessem junto do Mirante e da torpeza escondida--enfiou pela rua das dhalias, encolhido, com os sapatos leves no saibro molle, costeou o repuxo por sob a ramaria dos arbustos, remergulhou na escuridŃo dos loureiros, deslisou surrateiramente por traz da estufa--penetrou no socego do Palacete. Mas o murmurio do Mirante ainda o envolvia, mais desfallecido, mais rendido--źNŃo, nŃo, que loucura!... Sim, sim, meu amor!...╗ Abalou atravez das salas desertas como uma sombra acossada; escorregou abafadamente pela escadaria de pedra, varou o portŃo n'uma carreira, espreitando, com medo do Joaquim da Porta. No Largo parou, deante da grade do relogio do sol. Mas o susuro do Mirante errava por todo o Largo como um vento enroscado, raspando as lages, batendo as barbas dos Santos sobre o portal da Egreja de S. Matheus, redemoinhando nos telhados musgosos da Cordoaria...--źNŃo, nŃo, que loucura! Sim, sim! meu amor!╗ EntŃo Gonšalo sentiu a anciedade desesperada d'escapar para longe, para immensamente longe do Largo, do Palacete, da cidade, de toda aquella vergonha que o trespassava. Mas uma carruagem?... Pensou na alquilaria do Maciel, a mais retirada, para alÚm das ultimas casas, na estrada do Seminario. E cosido com os muros baixos d'essas ruas pobres, correu, mandou engatar uma caleche fechada. Emquanto esperava ß porta, n'um banco, passou pela estrada uma lenta carroša com moveis, panellas de cosinha, um grande colxŃo onde se alastrava uma nodoa. Bruscamente Gonšalo recordou o divan que guarnecia o Mirante. Era enorme, de mogno, todo coberto de riscadinho, com mollas lassas que rangiam. E de repente o murmurio recomešou, cresceu, rolando com fragor de trovŃo por sobre os casebres visinhos, por sobre a cerca do Seminario, por sobre Oliveira espantada:--źNŃo, nŃo, que loucura! Sim, sim, meu amor!╗ Com um salto, Gonšalo gritou para dentro, para a cavallariša escura: --EntŃo, que inferno! nŃo acaba, essa carroagem? --Jß a largar, meu Fidalgo. No relogio da Piedade sete horas batiam--quando elle se atirou para a caleche, e fechou as _stores_ pŕrras, e se enterrou no fundo, bem sumido, esmagado, com a sensašŃo que o Mundo tremera, e as mais fortes almas se abatiam, e a sua Torre, velha como o Reino, rachava, mostrando dentro um montŃo ignorado de lixo e de saias sujas. IX ┴ porta da cosinha, saccudindo um sobrescripto jß amarrotado, Gonšalo ralhava com a Rosa cosinheira: --Oh Rosa! pois tanto lhe recommendei que nŃo escrevesse ß mana Graša?... Que teimosa! EntŃo nŃo arranjavamos a pequena, sem essas lamurias para Oliveira? Grašas a Deus, a Torre Ú larga bastante para mais uma creancinha! ╔ que morrera a Crispola--a desgrašada viuva, visinha da Torre, que com um rancho miudo de dous pequenos, tres raparigas, definhava no catre desde a Paschoa. E agora Gonšalo, que mantivera o casebre em fartura, andava accommodando as pobres creanšas--jß por cuidado d'elle muito aceadamente vestidas de luto. A rapariga mais velha (tambem Crispola), sempre encafuada na cosinha da Torre, passava regularmente a źajudanta da Rosa╗, com soldada. Um dos rapazes, de doze annos, espigado e esperto, tambem Gonšalo o empregava na Torre como andarilho, para os recados, com fardeta de bot§es amarellos. O outro, molle e ranhoso, mas com o geito e o amor de carpinteirar, jß Gonšalo, sob o patrocinio da tia Louredo, o collocßra em Lisboa, na Officina de S. JosÚ. D'uma das outras raparigas se encarregava a mŃe de Manoel Duarte, amoravel senhora que habitava uma quinta formosa junto a Treixedo, e adorava Gonšalo de quem se considerava ź_vassalla_╗. Mas para a mais novinha e a mais fraquinha nŃo se arranjava amparo solido. A Rosa lembrßra entŃo--źque certamente a Snr.^a D. Maria da Graša recolheria a creaturinha...╗ Gonšalo rosnßra com seccura:--źOh! por uma c˘dea mais de pŃo nŃo se necessita encommodar a _cidade d'Oliveira_!╗ Rosa, porÚm, enlevada na obra, desejando para pequerrucha tŃo franzina e loira o agasalho d'uma senhora, escrevera a Gracinha, pela esmerada lettra do Bento, uma verbosa carta com o pedido, e toda a historia lamentosa da Crispola, e louvores devotos ß caridade do Snr. Doutor. E era a resposta de Gracinha, demorada mas enternecida, com a recommendašŃo źde lhe mandarem logo a pobre creanša╗--que impacientava o Fidalgo. Por que, desde a tarde abominavel do Mirante, estranhamente se apoderßra d'elle uma repugnancia quasi pudica em communicar com os Cunhaes! Era como se esse Mirante e a torpeza abrigada dentro das suas paredes c˘r de rosa empestassem o jardim, o palacete, o Largo d'El-Rei, toda a cidade d'Oliveira, e elle agora, por aceio moral, recuasse ante essa regiŃo empestada onde o seu corašŃo e o seu orgulho suffocavam... Logo depois da sua fuga recebera do bom Barr˘lo uma carta espantada:--źQue tŕlha foi essa? Porque nŃo esperaste? Eu, quando voltei ß noite da quinta do Marges, atÚ fiquei com cuidado. E nŃo imaginas como a Gracinha anda nervosa! Soubemos da partida, por acaso, por um cocheiro do Maciel. Jß hoje comemos os pŕcegos, mas nŃo comprehendemos!...╗--Gonšalo respondeu seccamente n'um bilhete:--źNegocios╗. Depois recordou que deixßra na gaveta do seu quarto o manuscripto da Novella: e mandou um mošo da quinta, de madrugada, com um recado quasi secreto ao Padre Sueiro, źpara que entregasse a pasta ao portador, bem embrulhada, sem contar aos senhores...╗ Entre a Torre e os Cunhaes sˇ desejava separašŃo e silencio. E nos encerrados dias que passou na Torre (sem se arriscar a Villa-Clara, no terror de que a vergonha do seu nome jß andasse rosnada pelo estanco do Sim§es ou pelo armazem do Ramos) nŃo cessou de vibrar n'uma colera espalhada que a todos varava... Colera contra a irmŃ que, calcando pudor, altivez de raša, receio dos escarneos d'Oliveira, tŃo facil e estouvadamente como se calcam as fl˘res desbotadas d'um tapete, correra ao Mirante, ao macho da bigodeira, apenas elle lhe acenßra com o lenšo almiscarado! Colera contra o Barr˘lo, o bochechudo bac˘co, que empregava os seus bac˘cos dias celebrando o Cavalleiro, arrastando o Cavalleiro para o Largo d'El-Rei, escolhendo na adega os vinhos mais finos para que o Cavalleiro aquecesse o sangue, ageitando as almofadas de todos os camapÚs para que o Cavalleiro saboreasse estiradamente o seu charuto e a graša presente de Gracinha! Emfim colera contra si, que, pela baixa cubiša de uma cadeira em S. Bento, abatera a unica muralha segura entre a irmŃ e o homem da marrafa lusente--que era a sua inimizade, aquella escarpada inimizade, sempre, desde Coimbra, tŃo rijamente reforšada e recaiada!... Ah! todos tres horrendamente culpados! Depois uma tarde, enfastiado da solidŃo, ousou um passeio por Villa-Clara. E reconheceu que na Assembleia, no estanco do Sim§es, na loja do Ramos, os amores de Gracinha eram certamente tŃo ignorados como se passassem nas profundidades da Tartaria. Immediatamente a sua alma doce, agora socegada, se abandonou ß došura de tecer desculpas subtis para todos os culpados d'aquella queda triste... Gracinha, coitada, sem filhos, com tŃo mollengo e ensosso marido, alheia a todos os interesses da intelligencia, indolente mesmo para uma costura ou bordado--cedŕra, que mulher nŃo cederia? ß credula e primitiva paixŃo que lhe brotßra na alma, n'ella se enraizßra, lhe dÚra as suas unicas alegrias do mundo e (influencia ainda mais poderosa!) lhe arrancßra as suas unicas lagrimas! O Barr˘lo, coitado, era o Bac˘co--e como o źpilriteiro╗ da cantiga, incapaz de mais nobres fructos, sˇ produzia os źpilritos╗ da sua Bacoquice. E elle, coitado d'elle, pobre, ignorado, irresistivelmente se rendera ß fatal Lei d'Accrescentamento, que o levßra, como a todos leva na ancia de fama e fortuna, a furar precipitadamente pela porta casual que se abre, sem reparar na estrumeira que atravanca os humbraes... Ah realmente todos bem pouco culpados deante de Deus que nos creou tŃo variaveis, tŃo frageis, tŃo dependentes de foršas por nˇs ainda menos governadas do que o Vento ou do que o Sol! NŃo, irremissivelmente culpado,--sˇ o outro, o malandro da grenha ondeada! Esse, em toda a sua conducta com Gracinha, desde estudante, mostrßra sempre um egoismo atrevido, sˇ punivel como puniam os antigos Ramires, com a morte depois dos tormentos, e a carcassa posta aos corvos. Em quanto lhe agradou, na ociosidade dos longos estios, um namoro bocolico sob os arvoredos da Torre--namorßra. Quando considerou que uma mulher e filhos lhe atravancariam a vida ligeira--trahira. Logo que a antiga bem amada pertenceu a outro homem--recomešßra o cerco languido para colher, sem os encargos da paternidade, as emoš§es do sentimento. E apenas esse marido lhe entreabre a sua porta--nŃo se demora, fende brutamente sobre a preza! Ah como o av˘ Tructesindo trataria villŃo de tal villania! Certamente o assava n'uma rugidora fogueira deante das barbacans--ou, nas masmoras da Alcašova, lhe entupia as guellas falsas com bom chumbo derretido... Pois elle, neto de Tructesindo, nem sequer podia, quando encontrasse o Cavalleiro nas ruas d'Oliveira, carregar o chapeu sobre a testa e passar! A menor diminuišŃo n'essa intimidade tŃo desastradamente reatada--seria como a revelašŃo da torpeza ainda abafada nas paredes do Mirante! Toda Oliveira cochicharia, riria.--źOlha o Fidalgo da Torre! Mette o Cavalleiro nos Cunhaes com a irmŃ, e logo, passadas semanas, rompe de novo com o Cavalleiro! Houve escandalo, e gordo!╗--Que delicia para as Lousadas! NŃo, ao contrario! agora devia ostentar pelo Cavalleiro uma fraternidade tŃo larga e tŃo ruidosa--que, pela sua largueza e o seu ruido, inteiramente tapasse e abafasse o sujo enredo que por traz latejava. Fingimento torturante--e imposto pela honra do nome! O sujo enredo bem guardado entre os mais densos arvoredos do jardim, na mais cerrada penumbra do Mirante!--e por fˇra, ao sol, nas prašas d'Oliveira elle sempre com o brašo carinhosamente enlašado no brašo do Cavalleiro! Os dias rolavam--e no espirito de Gonšalo nŃo se estabelecia serenidade. E sobretudo o amargurava sentir que era foršado a essa intimidade vistosa com o Cavalleiro--tanto pelo cuidado do seu nome, como pela conveniencia da sua EleišŃo. Toda a sua altivez por vezes se revoltava:--źQue me importa a EleišŃo! Que valor tem uma encardida cadeira em S. Bento?...╗ Mas logo a secca Realidade o emmudecia. A EleišŃo era a unica fenda por onde elle lograria escapar do seu buraco rural; e, se rompesse com o Cavalleiro, esse villŃo, vezeiro a villanias, immediatamente, com o appoio da horda intrigante de Lisboa, improvisaria outro Candidato por Villa-Clara... Desgrašadamente elle era um d'esses seres vergados que _dependem_. E a triste dependencia d'onde provinha? Da pobreza--d'essa escassa renda de duas quintas, abastanša para um simples, mas pobreza para elle, com a sua educašŃo, os seus gostos, os seus deveres de fidalguia, o seu espirito de sociabilidade. E estes pensamentos lenta e capciosamente o empurraram a outro pensamento--ß D. Anna Lucena, aos seus duzentos contos... AtÚ que uma manhŃ encarou corajosamente uma possibilidade perturbadora:--casar com a D. Anna!--Por que nŃo? Ella claramente lhe mostrßra inclinašŃo, quasi consentimento... Por que nŃo casaria com a D. Anna? Sim! o pae carniceiro, o irmŃo assassino... Mas tambem elle, entre tantos avˇs atÚ aos Suevos ferozes, descortinaria algum av˘ carniceiro; e a occupašŃo dos Ramires, atravez dos seculos heroicos, consistira realmente em assassinar. De resto o carniceiro e o assassino, ambos mortos, sombras remotas, pertenciam a uma Lenda que se apagava. D. Anna, pelo casamento, subira da Populaša para a Burguesia. Elle nŃo a encontrava no talho do pae, nem no velhacouto do irmŃo--mas na quinta da _Feitosa_, jß Rica-Dona, com procurador, com capellŃo, com lacaios, como uma antiga Ramires. Ah! sinceramente, toda a hesitašŃo era pueril--desde que esses duzentos contos, de dinheiro muito limpo, de bom dinheiro rural, os trazia com o seu corpo, mulher tŃo formosa e sÚria. Com esse puro ouro, e o seu nome, e o seu talento, nŃo necessitaria para dominar na Politica a refalsada mŃo do Cavalleiro... E depois que vida nobre e completa! A sua velha Torre restituida ao esplendor sobrio d'outras eras; uma lavoura de luxo no historico torrŃo de Treixedo; as viagens fecundas ßs terras que educam!... E a mulher que fornecia estes regalos nŃo lhes amargava o goso, como em tantos casamentos ricos, com a sua fealdade, os seus agudos ossos, ou a sua pelle relentada... NŃo! Depois do brilho social do dia nŃo o esperava na alcova um mostrengo--mas Venus. E assim, lentamente trabalhado por estas tentaš§es, mandou uma tarde um bilhete ß prima Maria, ß _Feitosa_, pedindo--źpara se encontrarem, sˇs, n'algum passeio dos arredores, por que desejava ter com ella uma _conversasinha_ sÚria e intima...╗ Mas tres immensos dias se arrastaram--e nŃo appareceu a almejada carta da _Feitosa_. Gonšalo concluiu que a prima Maria, tŃo esperta, farejando a natureza da _conversasinha_ e sem uma certeza para o alegrar, retardava, se recusava. Atravessou entŃo uma desolada semana, remoendo a melancolia d'uma vida que sentia ˘ca e toda feita d'incertezas. O orgulho, um pudor complicado, nŃo lhe consentiam voltar a Oliveira, ao quarto d'onde implacavelmente avistaria, por sobre o arvoredo, a cupula do Mirante com o seu gordo Cupido:--e quasi o arrepiava a idÚa de beijar a irmŃ na face que o outro babujßra! Sobre a EleišŃo descera um silencio de abobada--e outra repugnancia, mais acerba, lhe vedava escrever ao Cavalleiro. JoŃo Gouveia gozava as suas fÚrias na Costa, de sapatos brancos, apanhando conchinhas na praia. E Villa-Clara nŃo se tolerava n'esse meado ardente de Septembro--com o Titˇ no Alemtejo onde o levßra uma doenša do velho Morgado de Cidadelhe, o Manoel Duarte na quinta da mŃe dirigindo as vindimas, e a Assembleia deserta e adormecida sob o innumeravel susurro das moscas... * * * * * Para se occupar e atulhar as horas, mais que por dever ou gosto d'Arte, retomou a sua Novella. Mas sem fervor, sem veia agil. Agora era a sanhuda arrancada de Tructesindo e dos seus cavalleiros, correndo sobre o Bastardo de BayŃo. Lance difficultoso--reclamando fragor, um rebrilhante colorido Medieval. E elle tŃo molle e tŃo apagado!... Felizmente, no seu Poemeto, o Tio Duarte recheßra esse violento trecho de bem apinceladas paisagens, d'interessantes rasgos de guerra. Logo na Ribeira do Coice, Tructesindo encontrava cortada a machado a decrepita ponte, cujos rotos barrotes e tabo§es carcomidos entulhavam no fundo a corrente escassa. Na sua fuga o Bastardo acautelladamente a desmantelßra para deter a cavalgada vingadora. EntŃo a pesada hoste de Santa Ireneia avanšou pela esguia ourela, ladeando os renques de choupos em demanda do vau do Espigal... Mas que tardanša! Quando as derradeiras mulas de carga choutaram na terra d'alÚm-ribeira jß a tarde se adošava, e nas pošas d'agua, entre as poldras, o brilho esmorecia, umas ainda d'ouro pallido, outras apenas rosadas. Immediatamente Dom Garcia Viegas, o _Sabedor_, aconselhou que a mesnada se dividisse:--a peonagem e a carga avanšando para Montemor, esgueirada e callada, para esquivar recontros; os senhores de lanša e os besteiros de cavallo arrancando em dura carreira para colher o Bastardo. Todos louvaram o ardil do _Sabedor_: e a cavalgada, aligeirada das filas tardas de archeiros e fundibularios, largou, soltas as rÚdeas, atravez de terras ermas, depois por entre barrocaes, atÚ aos _Tres-Caminhos_, desolada chan onde se ergue solitariamente aquelle carvalho velhissimo que outr'ora, antes d'exorcisado por S. Froalengo, abrigava no sabbado mais negro de Janeiro, ao clarŃo d'archotes enxofrados, a Grande Ronda de todas as bruchas de Portugal. Junto do carvalho Tructesindo sopeou a arrancada: e, alšado nos estribos, farejava as tres sendas que se trifurcam e se encovam entre asperos, lobregos cerros de bravio e de tojo. Passßra ahi o Bastardo malvado?... Ah! por certo passßra e toda a sua maldade--porque no respaldo d'uma fraga, junto a tres cabras magras retoušando o matto, jazia, com os brašos abertos, um pobre pastorinho morto, varado por uma frecha! Para que o triste cabreiro nŃo soprasse novas da gente de BayŃo--uma bruta setta lhe atravessßra o peito escarnado de fome, mal coberto de trapos. Mas por qual das sendas se embrenhßra o malvado? Na terra solta, raspada pelo vento suŃo que rolava d'entre-montes, nŃo appareciam pegadas revoltas de tropel fugindo. E, em tal solidŃo, nem choša ou palhoša d'onde villŃo ou velha alapada espreitassem a levada do bando... EntŃo, ao mando do Alferes Affonso Gomes, tres almogavres despediram pelos tres caminhos ß descoberta--em quanto os Cavalleiros, sem desmontar, desafivelavam os morri§es para limpar nas faces barbudas o suor que os alagava, ou abeiravam os ginetes d'um sumido fio d'agua que ß orla da chan se arrastava entre ralo canišal. Tructesindo nŃo se arredou de sob a ramada do carvalho de S. Froalengo, immovel sobre o murzello immovel, todo cerrado no ferro da sua negra armadura, as mŃos juntas sobre a sella e o elmo pesadamente inclinado como em magua e orašŃo. E ao lado, com as colleiras errissadas de prÚgos, as sangrentas linguas penduradas, arquejavam, estirados, os seus dous mastins. Jß no emtanto a espera se alongava, inquieta, enfadonha--quando o almogavre que mettera pela senda de Nascente reappareceu n'um rolo de poeira, atirando logo o alarde de longe, com a ascuma alta. A hora escassa de carreira avistßra num cabešo uma hoste acampada, em arraial seguro, rodeado d'estaca e valla!... --Que pendŃo? --As treze arruellas. --Deus louvado! gritou Tructesindo, que estremeceu como acordando. ╔ D. Pedro de Castro, _o CastellŃo_, que entrou com os Leonezes e vem pelas senhoras Infantas! Por esse caminho pois nŃo se atrevera o Bastardo!... Mas jß pela senda de Poente recolhia outro almogavre contando que entre-cerros, n'um pinhal, topßra um bando de bufarinheiros genovezes, retardados desde alva, por que um d'elles esmorecera com mal de febres. E entŃo?...--EntŃo, pela borda do pinheiral apenas passßra em todo o dia (no jurar dos genovezes) uma companhia de tru§es voltando da feira de Grajelos. Sˇ restava pois o trilho do meio, pedregoso e esbarrancado como o leito enxuto d'uma torrente. E por elle, a um brado de Tructesindo, tropeou a cavalgada. Mas jß o crepusculo tristissimo descia--e sempre o caminho se estirava, agreste, soturno, infindavel, entre os cerros de urze e rocha, sem uma cabana, um muro, uma sebe, rasto de rez ou homem. Ao longe, mais ao longe, emfim, enchergaram a campina arida, coberta de solidŃo e penumbra, dilatada na sua mudez atÚ a um ceu remoto, onde jß se apagava uma derradeira tira de poente c˘r de cobre e c˘r de sangue. EntŃo Tructesindo deteve a abalada, rente d'espinheiros que se torciam nas lufadas mais rijas do suŃo: --Por Deus, senhores, que corremos em pressa vŃ e sem esperanša!... Que pensaes, Garcia Viegas? Todo o bando se apinhßra: e uma fumarada subia dos ginetes arquejantes sob as coberturas de malha. O _Sabedor_ estendeu o brašo: --Senhores! O Bastardo, antes de nˇs, galgou d'escapada essa campina alÚm, e metteu a Valle-Murtinho para pernoitar na Honra de Agredel, que Ú bem afortalezada e parenta de BayŃo... --E nˇs, pois, D. Garcia? --Nˇs, senhores e amigos, sˇ nos resta tambem pernoitar. Voltemos aos _Tres-Caminhos_. E de lß, em boa avenša, ao arraial do Snr. D. Pedro de Castro, a pedir agasalho... A par de tamanho senhor encontraremos mais fartamente que nos nossos alforges o que todos, christŃos e brutos, vamos necessitando, cevada, um naco de vianda, e de vinhos tres golpes rijos... Todos bradaram com alvorošo:--źBem trašado! bem trašado!...╗--E de novo, pelo barranco pedregoso, a cavalgada trotou pezadamente para os _Tres-Caminhos_--onde jß dous corvos se encarnišavam sobre o corpo do pastorinho morto. Em breve, ao cabo do caminho do Nascente, no cabešo alto, alvejaram as tendas do arraial, ao clarŃo das fogueiras que por todo elle fumegavam. O Adail de Santa Ireneia arrancou da bosina tres sons lentos annunciando Filho-d'Algo. Logo de dentro da estacada outras businas soaram, claras e acolhedoras. EntŃo o Adail galopou atÚ ao vallado, a annunciar ßs atalaias postadas nas barreiras, entre luzentes fogos d'almenara, a mesnada amiga dos Ramires. Tructesindo parßra no corrego escuro, que o pinheiral cerrado mais escurecia movendo e gemendo no vento. Dous cavalleiros, de sobreveste negra e capuz, logo correram pelo pendor do outeiro--bradando que o Snr. D. Pedro de Castro esperava o nobre senhor de Santa Ireneia e muito se prazia para todo seu regalo e servišo! Silenciosamente Tructesindo desmontou; e com D. Garcia Viegas, e Leonel de ăamora e Mendo de Briteiros e outros parentes de solar, todos sem lanša ou broquel, descalšados os guantes, galgaram o cabešo atÚ ß estacada, cujas cancellas se escancararam, mostrando na claridade incerta dos fogareus sombrios magotes de pe§es--onde, por entre os bassinetes de ferro, surdiam toucas amarellas de mancebas e gorros enguisalhados de jograes. Apenas o velho assomou aos barrotes dous infanš§es, sacudindo a espada, bradaram: --Honra! honra! aos Ricos-Homens de Portugal! As trompas misturavam o clangor rispido aos rufos lassos dos tambores. E por entre a turba, que calladamente recußra em alas lentas, avanšou, precedido por quatro cavalleiros que erguiam archotes accesos, o velho D. Pedro de Castro, _o CastellŃo_, o homem das longas guerras e dos vastos senhorios. Um corselete d'anta com lavores de prata cinjia o seu peito jß curvado, como consumido por tamanhas fadigas de pelejar e tamanhas cubišas de reinar. Sem elmo, sem armas, appoiava a mŃo cabelluda de rijas veias a um bastŃo de marfim. E os olhos encovados faiscavam, com affavel curiosidade, na requeimada magreza da face, de nariz mais recurvo que o bico d'um falcŃo, repuxada a um lado por um fundo gilvaz que se sumia na barba crespa, aguda e quasi branca. Deante do senhor de Santa Ireneia alargou vagarosamente os brašos. E com um grave riso que mais lhe recurvou, sobre a barba espetada, o nariz de rapina: --Viva Deus! Grande Ú a noite que vos traz, primo e amigo! Que nŃo a esperava eu de tanta honra, nem sequer de tanto gosto!... * * * * * Ao rematar este duro Capitulo, depois de tres manhŃs de trabalho, Gonšalo arrojou a penna com um suspiro de cansašo. Ah! jß lhe entrava a fartura d'essa interminavel Novella, desenrolada como um novello solto--sem que elle lhe podesse encurtar os fios, tŃo cerradamente os emmaranhßra no seu denso Poema o Tio Duarte que elle seguia gemendo! E depois nem o consolava a certeza de construir obra forte. Esses Tructesindos, esses Bastardos, esses Castros, esses _Sabedores_, eram realmente var§es Affonsinos, de solida substancia historica?... Talvez apenas oucos titeres, mal engonšados em erradas armaduras, povoando inveridicos arraiaes e castellos, sem um gesto ou dizer que datassem das velhas edades! E ao outro dia nŃo reuniu em todo o seu ser coragem para retomar aquella sofrega correria dos de Santa Ireneia sobre o bando escapadišo de BayŃo. De resto jß remettera tres Capitulos da Novella--jß calmßra as ancias do Castanheiro. Mas a ociosidade mais lhe pesou n'essa semana, arrastada pelos canapÚs ou por entre os buxos do jardim, fumando e tristemente sentindo que a Vida lhe fugia em fumo. Para o enervar accrescia um aborrecimento de dinheiro--uma lettra de seiscentos mil rÚis, do derradeiro anno de Coimbra, sempre reformada, sempre avolumada, e que agora o emprestador, um certo Leite, d'Oliveira, reclamava com dureza. O seu alfaiate de Lisboa tambem o importunava com uma conta pavorosa, atulhando duas laudas. Mas sobretudo o desolava a solidŃo da Torre. Todos os alegres amigos dispersos pela beira-mar ou nas quintas. A EleišŃo encalhada como uma barca no lodo. A irmŃ de certo com o _outro_ no Mirante. AtÚ a prima Maria desattendendo ingratamente o seu timido pedido d'uma źconversasinha.╗ E elle no seu quente casarŃo, sem energia, immobilisado n'uma inercia crescente, como se cordas o travassem, cada dia mais apertadas--e d'homem se volvesse em fardo. Uma tarde no seu quarto, vagaroso e sombrio, sem mesmo parolar com o Bento, acabava de se vestir para montar a cavallo, espairecer n'um galope pelos caminhos de Valverde--quando o pequeno da Crispola (jß estabelecido na Torre como pagem, de fardeta de bot§es amarellos) bateu esbaforidamente ß porta.--Era uma senhora que parßra ao portŃo, dentro d'uma carruagem, pedia ao Fidalgo para descer... --NŃo disse o nome? --NŃo, senhor. ╔ uma senhora magra, puxada a dous cavallos, com redes... A prima Maria! Com que alvorošo correu, agarrando no cabide do corredor um velho chapeu de palha! E em baixo foi como se contemplasse a Deusa da Fortuna na sua roda ligeira. --Oh prima Maria, que surpreza!... Que felicidade! Debrušada da portinhola da carruagem (a caleche azul da _Feitosa_), D. Maria Mendonša, com um chapeu novo enramalhetado de lilazes, desculpou atrapalhadamente e rindo o seu silencio. Recebera a carta do primo muito atrasada... Sempre o fatal carteiro, tropego e bebedo... Depois uns dias muito atarefados em Oliveira com a Annica, que preparava para o inverno a casa da rua das Vellas. --E finalmente, como devia uma visita em Villa-Clara ß pobre Venancia Rios, que tem estado doente, achei mais simples e mais completo parar na Torre... E entŃo? Gonšalo sorria, embarašado: --EntŃo, nada de grave, mas... ╔ que desejava conversar comsigo... Por que nŃo entra? Abrira a portinhola. Ella preferia passear na estrada. E ambos s'encaminharam para o velho banco de pedra que os alamos abrigavam em frente ao portŃo da Torre. Gonšalo sacudiu com o lenšo a ponta do banco. --Pois, prima Maria, eu desejava conversar... Mas Ú difficil, tŃo difficil!... Talvez o melhor seja atacar a questŃo brutalmente. --Ataque. --EntŃo lß vae!... A prima acha que eu perco o meu tempo se me dedicar ß sua amiga D. Anna? Pousada de leve ß borda do banco, enrolando attentamente a seda preta do guardasolinho, Maria Mendonša tardou, murmurou: --NŃo, acho que o primo nŃo perde o seu tempo... --Ah! acha? Ella considerava Gonšalo, gozando a sua perturbašŃo e anciedade. --Jesus, prima!... Diga alguma cousa mais! --Mas que quer que lhe diga mais? Jß lhe declarei em Oliveira. Ainda sou muito nova para andar com recadinhos de sentimento. Mas acho que a Annica Ú bonita, Ú rica, Ú viuva... Gonšalo arrancou do banco, erguendo os brašos, em desolašŃo. E, como D. Maria tambem se erguera, ambos seguiram pela tira de relva que orla os alamos. Elle quasi gemia, desconsolado: --Ora bonita, viuva, rica... Para conhecer esses grandes segredos nŃo a incommodava eu, prima!... Que diabo! seja boa rapariga, seja franca! A prima sabe, de certo jß ambas conversaram... Seja franca. Ella tem por mim alguma sympathia? D. Maria parou, murmurou, riscando com a ponta do guardasolinho o trilho amarellado da relva: --Pois estß claro que tem... --Bravo! EntŃo, se d'aqui a um tempo, passados estes primeiros mezes de luto, eu me declarasse, me... Ella dardejou a Gonšalo os espertos olhos: --Santo Deus, como o primo por ahi vae, a galope... EntŃo Ú uma paixŃo? Gonšalo tirou o seu velho chapeu de palha, passou lentamente os dedos pelos cabellos. E n'um immenso e triste desabafo: --Olhe, prima! ╔ sobretudo a necessidade de me accommodar na vida! Pois nŃo lhe parece? --Tanto me parece que lhe indiquei o bom poizo... E agora adeus, passa das cinco horas. NŃo me quero demorar por causa dos creados. Gonšalo protestou, supplicou: --Mais um bocadinho!... ╔ tŃo cedo! Sˇ outra cousa, com franqueza. Ella Ú boa rapariga? D. Maria voltßra, ao cabo do renque d'alamos, recolhendo ß caleche: --Uma pontinha de genio, para animar a existencia. Mas muito boa rapariga... E uma dona de casa admiravel! O primo nŃo imagina como anda a _Feitosa_. A ordem, o acceio, a regularidade, a disciplina... Ella olha por tudo, atÚ pela adega, atÚ pela cocheira! Gonšalo esfregou radiantemente as mŃos: --Pois se d'aqui a um anno se realisar o grande acontecimento hei de gritar por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a casa de Ramires! --Por isso eu trabalho, para servir o brazŃo e o nome! exclamou ella, saltando ligeiramente para a caleche, como se fugisse, arremessada aquella clara confissŃo. O trintanario trepßra ß almofada. E em quanto os cavallos folgados largavam, aos corcovos, D. Maria ainda gritou: --Sabe quem encontrei em Villa Clara? O Titˇ! --O Titˇ?... --Chegou do Alemtejo, vem jantar comsigo. Eu nŃo o trouxe na carruagem por decencia, para o nŃo comprometter... E a caleche rolou--entre os risos e os doces acenos com que ambos se afagavam, n'aquella nova concordancia mais calorosa d'uma conspirašŃo sentimental. Gonšalo largou logo alegremente para Villa-Clara, ao encontro do Titˇ. E jß o alvorošava a idÚa de colher do Titˇ, intimo da _Feitosa_, informaš§es sobre a D. Anna, o seu genio, os seus modos. A prima Maria, por amor dos Ramires (sobretudo, coitada, para proveito dos Mendonšas!), idealisava a noiva. Mas o Titˇ, o homem mais veridico do Reino, amando a Verdade com a antiga devošŃo de Epaminondas, apresentaria D. Anna sem um enfeite nem um desenfeite. E o Titˇ... Ah! sob o seu vozeirŃo troante, a sua indolencia bovina, o Titˇ possuia um espirito muito attento, muito penetrante. Logo ß Portella os dous amigos s'encontraram. E, apesar de separašŃo tŃo curta, o abrašo foi estrondoso. --Oh s˘ GonšalŃo!... --Oh Titˇsinho querido! tens feito cß uma falta enorme!... E teu irmŃo? O mano melhor, mas arrasado. Muito cartapacio e muito fŕmea para velho de sessenta annos. E elle lß o avisßra:--źMano JoŃo, mano JoŃo! olhe que assim sempre agarrado aos papeis velhos e ßs cachopas novas, o mano rebenta!╗ --E por cß? Essa eleišŃo? --A eleišŃo agora para outubro, nos comešos d'outubro... De resto, semsaboria universal. Gouveia na Costa, Manoel Duarte na vindima... Eu seccadote, murchote, sem veia, atÚ sem appetite. --Olha que eu venho jantar e convidei o Videirinha. --Bem sei, jß me disse a prima Maria, que parou um bocado na Torre... Ella estß na _Feitosa_ com a D. Anna. Durante um momento repisou sobre a intimidade da prima Maria na _Feitosa_, com a tentašŃo de desabafar, logo alli na estrada, sobre o inesperado romance que desabrochßra. Mas nŃo ousou! Era um angustiado acanhamento, como a vergonha de cubišar assim todos os restos do pobre Lucena--o Circulo e a viuva. EntŃo, conversando do Alemtejo e do mano JoŃo (que contßra muitas antigualhas massadoras sobre a genealogia dos Ramires), desceram da Portella ß Torre, com tenšŃo de estirar o passeio atÚ aos Bravaes. Mas, na Torre, Gonšalo desejou avisar a Rosa dos dous convivas inesperados, senhores de tŃo poderoso garfo. Entraram pela porta do pomar onde um fio lento d'agoa s'atardava nos regueiros. Aos brados galhofeiros do Fidalgo a Rosa accudio, limpando as mŃos ao avental. O que! dous convidados! Mesmo quatro, e mais valentes, que grašas a Deus nosso Senhor o jantarinho sobrava! Ainda de tarde comprßra a uma mulher da Costa um cesto de sardinhas, graudas e gordas que regalavam!... O Titˇ reclamou logo uma fritada tremenda de sardinha e ovos. E os dois amigos atravessavam o pateo--quando Gonšalo reparou no Bento, escarranchado no banco da latada, deante d'uma tigella, e areando com enthusiasmo um castŃo de prata lavrada, que emergia de dentro d'uma toalha enrolada como d'uma bainha. --Que castŃo Ú esse, Bento? assim embrulhado? O Bento lentamente saccou da toalha torcida um chicote, escuro e comprido, com tres arestas afiadas como as d'um florete. --Nem o Snr. Dr. sabia! Estava no sotŃo. Agora de tarde andava lß a escarafunchar por causa d'uma ninhada de gatos, e detraz d'um bahu dou com umas esporas de prateleira e com este arr˘cho... Gonšalo estudou o macisso castŃo de prata, sacudio a fina vara que zinia: --Explendido chicote... Oh Titˇ, hein?... Afiado como um cutello. E antigo, muito antigo, com as minhas armas... De que diabo Ú feito? baleia? --De cavallo-marinho... Uma arma terrivel. Mata um homem... O mano JoŃo tem um, mas com castŃo de metal... Mata um homem! --Bem, rematou Gonšalo. Limpa e p§e no meu quarto, Bento! Passa a ser o meu chicote de guerra! ┴ porta do pomar ainda encontraram o Pereira da Riosa, de quinzena de cutim deitada aos hombros. Em breve, no dia de S. Miguel, o Pereira tomava emfim a lavra da Torre. E Gonšalo gracejou, mostrando ao Titˇ o lavrador famoso. Eis o homem! eis o grande homem que se preparava a tornar a Torre uma fallada maravilha de ceßra, vinha e horta! O Pereira cošava a barba rala: --E tambem a enterrar bom dinheiro! Emfim um gosto sempre valeu mais que um vintem! E o Fidalgo, como patrŃo, merece terra em que os olhos se esquešam de regalados!... --Oh, Snr. Pereira! rebombou o Titˇ. EntŃo nŃo se esqueša de cuidar dos mel§es. ╔ uma vergonha! Nunca na Torre se comeu um bom melŃo! --Pois para o anno, assim Deus nos conserve, jß V. Ex.^a comerß na Torre um bom melŃo! Gonšalo abrašou ainda o esperto lavrador--e apressou para a estrada, decidido a desenrolar toda a confidencia ao Titˇ, na solidŃo favoravel do arvoredo dos Bravaes. Mas, apenas recomešaram a caminhada, o mesmo enleio o travou--quasi temendo agora as informaš§es do Titˇ, homem tŃo sevÚro, de Moral tŃo escarpada. E todo o demorado giro pelos Bravaes o findaram sem que Gonšalo desafogasse. O crepusculo descera, molle e quente, quando recolheram--conversando sobre a pesca do savel no Guadiana. Defronte do portŃo da Torre Videirinha esperava, dedilhando o violŃo na penumbra dos alamos. Como a noite se conservava abafada, sem uma aragem, jantaram na varanda, com dous candieiros accesos. Logo ao desdobrar o guardanapo o Titˇ, vermelho e espraiado sobre a cadeira, declarou źque grašas ao Senhor da Saude, a sede era boa!╗ Elle e Gonšalo praticaram as usadas fašanhas de garfo e de copo. Quando o Bento servio o cafÚ uma immensa e lustrosa lua nova surgia, ao fundo da quinta escura, por traz dos outeiros de Valverde. Gonšalo, enterrado n'uma cadeira de vime, accendeu o charuto com beatitude. Todos os tedios e incertezas d'essas semanas se despegavam da sua alma como cinza apagada, brevemente varrida. E foi sentindo menos a došura da noite, que um sabor melhor ß vida desanuviada, que exclamou: --Pois, senhores, agora, estß uma delicia!... Videirinha, depois d'um curto cigarro, retomßra o violŃo. Atravez da quinta, pedašos de muros caiados, algum trilho de rua mais descoberto, a agua do Tanque-Grande, rebrilhavam ao luar que resvalava dos cerros; e a quietašŃo do arvoredo, da claridade, da noite, penetravam n'alma com adormecedora caricia. Titˇ e Gonšalo saboreavam o famoso cognac de Moscatel, preciosa antigualha da Torre, silenciosamente enlevados no Videirinha--que recußra para o fundo da varanda, se envolvera em sombra. Nunca o bom cantador ferira as cordas com inspirašŃo mais enternecida. AtÚ os campos, o ceu inclinado, a lua cheia sobre as collinas, escutavam os queixumes do _fado_ da Ariosa. E no escuro, sob a varanda, o pigarro da Rosa, os passos abafados dos creados, algum sumido riso de rapariga, o bater das orelhas d'um perdigueiro--eram como a presenša d'um povo suavemente attrahido pelo descante formoso. Assim a noite se alongou, a lua subio com solitario fulgor. Titˇ, pesado do brodio, adormecŕra. E como sempre, para findar, Videirinha atacou ardentemente o _Fado dos Ramires_: Quem te verß sem que estremeša, Torre de Santa Ireneia, Assim tŃo negra e callada Por noites de lua cheia... E lanšou entŃo uma quadra nova, que trabalhßra n'essa semana com amor sobre uma erudita nota do bom Padre Sueiro. Era a gloria magnifica de Paio Ramires, Mestre do Templo--a quem o Papa Innocencio, e a Rainha Branca de Castella, e todos os Principes da Christandade supplicam que se arme, e corra em dura pressa, e liberte S. Luiz Rei de Franša, captivo nas terras de Egypto... Que sˇ em Paio Ramires P§e agora o mundo a esperanša... Que junte os seus Cavalleiros E que salve o Rei de Franša! E por este av˘ e tal fašanha atÚ Gonšalo se interessou--acompanhando o canto, n'um tremulo esganišado, de brašo erguido: Ai, que junte os seus cavalleiros E que salve o Rei de Franša!... Ao rolar mais forte do c˘ro Titˇ descerrou as palpebras, arrancou do canapÚ o corpansil immenso--e declarou que marchava para Villa Clara: --Estou derreado! Sempre em jornada e sem dormir, desde hontem ßs quatro da manhŃ que larguei de Cidadelhe... Caramba, dava agora, como aquelle rei grego, um crusado por um burro! EntŃo Gonšalo, animado pelo cognac, tambem se ergueu com uma resolušŃo quasi alegre: --Oh Titˇ, antes de sahires anda cß dentro que quero fallar comtigo a respeito d'um caso! Agarrßra um dos candieiros, penetrou na sala de jantar onde errava o cheiro de magnolias morrendo n'um vaso. E ahi, sem preparašŃo, com os olhos bem decididos, bem cravados no Titˇ--que o seguira arrastadamente, ainda se espreguišava: --Oh Titˇ, ouve lß e sŕ franco. Tu ias muito ß _Feitosa_... Que te parece aquella D. Anna? Titˇ, que despertßra como ao rebentar d'um morteiro, considerou Gonšalo com assombro: --Ora essa! Mas a que proposito?... Gonšalo atalhou, na pressa de colher rapidamente uma certeza: --Olha! Eu para ti nŃo tenho segredos. N'estas ultimas semanas houveram ahi umas conversas, uns encontros... Emfim, para resumir, se d'aqui a tempos eu pensasse em casar com a D. Anna, creio que ella, por seu lado, nŃo recusava. Tu ias ß _Feitosa_. Tu sabes... Que tal rapariga Ú ella? Titˇ crusßra os brašos violentamente: --Pois tu vaes casar com a D. Anna? --Homem, nŃo vou casar. NŃo sigo esta noite para a Egreja. Por ora quero sˇ informaš§es... E de quem as posso ter, mais francas e mais seguras, do que de ti, que Ús meu amigo e que a conheces? Titˇ nŃo descrusßra os brašos--levantando para o Fidalgo da Torre a face honesta e sevÚra: --Pois tu pensas em casar com a D. Anna, tu, Gonšalo Mendes Ramires?... Gonšalo atirou um gesto de impaciencia e fartura: --Oh! se me vens com a fidalguia e com o Paio Ramires... O Titˇ quasi berrou, na sua indignašŃo: --Qual fidalguia! ╔ que um homem de bem, como tu, nŃo pensa em casar com uma creatura como ella!... Fidalguia?... Sim! Mas fidalguia d'alma e de corašŃo! Gonšalo emmudeceu, trespassado. Depois, com uma serenidade a que se foršßra, argumentou, deduzio: --Bem! tu entŃo sabes outras cousas... Eu por mim sei que ella Ú bonita e rica: sei tambem que Ú sÚria, por que nunca sobre ella se rosnou nem aqui nem em Lisboa: sŃo qualidades para se casar com uma mulher... Tu agora affianšas que se nŃo pode casar com ella. Portanto sabes outras cousas... Dize. Foi entŃo o Titˇ que emmudeceu, immovel deante do Fidalgo como se o lašo d'uma corda o colhesse e o travasse. Por fim, soprando, com um esforšo enorme: --Tu nŃo me chamaste para eu dep˘r como testemunha... Em principio, sem explicaš§es, perguntas se podes casar com essa mulher. E eu, sem explicaš§es, em principio, declaro que nŃo... Que diabo queres mais? Gonšalo exclamou, revoltado: --Que quero? Pelo amor de Deus, Titˇ!... Supp§e tu que estou doidamente apaixonado pela D. Anna, ou que tenho um interesse immenso em casar com ella... Que nŃo estou, nem tenho: mas supp§e! N'esse caso nŃo se desvia um amigo d'um acto em que elle estß tŃo fundamente empenhado, sem lhe apresentar uma razŃo, uma prova... Assim apertado Titˇ baixou a cabeša, que cošou com desespero. Depois acobardadamente, para escapar, adiou a contenda: --Olha, Gonšalo, eu estou muito estafado. Tu nŃo vaes a esta hora para a Egreja: e ella menos, que o outro marido ainda nŃo arrefeceu na cova. EntŃo ßmanhŃ conversamos. Atirou duas passadas enormes, empurrou a porta da varanda, berrando pelo Videirinha: --SŃo que horas, Videira! Toca a abalar, que nŃo dormi desde Cidadelhe. Videirinha, que preparava com esmero um grog frio, esvasiou atabalhoadamente o copo, recolheu o violŃo precioso. E Gonšalo nŃo os deteve, esfregando silenciosamente as mŃos, amuado com aquella recusa do Titˇ tŃo desamiga e teimosa. Como sombras atravessaram uma sala onde dormia, esquecida desde os Ramires do seculo XVIII, uma espineta de charŃo. No patamar da escada que conduzia ß portinha verde, Gonšalo, para os allumiar, erguera um castišal. Titˇ accendeu um cigarro ß vela. A sua mŃo cabelluda tremia. --EntŃo, entendido... Apparešo ßmanhŃ, Gonšalo. --Quando quizeres, Titˇ. E no secco assentimento do Fidalgo transparecia tanto despeito--que Titˇ hesitou nos estreitos degraus que atulhava. Por fim desceu pesadamente. Videirinha, jß na estrada, considerava o ceu, a luminosa serenidade: --Que linda noite, snr. Doutor! --Linda, Videirinha... E obrigado. Vossŕ hoje tocou divinamente! Gonšalo entrßra na sala dos retratos, pousßra apenas o castišal--quando, por baixo da varanda aberta, o vozeirŃo do Titˇ retumbou: --Oh Gonšalo, desce cß abaixo. O Fidalgo rolou pelos degraus com soffreguidŃo. Para alÚm dos alamos, no luar da estrada, Videirinha afinava o violŃo. E apenas a face do Fidalgo surdio na claridade da porta o Titˇ, que esperava com o chapÚo para a nuca, desabafou: --Oh Gonšalo, tu ficaste amuado... ╔ tolice! E entre nˇs nŃo quero sombras. EntŃo lß vae! Tu nŃo podes casar com essa mulher por que ella teve um amante. NŃo sei se antes ou depois d'esse teve outro. NŃo ha creatura mais manhosa, nem mais disfaršada. NŃo me venhas agora com perguntas. Mas fica certo que ella teve um amante. Sou eu que t'o affirmo: e tu sabes que eu nunca minto! Bruscamente metteu ß estrada, com os possantes hombros vergados. Gonšalo nŃo se movera de sobre os degraus de pedra, deante dos mudos alamos, como elle immoveis. Uma palavra passßra, irreparavel, no macio silencio da noite e da lua--e eis o alto sonho que elle construira sobre a D. Anna e a sua belleza e os seus duzentos contos despenhado no lodo! Lentamente subio, repenetrou na sala. Por cima da chamma alta da vela, n'um painel fusco, uma face acordßra, uma secca, amarellada face, de altivos bigodes negros, que se inclinava, attenta como reparando. E longe, Videirinha espalhava pelos campos adormecidos os ingenuos versos celebrando a gloria tamanha da Casa illustre: Que sˇ em Paio Ramires P§e agora o mundo esperanša... Que junte os seus cavalleiros E que salve o Rei de Franša!... X AtÚ noite alta Gonšalo, passeando pelo quarto, remoeu a amarga certeza de que sempre, atravez de toda a sua vida (quasi desde o collegio de S. Fiel!), nŃo cessßra de padecer humilhaš§es. E todas lhe resultavam de intentos muito simples, tŃo seguros para qualquer homem como o v˘o para qualquer ave--sˇ para elle constantemente rematados por d˘r, vergonha ou perda! ┴ entrada da vida escolhe com enthusiasmo um confidente, um irmŃo, que traz para a quieta intimidade da Torre--e logo esse homem se apodÚra ligeiramente do corašŃo de Gracinha e ultrajosamente a abandona! Depois concebe o desejo tŃo corrente de penetrar na Vida Politica--e logo o Acaso o fˇrša a que se renda e se acolha ß influencia d'esse mesmo homem, agora Auctoridade poderosa, por elle durante todos esses annos de despeito tŃo detestada e chasqueada! Depois abre ao amigo, agora restabelecido na sua convivencia, a porta dos Cunhaes, confiado na seriedade, no rigido orgulho da irmŃ--e logo a irmŃ s'abandona ao antigo enganador, sem lucta, na primeira tarde em que se encontra com elle na sombra favoravel d'um caramanchŃo! Agora pensa em casar com uma mulher que lhe offerecia com uma grande belleza uma grande fortuna--e immediatamente um companheiro de Villa-Clara passa e segreda:--źA mulher que escolheste, Gonšalinho, Ú uma marafona cheia d'amantes!╗ De certo essa mulher nŃo a amava com um amor nobre e forte! Mas decidira accommodar nos formosos brašos d'ella, muito confortavelmente, a sua sorte insegura--e eis que logo desaba, com esmagadora pontualidade, a humilhašŃo costumada. Realmente o Destino malhava sobre elle com rancor desmedido! --E por quŕ? murmurava Gonšalo, despindo melancolicamente o casaco. Em vida tŃo curta, tanta decepšŃo... Porquŕ? Pobre de mim! Cahio no vasto leito como n'uma sepultura--enterrou a face no travesseiro com um suspiro, um enternecido suspiro de piedade por aquella sua sorte tŃo contrariada, tŃo sem soccorro. E recordava o presumpšoso verso do Videirinha, ainda n'essa noite proclamado ao violŃo: Velha casa de Ramires Honra e flor de Portugal! Como a flor murchßra! Que mesquinha honra! E que contraste o do derradeiro Gonšalo, encolhido no seu buraco de Santa Ireneia, com esses grandes avˇs Ramires cantados pelo Videirinha--todos elles, se Historia e Lenda nŃo mentiam, de vidas tŃo triumphaes e sonoras! NŃo! nem sequer d'elles herdßra a qualidade por todos herdada atravez dos tempos--a valentia facil. Seu pae ainda fora o bom Ramires destemido--que na fallada desordem da romaria da Riosa avanšava com um guardasol contra tres clavinas engatilhadas. Mas elle... Alli, no segredo do quarto apagado, bem o podia livremente gemer--elle nascera com a _falha_, a falha de peor desdouro, essa irremediavel fraqueza da carne que, irremediavelmente, deante de um perigo, uma ameaša, uma sombra, o foršava a recuar, a fugir... A fugir d'um Casco. A fugir d'um malandro de suissas louras que, n'uma estrada e depois n'uma venda o insulta sem motivo, para meramente ostentar pimponice e arreganho. Ah vergonhosa carne, tŃo espantadiša! E a Alma... N'essa calada treva do quarto bem o podia reconhecer tambem, gemendo. A mesma fraqueza lhe tolhia a Alma! Era essa fraqueza que o abandonava a qualquer influencia, logo por ella levado como folha secca por qualquer sopro. Por que a prima Maria uma tarde adoša os espertos olhos e lhe aconselha por traz do leque que se interesse pela D. Anna--logo elle, fumegando d'esperanša, ergue sobre o dinheiro e a belleza de D. Anna uma presumpšosa torre de ventura e luxo. E a EleišŃo? essa desgrašada EleišŃo? Quem o empurrßra para a EleišŃo, e para a reconciliašŃo indecente com o Cavalleiro, e para os desgostos d'ahi manados? O Gouveia, sˇ com leves argucias, murmuradas por cima do cache-nez desde a loja do Ramos atÚ ß esquina do Correio! Mas que! mesmo dentro da sua Torre era governado pelo Bento, que superiormente lhe impunha gostos, dietas, passeios, e opini§es e gravatas!--Homem de tal natureza, por mais bem dotado na Intelligencia, Ú massa inerte a que o Mundo constantemente imprime fˇrmas varias e contrarias. O JoŃo Gouveia fizera d'elle um candidato servil. O Manuel Duarte poderia fazer d'elle um beberrŃo immundo. O Bento facilmente o levaria a atar ao pescošo, em vez d'uma gravata de seda, uma colleira de couro! Que miseria! E todavia o Homem sˇ vale pela Vontade--sˇ no exercicio da Vontade reside o goso da Vida. Por que se a Vontade bem exercida encontra em torno submissŃo--entŃo Ú a delicia do dominio sereno: se encontra em torno resistencia--entŃo Ú a delicia maior da lucta interessante. Sˇ nŃo sahe goso forte e viril da inercia que se deixa arrastar mudamente, n'um silencio e macieza de cera... Mas elle, elle, descendendo de tantos var§es famosos pelo Querer--nŃo conservaria, escondida algures no seu Ser, dormente e quente como uma braza sob cinza, uma parcella d'essa energia hereditaria?... Talvez! nunca porÚm n'esse pŕco e encafuado viver de Santa Ireneia a fagulha despertaria, resaltaria em chamma intensa e util. NŃo! pobre d'elle! Mesmo nos movimentos da Alma onde todo o homem realisa a liberdade pura--elle soffreria sempre a oppressŃo da Sorte inimiga! Com outro suspiro mais se enterrou, s'escondeu sob a roupa. NŃo adormecia, a noite findava--jß o relogio de charŃo, no corredor, batera cavamente as quatro horas. E entŃo, atravez das palpebras cerradas, no confuso canšasso de tantas tristezas revolvidas, Gonšalo percebeu, atravez da treva do quarto, destacando pallidamente da treva, faces lentas que passavam... Eram faces muito antigas, com desusadas barbas ancestraes, com cicatrizes de ferozes ferros, umas ainda flammejando como no fragor de uma batalha, outras sorrindo magestosamente como na pompa d'uma gala--todas dilatadas pelo uso soberbo de mandar e vencer. E Gonšalo, espreitando por sobre a borda do lenšol, reconhecia n'essas faces as veridicas feiš§es de velhos Ramires, ou jß assim comtempladas em denegridos retratos, ou por elle assim concebidas, como concebera as de Tructesindo, em concordancia com a rijeza e explendor dos seus feitos. Vagarosas, mais vivas, ellas cresciam d'entre a sombra que latejava espessa e como povoada. E agora os corpos emergiam tambem, robustissimos corpos cobertos de saios de malha ferrugenta, apertados por arnezes d'ašo lampejante, embušados em fuscos mantos de revoltas prÚgas, cingidos por faustosos gib§es de brocado onde scintillavam as pedrarias de collares e cintos;--e armados todos, com as armas todas da Historia, desde e clava g˘da de raiz de roble errissada de puas, atÚ ao espadim de sarau enlašarotado de seda e ouro. Sem temor, erguido sobre o travesseiro, Gonšalo nŃo duvidava da realidade maravilhosa! Sim! eram os seus avˇs Ramires, os seus formidaveis avˇs historicos, que, das suas tumbas dispersas corriam, se juntavam na velha casa de Santa Ireneia nove vezes secular--e formavam em torno do seu leito, do leito em que elle nascera, como a Assembleia magestosa da sua raša resurgida. E atÚ mesmo reconhecia alguns dos mais esforšados, que agora, com o repassar constante do Poemeto do tio Duarte e o Videirinha gemendo fielmente o seu źfado╗, lhe andavam sempre na imaginašŃo... Aquelle alÚm, com o brial branco a que a cruz vermelha enchia o peitoral, era certamente Gutierres Ramires o _d'Ultramar_, como quando corria da sua tenda para a escalada de Jerusalem. No outro, tŃo velho e formoso, que estendia o brašo, elle adivinhava Egas Ramires, negando acolhida no seu puro solar a El-Rei D. Fernando e ß adultera Leonor! Esse, de crespa barba ruiva, que cantava sacudindo o pendŃo real de Castella, quem, senŃo Diogo Ramires, _o Trovador_, ainda na alegria da radiosa manhŃ d'Aljubarrota? Deante da incerta claridade do espelho tremiam as f˘fas plumas escarlates do morriŃo de Paio Ramires, que s'armava para salvar S. Luiz Rei de Franša. Levemente balanšado, como pelas ondas humildes d'um mar vencido, Ruy Ramires sorria ßs naus inglezas que ante a pr˘a da sua Capitanea submissamente amainavam por Portugal. E, encostado ao poste do leito, Paulo Ramires, pagem do GuiŃo d'El-Rey nos campos fataes de Alcacer, sem elmo, rota a couraša, inclinava para elle a sua face de donzel, com a došura grave d'um avˇ enternecido... EntŃo, por aquella ternura attenta do mais poetico dos Ramires, Gonšalo sentio que a sua Ascendencia toda o amava--e da escuridŃo das tumbas dispersas accudira para o velar e soccorrer na sua fraqueza. Com um longo gemido, arrojando a roupa, desafogou, dolorosamente contou aos seus avˇs resurgidos a arrenegada Sorte que o combatia e que sobre a sua vida, sem descanšo, amontoava tristeza, vergonha e perda! E eis que subitamente um ferro faiscou na treva, com um abafado brado:--źNeto, doce neto, toma a minha lanša nunca partida!...╗ E logo o punho d'uma clara espada lhe rošou o peito, com outra grave voz que o animava:--źNeto, doce neto, toma espada pura que lidou em Ourique!...╗ E depois uma acha de coriscante gume bateu no travesseiro, offertada com altiva certeza:--źQue nŃo derribarß essa acha, que derribou as portas d'Arzilla?...╗ Como sombras levadas n'um vento transcendente todos os avˇs formidaveis perpassavam--e arrebatadamente lhe estendiam as suas armas, rijas e provadas armas, todas, atravez de toda a Historia, ennobrecidas nas arrancadas contra a Moirama, nos trabalhados cercos de Castellos e Villas, nas batalhas formosas com o Castelhano soberbo... Era, em torno do leito, um heroico reluzir e retinir de ferros. E todos soberbamente gritavam:--źOh neto, toma as nossas armas e vence a Sorte inimiga!...╗ Mas Gonšalo, espalhando os olhos tristes pelas sombras ondeantes, volveu:--źOh Avˇs, de que me servem as vossas armas--se me falta a vossa alma?...╗ Acordou, muito cedo, com a enredada lembranša d'um pesadello em que fallßra a mortos:--e, sem a preguiša, que sempre o amollecia nos colch§es, enfiou um roupŃo, escancarou as vidrašas. Que formosa manhŃ! uma manhŃ dos fins de Septembro, macia, lustrosa e fina; nem uma nuvem lhe desmanchava o vasto, o immaculado azul; e o sol jß pousava nos arvoredos, nos outeiros distantes, com uma došura outomnal. Mas, apesar de lhe respirar allentamente o brilho e a pureza, Gonšalo permaneceu toldado de sombras, das sombras da vÚspera, retardadas no seu espirito opprimido, como nevoas em valle muito fundo. E foi ainda com um suspiro, arrastando tristonhamente as chinellas, que puxou o cordŃo da campainha. O Bento nŃo tardou com a infusa da agoa quente para a barba. E acostumado ao alegre acordar do Fidalgo tanto estranhou aquelle silencioso e enrugado mover pelo quarto, que desejou saber se o Snr. Doutor passßra mal a noite... --Pessimamente! Bento declarou logo, com vivacidade e reprovašŃo--que certamente fizera mal ao Snr. Doutor tanto cognac de moscatel. Cognac muito adocicado, muito excitante... Bom para o Snr. D. Antonio, homemzarrŃo pesado. Mas o Snr. Doutor, assim nervoso, nunca devia tocar n'aquelle cognac. Ou entŃo, meio calice escasso. Gonšalo ergueu a cabeša, na surpreza de encontrar logo ao comešo do seu dia e tŃo flagrante, aquelle dominio que todos sobre elle se arrogavam--e de que tanto se lastimava, atravez de toda a amarga noite! Eis ahi o Bento mandando--marcando a sua rašŃo de cognac! E justamente o Bento insistia: --O Snr. Doutor bebeu mais de tres calices. Assim nŃo convÚm... Eu tambem tive culpa em nŃo tirar a garrafa... EntŃo, perante despotismo tŃo declarado, o Fidalgo da Torre teve uma brusca revolta: --Homem, nŃo dŕs tantas leis. Bebo o cognac que preciso e que quero! Ao mesmo tempo, com a ponta dos dedos, experimentava a agua na infusa: --Esta agua estß morna! exclamou logo. Jß me tenho fartado de dizer! Para a barba, preciso sempre agua a ferver. O Bento, gravemente, mergulhou tambem o dedo na agua: --Pois esta agua estß quasi a ferver... Nem para a barba se necessita agua mais quente. Gonšalo encarou o Bento com furor. O que! mais objecš§es, mais leis! --Pois vß immediatamente buscar outra agua! Quando eu pešo agua quente, pretendo que venha em cachŃo. Irra! tanta sentenša!... Eu nŃo quero moral, quero obediencia! O Bento considerou Gonšalo atravez d'um espanto que lhe inchßra a face. Depois, lentamente, com magoada dignidade, empurrou a porta, levando a infusa. E jß Gonšalo se arrependia da sua violencia. Coitado, nŃo era culpa do Bento se a vida lhe andava a elle tŃo estragada e sacudida! Depois, em casa tŃo antiga, nŃo destoava a tradišŃo dos antigos aios. E o Bento com perfeito rigor lhes reproduzia a rabugice e a lealdade! Mas ascendencia, e livre fallar bem lhe cabiam--bem os merecia por tŃo longa, tŃo provada dedicašŃo... O Bento, ainda vermelho e inchado, voltava com a infusa fumegante. E Gonšalo logo docemente, para o adošar: --Dia muito bonito, hein, Bento? O velho rosnou, ainda amuado: --Muito bonito. Gonšalo ensaboava a face, rapidamente, na impaciencia de reatar com o Bento, de lhe restabelecer a supremacia amoravel. E por fim mais doce, quasi humilde: --Pois se achas o dia assim bonito, dou um passeio a cavallo antes d'almošo. Que te parece? Talvez me faša bem aos nervos... Com effeito, aquelle cognac nŃo me convÚm... EntŃo, Bento, faze o favor, grita ahi ao Joaquim que me tenha a egoa prompta immediatamente. Com certeza me acalma, uma galopada... E no banho agora a agua bem esperta, bem quente. Tambem me acalma a agua quente. Por isso necessito sempre agua bem quente, a ferver. Mas tu, com essas tuas velhas idÚas... Pois todos os medicos o declaram. Para a saude agua quente, bem quente, a sessenta graus! E depois do rapido banho, em quanto se vestia, abriu mais familiarmente ao velho aio a intimidade das suas tristezas: --Ah! Bento, Bento, o que eu verdadeiramente precisava para me calmar, nŃo era um passeio, era uma jornada... Trago a alma muito carregada, homem! Depois estou farto d'esta eterna Villa-Clara, da eterna Oliveira. Muito mexerico, muita deslealdade. Precisava terra grande, distracšŃo grande. O Bento, jß reconciliado, enternecido, lembrou que o Snr. Doutor brevemente, em Lisboa, encontraria uma linda distracšŃo, nas C˘rtes. --Eu sei lß se vou ßs C˘rtes, homem! NŃo sei nada, tudo falha... Qual Lisboa!... O que eu necessito Ú uma viagem immensa, ß Hungria, ß Russia, a terras onde haja aventuras. O Bento sorriu superiormente d'aquella imaginašŃo. E apresentando ao Fidalgo o jaquetŃo de velvetina cinzenta: --Com effeito, na Russia parece que nŃo faltam aventuras. Anda tudo a chicote, diz o _Seculo_... Mas aventuras, Snr. Doutor, atÚ a gente as encontra na estrada... Olhe! o paesinho de V. Ex.^a, que Deus haja, foi lß em baixo deante do portŃo que teve a bulha com o Dr. Avelino da Riosa, e que lhe atirou a chicotada, e que levou com o punhal no brašo... Gonšalo calšava as luvas d'anta, mirando o espelho: --Pobre papß, coitado, tambem teve pouca sorte... E por chicote, ˇ Bento, dß cß aquelle chicote de cavallo marinho que tu hontem areaste. Parece que Ú uma boa arma. * * * * * Ao sahir o portŃo, o Fidalgo da Torre metteu a egoa, sem destino, n'um passo indolente, pela estrada costumada dos Bravaes. Mas no Casal Novo, onde dous pequenos jogavam ß bola debaixo das carvalheiras, pensou em visitar o Visconde de Rio-Manso. Certamente lhe concertaria os nervos a companhia de tŃo sereno e generoso velho. E, se elle o convidasse a almošar, gastaria os seus cuidados visitando essa fallada quinta da _Varandinha_ e cortejando źo botŃo de Rosa╗. Gonšalo recordava apenas confusamente que o terrašo da _Varandinha_ dominava uma estrada plantada de choupos, algures, entre o logar da Cerda e a espalhada aldŕa de Canta-Pedra, E tomou o caminho velho que desce das carvalheiras do Casal Novo, e penetra no valle, entre o cabešo d'Avellan e as ruinas do Mosteiro de Ribadaes, no solo historico onde Lopo de BayŃo derrotßra a mesnada de Lourenšo Ramires... Ora enterrada entre vallados, ora entre toscos muros de pedra solta, a vereda seguia sem belleza, e cansativa: mas as madresilvas nas sebes, por entre as amoras maduras, rescendiam: o fresco silencio recebia mais frescura e graša dos fremitos d'aza que o rošavam; e tanto era o radiante azul nos ceus serenos que um pouco do seu rebrilho e serenidade s'instillava n'alma. Gonšalo, mais desannuviado, nŃo se apressava: na Egreja dos Bravaes, quando elle passßra ao Casal Novo, batiam apenas as nove horas: e depois de costear um lameiro d'herva magra parou a accender pachorrentamente um charuto, rente da velha ponte de pedra que galga o riacho das Donas. Quasi secca pela estiagem, a agoa escura mal corria, sob as folhas largas dos nenufares, por entre os juncaes que a atulhavam. Adiante, ß orla d'um hervašal, no abrigo d'uma moita d'alamos, relusiam as pedras d'um lavadouro. Na outra margem, dentro d'um velho bote encalhado, um rapazito, uma rapariguinha conversavam profundamente, com dous molhos d'alfazema esquecidos nos regašos. Gonšalo sorriu do idyllio--depois teve uma surpreza descobrindo, no cunhal da ponte, rudemente entalhado, o seu BrazŃo-d'Armas, um Ašor enorme, que alargava as garras ferozes. Talvez aquellas terras outr'ora pertencessem ß Casa:--ou algum dos seus avˇs beneficos construira a ponte, sobre torrente entŃo mais funda, para seguranša dos homens e dos gados. Quem sabe se o av˘ Tructesindo, em memoria piedosa de Lourenšo Ramires, vencido e captivo nas margens d'aquella Ribeira! O caminho, para alÚm da ponte, alteava entre campos ceifados. As mŕdas lourejavam, pesadas e cheias, por aquelle anno de fartura. Ao longe, dos telhados baixos d'um logarejo, vagarosos fumos subiam, logo desfeitos no radiante ceu. E lentamente, como aquelles fumos distantes, Gonšalo sentia que todas as suas melancolias lhe escapavam da alma, se perdiam tambem no azul lustroso... Uma revoada de perdizes ergueu o v˘o d'entre o restolho. Gonšalo galopou sobre ellas, gritando, sacudindo o seu forte chicote de cavallo-marinho, que zenia como uma fina lamina. Em breve o caminho torceu, costeando um souto de sobreiros, depois cavado entre silvados com largos pedregulhos aflorando na poeira;--e ao fundo o sol faiscava sobre a cal fresca d'uma parede. Era uma casa terrea, com porta baixa entre duas janellas envidrašadas, remendos novos no telhado e um quinteiro que uma escura e immensa figueira assombreava. N'uma esquina pegava um muro baixo de pedra solta, continuado por uma sebe, onde adiante uma velha cancella abria para a sombra d'uma ramada. Defronte, no vasto terreiro que se alargava, jaziam cantarias, uma pilha de traves; passava uma estrada, lisa e cuidada, que pareceu a Gonšalo a de Ramilde. Para alÚm, atÚ a um distante pinheiral, desciam chŃs e lameiros. Sentado n'um banco, junto da porta, com uma espingarda encostada ao muro, um rapaz grosso, de barrete de lŃ verde, acariciava pensativamente o focinho d'um perdigueiro. Gonšalo parou: --Tem a bondade... Sabe por acaso qual Ú o bom caminho para a quinta do Snr. Visconde de Rio-Manso, a _Varandinha_? O rapasote ergueu a face morena, de bušo leve, remechendo vagamente no carapušo. --Para a quinta do Rio-Manso... Siga pela estrada atÚ ß pedreira, depois ß esquerda a seguir, sempre rente da varzea... Mas n'esse instante assomava ß porta um latagŃo de suissas louras em mangas de camisa, a cinta enfaixada em seda. E Gonšalo, com um sobresalto, reconheceu logo o cašador que o injurißra na estrada de Nacejas, o assobißra na venda do Pintainho. O homem relanceou superiormente o Fidalgo. Depois, com a mŃo encostada ß humbreira, chasqueou o rapasote: --Oh Manoel, que estßs tu ahi a ensinar o caminho, homem! Este caminho por aqui nŃo Ú para asnos! Gonšalo sentiu a pallidez que o cobriu--e todo o sangue no corašŃo, n'um tumulto confuso, que era de medo e de raiva. Um novo ultrage, do mesmo homem, sem provocašŃo! Apertou os joelhos no sellim para galopar. E a tremer, n'um esforšo que o engasgava: --Vossŕ Ú muito atrevido! ╔ jß pela terceira vez! Eu nŃo sou homem para levantar desordens n'uma estrada... Mas fique certo que o conhešo, e que nŃo escapa sem lišŃo. Immediatamente, o outro agarrou a um cajado curto e saltou ß estrada, affrontando a egoa, com as suissas erguidas, um riso de immenso desafio: --EntŃo cß estou! Venha agora a lišŃo... E para diante Ú que Vossŕ jß nŃo passa, seu Ramires de merd... Uma nevoa turvou os olhos esgaseados do Fidalgo. E de repente, n'um inconsciente arranque, como levado por uma furiosa rajada de orgulho e forša, que se desencadeava do fundo do seu ser, gritou, atirou a fina egoa n'um galŃo terrivel! E nem comprehendeu! O cajado sarilhßra! A egoa empinava, n'uma cabešada furiosa! E Gonšalo entreviu a mŃo do homem, escura, immensa, que empolgava a camba do freio. EntŃo, erguido nos estribos, por sobre a immensa mŃo, despediu uma vergastada do chicote silvante de cavallo-marinho, colhendo o latagŃo na face, de lado, n'um golpe tŃo vivo da aresta aguda que a orelha pendeu, despegada, n'um borbutar de sangue. Com um berro o homem recuou, cambaleando. Gonšalo galgou sobre elle, n'outro arremesso, com outra fulgurante chicotada, que o apanhou pela b˘ca, lhe rasgou a b˘ca, decerto lhe espedašou dentes, o atirou, urrando, para o chŃo. As patas da egoa machucavam as grossas coxas estendidas,--e, debrušado, Gonšalo ainda vergastou, cortou desesperadamente face, pescošo, atÚ que o corpo jazeu molle e como morto, com jorros de sangue escuro ensopando a camisa. Um tiro atroou o terreiro! E Gonšalo, com um salto no selim, avistou o rapasote moreno ainda com a espingarda erguida, a fumegar, mas jß hesitando aterrado. --Ah, cŃo! Lanšou a egoa, com o chicote alto:--o rapaz, espavorido, corria lentamente atravÚs do terreiro, para saltar o vallado, escapar para as varzeas ceifadas! --Ah cŃo, ah cŃo! berrava Gonšalo. Estonteado, o rapaz tropešßra n'uma viga solta. Mas jß se endireitava, largava, quando o Fidalgo o alcanšou com uma cutilada do chicote no pescošo, logo alagado de sangue. Estendendo as mŃos incertas, ainda cambaleou, abateu, estalou contra a aresta d'um pilar, a cabeša mais sangue jorrou. EntŃo Gonšalo, a arquejar, deteve a egoa. Ambos os homens jaziam immoveis! Santo Deus! Mortos? D'ambos corria o sangue sobre a terra secca. O Fidalgo da Torre sentia uma alegria brutal. Mas um grito espantado soou do lado do quinteiro. --Ai que mataram o meu rapaz! Era um velho que corria da cancella, n'uma carreira agachada, rente com a sebe, para a porta da casa. TŃo certeiramente o Fidalgo arremessou a egoa, para o deter--que o velho esbarrou contra o peitoril que arfava coberto de suor e d'espuma. E ante o inquieto animal escarvando, e Gonšalo alšado nos estribos, com a face chammejante, o chicote a descer--o velho, n'um terror, desabou sobre os joelhos, gritou anciadamente: --Ai, nŃo me faša mal, meu Fidalgo, por alma de seu pae Ramires. Gonšalo ainda o manteve assim um momento, supplicante, a tremer, sob o justiceiro faiscar dos seus olhos:--e gosava soberbamente aquellas callosas mŃos que se erguiam para a sua misericordia, invocavam o nome de Ramires, de novo temido, repossuido do seu prestigio heroico. Depois, recuando a egoa: --Esse malandro do rapazola desfechou a cašadeira!... Vossŕ tambem nŃo tem boa cara! Que ia vossŕ correndo para casa? Buscar outra espingarda? O velho alargou desesperadamente os brašos, offerecia o peito, em testemunho da sua verdade: --Oh meu Fidalgo, nŃo tenho em casa nem um cajado!... Assim Deus me ajude e me salve o rapaz! Mas Gonšalo desconfiava. Quando descesse agora pela estrada de Ramilde, bem poderia o velho correr ao casebre, agarrar outra cašadeira, desfechar traišoeiramente. E entŃo com a presteza d'espirito que a lucta afißra concebeu contra qualquer emboscada, um ardil seguro. E atÚ n'um relance sorrio recordando źtrašas de guerra╗, de D. Garcia Viegas, o _Sabedor_. --Marche lß deante de mim, sempre a direito, pela estrada! O velho tardou, sem se erguer, aterrado. E batia com as grossas mŃos nas coxas, n'uma ancia que o engasgava: --Oh meu Fidalgo, oh meu fidalgo! mas deixar assim o rapaz sem acordo?... --O rapaz estß sˇ atordoado, jß se mecheu... E o outro malandro tambem... Marche vossŕ! E ao irresistivel mando de Gonšalo, o velho, depois de sacudir demoradamente as joalheiras, comešou a avanšar pela estrada, vergado deante da egoa, como um captivo, com os longos brašos a bambolear, rosnando, n'um rouco assombro:--Ai como ellas se armam! Ai Santo nome de Deus, que desgraša! A espašos estacava, esgaseando para Gonšalo um olhar torvo onde negrejava medo e odio... Mas logo o commando forte o empurrava: źMarche!...╗ E marchava. Adiante, onde se erguia um cruseiro em memoria do Abbade Paguim, assassinado, Gonšalo reconheceu um largo atalho para a estrada dos Bravaes que chamavam o _Caminho da Moleira_. E para ahi enfiou o velho, que no pavor d'aquella asinhaga solitaria, pensando que Gonšalo o afastava de caminhos trilhados para o matar commodamente, rompeu a gemer. źAi que isto Ú o fim da minha vida! Ai Nossa Senhora, que Ú o fim da minha vida!╗ E nŃo cessou de gemer, emmaranhando os passos tropegos, atÚ que desembocaram na estrada alta entre taludes escarpados, revestidos de giesta brava. EntŃo de repente, com outro terror, o homem bruscamente revirou, atirando as mŃos ao barrete: --Oh meu senhor, o Fidalgo nŃo me leva preso?... --Marche! Corra! Que agora a egoa trota! A egoa trotou--o velho correu, desengonšado, arquejando como um folle de forja. Uma milha galgada, Gonšalo parou, farto do captivo, da lenta marcha. De resto antes que o homem agora corresse a casa, e agarrasse uma arma, e virasse para o alcanšar, se desforrar--entraria elle, n'um galope solto, o portŃo da Torre! EntŃo bradou, com o sobr'olho duro: --Alto! Agora pode voltar para traz... Mas, antes: Como se chama aquelle seu logar? --A Grainha, meu fidalgo. --E vossŕ como se chama, e o rapaz? O velho com a boca aberta, esperou, hesitou: --Eu sou JoŃo, o meu rapaz Manoel... Manoel Domingues, meu Fidalgo. --Vossŕ naturalmente mente. E o outro malandro, de suissas louras? D'um folego, o velho gritou: --Esse Ú o Ernesto de Nacejas, o valentŃo de Nacejas, que chamam o _Caša-abrašos_, e que tanto me desencaminhou o rapaz... --Bem! Pois diga lß a esses dous marotos que me atacaram a pau e a tiro, que nŃo ficam quites sˇmente com a sova, e que agora tŕm de se entender com a Justiša... Ella lß irß! Largue! Do meio da estrada, Gonšalo ainda vigiou o velho que abalßra, foršando as passadas derreadas, limpando o suor que lhe pingava. Depois, pela conhecida estrada, galopou para a Torre. E ia levado, galopando n'uma alegria tŃo fumegante, que o lanšava em sonho e devaneio. Era como a sensašŃo sublime de galopar pelas alturas, n'um corcel de lenda, crescido magnificamente, rošando as nuvens lustrosas... E por baixo, nas cidades, os homens reconheciam n'elle um verdadeiro Ramires, dos antigos na Historia, dos que derrubavam torres, dos que mudavam a configurašŃo dos Reinos,--e erguiam esse maravilhado murmurio que Ú o sulco dos fortes passando! Com razŃo! com razŃo! Que ainda de manhŃ, ao sahir da Torre, nŃo ousaria marchar para um rapazola decidido que brandisse um varapau... E depois, de repente, na solidŃo d'aquella casa terrea, quando o bruto das suissas louras lhe atira a suja injuria--eis um _nŃo sei quŕ_ que se desprende dentro do seu ser, e transborda, e lhe enche cada veia de sangue ardido e lhe enrija cada nervo de forša destra, e lhe espalha na pelle o desprezo e a d˘r, e lhe repassa fundamente a alma de fortaleza indomavel... E agora alli voltava, como um varŃo novo, soberbamente virilisado, liberto emfim da sombra que tŃo dolorosamente assombreßra a sua vida, a sombra molle e torpe do seu mŕdo! Por que sentia que, agora se todos os valent§es de Nacejas o affrontassem n'um rijo erguer de cajados--esse _nŃo sei quŕ_, lß dentro, no seu ser, de novo se soltaria, e o arremessaria, com cada veia inchada, cada nervo retesado, para o delicioso fragor da briga! Emfim era _um homem_! Quando em Villa Clara o Manuel Duarte, o Titˇ com o peito alto, contassem fašanhas, jß elle nŃo enrolaria encolhidamente o cigarro--encolhido, mudo nŃo sˇmente pela ausencia desconsoladora das valentias, mas sobretudo pela humilhante recordašŃo das fraquezas. E galopava, galopava apertando furiosamente o cabo do chicote, como para investidas mais bellas. Para alÚm dos Bravaes, mais galopou, ao avistar a Torre. E singularmente lhe pareceu, de repente, que a sua Torre, agora _mais sua_, e que uma affinidade nova fundada em gloria e forša, o tornava mais senhor da sua Torre! * * * * * Como para acolher Gonšalo mais dignamente, o portŃo grande, sempre cerrado, offerecia uma entrada triumphal com os dous pesados batentes escancarados. Elle atirou a egoa para o meio do pateo, bradando: --Oh Joaquim! Oh Manoel! Eh lß! um de vossŕs! O Joaquim surdiu da cavallariša, de mangas arregašadas, com uma esponja na mŃo. --Oh Joaquim, depressa! Apparelha o Rocilho, corre a um sitio na estrada de Ramilde, a que chamam a Grainha... Tive agora lß uma grande desordem! Creio que dei cabo de dous homens... Ficaram n'uma poša de sangue! NŃo digas que vaes da Torre, que te podem atacar! Mas sabe o que succedeu, se estŃo mortos... Depressa, depressa! O Joaquim, estonteado, remergulhou na cavallariša escura. E de cima d'uma das varandas do corredor, partiram exclamaš§es assombradas: --Oh Gonšalo, o que foi?! santo Deus! o que foi?! Era o Barr˘lo. Sem desmontar, sem surpresa ante a apparišŃo do Barr˘lo, Gonšalo atirou logo para a varanda a historia da bulha, tumultuosamente. Um malandro que o insultßra... Depois outro, que desfechou a cašadeira... E ambos derribados sob as patas da egoa, n'uma poša de sangue... O Barr˘lo despegou da varanda--e n'outro relance, investia pelo pateo, com os curtos brašos a boiar, enfiado. Mas entŃo? mas entŃo?... E Gonšalo, desmontando, tremulo agora do canšasso e da emošŃo, esmiušou mais lances... Na estrada de Ramilde! Um valentŃo que o injuriou! A esse rasgßra a b˘ca, decepßra a orelha... Depois o outro, um rapasola, desfecha uma carabina... Elle corre, tŃo vivamente o colhe com uma cutilada que o estira, para cima d'uma pedra, como morto... --Uma cutilada? --Com este chicote, Barr˘lo! Arma terrivel!... Bem dizia o Titˇ!... Estou perdido se nŃo levo este chicote. Esgaseado, Barr˘lo remirava o chicote. Sim, com effeito ainda manchado de sangue.--EntŃo Gonšalo attentou no chicote, no sangue... Sangue de gente! sangue fresco, que elle arrancßra!... E por entre o seu orgulho, uma piedade passou que o empallideceu: --Que desgraša, vejam que desgraša! Esquadrinhou vivamente o fato, as botas, no horror de nodoas de sangue, que o salpicassem. Sim, santo Deus! sangue na polaina!... E immediatamente anciou por se despir, se lavar,--galgou a escada, com o Barr˘lo que enxugava o suor, balbuciava:--źOra uma d'essas! E de repente! Assim na estrada!...╗ Mas no corredor, subindo n'uma carreira da cosinha, appareceu Gracinha, pallida, com a Rosa atraz, que enterrava os dedos entre o lenšo e o cabello n'um pavor mudo. --Que foi, Gonšalo? Jesus, que foi?! EntŃo, encontrando Gracinha junto d'elle, na Torre, n'esse momento magnifico do seu orgulho, depois de tŃo rijo perigo vencido, Gonšalo esqueceu o AndrÚ, o Mirante, as sombrias humilhaš§es, e no abrašo em que a colheu, nos fortes beijos que atirou ß face querida, todo o seu amuo se fundio em ternura. Com ella ainda chegada ao corašŃo, suspirou de leve, como uma creanša canšada. Depois apertando as duas pobres mŃos tremulas, com um lento, enternecido sorriso, em quanto os olhos se lhe humedeciam de confusa emošŃo, de confusa alegria: --Pois foi o diabo, filha! Uma desordem horrivel, eu que sou tŃo pacato! imagina tu... E pelo corredor recomešou para Gracinha, que arfava, e para a Rosa, estarrecida, a historia do encontro, e o sujo ultrage, o tiro que falhßra e os malandros lacerados a chicote, e o velho marchando como um captivo, a gemer pela estrada de Ramilde. Apertando o peito, n'um desmaio, Gracinha murmurou: --Ai, Gonšalo! E se um dos homens estivesse morto! O Barr˘lo, mais vermelho que uma pionia, berrou logo que taes malandros mereciam ricamente a morte! E mesmo feridos, ainda necessitavam castigo tremendo d'Africa! O Gouveia! era necessario mandar a Villa-Clara, avisar o Gouveia!... Mas largas passadas ßvidas abalaram o soalho--e foi o Bento, que se ergueu deante de Gonšalo, bracejando n'uma ancia: --EntŃo, Snr. Doutor?... Diz que uma grande desordem!... E ß porta do escriptorio, onde todos pararam, novamente attentos, a historia recomešou, especialmente para o Bento, que a bebia, n'um lento riso de gosto, crescendo, inchando, com os olhinhos humidos a reluzir, como se tambem triumphasse. Por fim, triumphou, com estrondo: --Foi o chicote, Snr. Doutor! O que serviu ao Snr. Doutor, foi o chicote que eu lhe dei! Era verdade. E Gonšalo, commovido, abrašou o velho aio, que n'uma excitašŃo, gritava para a Rosa, para Gracinha, para o Barr˘lo: --O Snr. Doutor deu cabo d'elles!... Aquelle chicote mata um homem!... Os malvados estŃo mortos!... E foi o chicote! Foi o chicote que eu dei ao Snr. Doutor! Mas Gonšalo reclamava agua quente para se lavar da poeira, do suor, do sangue... E o Bento correu, berrando ainda pelo corredor! depois pelas escadas da cosinha--źque f˘ra o chicote! o chicote, que elle dÚra ao Snr. Doutor!╗ Gonšalo entrßra no quarto, acompanhado pelo Barr˘lo. E pousou o chapeu sobre o marmore da commoda, com um immenso _ah_ consolado! Era o consolo immenso de se encontrar, depois de tŃo violenta manhŃ, entre as doces cousas costumadas, pisando o seu velho tapete azul, rošando o leito de pau preto em que nascera, respirando pelas vidrašas abertas, onde as ramagens familiares das faias s'empurravam na aragem para o saudar. Com que gosto se acercou do espelho de columnas douradas, se mirou e se remirou, como a um Gonšalo novo e tŃo melhorado, que nos hombros reconhecia mais largueza, e atÚ no bigode um arquear mais crespo. E foi ao arredar do espelho, topando com o Barr˘lo, que subitamente despertou n'uma curiosidade immensa: --Mas, oh Barr˘lo, como Ú que vos encontro esta manhŃ na Torre? ResolušŃo da vespera, ao chß. Gonšalo nŃo apparecia, nŃo escrevia... Gracinha a matutar, inquieta. Elle tambem espantado d'aquelle sumišo depois do cesto dos pŕcegos. De modo que ao chß, pensando tambem que a parelha necessitava uma trotada, lembrßra a Gracinha:--źVamos nˇs amanhŃ ß Torre? no phaeton?╗ --AlÚm disso precisava fallar comtigo, Gonšalo... Tenho andado aborrecido. O Fidalgo juntou duas almofadas no divan, onde se enterrou: --Como aborrecido?... Aborrecido por que?... Barr˘lo, com as mŃos nos bolsos da rabona de flanella, que lhe cingia as ancas gordas, considerou as fl˘res do tapete, melancolicamente: --╔ uma grande secca! A gente nŃo pˇde confiar em ninguem... Nem ter familiaridades!... N'um lampejo Gonšalo imaginou o Cavalleiro e Gracinha mostrando estouvadamente nos Cunhaes, como outr'ora entre os arvoredos da Torre, o sentimento que os dominava. E presentiu um desabafo, alguma queixa triste do pobre Barr˘lo, amargurado por suspeitas, talvez por intimidades que espreitßra. Mas a emošŃo suprema da sua batalha, sumira para uma sombra inferior os cuidados que, ainda na vespera, o opprimiam: todas as difficuldades da vida lhe appareciam agora, de repente, n'aquelle frescor da sua coragem nova, tŃo faceis d'abater como os desafios dos valent§es; e nŃo se assustou com as confidencias do cunhado, bem seguro d'imp˘r ßquella alma submissa de bac˘co a confianša e a quietašŃo. AtÚ sorriu, com indolencia: --EntŃo, Barrolinho? Succedeu alguma peripecia? --Recebi uma carta. --Ah! Gravemente Barr˘lo desabotoou o jaquetŃo, puxou do bolso interior uma larga carteira, de couro verde e lustroso, com monogramma d'ouro. E foi a carteira que elle mostrou a Gonšalo, com satisfašŃo. --Bonita, hein? Presente do AndrÚ, coitado... Creio que atÚ a mandou vir de Paris. O monogramma tem muito chic. Gonšalo esperava, espantado. Emfim o bom Barr˘lo tirou da carteira uma carta--jß amarrotada, depois alisada. Era, n'um papel pautado, uma lettra miudinha que o Fidalgo apenas relanceou, declarando logo com seguranša: --╔ das Louzadas. E leu, vagarosamente, serenamente, com o cotovello enterrado na almofada: źEx.^{mo} Snr. JosÚ Barr˘lo.--V. Ex.^a apesar de todos os seus amigos o alcunharem de _ZÚ bac˘co_, mostrou agora muita espertesa, chamando de novo para a sua intimidade e de sua digna esposa o gentil AndrÚ Cavalleiro, nosso Governador Civil. Com effeito a esposa de V. Ex.^a, a linda Gracinha, que n'estes ultimos tempos andava tŃo murcha e atÚ desbotada (o que a todos nos inquietava) immediatamente reflorio, e ganhou c˘res, desde que possue a valiosa companhia da primeira auctoridade do districto. Portou-se pois V. Ex.^a como marido zeloso, e desejoso da felicidade e boa saude de sua interessante esposa. Nem parece rasgo d'aquelle que toda a Oliveira considera como o seu mais illustre pateta! Os nossos sinceros parabens!╗ Gonšalo guardou muito socegadamente na algibeira aquella carta que, dias antes, o lanšaria em infinita amargura e furia: --╔ das Louzadas... E tu dÚste importancia a semelhante babuseira? O Barr˘lo repontou, com as bochechas abrazadas: --Se te parece! Sempre embirrei com bilhetinhos anonymos... E depois essa insolencia a respeito dos amigos me chamarem BACďCO... Grande infamia, hein? Tu acreditas?... Eu nŃo acredito! mas lanša sizania entre mim e os rapazes... Nem voltei ao Club... Bac˘co! Porquŕ? Por que eu sou simples, sempre franco, disposto a arranchar... NŃo! se os rapazes no Club me chamam bac˘co pelas costas, caramba, mostram ingratidŃo! Mas eu nŃo acredito! Rebolou pelo quarto, desconsoladamente, as mŃos cruzadas sobre as gordas nadegas. Depois, estacando deante do divan, d'onde Gonšalo o considerava, com piedade: --Em quanto ao resto da carta Ú tŃo estupido, tŃo atrapalhado que ao principio nem comprehendi. Agora percebo... Querem dizer que a Gracinha e o Cavalleiro teem namoro... ╔ o que me parece que querem dizer! Ora vŕ tu que disparate! AtÚ a intimidade do Cavalleiro Ú mentira. O pobre rapaz, desde que lß jantou, sˇ appareceu tres ou quatro vezes, ß noite, para a manilha, com o Mendonša... E agora abalou para Lisboa. EntŃo o Fidalgo pulou, de surpresa. --O quŕ! o Cavalleiro foi para Lisboa? --Pois partiu ha tres dias! --Com demora? --Com demora, com grande demora... Sˇ volta no meado d'outubro para a EleišŃo. --Ah! Mas o Bento rompeu pelo quarto, com o jarro d'agua quente, duas toalhas de rendas, ainda n'uma excitašŃo que o azafamava. Deante do espelho, lentamente Barr˘lo reabotoava o jaquetŃo: --Bem, atÚ logo, Gonšalinho. Eu desšo ß cavallariša, visitar a parelha. NŃo imaginas! desde Oliveira, sem descanso, uma trotada explendida. E nem um pello suado! Tu guardas a carta? --Guardo, para estudar a lettra. Apenas Barr˘lo cerrßra a porta--o Fidalgo recomešou com o Bento a deliciosa historia da briga, revivendo as surprezas e os rasgos, simulando os arremessos da egoa, arrebatando o chicote para representar as cutiladas silvantes, que arrancavam febra e sangue... E de repente, em ceroulas: --Oh Bento, traze o meu chapeu... Estou desconfiado que a bala rošou pelo chapeu. Ambos remiraram, esquadrinharam o chapeu. O Bento, no seu encarecimento da fašanha, achava a copa amolgada--atÚ chamuscada. --A bala passou de raspŃo, Snr. Doutor! O Fidalgo negou, com a modestia grave d'um forte: --NŃo! Nem de raspŃo!... Quando o malandro desfechou jß o brašo lhe tremia... Devemos agradecer a Deus, Bento. Mas eu realmente nŃo corri grande perigo! Depois de vestido, Gonšalo, passeando no quarto, releu a carta. Sim, certamente das Lousadas. Mas agora essa maledicencia, soprada com tŃo sordida maldade sobre as pobres bochechas do Barr˘lo, nŃo causava damno--antes servia, quasi beneficamente, como a braza d'um ferro, para sarar um damno. O pobre Barr˘lo apenas se impressionßra com a revelašŃo da sua bacoquice, essa ingrata alcunha posta pelos rapazes amigos, em galhofas ingratas do Club e debaixo dos Arcos. A outra insinuašŃo terrivel, Gracinha reverdecendo ao calor amoroso do Cavalleiro, essa mal a comprehendera, escassamente a attendera n'um desdem distrahido e candido. Mas a carta que assim silvava por sobre o bom Barr˘lo como flecha errada--acertava em Gracinha, feriria Gracinha no seu orgulho, no seu impressional pudor, mostrando ß pobre tonta como o seu nome e mesmo o seu corašŃo, jß arrastavam enxovalhadamente, pela rasteira mexeriquice das Lousadas!... Certesa tŃo humilhadora nŃo apagaria um sentimento--que se nŃo apagava com humilhaš§es mais intimas, tanto mais dolorosas. Mas estimularia a sua reserva e o seu desconfiado recato:--e agora que AndrÚ se afastßra para Lisboa, operaria n'ella, surdamente, solitariamente, sem que a presenša tentadora lhe desmanchasse a influencia socegadora e salutar. Assim o torpe papel aproveitava a Gracinha como um aviso temeroso pregado na parede. E rancorosamente preparada pelas duas femeas para desencadear nos Cunhaes escandalo e d˘r--talvez restabelecesse, na ameašada casa, quietašŃo e gravidade.--Gonšalo esfregou as mŃos pensando--que em tŃo ditosa manhŃ talvez atÚ esse mal redundasse em bem! --Oh Bento, onde estß a Snr.^a D. Graša? --A menina subiu agora ha pouco para o seu quarto, Snr. Doutor. Era o seu quarto de solteira, claro e fresco sobre o pomar, onde ainda se conservava o seu leito de linda madeira embutida, um toucador illustre que pertencera ß Rainha D. Maria Francisca de Saboya, e o sophß, as cadeiras de casimira clara em que Gracinha bordßra, n'um arrastado labor d'annos, o Ašor negro dos Ramires. E sempre que voltava ß Torre Gracinha gostava de reviver no seu quarto, as horas de solteira, remexendo as gavetas, folheando velhos romances inglezes na estantesinha envidrašada, ou simplesmente da varanda contemplando a querida quinta estendida atÚ aos outeiros de Valverde, a verde quinta, tŃo misturada ß sua vida que cada arvore lhe susurrava, cada recanto de verdura era como um recanto do seu pensamento. Gonšalo subiu--bateu ß porta cerrada com o antigo aviso:--źLicenša para o mano!╗ Ella correu da varanda, onde regava nos seus antigos vasos vidrados plantas sempre renovadas e cuidadas pela Rosa com carinho. E desabafando logo do pensamento que a enchia: --Oh Gonšalo! mas que felicidade nˇs virmos ß Torre, justamente hoje, que te succedeu cousa tamanha! --╔ verdade, Gracinha, grande sorte! E nŃo me admirei nada de te vŕr... Era como se ainda vivesses na Torre e te encontrasse no corredor... Quem estranhei foi o Barr˘lo! E no primeiro momento depois de desmontar, pensava assim, vagamente: źmas que diabo faz aqui o Barr˘lo? como diabo se acha aqui o Barr˘lo?...╗ Curioso, hein? Foi talvez que, depois da desordem, me senti remošado, com um sangue novo, e me julguei no tempo em que desejavamos uma guerra em Portugal, e nˇs cercados na Torre, sob o nosso pendŃo, o _nosso teršo_ atirando bombardas aos hespanhoes... Ella ria, lembrada dessas imaginaš§es heroicas. E com o vestido entalado entre os joelhos recomešou a lenta rega dos seus vasos--em quanto Gonšalo, encostado ß varanda, considerando a Torre, retomado pela ideia d'uma concordancia mais intima, que desde essa manhŃ se estabelecera entre elle e aquelle heroico resto da Honra de Santa Ireneia, como se a sua forša, tanto tempo quebrada, se soldasse emfim firmemente ß forša secular da sua raša. --Oh Gonšalo! tu deves estar muito canšado! Depois d'essa verdadeira batalha... --NŃo, canšado nŃo... Mas com fome. Com fome, e com uma sŕde explendida! Ella pousou logo o regador, sacudindo as mŃos alegremente: --Pois o almošo nŃo tarda!... Jß andei a trabalhar na cosinha, com a Rosa, n'uma pescada ß hespanhola... ╔ uma receita nova do BarŃo das Marges. --EntŃo insonsa, como elle. --NŃo! atÚ picante: foi o Snr. Vigario Geral que lh'a ensinou. E como, deante do toucador da Rainha Maria Francisca, ella arranjava ß pressa os ganchos do cabello, para aproveitar a solidŃo favoravel, apressou com um esforšo, a confidencia que o commovia: --E em Oliveira? Lß por Oliveira! --Em Oliveira, nada... Muito calor! Gonšalo, movendo os dedos lentos pela moldura do espelho, fino entrelašamento de ašucenas e louros, murmurou: --Eu sei apenas das Lousadas, das tuas amigas Lousadas. Continuam em plena actividade... Gracinha negou candidamente: --As Lousadas? NŃo! Nem teem apparecido. --Mas teem tecido! E como os verdes olhos de Gracinha se alargaram, sem comprehender, Gonšalo arrancou vivamente da algibeira a carta que guardßra, que agora lhe pesava, como uma chapa de ferro: --Olha, Gracinha! Mais vale desabafarmos! Ahi tens o que ellas ha dias escreveram a teu marido... N'um relance, Gracinha devorou as linhas terriveis. E com ondas de sangue nas faces, apertando as mŃos n'uma afflicšŃo, um desespero, em que o papel amarfanhou: --Oh Gonšalo! pois... Gonšalo accudio: --NŃo! o Barr˘lo nŃo se importou! AtÚ se rio! E eu tambem, quando elle me entregou esse papelucho... E a prova que ambos o consideramos uma mexeriquice insensata, Ú que eu t'o mostro tŃo francamente. Ella esmagava a carta nas mŃos juntas e tremulas, pallida agora e emmudecida pelo espanto, retendo grandes lagrimas que rebrilhavam. E Gonšalo commovido, com gravidade, com ternura: --Mas tu, Gracinha, sabes o que sŃo terras pequenas. Sobre tudo Oliveira! Precisas muito cuidado, muita reserva... Ai de mim! De mim vem a culpa. Reatei relaš§es que nunca se deviam reatar... Bem me tenho arrependido! E acredita! por causa d'essa situašŃo tŃo falsa e tŃo perigosa, que eu creei, levianamente, por ambišŃo tola, passei aqui na Torre dias amargurados... AtÚ nem m'atrevia voltar a Oliveira. Hoje, nŃo sei porquŕ, depois d'esta aventura, parece que tudo se esbateu, s'afundou para uma grande sombra... Emfim jß nŃo me arde tŃo em braza no corašŃo... Por isso desabafo assim, serenamente. Ella desatou n'um solto, doloroso choro em que a sua fraca alma se desfazia. Com redobrada ternura Gonšalo abrašou os pobres hombros vergados que os solušos espedašavam. E foi com ella toda refugiada no seu peito, que ainda a aconselhou, docemente: --Gracinha, o passado morreu, e todos precisamos, para honra de todos, que continue morto. Pelo menos que por fˇra, em cada gesto teu, pareša bem morto! Sou eu que t'o pešo, pelo nosso nome!... D'entre os brašos do irmŃo, ella gemeu com infinita humildade: --Mas elle atÚ foi embora!... Nem quiz estar mais em Oliveira! Gonšalo acariciou a acabrunhada cabeša que de novo se escondera contra o seu peito, contra elle se apertava, como procurando a fresca misericordiosa que dentro sentia brotar: --Bem sei. E isso me mostra que tens sido forte... Mas precisas muita reserva, muita vigilancia, Gracinha!... E agora socega. NŃo fallemos mais, nunca mais, n'este incidente... Por que foi apenas um _incidente_. E que eu provoquei, ai de mim, por leviandade, por illusŃo. Passou, estß esquecido! Socega, descanša. E quando desceres traze os olhos bem seccos. Lentamente a desprendera dos brašos, onde ella se arraigava como ao abrigo mais certo e ß consolašŃo mais desejada. E sahia, engasgado pela emošŃo, recalcando tambem as lagrimas... Um gemido timido, supplicante, ainda o reteve. --Gonšalo! mas tu pensas... Elle voltou, de novo a abrašou, a beijou na testa lentamente: --Eu penso que tu, agora bem avisada, bem aconselhada, vaes mostrar muita dignidade, muita firmeza. Rapidamente abalou, cerrou a porta. E na escada estreita, escassamente allumiada por uma claraboia baša, limpava as palpebras, quando esbarrou com o Barr˘lo, que procurava Gracinha, para apressar o almošo. --A Gracinha jß desce! atabalhoou o Fidalgo. Estß a lavar as mŃos! Jß desce!... Mas antes do almošo vamos ß cavallariša. Devemos uma visita ß egoa, a essa querida egoa que me salvou! --╔ verdade, caramba! concordou logo Barr˘lo revirando nos degraus, com enthusiasmo. Precisamos visitar a egoa... Grande, briosa, hein! Mas aposto que ficou mais suada que as minhas... Imagina! uma trotada d'aquellas, desde Oliveira, e nem um pello molhado! Grandes egoas! Tambem, o que eu as ˇlho, o que as trato! Na cavallariša, ambos affagaram a egoa. Barr˘lo lembrou que se mimoseasse com uma rašŃo larga de cenoura. Depois--para que Gracinha, com vagar se calmasse,--o Fidalgo arrastou o Barr˘lo ao pomar e ß horta... --Tu nŃo vens ß Torre ha perto de seis mezes, Barrolinho! Precisas vŕr, admirar progressos. Anda agora por aqui a mŃo forte do Pereira da Riosa... --Imagino! grande homem, o Pereira! Mas eu tenho uma fome, Gonšalinho! --Tambem eu! Uma hora batia quando entraram na varanda onde a mesa esperava, florida e em festa--e Gracinha, ß beira do divan, percorria pensativamente a velha _Gazeta do Porto_. Apesar de muito banhados, os seus bellos olhos conservavam um ardor: e para o justificar, e o seu modo abatido, logo se lastimou, cˇrando, d'uma enxaqueca. Eram as emoš§es, o perigo de Gonšalo... --Tambem eu tenho d˘r de cabeša! declarou o Barr˘lo, rondando a mesa. Mas a minha vem da fome... Oh filhos, Ú que estou desde as sete da manhŃ com uma chavena de cafÚ e um ovo quente! Gonšalo repicou a campainha. Mas quem rompeu pela porta envidrašada, esbaforido, escancarando a bocca n'um riso immenso, foi o Joaquim, o mošo da cavallariša que voltava da Grainha. Gonšalo atirou os brašos, soffrego: --EntŃo?! entŃo?! --Pois lß estive, meu Fidalgo! exclamou o Joaquim com o peito a estalar d'importancia. E vae por lß um povoleu, todos jß sabem! Uma rapariga dos Bravaes espreitou tudo, de dentro do quinteiro... Depois correu, badalou... Mas o velho, o tal Domingues que mora na casa, e o filho, abalaram ambos. E o rapaz, ao que dizem, pouco ferido. Se cahio, sem sentidos, foi com o susto. O Ernesto de Nacejas, esse sim, santo nome de Deus, apanhou. Lß o levaram em brašos para casa d'um compadre alli ao pÚ, na Arribada. Parece que fica sem orelha, e que fica sem bocca!... Pois por todos aquelles sitios era o ai-jesus das mošas!... E logo lß o carregam para o Hospital de Villa Clara, que na casa do Compadre nŃo pode sarar. Um povoleu, e todos dŃo a rasŃo ao Fidalgo. O tal Domingues era malandro. E o Ernesto, esse ninguem o podia enxergar! Mas todos lhe tinham medo... O Fidalgo fez uma limpeza! Gonšalo resplandecia. Ah! Ainda bem! que nŃo passßra damno mais forte, que belleza perdida do D. Juan de Nacejas! --E entŃo o povo por lß, a fallar, a olhar para o sitio? --Pois o povo nŃo se arreda! E a mostrar o sangue, no chŃo, e as pedras por onde se atirou a egoa do Fidalgo... E agora atÚ contam que foi uma espera, e que desfecharam tres tiros ao Fidalgo, e que depois adiante no pinhal ainda saltaram tres homens mascarados que o Fidalgo escangalhou... --Eis a lenda que se forma! declarou Gonšalo. O Bento apparecera com uma larga travessa fumegante. O Fidalgo affagou risonhamente o hombro do Joaquim. E em baixo a Rosa que abrisse, para o almošo da familia, duas garrafas de vinho do Porto, velho. Depois com a mŃo nas costas da cadeira murmurou gravemente:--Pensemos um momento em Deus, que me tirou hoje d'um grande perigo! Barr˘lo pendeu a cabeša, reverente. Gracinha, atravez d'um leve suspiro, pensou uma leve orašŃo. E desdobravam os guardanapos; Gonšalo acclamava a travessa de pescada ß hespanhola--quando o pequeno da Crispola empurrou ainda a porta envidrašada źcom um telegramma, que viera da Villa!╗ Uma inquietašŃo deteve os garfos. A manhŃ correra com tantas agitaš§es e espantos! Mas jß um sorriso de gosto, de triumpho, se espalhßra na fina face de Gonšalo: --NŃo Ú nada... ╔ do Castanheiro, por causa dos capitulos do Romance que eu lhe mandei... Coitado! Bom rapaz! E, recostado na cadeira, recitou vagarosamente o telegramma, que os seus olhos affagavam:--źCapitulos romance recebidos. Leitura feita amigos. Enthusiasmo! Verdadeira obra prima! Abrašo!...╗ Barr˘lo, com a bocca cheia, bateu as palmas. E Gonšalo, sem reparar na travessa da pescada que Bento lhe apresentava, mas enchendo o copo de vinho verde, com uma vaga tremura, um sorriso ditoso que nŃo se dissipava: --Emfim, boa manhŃ... Grande manhŃ! Gonšalo, apesar das insistencias de Gracinha e do Barr˘lo, nŃo os acompanhou para Oliveira--no desejo de acabar, durante essa semana, o derradeiro Capitulo da Novella, e depois cerrar o preguišoso giro de visitas aos influentes Eleitoraes do Circulo. Assim rematava a Obra d'Arte e a obra de Politica,--e cumpria, Deus louvado, a tarefa d'esse verŃo fecundo! Logo n'essa noite retomou o manuscripto da Novella--e na margem larga lanšou a data, uma nota:--ź_Hoje, na freguesia da Grainha, tive uma briga terrivel com dous homens que me assaltaram a pau e tiro, e que castiguei severamente..._╗ Depois, com facilidade atacou o lance de tanto sabor medieval, em que Tructesindo Ramires, correndo no rasto do Bastardo, penetrava, ao espalhado e fumarento clarŃo dos archotes, no arraial de D. Pedro de Castro. Com grave amisade acolhia o velho homem de guerra aquelle seu primo de Portugal, que lhe trouxera a sua forte mesnada, de Santa Ireneia, quando os Castros combateram um grande poder de Mouros em Enxarez de Sandornin. Depois, na vasta tenda, reluzente d'armas, tapizada de pelles de leŃo e d'urso, Tructesindo contava, ainda a arfar de d˘r represa, a morte de seu filho Lourenšo, ferido na lide de Canta-Pedra, acabado ß punhalada pelo Bastardo de BayŃo, deante das muralhas de Santa Ireneia, com o sol no ceu alto a olhar a traišŃo! Indignado, o velho Castro esmurrašou a mesa, onde um rosario d'ouro se misturava a grossas pešas de xadrez; jurou pela vida de Christo, que, em sessenta annos d'armas e surpresas nunca soubera de feito mais vil! E agarrando a mŃo do senhor de Santa Ireneia, ardentemente lhe offereceu, para a empreza da santa vinganša, a sua hoste inteira--tresentas e trinta lanšas, vasta e rija peonagem. --Por Santa Maria! Formosa arrancada! bradou Mendo de Briteiros com as vermelhas barbas a flammejar de gosto. Mas D. Garcia Viegas, o _Sabedor_, entendia que para colherem o Bastardo vivo, como convinha a uma vinganša vagarosa e bem gosada, mais utilmente serviria uma calada e curta fila de cavalleiros, com alguns homens de pÚ... --Porquŕ, D. Garcia? --Porque o Bastardo, depois de se aligeirar, junto da Ribeira, da pionada e carriagem correra, com a mira em Coimbra, para se acolher ß forša da Hoste Real. N'essa noite, com o seu esfalfado bando de lanšas, pernoitßra certamente no solar de Landim. E com o luzir da alva, para encurtar, certamente retomava a galopada pelo velho caminho de MiradŃes, que trepa e foge atravez das lombas do Caramulo. Ora elle, Garcia Viegas, conhecia para deante do _Pošo da Esquecida_, certo passo, onde poucos cavalleiros, e alguns bÚsteiros, bem postados por entre o bravio, apanhariam Lopo de BayŃo como lobo em fojo... Tructesindo, incerto e pensativo, mettia os dedos lentos pelos fios da barba. O velho Castro duvidava, preferindo que se pozessse batalha ao Bastardo em campo bem liso onde se avantajassem tantas lanšas jß aprestadas, que depois correriam em alegre levada a assolar as terras de BayŃo. EntŃo Garcia Viegas rogou aos seus primos d'Hespanha e de Portugal que sahissem ao terreiro, deante da tenda, com fartura de tochas para bem se allumiarem. E ahi, no meio dos cavalleiros curiosos, ß claridade dos lumes inclinados, D. Garcia vergou o joelho, riscou sobre a terra, com a ponta d'uma adaga, o roteiro da _sua cašada_ para lhe comprovar a belleza... D'alÚm castello Landim, largaria com a alva o Bastardo. Por aqui, quando a lua nascesse, abalariam elles, com vinte cavalleiros dos Ramires e dos Castros, para que lidadores d'ambas as mesnadas gosassem a lide. AlÚm, se postariam, alapados no mattagal, besteiros e pe§es de frecha. Por traz, d'este lado, para entaipar o Bastardo, o senhor D. Pedro de Castro, se com tŃo gostosa ajuda elle honrasse o Senhor de Santa Ireneia. Adiante, acolß, para colher pela gorja o villŃo, o Snr. D. Tructesindo que era o pae e Deus mandava fosse o vingador. E alli, na estreitura o derrubariam e o sangrariam como um porco--e como o sangue era vil, a um tiro de bÚsta encontrariam agua farta para lavar as mŃos, a agoa do _pÚgo das Bichas_!... --Famosa traša! murmurou Tructesindo convencido. E D. Pedro de Castro bradou atirando um faiscante olhar aos Cavalleiros d'Hespanha: --Vida de Christo, que se meu tio-av˘ Gutierres tivera por Coudel aqui o snr. D. Garcia, nŃo lhe escapavam os de Lara quando levaram o Rei Menino, na grande carreira, para Santo Estevam de Gurivaz!... Entendido pois, primo e amigo! E a cavallo, para a monteria, mal reponte a lua! E recolheram as tendas--que jß nas fogueiras lourejavam os cabritos da ceia, e os uch§es acarretavam, d'entre os carros da sarga, os pesados odres de vinho de Tordesillas. Com a ceia no arraial (grave e sem ruido, por que um luto velava o corašŃo dos hospedes) Gonšalo terminou, n'essa noute, o seu capitulo IV, lanšando ß margem outra nota:--źMeia noite... Dia cheio. Batalhei, trabalhei.--╗. Depois no seu quarto, em quanto se despia, trašou todo o alvoroto da briga curta em que o Bastardo como lobo em fojo quedaria captivo, ß mercŕ vingadora dos de Santa Ireneia... Mas de manhŃ, antes d'almošo, ao abancar com gosto para o trabalho--recebeu dous telegrammas, que o desviaram deliciosamente da correria contra o Bastardo de BayŃo. Eram dois telegrammas d'Oliveira, um do BarŃo das Marges, outro do capitŃo Mendonša--ambos com parabens ao Fidalgo źpor assim escapar de tŃo terrivel espera, destrošando os valent§es de Nacejas.╗ O BarŃo das Marges accrescentava:--ź_Bravissimo! ╔ d'heroe!_╗ Gonšalo, enternecido, mostrou os telegrammas ao Bento. A nova da sua fašanha, pois, jß se espalhßra, impressionßra Oliveira, --Foi o Snr. JosÚ Barr˘lo que contou! acudiu o Bento. E o Snr. Dr. verß! o Snr. Dr. verß... AtÚ no Porto se vŃo assombrar! Ao bater meio dia, rompeu pelo corredor, com estrondo, o immenso Titˇ, acompanhado pelo JoŃo Gouveia que chegßra na vespera ß tarde da Costa, soubera da aventura na Assembleia, corria ß Torre, como amigo para o abrašo, antes de comparecer, como Auctoridade, para o auto. EntŃo Gonšalo, ainda nos brašos do Gouveia, pediu generosamente, źque se nŃo procedesse contra os bandidos...╗ O Administrador recusou, decidido e secco, proclamando o principio da Ordem, e necessidade d'um escarmento rijo, para que Portugal nŃo recuasse aos tempos barbaros do JoŃo BrandŃo de Mid§es. Elle e Titˇ almošaram na torre:--e Titˇ, ß sobremesa, lembrou galhofeiramente a conveniencia d'um brinde, e bramou elle o brinde, comparando Gonšalo ao elefante, źsempre bom, que tanto aguenta, e de repente, zßs, esmaga o mundo!╗ Depois JoŃo Gouveia accendendo um grande charuto reclamou a representašŃo veridica da desordem, com os pulos, os gritos, para elle se compenetrar como auctoridade. EntŃo atravez da varanda, reviveu a historia heroica, simulando com o chicote sobre o divan (que terminou por esgašar) os golpes que arremessßra imitando os tombos meio desmaiados do valentŃo de Nacejas, quando jß o sangue o alagava. O Administrador e o Titˇ visitaram na cavallariša a egoa historica; e no pateo, Gonšalo ainda lhes mostrou as duas polainas de couro seccando ao sol, lavadas do sangue que as salpicßra. Deante do portŃo JoŃo Gouveia bateu gravemente no hombro do Fidalgo: --Gonšalo, vossŕ deve apparecer esta noite na Assembleia... Appareceu--e foi acolhido como o vencedor d'uma batalha illustre. No bilhar, por proposta do velho Ribas, flammejou um grande punche---e o Commendador Barros, afogueado, teimava que no domingo se celebrasse em S. Francisco um Te-Deum de grašas, de que elle costearia as despezas, com orgulho, caramba! ┴ sahida, acompanhado pelo Titˇ, pelo Gouveia, pelo Manoel Duarte, por outros socios, encontraram o Videirinha--que nŃo pertencia ß Assembleia, mas rondava, esperando o Fidalgo para lhe lanšar duas trovas do _Fado_, improvisadas n'essa tarde, em que o exaltava acima dos outros Ramires, da Historia e da Lenda! O rancho quedou no chafariz. O violŃo gemeu, com amor. E o cantar do Videirinha, elevado da alma, varou a muda ramagem das olaias: Os Ramires d'outras eras Venciam com grandes lanšas, Este vence com um chicote, Vŕde que estranhas mudanšas! ╔ que os Ramires famosos, Da passada gerašŃo, Tinham a forša nas armas E este a tem no corašŃo! A tŃo requebrado conceito--os amigos romperam em vivas a Gonšalo, ß Casa de Ramires. E o Fidalgo recolhendo ß Torre, commovido, pensava: --╔ curioso! Esta gente toda parece gostar de mim!... Mas que emošŃo quando, de manhŃ cedo, o Bento o acordou com um telegramma de Lisboa! Era do Cavalleiro--que źsoubera pelos jornaes attentado, lhe mandava enthusiastico abrašo pela felicidade e pela valentia!╗ Gonšalo berrou, sentado na cama: --Caramba! entŃo os jornaes em Lisboa jß fallam, Bento! o caso anda celebrado! Certamente celebrado!--por que durante o delicioso dia, o mošo do Telegrapho, esbaforido sobre a perna manca, nŃo cessou d'empurrar o portŃo da Torre, com outros telegrammas, todos de Lisboa, da Condessa de Chellas; de Duarte Lourenšal; dos Marquezes de Cˇja _felicitando_; da tia Louredo com źparabens ao destemido sobrinho╗; da marqueza d'Esposende źesperando que o caro primo tivesse agradecido a Deus!╗... E o ultimo do Castanheiro, com exclamaš§es:--_Magnifico! Digno de Tructesindo!_--Gonšalo, pela livraria, erguia os brašos, estonteado: --Santo nome de Deus! mas que terŃo dito os jornaes? E, por entre os Telegrammas, accudiam os cavalheiros dos arredores, os influentes,--o Dr. Alexandrino, aterrado, antevendo um regresso ao Cabralismo; o velho Pacheco Valladares de Sß, que nŃo se espantßra do seu nobre primo, por que sangue de Ramires, como sangue de Sßs, sempre ferve; o padre Vicente da Finta, que com os seus parabens, offereceu um cestinho de cachos do seu famoso moscatel tinto; e por fim o Visconde de Rio-Manso, que agarrado a Gonšalo, solušou, no enternecimento quasi ufano de que a briga assim rompesse, na estrada, quando źo querido amigo, o amigo da sua Rosa╗ se encaminhava para a _Varandinha_. Gonšalo, afogueado, banhado de riso, abrašava, recontava pacientemente a fašanha, acompanhava atÚ ao portŃo aquelles cavalheiros, que ao montar as egoas, ao entrar nas caleches, sorriam para a velha Torre, escura e rigida, na doce claridade da tarde de Setembro, como saudando, depois do heroe, o secular fundamento do seu heroismo. E o Fidalgo, galgando as escadas para a livraria, de novo murmurava, estonteado: --Que terŃo dito os jornaes de Lisboa? Nem dormiu, na anciedade de os devorar. Quando o Bento, em alvorošo, rompeu pelo quarto com o correio--Gonšalo saltou, arrojou o lenšol, como se abafasse. E logo no _Seculo_, soffregamente percorrido, encontrou o telegramma d'Oliveira, contando o assalto! os tiros disparados! a immensa coragem do Fidalgo da Torre, que com um simples chicote... O Bento quasi arrebatou o _Seculo_ das mŃos tremulas do Fidalgo, para correr ß cosinha, bramar ß Rosa a noticia gloriosa! De tarde, Gonšalo correu a Villa-Clara, ß Assembleia, para devorar os outros jornaes de Lisboa, os do Porto. Todos contavam, todos celebravam! A _Gazeta do Porto_, attribuindo o attentado a Politica, ultrajava furiosamente o Governo. O _Liberal Portuense_, porÚm, relacionava źcom certas vinganšas dos republicanos d'Oliveira, o pavoroso attentado que quasi causßra a morte d'um dos maiores fidalgos de Portugal e d'Hespanha e d'um dos mais pujantes talentos da nova gerašŃo!╗ Os jornaes de Lisboa, glorificavam sobre tudo źa coragem explendida do Snr. Gonšalo Ramires.╗ E o mais ardente era a _ManhŃ_, n'um verboso artigo (de certo escripto pelo Castanheiro), recordando as heroicas tradiš§es da Casa illustre, esbošando as bellezas do Castello de Santa Ireneia e terminando por affirmar que źagora, se esperava com redobrada anciedade a apparišŃo da novella de Gonšalo Ramires, fundada sobre um feito de seu av˘ Tructesindo no seculo XII, e promettida para o primeiro numero dos *Annaes de Litteratura e de Historia*, a nova Revista do nosso querido amigo Lucio Castanheiro, esse benemerito restaurador da Consciencia heroica de Portugal!╗--As mŃos de Gonšalo, ao desdobrar os jornaes, tremiam. E o JoŃo Gouveia, tambem soffrego, devorando tambem os artigos, por sobre o hombro do Fidalgo, murmurava, impressionado: --Vossŕ, Gonšalinho, vae ter uma votašŃo tremenda! Depois n'essa noute, recolhendo ß Torre, Gonšalo encontrou uma carta que o perturbou. Era de Maria de Mendonša, n'um papel perfumado, com o mesmo perfume que tŃo docemente espalhava D. Anna, pelo adro de Santa Maria de Craquŕde:--źSˇ esta manhŃ soubemos o grande perigo que passou, e ficamos _ambas_ muito commovidas. Mas ao mesmo tempo eu (e nŃo sˇ eu) muito vaidosa da magnifica coragem do primo. ╔ d'um verdadeiro Ramires! Eu nŃo vou ahi abrašal-o (com risco de me comprometter e _fazer invejas_) por que um dos meus pequenos, o Neco, anda muito constipado. Felizmente nŃo Ú cousa de cuidado... Mas aqui todos, atÚ os pequenos, anciamos por vŕr o heroe, e nŃo creio que houvesse nada d'extraordinario, nem _d'um lado_ nem _d'outro_, em que o primo por aqui apparecesse alÚm d'amanhŃ (quinta feira) pelas tres horas. Davamos um passeio na quinta, e atÚ se merendava, ß boa e velha moda dos nossos avˇs. Estß dito? Muitos comprimentos, _muitos_, da Annica, e o primo creia-me, etc.╗--Gonšalo sorriu, pensativamente, considerando a carta, recebendo o aroma. Nunca a prima Maria lhe empurrßra, tŃo claramente, a D. Anna para os brašos... E como D. Anna se deixava empurrar, prompta, e d'olhos cerrados... Ah, se fosse somente para a alcova! Mas ai! era tambem para a Egreja. E de novo sentia aquelle vozeirŃo do Titˇ, nos degraus da portinha verde com a lua cheia por cima dos olmos negros: źEssa creatura teve um amante, e tu sabes que eu nunca minto?╗ EntŃo tomou lentamente a penna, respondeu a D. Maria Mendonša:--źQuerida prima--Fiquei muito enternecido com o seu cuidado, e os seus enthusiasmos. NŃo exaggeremos! Eu nŃo fiz mais que correr a chicote uns valent§es que me assaltaram a tiro. ╔ fašanha facil para quem tenha, como eu, um chicote excellente. Emquanto ß visita ß _Feitosa_, que me seria tŃo agradavel, nŃo a posso realisar com fundo pezar meu, nem na quinta-feira, nem mesmo por todo este mez... Ando occupadissimo com o meu livro, a minha EleišŃo, a minha mudanša para Lisboa. A era dos cuidados sÚrios soou severamente para mim,--cerrando a doce era dos passeios e dos sonhos. Pešo que apresente ß Snr.^a D. Anna os meus profundos respeitos. E com muitas amisades para si, e bons desejos pelo restabelecimento d'esse querido Neco, espero me creia sempre seu dedicado e grato primo, etc.╗ Fechou vagarosamente a carta. E batendo o seu sinete d'armas sobre o lacre verde, pensava: --Assim aquelle maroto do Titˇ me rouba dusentos contos!... * * * * * Durante toda essa macia semana dos fins de Setembro, Gonšalo trabalhou no Capitulo final da sua Novella. Era emfim a madrugada vingadora em que os Cavalleiros de Santa Ireneia, reforšados pelas mais nobres lanšas da mesnada dos Castros, surprehendiam, no bravio desfiladeiro marcado por Garcia Viegas, o _Sabedor_, o bando de BayŃo, na sua ašodada corrida sobre Coimbra... Briga curta e falsa, sem destro e brioso teršar d'armas, mais semelhante a montaria contra um lobo do que a arremettida contra um Filho-de-Algo. E assim a desejßra Tructesindo, com ruidosa approvašŃo de D. Pedro de Castro, por que nŃo se cuidava de combater um inimigo, mas de colher um matador. Antes do luzir d'alva, o Bastardo abalßra do castello de Landim, em dura pressa e com tŃo descuidada seguranša, que nem almogavar nem coudel lhe atalayavam os trilhos. As cotovias cantavam quando elle, em aspero trote, penetrou por essa brecha, entalada entre escarpas de penedia e urze, que chamam a _Racha do Moiro_, desde que Mafoma a fendeu para que escapassem as adagas christans de El-Rei Fernando, o _Magno_, o Alcaide moiro de Coimbra e a monja que elle arrebatßra ß garupa. E apenas pela esguia greta enfißra a derradeira lanša da fila--eis que da outra embocadura do valle surde o cerrado trošo dos cavalleiros de Santa Ireneia, que Tructesindo guia, com a viseira erguida, sem broquel, sacudindo apenas uma ascuma de monte como se folgadamente andasse em cašada. Da selva arredada que os encobria, rompem por traz as lanšas dos Castros, ristadas e cerrando a brecha mais densamente que as puas d'uma levadiša. Do recosto dos cerros rˇla, como reprŕsa solta, uma rude e escura peonagem! Colhido, perdido, o Bastardo terrivel! Ainda arranca furiosamente a espada, que redomoinhando o cor˘a de coriscos. Ainda com um fero grito arremette contra Tructesindo... Mas bruscamente, d'entre um escuro magote de fundeiros baleares, parte ondeando uma corda de canave, que o laša pela gargalheira, o arranca n'um brusco sacŃo da sela mourisca, o derriba, sobre pedregulhos em que a sua larga espada se entala e se parte rente ao punho dourado. E emquanto os cavalleiros de BayŃo aguentam assombradamente o denso cerco de lanšas, que os envolvera--um r˘lo de pe§es, em dura grita, como mastins sobre um cerdo, arrastam o Bastardo para a lomba do outeiro, onde lhe arrancam broquel e adaga, lhe despedašam o brial de lŃ r˘xa, lhe quebram os fechos do elmo, para lhe cuspirem na face, nas barbas c˘r de ouro, tŃo bellas e de tanto orgulho! Depois a mesma bruta matula o iša, amarrado, para sobre o dorso d'uma possante mula de carga, o estende entre dous esguios caixotes de virot§es, como rez apanhada ao recolher da montaria. E servos da carriagem ficam guardando o Cavalleiro soberbo, o _Claro-Sol_ que allumiava a casa de BayŃo, agora entaipado entre dois caixotes de pau, com cordas nos pÚs, e cordas nas mŃos, e n'ellas espetado um triste ramo de cardo--emblema da sua traišŃo. No emtanto os seus quinze Cavalleiros juncavam o chŃo, esmagados sob o furioso cerco de lanšas que os investira--uns hirtos, como adormecidos, dentro das negras armaduras, outros torcidos, desfeitos, com as carnes retalhadas, pendendo horrendamente entre malhas rotas dos lorigaes. Os escudeiros, colhidos, empurrados a pontoada de chušo para a boca d'uma barroca, sem resgate ou mercŕ, como alcateia immunda de roubadores de gado, acabaram, decepados a macheta pelos barbudos estafeiros leonezes. Todo o valle cheirava a sangue como um pateo de magarefes. Para reconhecer os companheiros do Bastardo, uma turma de cavalleiros desafivelava os gorjaes, as viseiras, arrancando furtivamente as medalhas de prata, os bentos, saquinhos de reliquias, que todos traziam como bem-tementes. N'uma face, de fina barba negra, que uma espuma sangrenta manchava, Mendo de Briteiros reconheceu seu primo Sueiro de Lugilde com quem, pela fogueira de S. JoŃo, folgßra tŃo docemente e bailßra no castello de Unhello,--e vergado sobre a alta sella rezou, pela pobre alma sem confissŃo, uma devota Ave-Maria. Fuscas, tristonhas nuvens, abafavam a manhŃ d'Agosto. E afastados ß entrada do valle, sob a ramagem d'um velho azinheiro, Tructesindo, D. Pedro de Castro, e Garcia Viegas, o _Sabedor_, decidiam que morte lenta, e bem dorida e viltosa, se daria ao Bastardo, villŃo de tŃo negra vilta. Contando assim a sombria emboscada com o gemente esforšo de quem empurra um arado por terra pedreira--gastßra Gonšalo essa doce semana de Setembro. E no sabbado, cedo, na livraria, com os cabellos ainda molhados do banho de chuva, esfregava as mŃos deante da banca--porque certamente com duas horas de attento trabalho, findaria antes d'almošo a sua Novella, a sua Obra! E todavia esse final, quasi o repellia, com o seu sujo horror. O tio Duarte no seu Poemeto apenas o esbošßra, com esquiva indecisŃo, como nobre Lyrico que ante uma visŃo de bruta ferocidade solta um lamento, resguarda a Lyra, e desvia para sendas mais doces. E, ao tomar a penna, Gonšalo tambem, realmente lamentava que seu av˘ Tructesindo nŃo matasse outr'ora o Bastardo, no fragor da briga, com uma d'essas cutiladas maravilhosas, e tŃo doces de celebrar, que racham o cavalleiro e depois racham o ginete, e para sempre retinem na Historia. Mas nŃo! Sob a folhagem do azinheiro, os tres cavalleiros combinavam com lentidŃo uma vinganša terrifica. Tructesindo desejßra logo recolher a Santa Ireneia, alšar uma forca deante das barbacans, no chŃo em que seu filho rolßra morto, e n'ella enforcar, depois de bem ašoitado, como villŃo, o villŃo que o matßra. O velho D. Pedro de Castro, porÚm, aconselhava despacho mais curto, e tambem gostoso. Para que rodear por Santa-Ireneia, desbaratar esse dia d'Agosto na arrancada que os levava a Montemˇr, a soccorro das Infantas de Portugal? Que se estendesse o Bastardo amarrado sobre uma trave, aos pÚs de D. Tructesindo, como porco pelo Natal, e que um cavallarišo lhe chamuscasse as barbas, e depois outro, com facalhŃo de ucharia, o sangrasse no pescošo, pachorrentamente. --Que vos parece, Snr. D. Garcia? O _Sabedor_ desafivelßra o casco de ferro, limpava nas rugas o suor e a poeira da lide: --Senhores e amigos! Temos melhor, e perto tambem, sem delongas de cavalgada, logo adiante destes cerros, no _Pego das Bichas_... E nem torcemos caminho, que de lß, por Tordezello e Santa Maria da Varge, endireitamos a Montemˇr, tŃo direitos como v˘a o corvo... Confiae em mim, Tructesindo! Confiae em mim, que eu arranjarei ao Bastardo tal morte e tŃo vil, que d'outra egual se nŃo possa contar desde que Portugal foi condado. --Mais vil que forca, para cavalleiro, meu velho Garcia? --Lß vereis, senhores e amigos, lß vereis! --Seja! Mandae dar ßs bozinas. Ao commando d'Affonso Gomes, o Alferes, as bozinas soaram. Um trošo de besteiros e de estafeiros Leoneses rodearam a mula que carregava o Bastardo amarrado e entalado entre dois caixotes. E acaudilhada por D. Garcia, a curta hoste metteu para o _Pego das Bichas_, em desbando, com os senhores de lanša espalhados, como em marcha de folganša e paz, (?) e todos n'uma rija fallada recordando, entre gabos e risos, as proezas da lide. A duas leguas de Tordezello e do seu castello formoso, se escondia entre os cerros o _Pego das Bichas_. Era um lugar de eterno silencio e de eterna tristeza. Em esmerados versos lhe marcßra o tio Duarte a desolada asperidŃo: Nem trillo d'ave em balanšado ramo! Nem fresca fl˘r junto de fresco arroio! Sˇ rocha, mattagal, ribas soturnas, E em meio o _Pego_, tenebroso e morto!... E quando os primeiros cavalleiros, galgada a lomba d'um cerro, o avistaram, na melancholia da manhŃ nevoenta, emmudeceram da larga fallada, repucharam os freios, assustados ante tŃo aspero ermo, tŃo propicio a Bruxas, a Avantesmas e a Almas penadas. Deante do escalavrado barranco, por onde os ginetes escorregavam, ondulava uma ribanceira, aberta com charcos lamacentos, quasi chupados pela estiagem, luzindo pardamente, por entre grossos pedregulhos e o tojo rasteiro. Ao fundo, a meio tiro de bÚsta, negrejava o _Pego_, lagoa estreita, lisa, sem uma ruga n'agua, duramente negra, com manchas mais negras, como lamina d'estanho onde alastrasse a ferrugem do tempo e do abandono. Em torno subiam os cerros, erišados de matto bravio e alto, sulcados por trilhos de saibro vermelho como por fios de sangue que escoresse, e rasgados no alto por penedias lustrosas, mais brancas que ossadas. TŃo pesado era o silencio, tŃo pesada a soledade, que o velho D. Pedro de Castro, homem de tanta jornada, se espantou: --Feia paragem! E voto a Christo, a Santa Maria, que nunca antes de nˇs, n'ella entrou homem remido pelo baptismo. --Pois, Snr. D. Pedro de Castro! accudiu o _Sabedor_, jß por aqui se moveu muita lanša, e luzida, e ainda em tempos do Conde D. Sueiro, e de vosso rei D. Fernando, se erguia n'aquella beira d'agua, uma castellania famosa! Vŕde alÚm!--E mostrava na ponta do pego, fronteira ao barranco, dous rijos pilares de pedra, que emergiam da agua negra, e que chuva e vento polira como marmores finos. Um passadišo de traves, sobre estacas limosas e meio apodrecidas, atava a margem ao mais grosso dos pilares. E a meio d'esse rude esteio pendia uma argola de ferro. No emtanto jß o tropel da peonagem se espalhßra pela ribanceira. D. Garcia Viegas desmontou, bradando por Pero Ermigues, o Coudel dos bÚsteiros de Santa Ireneia. E, ao lado do ginete de Tructesindo, risonho e gozando a surpreza, ordenou ao Coudel que seis dos seus rijos homens descessem o Bastardo da mula, o estirassem no chŃo, o despissem, todo n˙, como sua mŃe barregŃ o soltßra ß negra vida... Tructesindo encarou o _Sabedor_, franzindo as sobrancelhas hirsutas: --Por Deus, D. Garcia! que me ides simplesmente afogar o villŃo, e sujar essa agua innocente!... E alguns Cavalleiros, em redor, murmuraram tambem contra morte tŃo quieta e sem malicia. Mas os miudos olhos de D. Garcia giravam, lampejavam de triumpho e gosto: --Socegae, socegae! Velho estou certamente, mas ainda o senhor Deus me consente algumas trašas. NŃo! Nem enforcado, nem degolado, nem afogado... Mas chupado, senhores! Chupado em vida, e de vagar, pelas grandes sanguesugas que enchem toda essa agua negra! D. Pedro de Castro, maravilhado, bateu o guante nas solhas do coxote: --Vida de Christo! Que ter n'uma hoste o Snr. D. Garcia, Ú ter juntamente, para marchas e conselho, enrolados n'um sˇ, Annibal e Aristoteles! Um rumor d'admirašŃo correu pela hoste: --Boa traša, boa traša! E Tructesindo, radiante, bradava: --Andar, andar, bÚsteiros! E vˇs, senhores, recuae para a lomba do cerro, como para palanque, que vae ser grande a vista! Jß seis bÚsteiros descarregavam da mula o Bastardo amarrado. Outros cercavam, com mˇlhos de cordas. E, como magarefes para esfolar uma rez, toda a rude turma se abateu sobre o malfadado, arrancando por cordas que desatavam a cervilheira, o saio, as grevas, os sapat§es de ferro, depois a grossa roupa de linho encardido. Agarrado pelos compridos cabellos, filado pelos pÚs, onde se cravavam agudas unhas no furor de o manter, com os brašos esmagados sob outros grossos brašos retŕsos, o possante Bastardo ainda se estorcia, urrando, cuspindo contra as faces confusas da matulagem um cuspo avermelhado, que espumava! Mas, por entre o escuro tropel que o cobria, o seu corpo, todo despido, branquejava, atado com cordas mais grossas. Lentamente o seu furioso urrar esmorecia, arquejado e rouquenho. E um apˇs outro se erguiam os bÚsteiros, esfalfados, bufando, limpando o suor do esforšo. No emtanto os Cavalleiros d'Hespanha, de Santa Ireneia, desmontavam cravando o couto das lanšas entre o tojo e as pedras. Todos os recostos dos outeiros se cubriam da mesnada espalhada, como palanques em tarde de justa. Sobre uma rocha mais lisa, que dous magros espinheiros toldavam de folha rala, um pagem estendera pelles d'ovelha para o Snr. D. Pedro de Castro, para o senhor de Santa Ireneia. Mas sˇ o velho _CastellŃo_ se accommodou, para uma repousada delonga, desafivelando o seu corselete de ferro tauxeado d'ouro. Tructesindo permanecera erguido, mudo, com os guantes apoiados ao punho da sua alta espada, os olhos fundos ßvidamente cravados na tenebrosa lag˘a que, com morte tŃo fera e tŃo suja, vingaria seu filho... E pela borda do _Pego_, pe§es, e alguns cavalleiros d'Hespanha, remexiam com virot§es, com os coutos das ascumas, a agua lodosa, na curiosidade das negras bichas escondidas, que o povoavam. Subitamente a um brado de D. Garcia, que rondava, toda a chusma de pe§es amontoada em torno ao Bastardo se arredou:--e o forte corpo appareceu, n˙ e branco, sobre a terra negra, com um denso pello ruivo nos peitos, a sua virilidade afogada n'outra matta de pello ruivo, e todo ligado por cordas de canave que o inteirišavam. N'aquella rigidez de fardo, nem as costellas arfavam--apenas os olhos refulgiam, ensanguentados, horrendamente esbugalhados pelo espanto e pelo furor. Alguns cavalleiros correram a mirar a aviltada nudez do homem famoso de BayŃo. O senhor dos Pašos d'Argelim mofou, com estrondo: --Bem o sabia, por Deus! Corpo de manceba, sem costura de ferida!... Leonel de ăamora raspou o sapato de ferro pelo hombro do malfadado: --Vŕde este _Claro-Sol_, tŃo claro, que se apaga agora, em agua tŃo negra! O Bastardo cerrava duramente as palpebras,--d'onde duas grossas lagrimas escaparam, lentamente rolaram... Mas um agudo pregŃo resoou pela ribanceira: --Justiša! Justiša! Era o Adail de Santa Ireneia, que marchava, sacudia uma lanša, atroava os cerros: --Justiša! justiša que manda fazer o Senhor de Treixedo e de Santa Ireneia, n'um perro matador!... Justiša n'um perro, filho de perra, que matou vilmente, e assim morra vilmente por ella!... Trez vezes pregoou por deante da hoste apinhada nos cerros. Depois quedou, saudou humildemente Tructesindo Ramires, o velho Castro,--como a julgadores no seu Estrado de julgamento. --Aviae, aviae! bradava o Senhor de Santa Ireneia. Immediatamente, a um commando do _Sabedor_, seis bÚsteiros, com as pernas embrulhadas em mantas da carga, ergueram o corpo do Bastardo como se ergue um morto enrolado no seu lenšol, e com elle entraram na agua, atÚ ao mais alto pilar de granito. Outros, arrastando molhos de cordas, correram pelo limoso passadišo de traves. Com um alarido d'_aguenta! endireita! alša!_ n'um desesperado esforšo o robusto corpo branco foi mergulhado n'agua atÚ ßs virilhas, arrimado ao mais alto pilar, depois n'elle atado com um longo calabre que, passando pela argola de ferro, o suspendia, sem escorregar, tŃo seguro e collado como um r˘lo de vela que se amarra ao mastro. Rapidamente os bÚsteiros fugiram d'agoa, desentrapando logo as pernas, que palpavam, raspavam no horror das bichas sugadoras. Os outros recolheram pelo passadišo, n'uma fila que se empurrava. No Pego ficava Lopo de BayŃo bem arranjado para a vistosa morte lenta, com a agoa que jß o afogava atÚ ßs pernas, com cordas que o enroscavam atÚ ao pescošo como a um escravo no poste; e uma espessa mecha dos cabellos louros lašada na argola de ferro, repuxando a face clara, para que todos n'ella gozassem largamente a humilhada agonia do _Claro-Sol_. EntŃo o attento da hoste, esperando espalhada pelos recostos dos cerros, mais entristeceu o enevoado silencio do ermo. A agoa jazia sem um arrepio, com as suas manchas, negras como uma lamina d'estanho enferrujado. Entre as cristas das rochas, archeiros postados pelo _Sabedor_, atalaiavam, para alÚm, os descampados. Um alto v˘o de gralha atrevessou grasnando. Depois um bafo lento agitou as flamulas das lanšas cravadas no tojo denso. Para despertar, aviar a lentidŃo das bichas, alguns pe§es atiravam pedras ß agoa lodosa. Jß alguns cavalleiros hespanhoes rosnavam impacientes com a delonga, n'aquella cova abafada. Outros, descendo agachados a borda da lag˘a, para mostrar que falladas bichas nunca acudiriam, mergulhavam lentamente, n'agoa negra, as mŃos descalšadas, que depois sacudiam, rindo, e mofando o _Sabedor_... Mas de repente um estremešŃo sacudiu o corpo do Bastardo; os seus rijos musculos, no furioso esforšo de se desprenderem, inchavam entre as cordas, como cobras que se arqueiam; dos beišos arreganhados romperam, em rugidos, em grunhidos, ultrages e ameašas contra Tructesindo covarde, e contra toda a raša de Ramires, que elle emprasava, dentro do anno, para as labaredas do Inferno! Indignado, um Cavalleiro de Santa Ireneia agarrou uma bÚsta de garrunche, a que retesou a corda. Mas D. Garcia deteve o arremesso: --Por Deus, amigo! NŃo roubeis ßs sanguesugas nem uma pinga d'aquelle sangue fresco!... Vŕde como veem! vŕde como veem! Na agoa espessa, em torno ßs coxas mergulhadas do Bastardo, um fremito corria, grossas bolhas empolavam,--e d'ellas, mollemente, uma bicha surdio, depois outra e outra, lusidias e negras, que ondulavam, se collavam ß branca pelle do ventre, d'onde pendiam, chupando, logo engrossadas, mais lustrosas com o lento sangue que jß escorria. O Bastardo emmudecera--e os seus dentes batiam estridentemente. Enojados, atÚ rudes pe§es desviaram a face cuspindo para as urzes. Outros, porÚm, chasqueavam, assuavam as bichas, gritando--_a elle, donzellas! a elle!_ E o gentil ăamora de Cendufe, clamava rindo contra tŃo ensossa morte! Por Deus! Uma apostura de bichas, como a enfermo d'almorreimas. Nem era sentenša de Rico-Homem--mas receita d'herbanista moiro! --Pois que mais quereis, meu Leonel? acudio alegremente o _Sabedor_, resplandecendo. Morte Ú esta para se contar em livros! E nŃo tereis este inverno serŃo ß lareira, por todos os solares de Minho a Douro, em que nŃo volte a historia d'este Pego, e d'este feito! Olhae nosso primo Tructesindo Ramires! Formosos tratos presenceou de certo em tŃo longo lidar d'armas!... E como goza! tŃo attento! tŃo maravilhado! Na encosta do outeiro, junto do seu balsŃo, que o Alferes cravßra entre duas pedras, e como elle tŃo quŕdo, o velho Ramires nŃo despregava os olhos do corpo do Bastardo, com deleite bravio, n'um fulgor sombrio. Nunca elle esperßra vinganša tŃo magnifica! O homem que atßra seu filho com cordas, o arrastßra n'umas andas, o retalhßra a punhal deante das barbacans da sua Honra--agora, vilmente n˙, amarrado tambem como cerdo, pendurado d'um pilar, emergido n'uma agoa suja, e chupado por sanguesugas, deante de duas mesnadas, das melhores d'Hespanha, que miravam, que mofavam! Aquelle sangue, o sangue da raša detestada, nŃo o bebia a terra revolta n'uma tarde de batalha, escorrendo de ferida honrada, atravez de rija armadura--mas, gota a gota, escuramente e mollemente se sumia, sorvido por nojentas bichas, que surdiam famintas do lodo e no lodo recahiam fartas, para sobre o lodo bolsar o orgulhoso sangue que as enfartßra. N'um charco, onde elle o mergulhßra, viscosas bichas bebiam socegadamente o cavalleiro de BayŃo! Onde houvera homizio de solares fundado em desforra mais d˘ce? E a fera alma do velho acompanhava, com inexoravel goso, as sanguesugas subindo, espalhadamente alastrando por aquelle corpo bem amarrado, como seguro rebanho pela encosta da collina onde pasta. O ventre jß desapparecia sob uma camada viscosa e negra, que latejava, relusia na humidade morna do sangue. Uma fila sugava a cinta, encovada pela ancia, d'onde sangue se esfiava, n'uma franja lenta. O denso pello ruivo do peito, como a espessura d'uma selva, detivera muitas, que ondulavam, com um rasto de lodo. Um montŃo ennovelado sangrava um brašo. As mais fartas, jß inchadas, mais relusentes, despegavam, tombavam mollemente: mas logo outras, famintas, se aferravam. Das chagas abandonadas o sangue escorria delgado, represo nas cordas, d'onde pingava como uma chuva rala. Na escura agoa boiavam gordas postemas de sangue esperdišado. E assim sorvido, ressumando sangue, o malfadado ainda rugia, atravez ultrages immundos, ameašas de mortes, de incendios, contra a raša dos Ramires! Depois, com um arquejar em que as cordas quasi estalavam, a bocca horrendamente escancarada e avida, rompia aos roucos urros, implorando _agoa, agoa!_ No seu furor as unhas, que uma volta de amarras lhe collßra contra as fortes c˘xas, esfarrapavam a carne, cravavam-se na fenda esfarrapada, ensopadas de sangue. E o furioso tumulto esmorecia n'um longo gemer canšado--atÚ que parecia adormecido nos grossos nˇs das cordas, as barbas relusindo sob o suor que as alagßra como sob um grosso orvalho, e entre ellas a espantada lividez d'um sorriso delirado. No emtanto jß na hoste derramada pelos cerros, como por um palanque, se embotßra a curiosidade bravia d'aquelle supplicio novo. E se acercava a hora da rašŃo de meridiana. O Adail de Santa Ireneia, depois o Almocadem Hespanhol, mandaram soar os anafins. EntŃo todo o ßspero ermo se animou com uma faina d'arraial. O almazem das duas mesnadas parßra por detraz dos morros, n'uma curta almargem d'herva, onde um regato claro se arrastava nos seixos, por entre as raizes de amieiros chor§es. N'uma pressa esfaimada, saltando sobre as pedras, os pe§es corriam para a fila dos machos de carga, recebiam dos uch§es e estafeiros a fatia de carne, a grossa metade d'um pŃo escuro: e, espalhados pela sombra do arvoredo, comiam com silenciosa lentidŃo, bebendo da agoa do regato pelas concas de pau. Depois preguišavam, estirados na relva,--ou trepavam em bando pela outra encosta dos morros, atravÚs do matto, na esperanša d'atravessar com um virote alguma caša erradia. Na ribanceira, deante da lag˘a, os cavalleiros, sentados sobre grossas mantas, comiam tambem, em roda dos alforges abertos, cortando com os punhaes nacos de gordura nas grossas viandas de porco, empinando, em longos tragos, as bojudas cabašas de vinho. Convidado por D. Pedro de Castro, o velho _Sabedor_ descanšava, partilhando d'uma larga escudella de barro, cheia de _bolo papal_, d'um bolo de mel e fl˘r de farinha, onde ambos enterravam lentamente os dedos, que depois limpavam ao forro dos morri§es. Sˇ o velho Tructesindo nŃo comia, nŃo repousava, hirto e mudo deante do seu pendŃo, entre os seus dous mastins, n'aquelle fero dever de acompanhar, sem que lhe escapasse um arrepio, um gemido, um fio de sangue, a agonia do Bastardo. Debalde o _CastellŃo_, estendendo para elle um pichel de prata, gabava o seu vinho de Tordesillas, fresco como nenhum d'Aquilat ou de Provins, para a sede de tŃo rija arrancada. O velho Rico-Homem nem attendera:--e D. Pedro de Castro, depois de atirar dous pŃes aos al§es fieis, recomešou discorrendo com Garcia Viegas sobre aquelle teimoso amor do Bastardo por Violante Ramires que arrastßra a tantos homizios e furores. --Ditosos nˇs, Snr. D. Garcia! Nˇs a quem a edade e o quebranto e a fartura jß arredam d'essas tentaš§es... Que a mulher, como m'ensinava certo Physico quando eu andava com os moiros, Ú vento que consola e cheira bem, mas tudo enrodilha e esbandalha. Vŕde como os meus por ellas penaram! Sˇ meu pae, com aquella desvairanša de zelos, em que matou a cutello minha d˘ce madre Estevaninha. E ella tŃo santa, e filha do Imperador! A tudo, tudo leva, a tonta ardencia! AtÚ a morrer, como este, sugado por bichas, deante d'uma hoste que merenda e mofa. E por Deus, quanto tarda em morrer, Snr. D. Garcia! --Morrendo estß, Snr. D. Pedro de Castro. E jß com o demo ao lado para o levar! O Bastardo morria. Entre os nˇs das cordas ensanguentadas todo elle era uma ascorosa aventesma escarlate e negra com as viscosas pastas de bichas que o cobriam, latejando com os lentos fios de sangue que de cada ferida escorriam, mais copiosos que os regos d'humidade por um muro denegrido. O desesperado arquejar cessßra, e a ancia contra as cordas, e todo o furor. Molle e inerte como um fardo, apenas a espašos esbogalhava horrendamente os olhos vagarosos, que revolvia em torno com enevoado pavor. Depois a face abatia, livida e flaccida, com o beišo pendurado, escancarando a bocca em cova negra, d'onde se escoava uma baba ensanguentada. E das palpebras novamente cerradas, entumecidas, um muco gotejava, tambem como de lagrimas engrossadas com sangue. A peonagem, no emtanto, voltando da rašŃo, reatulhava a ribanceira, pasmava, com rudes chufas para o corpo pavoroso que as bichas ainda sugavam. Jß os pagens recolhiam manteis e alforges. D. Pedro de Castro descera do cabešo com o _Sabedor_ atÚ ß borda da agoa lodosa, onde quasi mergulhava os sapatos de ferro, para contemplar, mais de cerca, o agonisante de tŃo rara agonia! E alguns senhores, estafados com a delonga, afivelando os gibanetes, murmuravam:--źEstß morto! Estß acabado!╗ EntŃo Garcia Viegas gritou ao Coudel dos BÚsteiros: --Ermigues, ide vŕr se ainda resta alento n'aquella postema. O Coudel correu pelo passadišo de traves, e arrepiado de nojo palpou a livida carne, acercou da bocca, toda aberta, a lamina clara da adaga que desembainhßra. --Morto! morto!--gritou. Estava morto. Dentro das cordas que o arroxeavam o corpo escorregava, engilhado, chupado, esvasiado. O sangue jß nŃo manava, havia coalhado em postas escuras, onde algumas bichas teimavam latejando, relusindo. E outras ainda subiam, tardias. Duas, enormes, remexiam na orelha. Outra tapava um olho. O _Claro-Sol_ nŃo era mais que uma immundice que se decompunha. Sˇ a madeixa dos cabellos louros, repuxada, presa na argola, relusia com um lampejo de chamma, como rastro deixado pela ardente alma que fugira. Com a adaga ainda desembainhada, e que sacudia, o Coudel avanšou para o Senhor de Santa Ireneia, bradou: --Justiša estß feita, que mandastes fazer no perro matador que morreu! EntŃo o velho Rico-Homem atirando o brašo, o cabelludo punho, com possante ameaša, bradou, n'um rouco brado que rolou por penhascos e cerros: --Morto estß! E assim morra de morte infame quem traidoramente me affronte a mim e aos da minha raša! Depois, cortando rigidamente pela encosta do cerro, atravez do matto, e com um largo aceno ao Alferes do PendŃo: --Affonso Gomes, mandae dar as bozinas. E a cavallo, se vos praz, Snr. D. Pedro de Castro, primo e amigo, que leal e bom me fostes!... O _CastellŃo_ ondeou risonhamente o guante: --Por Santa Maria, primo e amigo! que gosto e honra os recebi de vˇs. A cavallo pois se vos praz! Que nos promette aqui o Snr. D. Garcia vŕrmos ainda, com sol muito alto, os muros de Monte-mˇr. Jß a peonagem cerrava as quadrilhas, os donzeis d'armas puxavam para a ribanceira os ginetes folgados que a vasta agua escura assustava. E, com os dous bals§es tendidos, o Ašor negro, as Treze Arruellas, a fila da cavalgada atirou o trote pelo barranco empinado, d'onde as pedras soltas rolavam. No alto, alguns cavalleiros ainda se torciam nas sellas para silenciosamente remirarem o homem de BayŃo, que lß ficava, amarrado ao pilar, na solidŃo do Pego, a apodrecer. Mas quando a ala dos bÚsteiros e fundibularios de Santa Ireneia desfilou, uma rija grita rompeu, com chufas, sujas injurias ao źperro matador╗. A meio da escarpa, um bÚsteiro, virando, retezou furiosamente a bÚsta. A comprida garruncha apenas varou a agua. Outra logo zinio, e uma bala de funda, e uma setta barbada,--que se espetou na ilharga do Bastardo, sobre um negro novello de bichas. O Coudel berrou: źcerra! anda!╗ A rÚcua das azemolas de carga avanšava, sob o estralar dos lategos: os mošos da carriagem apanhavam grossos pedregulhos, apedrejavam o morto. Depois os servos carreteiros marcharam, nos seus curtos saios de couro cr˙, balanšando um chušo curto:--e o capataz apanhou simplesmente esterco das bestas, que chapou na face do Bastardo sobre as finas barbas d'ouro. XI Quando Gonšalo, estafado e jß todo o ardor bruxuleando, retocou este derradeiro trašo da affronta--a sineta no corredor repicava para o almošo. Emfim! Deus louvado! eis finda essa eterna _Torre de Ramires_! Quatro mezes, quatro penosos mezes desde Junho, trabalhßra na sombria resurreišŃo dos seus avˇs barbaros. Com uma grossa e carregada lettra, trašou no fundo da tira *Finis*. E datou, com a hora, que era do meio-dia e quatorze minutos. Mas agora, abandonada a banca onde tanto labutßra, nŃo sentia o contentamento esperado. AtÚ esse supplicio do Bastardo lhe deixßra uma aversŃo por aquelle remoto mundo Affonsino, tŃo bestial, tŃo deshumano! Se ao menos o consolasse a certeza de que reconstituira, com luminosa verdade, o ser moral d'esses avˇs bravios... Mas que! bem receava que sob desconcertadas armaduras, de pouca exactidŃo archeologica, apenas s'esfumassem incertas almas de nenhuma realidade historica!... AtÚ duvidava que sanguesugas recobrissem, trepando d'um charco, o corpo d'um homem, e o sugassem das c˘xas ßs barbas, em quanto uma hoste mastiga a rašŃo!... Emfim, o Castanheiro louvßra os primeiros Capitulos. A MultidŃo ama, nas Novellas, os grandes furores, o sangue pingando: e em breve os *Annaes* espalhariam, por todo o Portugal, a fama d'aquella Casa illustre, que armßra mesnadas, arrasßra castellos, saqueßra comarcas por orgulho de pendŃo, e affrontßra arrogantemente os Reis na curia e nos campos de lide. O seu verŃo, pois, f˘ra fecundo. E para o coroar, eis agora a EleišŃo, que o libertava das melancolias do seu buraco rural... Para nŃo retardar as visitas ainda devidas aos Influentes, e tambem para espairecer, logo depois d'almoco montou a cavallo--apezar do calor, que desde a vespera, e n'aquelle meado d'outubro, esmagava a aldeia com o refulgente peso d'uma canicula d'Agosto. Na volta da estrada, dos Bravaes um homem gordo, de calša branca enxovalhada, que s'apressava, bufando, sob o seu guarda-sol de panninho vermelho, deteve o Fidalgo com uma cortezia immensa. Era o Godinho, amanuense da AdministrašŃo. Levava um officio urgente ao Regedor dos Bravaes, e agora corria ß Torre de mandado do Snr. Administrador... Gonšalo recuou a egoa para a sombra d'uma carvalha: --EntŃo que temos, amigo Godinho? O Snr. Administrador annunciava a S. Ex.^a que o maroto do Ernesto, o valentŃo de Nacejas, em tratamento no Hospital d'Oliveira, melhorßra consideravelmente. Jß lhe repegßra a orelha, a bocca soldava... E, como se procedeu ß querella, o patife passava da enfermaria para a cadeia... Gonšalo protestou logo, com uma palmada no selim: --NŃo senhor! Faša o obsequio de dizer ao Snr. JoŃo Gouveia que nŃo quero que se prenda o homem! Foi atrevido, apanhou uma dˇse tremenda, estamos quites. --Mas Snr. Gonšalo Mendes... --Pelo amor de Deus, amigo Godinho! NŃo quero, e nŃo quero... Explique bem ao Snr. JoŃo Gouveia... Detesto vinganšas. NŃo estŃo nos meus habitos, nem nos habitos da minha familia. Nunca houve um Ramires que se vingasse... Quero dizer, sim, houve, mas... Emfim explique bem ao Snr. JoŃo Gouveia. De resto eu logo o encontro, na Assembleia... Bem basta ao homem ficar desfeiado. NŃo consinto que o apoquentem mais!... Detesto ferocidades. --Mas... --Esta Ú a minha decisŃo, Godinho. --Lß darei o recado de V. Ex.^a --Obrigado. E adeus!... Que calor, hein! --De rachar, Snr. Gonšalo Mendes, de rachar! Gonšalo seguiu, revoltado pela ideia de que o pobre valentŃo de Nacejas, ainda moÝdo, com a orelha mal soldada, baixasse ß sordida enxovia de Villa-Clara, para dormir sobre uma taboa. Pensou mesmo em galopar para Villa-Clara, reter o zelo legal do JoŃo Gouveia. Mas perto, adeante do lavadoiro, era a casa d'um Influente, o JoŃo Firmino, carpinteiro e seu compadre. E para lß trotou, apeando ao portal do quinteiro. O compadre Firmino largßra cedo para a Arribada, onde trabalhava nas obras do lagar do Snr. Esteves. E foi a comadre Firmina que correu da cosinha, obesa e lusidia, com dous pequenos dependurados das saias e mais sujos que esfreg§es. O Fidalgo beijou ternamente as duas faces ramelosas: --E que rico cheiro a pŃo fresco, oh comadre! Foi a fornada, hein? Pois entŃo grande abrašo ao Firmino. E que se nŃo esqueša! A EleišŃo vem para o outro Domingo. Lß conto com o voto d'elle. E olhe que nŃo Ú pelo voto, Ú pela amisade. A comadre arreganhava os dentes magnificos n'um regalado e gordo riso:--źAi o Fidalgo podia ficar seguro! Que o Firmino jß jurßra, atÚ ao Snr. Regedor, que para o Fidalgo era todo o sitio a votar, e quem nŃo fosse a amor ia a pau.╗ O Fidalgo apertou a mŃo da comadre--que do degrau do quinteiro, com os dous pequenos enrodilhados nas saias, e o gordo riso mais embevecido, seguiu a poeira da egoa como o sulco d'um Rei benefico. E depois nas outras visitas, ao Cerejeira, ao Ventura da Chiche, encontrou o mesmo fervor, os mesmos sorrisos luzindo de gosto. źO que! para o Fidalgo! Isso tudo! E nem que fosse contra o Governo!╗--Na tasca do Manoel da Adega, um rancho de trabalhadores bebia, jß ruidoso, com as jaquetas atiradas para cima dos bancos: o Fidalgo bebeu com elles, galhofando, gosando sinceramente a pinga verde e o barulho. O mais velho, um avejŃo escuro, sem dentes, e a face mais engilhada que uma ameixa secca, esmurrou com euthusiasmo o balcŃo:--źIsto, rapazes, Ú fidalgo que, quando um pobre de Christo escalavra a perna, lhe empresta a egoa, e vae elle ao lado mais d'uma legua a pÚ, como foi com o S˘lha! Rapazes! isto Ú Fidalgo para a gente ter gosto!╗ As _saudes_ atroaram a venda. E quando Gonšalo montou, todos o cercavam como vassallos ardentes, que a um aceno correriam a votar,--ou a matar! Em casa do Thomaz Pedra, a avˇ Anna Pedra, uma velha entrevada, muito velha e tremula, rompeu a choramigar por o seu Thomaz andar para o Olival quando o Fidalgo o visitava. źQue aquillo era como visita de santo!╗ --Ora essa, tia Pedra! Peccador, grande peccador! Dobrada na cadeirinha baixa, com as farripas brancas descendo do lenšo, pela face toda chupada de gelhas e pelluda, a tia Anna bateu no joelho agudo: --NŃo senhor! nŃo senhor! que quem mostrou aquella caridade pelo filho do Casco, merece estar em altar! O Fidalgo ria, beijocava pequenadas encardidas, apertava mŃos asperas e rugosas como raizes, accendia o cigarro ß braza das lareiras, conversando, com intimidade, das molestias e dos derrišos. Depois, no calor e pˇ da estrada, pensava:--ź╔ curioso! parece haver amisade, n'esta gente!╗ ┴s quatro horas, derreado, decidiu cessar o giro, recolher ß Torre pela estrada mais fresca da _Bica Santa_. E passßra o logarejo do Cerdal, quando na volta aguda do Caminho, rente ao souto de azinheiros, quasi esbarrou com o Dr. Julio, tambem a cavallo, tambem no seu giro, de quinzena d'alpaca, alagado em suor, debaixo d'um guarda-sol de sŕda verde. Ambos detiveram as egoas, se saudaram amavelmente. --Muito gosto em o vŕr, Snr. Dr. Julio... --Egualmente, com muita honra, Snr. Gonšalo Ramires... --EntŃo tambem na tarefa?... O Dr. Julio encolheu os hombros: --Que quer V. Ex.^a? Se me metteram n'esta! E sabe V. Ex.^a como isto acaba?... Acaba em eu mesmo, no outro Domingo, votar em V. Ex.^a. O Fidalgo riu. Ambos se debrušaram, para se apertarem as mŃos com alegria, com estima. --Que calor este, Snr. Dr. Julio! --Horroroso, Snr. Gonšalo Ramires... E que massada! Assim o Fidalgo empregou essa semana nas visitas aos Eleitores--źos grandes e os miudos.╗ E dois dias antes da EleišŃo, n'uma sexta-feira ß tarde, com um tempo jß macio e fresco, partiu para Oliveira--onde chegßra, na vespera, o AndrÚ Cavalleiro, depois da sua tŃo longa, tŃo fallada demora em Lisboa. Nos Cunhaes, apenas saltßra da caleche, logo se enfureceu ao saber, pelo bom JoŃo da Porta--źque as Snr.^{as} Louzadas estavam em cima, de visita, com a Snr.^a D. Graša...╗ --Ha muito? --Jß lß estŃo pegadas ha meia hora boa, meu senhor. Gonšalo enfiou surrateiramente para o seu quarto, pensando:--źQue desavergonhadas! Chegou o AndrÚ, veem logo cocar!╗ E jß se lavßra, mudßra o fato cinzento,--quando o Barr˘lo appareceu, esbaforido, desusadamente radiante, de sobrecasaca, de chapeu alto, com as bochechas accesas, alvorošadamente radiantes: --Eh, seu Barr˘lo, que janota! --Parece bruxedo! gritou o Barr˘lo, depois d'um abrašo, que repetiu, com desacostumado fervor. Estava agora mesmo para te mandar um telegramma, que viesses... --Para quŕ? O Barr˘lo gaguejou, com um riso reprimido que o illuminava, o inchava: --Para quŕ? P'ra nada... Quero dizer, para a EleišŃo! Pois a EleišŃo Ú alÚm d'ßmanhŃ, menino! O Cavalleiro chegou hontem. Agora volto eu do Governo Civil. Estive no Pašo com o Snr. Bispo, depois passei pelo Governo Civil... Optimo, o AndrÚ! Aparou o bigode, parece mais mošo. E traz novidades... Traz grandes novidades! E o Barr˘lo esfregava as mŃos, n'um tŃo faiscante alvorošo, com tanto riso escapando dos olhos e da face relusente, que o Fidalgo o encarou curioso, impressionado: --Ouve lß, Barrolinho! Tu tens alguma cousa boa para me annunciar? Barr˘lo recuou, negou com estrondo, como quem bruscamente fecha uma porta. Elle? NŃo! NŃo sabia nada! Sˇ a EleišŃo! Na Murtosa votašŃo tremenda... --Ah! pensei, murmurou Gonšalo. E a Gracinha? --A Gracinha tambem nŃo! --Tambem nŃo quŕ, homem? Como estß? Simplesmente como estß? --Ah! estß com as Louzadas. Ha mais de meia hora, aquellas bebedas!... Naturalmente por causa do Bazar do Asylo Novo... Esta massada dos Bazares... E ouve lß, Gonšalinho! Tu ficas atÚ Domingo? --NŃo, volto ßmanhŃ para a Torre. --Oh!... --Pois dia d'EleicŃo, homem! devo estar em casa, no meu centro, no meio das minhas freguezias... --╔ pena, murmurou o Barr˘lo. Logo se sabia juntamente com a EleišŃo... Eu dava um jantar tremendo... --Logo se sabia, o quŕ? O Barr˘lo emmudeceu, com outro riso nas bochechas, que eram duas brazas gloriosas. Depois novamente gaguejou, gingando: --Logo se sabia... Nada! O resultado, o apuramento. E grande brodio, grande foguetorio. Eu, na Murtosa, abro pipa de vinho. EntŃo Gonšalo risonhamente prendeu o Barr˘lo pelos hombros: --Dize lß, Barrolinho. Dize lß. Tu tens uma cousa boa para contar ao teu cunhado. O outro escapou, protestando com alarido: Que teima, que tolice. Elle nŃo sabia nada. O AndrÚ nŃo lhe contßra nada! --Bem, concluiu o Fidalgo, certo de um amavel mysterio, que pairava. EntŃo descemos. E se essas carrašas das Louzadas ainda estiverem lß pegadas, manda dizer pelo escudeiro ß sala, bem alto, ß Gracinha, que cheguei, que lhe desejo fallar immediatamente no meu quarto: com esses monstros nŃo ha consideraš§es. O Barr˘lo balbuciou, hesitando: --O Snr. Bispo gosta d'ellas... Muito amavel commigo, ainda ha pouco, o Snr. Bispo. Mas, logo nas escadas, sentiram o piano, Gracinha cantarolando. Jß se libertßra das Louzadas. Era uma antiga canšŃo patriotica da Vendeia, que outr'ora na Torre, ella e Gonšalo entoavam com emošŃo, quando os inflammava o amor fidalgo e romantico dos Bourbons e dos Stuarts: Monsieur de Charette a dit Ó ceux d'Ancenes "Mes Amis!... Monsieur de Charette a dit... Gonšalo franziu vagarosamente o reposteiro da sala, rematando a estrophe, com o brašo erguido como uma bandeira: "Mes amis! Le Roy va rammener les Fleurs de Lys!" Gracinha saltou do mocho, n'uma surpresa. --NŃo te esperavamos! imaginei que passavas a EleišŃo na Torre... E por lß? --Na Torre, tudo bem, com a ajuda de Deus... Mas eu com trabalho immenso. Acabei o meu romance; depois visitas aos Eleitores. Barr˘lo, que nŃo socegava pela sala, rompeu para elles, com o mesmo riso suffocado: --Queres tu saber, Gracinha? Tem estado este homem, desde que chegou, n'uma curiosidade, a ferver. Imagina que eu tenho uma boa nova, uma grande nova para lhe contar... Eu nŃo sei nada, a nŃo ser a EleišŃo! Pois nŃo Ú verdade, Gracinha? Gonšalo, muito serio, prendeu o queixo da irmŃ: --Sabes tu, dize lß. Ella sorriu, cˇrada... NŃo, nŃo sabia nada, sˇ a EleišŃo. --Dize lß! --NŃo sei... SŃo tolices do JosÚ. Mas entŃo, ante aquelle sorriso fraco, rendido, que confessava--o Barr˘lo nŃo se conteve, desafogou como um morteiro estoira.--Pois bem! sim! com effeito!--Grande novidade! Mas o AndrÚ, que a trouxera de Lisboa, fresquinha a saltar, queria elle, sˇ elle, causar a surpresa a Gonšalo... --De modo que eu nŃo posso! Jurei ao AndrÚ. A Gracinha sabe, que eu jß lhe contei hontem... Mas tambem nŃo pˇde, tambem jurou. Sˇ o AndrÚ. Elle vem logo tomar chß, e rebenta a bomba... Que Ú uma bomba! e gra˙da! Gonšalo, roÝdo de curiosidade, murmurou simplesmente, encolhendo os hombros: --Bem, jß sei, Ú uma heranša! Tens quinze tost§es d'alvišaras, Barr˘lo. Mas durante o jantar e depois na sala tomando cafÚ, emquanto Gracinha recomešßra as velhas canš§es patrioticas, agora as jacobitas, em louvor dos Stuarts--Gonšalo anciou pela apparišŃo do Cavalleiro. Nem receava que a esse encontro se misturasse amargura, despeito suffocado. Todo o seu furor contra o Cavalleiro, acceso na dolorosa tarde do Mirante, revolvido na Torre durante torturados dias, logo se dissipßra lentamente depois da sua tocante conversa com a irmŃ, na manhŃ historica da briga da Grainha. Gracinha entŃo, com grandes lagrimas de pureza e de verdade, jurßra reserva, retrahimento. Gonšalo, abandonando Oliveira, mostrava tambem uma resistencia louvavel contra o sentimento ou a vaidade que o transvißra. Demais elle nŃo podia romper novamente com o Cavalleiro, andando ainda nos mexericos e espantos d'Oliveira aquella reconciliašŃo ruidosa que chamßra o Cavalleiro ß intimidade dos Cunhaes. E por fim de que valiam furores ou magoas? Nenhum rugir ou gemer seu annullariam o mal que se consummßra no Mirante--se porventura se consummßra. E assim toda a cˇlera contra o AndrÚ se dissipßra n'aquella sua leve e doce alma, onde os sentimentos, sobretudo os mais escuros, os mais carregados, sempre facilmente se desfaziam como nuvens em ceu de estio... Mas quando, perto das nove horas, o Cavalleiro penetrou na sala, vagaroso e magnifico, com o bigode encurtado mas mais retorcido, uma gravata vermelha entufando estridentemente no largo peito que entufava, Gonšalo sentiu uma renovada aversŃo por toda aquella petulancia recheada de falsidade--e apenas poude bater mollemente, desenxabidamente, nas costas do velho amigo, que o apertava n'um abrašo d'apparatosa ternura. E em quanto AndrÚ, torcendo as luvas claras, languidamente enterrado na poltrona que o Barr˘lo lhe achegou com carinho, contava de Lisboa e de Cascaes, tŃo alegre, e partidas de _bridge_ e da Parada e d'El-Rei--Gonšalo revivia a tarde do Mirante, o seu pobre corašŃo a bater contra a persiana mal fechada, a bruta supplica murmurada atravez d'aquelles bigodes atrevidos, e emmudecera, como empedernido, esmigalhando nervosamente entre os dentes o charuto apagado. Mas Gracinha conservava uma serenidade attenta, sem nenhum dos seus chammejantes rubores, dos seus desgrašados enleios de modo e gesto, apenas levemente secca, d'uma seccura preparada e posta. Depois AndrÚ alludira muito desprendidamente ao seu regresso a Lisboa, depois da EleišŃo, źporque o tio Reis Gomes, o JosÚ Ernesto, esses crueis amigos, lhe andavam atirando para os hombros todo o trabalho da Nova Reforma Administrativa.╗ Entre elle e Gracinha, separados por um curto tapete, parecia cavada uma funda legua de fosso, onde rolßra, se afundßra todo aquelle romance do verŃo, sem que na face d'ambos restasse um afogueado vestigio do seu ardor. E Gonšalo, insensivelmente contente pela apparencia, terminou por abandonar a cadeira onde se impedernira, accendeu o charuto na vela do piano, perguntou pelos amigos de Lisboa. Todos (segundo o Cavalleiro) anciavam pela chegada de Gonšalo. --Lß encontrei tambem o Castanheiro... Enthusiasmado com o teu Romance. Parece que nem no Herculano, nem no Rebello existe nada tŃo forte, como reconstrucšŃo historica. O Castanheiro prefere mesmo o teu realismo epico ao do Flaubert, na _Salammb˘_. Emfim, enthusiasmado! E nˇs, estß claro, ardendo por que appareša a sublime obra. O Fidalgo cˇrou profundamente, murmurando--źQue tolice!╗ Depois rošou pela poltrona em que se enterrava o AndrÚ, afagou suavemente o largo hombro do AndrÚ: --Pois, tens feito cß muita falta, meu velho! Ha dias passei em Corinde, tive saudades... EntŃo o Barr˘lo, que nŃo socegava, vermelho, a estoirar rebolando pela sala, espiando ora o Cavalleiro, ora o Gonšalo, com um riso mudo e avido, nŃo se conteve mais, gritou: --Bem, basta de prologos... Vamos lß agora ß grande surpresa, AndrÚ! Eu tenho estado toda a tarde a rebentar... Mas emfim, jurei e calei! Agora nŃo posso... Vamos lß. E tu, Gonšalinho, vae preparando os quinze tost§es. Gonšalo, com a curiosidade de novo refervendo, apenas sorria, desprendidamente: --Com effeito! Parece que tens uma bella novidade. O Cavalleiro alargou lentamente os brašos, sempre enterrado na vasta poltrona, sem pressa: --Oh! Ú a cousa mais simples, mais natural... A Snr.^a D. Graša jß sabe, nŃo Ú verdade?... NŃo ha motivo para surpresa... TŃo legitima, tŃo natural! Gonšalo exclamou, jß impaciente: --Mas emfim, venha lß, dize. O Cavalleiro insistia, indolente. Todo o espanto era que sˇ agora se pensasse em a realisar, cousa tŃo devida, tŃo adequada. Pois nŃo lhe parecia ß Snr.^a D. Graša? Gonšalo, n'uma braza, berrou: --Mas quŕ? que diabo? O Cavalleiro, que se despegßra vagarosamente da poltrona, puxou os punhos, e deante de Gonšalo, no silencio attento, alteando o peito, grave, quasi official, comešou: --Meu tio Reis Gomes, e o JosÚ Ernesto, tiveram uma ideia muito natural, que communicaram a El-Rei, e que El-Rei approvou... Que approvou mesmo ao ponto de a appetecer, de se assenhorear d'ella, de desejar que fosse sˇ sua. E hoje Ú sˇ d'El-Rei. El-Rei pois pensou, como nˇs pensamos, que um dos primeiros fidalgos de Portugal, decerto mesmo o primeiro, devia ter um titulo que consagrasse bem a antiguidade illustre da Casa, e consagrasse tambem o merito superior de quem hoje a representa... Por isso, meu querido Gonšalo, jß te posso annunciar, e quasi em nome d'El-Rei, que vaes ser Marquez de Treixedo. --Bravo! bravo! bramou o Barr˘lo, com palmas delirantes. Saltem para cß os quinze tost§es, Snr. Marquez de Treixedo! Uma onda de sangue cobria a fina face de Gonšalo. N'um relance sentiu que o Titulo era um dom do Cavalleiro, nŃo ao chefe da casa de Ramires, mas ao irmŃo complacente de Gracinha Ramires... E sobre tudo sentia a incoherencia de que, ao chefe d'uma Casa dez vezes secular, mŃe de Dynastias, edificadora do Reino, com mais de trinta dos seus var§es mortos sob a armadura, se atirasse agora um ouco titulo, atravez do _Diario do Governo_, como a um tendeiro enriquecido que subsidiou eleiš§es. Todavia saudou o Cavalleiro, que esperava a effusŃo, os abrašos.--Oh! Marquez de Treixedo! certamente muito elegante, muito amavel... Depois, esfregando as mŃos, com um sorriso de graša e d'espanto... Mas, meu caro AndrÚ, com que auctoridade me faz El-Rei Marquez de Treixedo? O Cavalleiro levantou vivamente a cabeša n'uma offendida surpresa: --Com que auctoridade? Simplesmente com a auctoridade que tem sobre nˇs todos, como Rei de Portugal que ainda Ú, Deus louvado! E Gonšalo, muito simplesmente, sem fumaša ou pompa, com o mesmo sorriso de suave gracejo: --PerdŃo, AndrÚsinho. Ainda nŃo havia Reis de Portugal, nem sequer Portugal, e jß meus avˇs Ramires tinham solar em Treixedo! Eu approvo os grandes dons entre os grandes fidalgos; mas cumpre aos mais antigos comešarem. El-Rei tem uma quinta ao pÚ de Beja, creio eu, o _RoncŃo_. Pois dize tu a El-Rei, que eu tenho immenso gosto em o fazer, a elle, Marquez do RoncŃo. O Barr˘lo embasbacßra, sem comprehender, com as bochechas descahidas e murchas. Da beira do canapÚ, Gracinha, toda cˇrada, faiscava de gosto, por aquelle lindo orgulho que tŃo bem condizia com o seu, mais lhe fundia a alma com a alma do irmŃo amado. E AndrÚ Cavalleiro, furioso, mas vergando os hombros com ironica submissŃo, apenas murmurou:--źBem, perfeitamente!... Cada um se entende a seu modo...╗ O escudeiro entrava com a bandeja do chß. * * * * * E no Domingo foi a EleišŃo. Ainda com uma desconfianša, uma reserva supersticiosa, o Fidalgo desejou atravessar esse dia muito solitariamente, quasi escondido, e no sabbado, em quanto todos os amigos de Villa-Clara, mesmo os d'Oliveira, o consideravam estabelecido nos Cunhaes, e em communicašŃo azafamada com o Governo Civil, montou a cavallo ao escurecer, e trotou surrateiramente para Santa Ireneia. Mas o Barr˘lo (ainda abalado com źaquelle despauterio do Gonšalo, que era uma offensa para o Cavalleiro! atÚ para El-Rei!╗) ficßra com a missŃo de telegraphar para a Torre as noticias successivas das assembleias, ß maneira que ellas acudissem ao Governo Civil. E, com ruidoso zelo, logo depois da missa, estabeleceu entre os Cunhaes e o velho Convento de S. Domingos um servišo de creados formigando sem repouso. Gracinha, na sala de jantar, ajudada por Padre Sueiro, copiava com amor, n'uma lettra muito redonda, os telegrammas mandados pelo Cavalleiro, que ajuntava a lapis alguma nota amavel--ź_Tudo optimamente!_╗--_Victoria cresce._--_Parabens a V. Ex.^{as}._ Pela estrada de Villa-Clara ß Torre, incessantemente, o mošo do Telegrapho se esbaforia sobre a perna manca. O Bento rompia pela livraria, berrando: źoutro telegramma, Snr. Doutor╗. Gonšalo, nervoso, com um immenso bule de chß sobre a banca, a bandeja jß alastrada de cigarros meio fumados, lia o telegramma ao Bento. O Bento, com _vivas_ pelo corredor, corria a bramar o telegramma ß Rosa. E assim, quando cerca das oito horas, o Fidalgo consentiu em jantar--jß conhecia o seu triumpho explendido. E o que o impressionava, relendo os telegrammas, era o enthusiasmo carinhoso d'aquelles influentes, povos que elle mal rogava, e que convertiam o acto da EleišŃo quasi n'um acto d'Amor. Toda a freguezia dos Bravaes marchßra para a Egreja, cerrada como uma hoste, com o JosÚ Casco na frente erguendo uma enorme bandeira, entre dous tambores que estouravam. O Visconde de Rio-Manso entrßra no adro da Egreja de Ramilde na sua victoria, com a neta toda vestida de branco, seguido por uma vistosa fila de _char-Ó-bancs_, onde se apinhavam eleitores sob toldos de verdura. Na Finta todos os casaes se esvasiavam, as mulheres carregadas d'ouro, os rapazes de fl˘r na orelha, correndo ß EleišŃo do Fidalgo entre o repenicar das violas, como ß romaria d'um Santo. E deante da taberna do Pintainho, em face ß Egreja, a gente da Velleda, da Riosa, do Cercal, erguera um arco de buxo, com distico vermelho, sobre panninho:--źViva o nosso Ramires, fl˘r dos homens!╗ Depois, em quanto jantava, um mošo da quinta voltou de Villa-Clara, alvorošado, contando o delirio, as philarmonicas pelas ruas, a Assembleia toda embandeirada, e na casa da Camara, sobre a porta, um transparente com o retrato de Gonšalo, que uma multidŃo acclamava. Gonšalo apressou o cafÚ. Por timidez, receoso dos vivorios, nŃo ousava correr a Villa-Clara--a espreitar. Mas accendeu o charuto, passou ß varanda, para respirar a doce noite de festa, que andava tŃo cheia de clar§es e rumores em seu louvor. E ao abrir a porta envidrašada quasi recuou, com outro espanto. A Torre illuminßra! Das suas fundas frestas, atravez das negras rexas de ferro, sahia um clarŃo; e muito alta, sobre as velhas ameias, refulgia uma serena cor˘a de lumes! Era uma surpresa, preparada, com delicioso mysterio, pelo Bento, pela Rosa, pelos mošos da quinta,--que agora, todos, no escuro, por baixo da varanda, contemplavam a sua obra, allumiando o ceu sereno. Gonšalo percebeu os passos abafados, o pigarro da Rosa. Gritou alegremente da borda da varanda: --Oh, Bento! Oh, Rosa!... Estß ahi alguem? Um risinho esfusiou. A jaqueta branca do Bento surdio da sombra. --O Snr. Doutor queria alguma cousa? --NŃo, homem! Queria agradecer... Foram vocŕs, hein? Estß linda a illuminacŃo! Mas linda. Obrigado, Bento. Obrigado, Rosa! Obrigado, rapazes! De longe deve fazer um effeito soberbo. Mas o Bento ainda se nŃo contentava com aquellas lamparinas frouxas. A Torre, para sobresahir, necessitava chammas fortes de gaz. O Snr. Doutor nem imaginava a altura, depois em cima, a immensidŃo do eirado. EntŃo, de repente, Gonšalo sentiu um desejo de subir a esse immenso eirado da Torre. NŃo entrßra na Torre desde estudante--e sempre ella lhe desagradßra por dentro, tŃo escura, de tŃo duro granito, com a sua nudez, silencio e frialdade de jazigo, e logo no pavimento terreo os negros alšap§es chapeados de ferro que levavam ßs masmorras. Mas agora as luzes nas frestas aqueciam, reviviam aquella derradeira ossada, Honra de Ordonho Mendes. E de entre as suas ameias, mais alto que da varanda, lhe parecia interessante respirar aquella rumorosa sympathia esparsa, que em torno, pelas freguezias rolava, subindo para elle, atravez da noite, como um incenso. Enfiou um paletot, desceu ß cosinha. O Bento, o Joaquim da horta, divertidos, agarraram grandes lanternas. E com elles atravessou o pomar, penetrou pela atarracada poterna, de funda hombreira, comešou a trepar a esguia escadaria de pedra, que tanta sola de ferro polira e poira. Jß desde seculos se perdera a memoria do logar que occupava aquella torre nas complicadas fortificaš§es da Honra e Senhorio de Santa Ireneia. NŃo era de certo (segundo padre Sueiro) a nobre torre albarran, nem a de Alcašova, onde se guardava o thesouro, o cartorio, os sacos tŃo preciosos das especiarias do Oriente--e talvez, obscura e sem nome, apenas defendesse algum angulo de muralha, para os lados em que o Castello enfrontava com as terras semeadas e os olmedos da Ribeira. Mas, sobrevivente ßs outras mais altivas, comprehendida nas construcš§es do Pašo formoso que se erguera d'entre o sombrio Castello Affonsino, e que dominava Santa Ireneia durante a dynastia d'Aviz, ligada ainda por claras arcarias d'um terrašo ao Palacio de gosto italiano, em que Vicente Ramires converteu o Pašo manuelino depois da sua campanha de Castella: isolada no pomar, mas sobranceando o casarŃo que lentamente se edificßra depois do incendio do Palacio em tempo d'El-Rei D. JosÚ, e a derradeira certamente onde retiniram armas e circularam os homens do Teršo dos Ramires--ella ligava as edades e como que mantinha, nas suas pedras eternas, a unidade da longa linhagem. Por isso o povo lhe chamßra vagamente a źTorre de D. Ramires╗. E Gonšalo, ainda sob a impressŃo dos avˇs e dos tempos que resuscitßra na sua Novella, admirou com um respeito novo a sua vastidŃo, a sua forša, os seus empinados escal§es, os seus muros tŃo espessos, que as frestas esguias na espessura se alongavam como corredores, escassamente allumiadas pelas tigelinhas d'azeite, com que o Bento as despertßra. Em cada um dos trez sobrados parou, penetrando curiosamente, quasi com uma intimidade, nas salas n˙as e sonoras, de vasto lagedo, de tenebrosa abobada, com os assentos de pedra, estranho buraco ao meio, redondo como o d'um pošo e ainda pelas paredes riscadas de sulcos de fumos, os anneis dos tocheiros. Depois em cima, no immenso eirado que a fieira de lamparinas, cingindo as ameias, enchia de claridade, Gonšalo, erguendo a gola do paletot na aragem mais fina, teve a dilatada sensašŃo de dominar toda a Provincia, e de possuir sobre ella uma supremacia paternal, sˇ pela soberana altura e velhice da sua torre, mais que a Provincia e que o Reino. Lentamente caminhou em roda das ameias, atÚ ao miradouro, a que um candieiro de petroleo, sobre uma cadeira de palhinha posta em frente ß fresta, estragava o entono feudal. No cÚo macio, mas levemente enevoado, raras estrellas luziam, sem brilho. Por baixo a quinta, toda a largueza dos campos, a espessura dos arvoredos se fundiam em escuridŃo. Mas na sombra e silencio, por vezes alÚm, para o lado dos Bravaes, lampejavam foguetes remotos. Um clarŃo amarellado e fumarento, caminhando mais longe, entestando para a Finta, era de certo um rancho com archotes festivos. Na alta Egreja da Velleda tremeluzia uma illuminašŃo vaga, rala. Outras luzes, incertas atravÚs do arvoredo, riscavam o velho arco do Mosteiro, em Santa Maria de Craquŕde. Da terra escura subia, por vezes, um errante som de tambores. E lumes, fachos, abafados rufos, eram dez freguezias celebrando amoravelmente o Fidalgo da Torre, que lhes recebia o amor e o preito no eirado da sua torre, envolto em silencio e sombra. O Bento descera, com o Joaquim, para reforšar as lamparinas nas frestas dos muros, onde ellas esmoreciam na espessura. E Gonšalo sˇsinho, acabando o charuto, recomešou a rolda, lento, em torno ßs ameias, perdido n'um pensamento que jß o agitßra estranhamente, atravez d'aquelle sobresaltado Domingo... Era pois popular! Por todas essas aldeias, estendidas ß sombra longa da Torre, o Fidalgo da Torre era pois popular! E esta certeza nŃo o penetrava d'alegria, nem de orgulho,--antes o enchia agora, n'aquella serenidade da noite, de confusŃo, d'arrependimento! Ah! se adivinhasse--se elle adivinhasse!... Como caminharia, com a cabeša bem levantada, com os brašos bem estendidos, sˇsinho, em confianša risonha para todas essas sympathias que o esperavam, tŃo certas, tŃo dadas. Mas nŃo! Sempre se julgßra cercado da indifferenša d'aquellas aldeias, onde elle, apesar do antiquissimo nome, era o costumado mošo, que volta de Coimbra e vive silenciosamente da sua renda, passeando na sua egoa. A essas indifferenšas tŃo naturaes nunca elle imaginßra arrancar o punhado de votos, o punhado de papelinhos que necessitava para entrar na Politica, onde elle conquistaria pela destreza o que os velhos Ramires recebiam por heranša--fortuna e poder. Por isso se agarrßra tŃo avidamente ß mŃo do Cavalleiro, ß mŃo do Snr. Governador Civil--para que S. Ex.^a, o bom amigo, o mostrasse, o impozesse como o homem necessario, o querido do Governo, o melhor entre os bons, a quem as freguezias deviam offerecer n'um Domingo o punhado de votos. E na impaciencia d'esse favor abafßra a memoria de amargos aggravos; deante d'Oliveira pasmada abrašßra o homem detestado desde annos, que andava chasqueando e demolindo, por prašas e jornaes: facilitßra a resurreišŃo de sentimentos que para sempre deviam jazer enterrados; e envolvera o ser que mais amava, a sua pobre e fraca irmŃsinha, em confusŃo e miseria moral... Torpezas e damnos--e para quŕ? Para surripiar um punhado de votos que dez freguezias lhe trariam correndo, gratuitamente, effusivamente, entre _vivas_ e foguetes, se elle acenasse e lh'os pedissse... Ah! eis ahi... F˘ra a desconfianša, essa encolhida desconfianša de si mesmo,--que desde o collegio, atravez da vida, lhe estragßra a vida. Era a mesma desgrašada desconfianša, que ainda semanas antes, deante de uma sombra, um pau erguido, uma risada n'uma taberna, o foršava a abalar, a fugir, arripiado e praguejando contra a sua fraqueza. Por fim, um dia, n'uma volta d'estrada, avanša, ergue o chicote--e descobre a sua forša! E agora, penetra por entre o povo, agarrado timidamente ß mŃo poderosa, por se imaginar impopular--e descobre a sua popularidade immensa. Que vida enganada, e tanto a sujßra--por nŃo saber! O Bento nŃo apparecia, ainda azafamado em illuminar condignamente as rexas da Torre. Gonšalo atirou a ponta do charuto, e com as mŃos nas algibeiras do paletot, parou junto do miradouro, olhou vagamente para as estrellas. A nevoa adelgašßra quasi sumida,--lumes mais vivos palpitavam no ceu mais profundo. De lumes e ceus descia essa sensašŃo de infinidade, d'eternidade, que penetra, como uma surpresa, nas almas desacostumadas da sua contemplašŃo. Na alma de Gonšalo passou, muito fugidiamente, o espanto d'essas eternas immensidades sob que se agita, tŃo vaidosa da sua agitašŃo, a rasteira, a sombria poeira humana. Longe, algum derradeiro foguete ainda lampejava, logo apagado na escuridŃo serena. As luzinhas sobre a capella de Velleda, sobre o arco de Santa Maria de Craquŕde, esmoreciam, jß ralas. Todo o remoto rumor de musicatas se perdera, na mudez mais funda dos campos adormecidos. O dia de triumpho findava, breve como os luminares e os foguetes.--E Gonšalo, parado, rente do miradouro, considerava agora o valor d'esse triumpho por que tanto almejßra, porque tanto sabujßra. Deputado! Deputado por Villa-Clara, como o Sanches Lucena. E ante esse resultado, tŃo miudo, tŃo trivial,--todo o seu esforšo tŃo desesperado, tŃo sem escrupulos, lhe parecia ainda menos immoral que risivel. Deputado! Para quŕ? Para almošar no Braganša, galgar de tipoia a ladeira de S. Bento, e dentro do sujo convento escrevinhar na carteira do Estado alguma carta ao seu alfaiate, bocejar com a inanidade ambiente dos homens e das ideias, e distrahidamente acompanhar, em silencio ou balando, o rebanho do S. Fulgencio, por ter desertado o rebanho identico do Braz Victorino. Sim, talvez um dia, com rasteiras intrigas e sabujices a um chefe e ß senhora do chefe, e promessas e risos atravez de Redacš§es, e algum Discurso esbrazeadamente berrado--lograsse ser Ministro. E entŃo? Seria ainda a tipoia pela calšada de S. Bento, com o correio atraz na pileca branca, e a farda mal-feita, nas tardes d'assignatura, e os recurvados sorrisos d'amanuenses pelos escuros corredores da Secretaria, e a lama escorrendo sobre elle de cada gazeta d'opposišŃo... Ah! que pŕca, desinteressante vida, em comparašŃo d'outras cheias e soberbas vidas, que tŃo magnificamente palpitavam sob o tremeluzir d'essas mesmas estrellas! Em quanto elle se encolhia no seu paletot, deputado por Villa-Clara, e no triumpho d'essa miseria--Pensadores completavam a explicašŃo do Universo; Artistas realisavam obras de belleza eterna; Reformadores aperfeišoavam a harmonia social; Santos melhoravam santamente as almas; Physiologistas diminuiam o velho soffrer humano; Inventores alargavam a riqueza das rašas; Aventureiros magnificos arrancavam mundos de sua esterilidade e mudez... Ah! esses eram os verdadeiramente homens, os que viviam deliciosas plenitudes de vida, modelando com as suas mŃos incanšadas fˇrmas sempre mais bellas ou mais justas da humanidade. Quem f˘ra como elles, que sŃo os sobre-humanos! E tal acšŃo tŃo suprema requeria o Genio, o dom que, como a antiga chamma, desce de Deus sobre um eleito? NŃo! Apenas o claro entendimento das realidades humanas--e depois o forte querer. E o Fidalgo da Torre, immovel no eirado da Torre, entre o ceu todo estrellado, e a terra toda escura, longamente revolveu pensamentos de Vida superior--atÚ que enlevado, e como se a energia da longa raša, que pela Torre passßra, refluisse ao seu corašŃo, imaginou a sua propria encaminhada emfim para uma acšŃo vasta e fecunda, em que soberbamente gozasse o goso de verdadeiro viver, e em torno de si creasse vida, e accrescentasse um lustre novo ao velho lustre de seu nome, e riquezas puras o dourassem e a sua terra inteira o bem-louvasse por que elle inteiro e n'um esforšo pleno bem servira a sua terra... O Bento surdiu da portinha baixa do eirado, com a lanterna: --O Snr. Doutor ainda se demora? --NŃo. A festa acabou, Bento. * * * * * Nos comešos de Dezembro, com o primeiro numero dos *Annaes*, appareceu a _Torre de D. Ramires_. E todos os jornaes, mesmo os da opposišŃo, louvaram źesse estudo magistral (como affirmou a _Tarde_) que, revelando um erudito e um artista, continuava, com uma arte mais moderna e colorida, a obra de Herculano e de Rebello, a reconstituišŃo moral e social do velho Portugal heroico.╗ Depois das festas de Natal, que elle passou alegremente nos Cunhaes, ajudando Gracinha a cosinhar bolos de bacalhau por uma receita sublime do padre JosÚ Vicente, da Finta, os amigos d'Oliveira, os rapazes do Club e da Arcada offereceram ao Deputado por Villa-Clara, na sala da Camara, adornada de buxos e bandeiras, um banquete, a que assistia o Cavalleiro, de gran-cruz, e em que o BarŃo das Marges (que presidia) saudou źo prestigioso mošo que, talvez em breve, nas cadeiras do Poder levantasse do marasmo este brioso paiz, com a pujanša, a valentia, que sŃo proprias da sua raša nobilissima!╗ * * * * * No meado de Janeiro, por uma agreste noite de chuva, Gonšalo partiu para Lisboa; e atravez do inverno, em Lisboa, andou sempre nos _Carnet-Mondain_ e _High-Life_ dos jornaes, nas noticias de jantares, do _raouts_, de tiros aos pombos, de Cašadas d'El-Rei, tŃo notado nos movimentos mais simples da sua elegancia, que os Barr˘los assignaram o _Diario Illustrado_ para saber quando elle passeava na Avenida. Em Villa-Clara, na Assembleia, o JosÚ Gouveia jß encolhia os hombros, rosnando:--źDesandou em janota!╗--Mas nos fins d'Abril uma noticia de repente alvorošou Villa-Clara, espantou na quieta Oliveira os rapazes do Club e da Arcada, perturbou tŃo inesperadamente Gracinha, entŃo em Amarante com o Barr˘lo, que n'essa noite ambos abalaram para Lisboa--e na Torre atirou a Rosa para um banco de pedra da cosinha, lavada em lagrimas, sem comprehender, gemendo: --Ai o meu rico menino, o meu rico menino, que o nŃo torno mais a vŕr! Gonšalo Mendes Ramires, silenciosamente, quasi mysteriosamente, arranjßra a concessŃo d'um vasto praso de Macheque, na Zambezia, hypothecßra a sua quinta historica de Treixedo, e embarcava em comešos de Junho no paquete _Portugal_, com o Bento, para a Africa. XII Quatro annos passaram ligeiros e leves sobre a velha Torre, como v˘os d'ave. N'uma doce tarde dos fins de Septembro, Gracinha, que chegßra na vespera de Oliveira acompanhada pelo bom Padre Sueiro, descansava na varanda da sala de jantar, estendida sobre o canapÚ de palhinha, ainda com um grande avental branco, tapando o vestido atÚ ao pescošo, um velho avental do Bento. Todo o dia, d'avental, atravez do casarŃo, ajudada pela Rosa e pela filha da Crispola, s'esfalfßra, arrumando e limpando, com tanto gosto e fervor no trabalho, que ella mesma sacudira o pˇ a todos os livros da livraria, o seu socegado pˇ de quatro annos. O Barr˘lo tambem se occupßra, dando sentenšas nas obras da cavallariša, que a valente egoa da briga da Grainha em breve partilharia com uma egoa ingleza, de meio sangue, comprada em Londres. Tambem Padre Sueiro remexera, pelo Archivo, zelosamente, com um espanejador. E atÚ o Pereira da Riosa, o bom rendeiro, apressava desde madrugada dois mošos na final limpeza da horta, agora muito cuidada, jß com meloal, jß com morangal, e duas novas ruas, ambas bordadas de roseiras e recobertas de latada que a parra densa jß recobria. Com efeito a Torre, entre a alvorošada alegria de todos, enfeitava a sua velhice--por que no Domingo, depois dos seus quatro annos d'Africa, Gonšalo regressava ß Torre. E Gracinha, estendida no canapÚ com o seu velho avental branco, sorrindo pensativamente para a quinta silenciosa, para o ceu todo cˇrado sobre Valverde, recordava esses quatro annos, desde a manhŃ em que abrašßra Gonšalo, suffocada e a tremer, no beliche do _Portugal_... Quatro annos! Assim passados, e nada mudßra no mundo, no seu curto mundo d'entre os Cunhaes e a Torre, e a vida rolßra, e tŃo sem historia como rola um rio lento n'uma solidŃo:--Gonšalo na Africa, na vaga Africa, mandando raras cartas, mas alegres, e com um enthusiasmo de fundador de Imperio; ella nos Cunhaes, e o seu Barr˘lo, n'um tŃo quieto e costumado viver, que eram quasi d'agitašŃo os jantares em que reuniam os Mendonšas, os Marges, o coronel do 7, outros amigos, e ß noite na sala se abriam duas mezas de panno verde para o voltarete e para o boston. E n'este manso correr de vida se desfizera mansamente, quasi insensivelmente, a sombria tormenta do seu corašŃo. Nem ella agora comprehendia como um sentimento, que atravez das suas anciedades ella justificava, quasi secretamente santificava por o saber _unico_, e o desejar _eterno_, assim se sumira, insensivelmente, sem dilaceraš§es, deixßra apenas um leve arrependimento, alguma esfumada saudade, tambem estranheza e confusŃo, restos de tanto que ardera, formando uma cinza fina... A successŃo das cousas rolßra, como o vento ßs lufadas n'um campo, e ella rolßra, levada com a inercia d'uma folha secca. Logo depois do derradeiro Natal passado com Gonšalo, AndrÚ, que ainda os acompanhßra ß Missa do Gallo e consoßra nos Cunhaes, voltou para Lisboa, para essa źReforma╗, de que se lastimava... No silencio que entre ambos entŃo se alargou, corria jß uma frialdade d'abandono... E quando AndrÚ recolheu a Oliveira, ao seu Governo Civil, partia ella para Amarante, onde a santa mŃe do Barr˘lo adoecera, com uma vagarosa doenša d'anemia e velhice, que em Maio a levou para o Senhor. Em Junho f˘ra o commovido embarque de Gonšalo para a Africa,--e no tombadilho do paquete, entre o barulho e as bagagens, um encontro com AndrÚ, que chegara d'Oliveira, dias antes, e contou muito alegremente do casamento da Mariquinhas Marges. Todo esse verŃo, como o Barr˘lo decidira fazer obras consideraveis no velho palacete do Largo d'El-Rei, o passaram na quinta da _Murtosa_, que ella escolhera por causa da linda matta, dos altos muros de convento. A essa solidŃo attribuiu logo o Barr˘lo a sua melancolia, a sua magreza, aquelle cansado scismar a que se abandonava, pelos bancos musgosos da matta, com um romance esquecido no regašo. Para que ella se distrahisse, se fortificasse com banhos do mar, alugou em Setembro, na Costa, o vistoso chalet do commendador Barros. Ella nŃo tomou banhos, nem apparecia na praia, ß fresca hora das barracas, entre as senhoras sentadas em cadeirinhas baixas:--e sˇ ß tarde passeava pelo comprido areal rente ß vaga, acompanhada por dous enormes galgos que lhe dera Manoel Duarte. Uma manhŃ, ao almošo, ao abrir as _Novidades_, Barr˘lo pulou, com um berro, um espanto. Era a queda inesperada do Ministerio do S. Fulgencio! AndrÚ Cavalleiro apresentava logo a sua demissŃo pelo telegrapho. E ainda pelas _Novidades_ souberam na Costa que S. Ex.^a partira para uma źlonga e pittoresca viagem╗, a viagem a Constantinopla, ß Asia Menor, que elle annuncißra ao jantar nos Cunhaes. Ella abrira um Atlas: com o dedo lento caminhou desde Oliveira atÚ ß Syria, por sobre fronteiras e montes: jß AndrÚ lhe parecia desvanecido, n'esses horisontes mais luminosos; fechou o Atlas, pensando simplesmente źcomo a gente muda!╗ Em Novembro voltaram a Oliveira, n'um sabbado de chuva, e ella na carruagem sentia toda a melancolia e a frialdade do ceu penetrar no seu corašŃo. Mas no Domingo acordou com um lindo sol nas vidrašas. Para a missa das onze na SÚ, ella estreou um chapÚo novo; depois, no caminho para casa da tia Arminda, levantou os olhos para o casarŃo do Governo Civil: agora habitava lß outro Governador Civil, o Snr. Santos Maldonado, um mošo louro que tocava piano. Na outra primavera o Barr˘lo, agora escravisado pela paixŃo d'obras, imaginou demolir o Mirante para construir outra estufa, mais vasta, com um repuxo entre palmeiras, que formaria źum jardim d'inverno catita.╗ Os trabalhadores comešaram por esvasiar o Mirante da velha mobilia que o guarnecia desde o tempo do tio Melchior: o immenso divan jazeu dois dias no jardim, encalhado contra uma sebe de buxo, e o Barr˘lo, impaciente, com aquelle desusado traste, de molas quebradas, nem o consentiu nas arrecadaš§es do sotŃo, mandou que o queimassem com outras cadeiras partidas, n'uma fogueira de festa, na noute dos annos de Gracinha. E ella andou em torno da fogueira. O estofo poÝdo flammejou, depois o mogno pesado mais lentamente, com um leve fumo, atÚ que uma braza ficou latejando, e a braza escureceu em cinza. Logo n'essa semana as Lousadas, mais agudas, mais escuras, invadiram uma tarde os Cunhaes--e apenas espetadas no sophß, logo lhe contaram, com um riso feroz nos olhinhos furantes, do grande escandalo, o Cavalleiro! em Lisboa! sem rebušo! com a mulher do Conde de S. RomŃo! um fazendeiro de Cabo Verde! N'essa noite, ella escreveu a Gonšalo uma carta muito longa que comešava:--źPor cß estamos todos bem, e n'este rame-ram costumado...╗ E com effeito a vida recomešßra, no seu rame-ram, simples, contÝnua, e sem historia, como corre um rio claro n'uma solidŃo. ┴ porta envidrašada da varanda o filho da Crispola espreitou--o filho da Crispola, que ficßra sempre na Torre, como źandarilho╗, mas crescera muito para fˇra da sua antiga jaqueta de bot§es amarellos, usava agora jaquet§es velhos do Snr. Doutor, e jß repuxava o bušo: --╔ que estß lß em baixo o Snr. Antonio Villalobos, com o Snr. Gouveia e outro senhor, o Videirinha, e perguntam se podem fallar ß senhora... --O Snr. Villalobos! Sim! que subam, que entrem para aqui, para a varanda! Ao atravessar a sala, onde dous esteireiros d'Oliveira pregavam uma esteira nova, o vozeirŃo do Titˇ jß ribombava, notando os źpreparativos da festa...╗ E quando entrou na varanda a sua face mais barbuda, mais requeimada, rebrilhava com a alegria d'encontrar emfim a Torre despertando d'aquella modorra, em que tudo dentro parecia tristemente apagado, atÚ o lume das cašarolas: --Pešo desculpa da invasŃo, prima Graša. Mas passamos, de volta d'um passeio dos Bravaes, soubemos que a prima viera com o Barr˘lo... --Oh! gosto immenso, primo Antonio. Eu Ú que pešo desculpa d'esta figura, assim despenteada, de grande avental... Mas todo o dia em arranjos, a preparar a casa... E o Snr. Gouveia, como tem passado? NŃo o vejo desde a Paschoa. O administrador, que nŃo mudßra n'esses quatro annos, escuro, secco, como feito de madeira, sempre esticado na sobrecasaca preta, apenas com o bigode mais amarellado do cigarro, agradeceu ß Snr.^a D. Graša... E passßra menos mal, desde a Paschoa. A nŃo ser a desavergonhada da garganta... --E entŃo o nosso grande homem? quando chega? quando chega? --No Domingo. Estamos todos em alvorošo... EntŃo nŃo se senta, Snr. Videira? Olhe, puxe aquella cadeira de vime. A varanda por ora nŃo estß arranjada. Videirinha, logo depois da EleišŃo, recebera de Gonšalo o logar promettido, facil e com vagares, para nŃo esquecer o violŃo. Era amanuense na AdministrašŃo do Concelho de Villa-Clara. Mas convivia ainda na intimidade do seu chefe, que o utilisava para todos os servišos, mesmo de enfermeiro, e o mandava sempre com uma auctoridade secca, mesmo ceando ambos no Gago. Timidamente arrastou a cadeira de vime, que collocou, com respeito, atraz da cadeira do seu Chefe. E depois de tirar as luvas pretas, que agora sempre trazia para realšar a sua posišŃo, lembrou que o comboio chegava ao apeadeiro de Craquŕde ßs dez e quarenta, nŃo trazendo atrazo. Mas talvez o Snr. Doutor apeasse em Corinde, por causa das bagagens... --Duvido, murmurou Gracinha. Em todo o caso o JosÚ estß com tenšŃo de partir de madrugada, para o encontrar na bifurcašŃo, em Lamello. --Nˇs nŃo! acudiu o Titˇ, que se sentßra familiarmente no rebordo da varanda. Cß o nosso rancho vae simplesmente a Craquŕde. Jß Ú terra da familia, e sitio mais socegado para o vivorio... Mas entŃo esse homem nŃo se demorou em Lisboa, prima Graša? --Desde Domingo, primo Antonio. Chegou no Domingo, de Paris, pelo Sud-Express. E teve uma chegada brilhante... Oh! muito brilhante! Hontem recebi eu uma carta da Maria Mendonša, uma grande carta em que conta... --O que? A prima Maria Mendonša estß em Lisboa? --Sim, desde os fins d'Agosto, n'uma visita a D. Anna Lucena... Vivamente, JoŃo Gouveia puxou a cadeira, n'uma curiosidade que de certo o remoera: --╔ verdade, Snr.^a D. Graša!--EntŃo parece que a D. Anna Lucena comprou uma casa em Lisboa. anda em arranjos de mobilia?... V. Ex.^a ouviu, Snr.^a D. Graša? NŃo, Gracinha nŃo sabia. Mas era natural, agora que tanto se demorava em Lisboa, pouco se aproveitava da _Feitosa_, tŃo linda quinta... --EntŃo casa! exclamou o Gouveia, com immensa convicšŃo. Se anda em arranjos de mobilia, entŃo casa. ╔ natural, quer posišŃo. Depois, jß lß vŃo quatro annos de viuvez, e... Gracinha sorriu. Mas o Titˇ, que cošava lentamente a barba, voltou ß carta da prima Maria Mendonša, contando a chegada. --Sim! acudiu Gracinha, conta, esteve na EstašŃo, no Rocio. Parece que o Gonšalo optimo, mais forte... Olhe, primo Antonio, leia a carta. Leia alto! NŃo tem segredos. ╔ toda sobre o Gonšalo... Tirßra do bolso um pesado enveloppe, com sinete d'armas no lacre. Mas a prima Maria escrevia sempre depressa, n'uma lettra atabalhoada, com as linhas crusadas. Talvez o primo Antonio nŃo comprehendesse...--E com effeito, deante das quatro folhas de papel errišadas de negras linhas, parecendo uma sebe espinhosa, o Titˇ recuou, aterrado. Mas o JoŃo Gouveia immediatamente se offereceu, com a sua pericia em decifrar officios de regedores... NŃo havendo segredos. --NŃo, nŃo ha segredos, afianšou Gracinha, rindo. ╔ unicamente sobre o Gonšalo, como n'um jornal. O administrador folheou a immensa carta, passou os dedos sobre o bigode, com certa solemnidade: źMinha querida Graša... A costureira do Silva diz que o vestido...╗ --NŃo! acudiu Gracinha. ╔ na outra pagina, no alto. Volte a pagina. Mas o Administrador gracejou, ruidosamente. Oh! estß claro, carta de senhora, logo os trapos... E a Snr.^a D. Graša a assegurar que era toda sobre Gonšalo. Pois jß veriam se pelo meio se nŃo fallava ainda em vestidos... Ah! estas senhoras, com os trapos!...--Depois recomešou, na outra pagina, com lentidŃo e gravidade: ź...Deves agora estar anciosa por saber da grande chegada do primo Gonšalo. Foi realmente brilhante, e parecia uma recepšŃo de pessoa real. Eramos mais de trinta amigos. Estß claro, appareceu toda a roda da nossa parentella; e se rebentasse de repente n'essa manhŃ uma revolušŃo, os Republicanos apanhavam alli junta, na estašŃo do Rocio, toda a fl˘r da nobresa de Portugal, da velha, da boa. De senhoras, era a prima Chellas, a tia Louredo, as duas Esposendes (com o tio Esposende, que apesar do rheumatismo e da vindima, veiu expressamente da quinta de Torres), e eu. Homens, todos. E como estava o Conde de Arega, que Ú secretario d'El-Rei e o primo Olhalvo, que Ú o seu Mordomo-Mˇr, e o Ministro da Marinha e o Ministro das Obras Publicas, ambos condiscipulos e intimos de Gonšalo, as pessoas na estašŃo deviam imaginar que chegava El-Rei. O Sud-Express trouxe quarenta minutos de demora. De modo que parecia um salŃo, com toda aquella gente da sociedade, muito alegre, e o primo Arega, sempre tŃo amavel e engrašado, e fazendo jß convites para um jantar (que depois deu) ao primo Gonšalo. Lß fui a esse jantar com o meu vestido verde, novo, que ficou bem...╗ Gouveia gritou triumphando: --Hein? que disse eu?! cß estß vestido. Vestido verde! --Lŕ para deante, homem! bramou o Titˇ. E o Administrador, realmente interessado, recomešou, com entono: ź...com o meu vestido verde novo, excepto a saia, um pouco pesadota. Creio que fui eu a primeira que avistou o primo Gonšalo, na plataforma do Sud-Express. NŃo imaginas como vem... optimo! AtÚ mais bonito, e sobretudo mais homem. A Africa nem de leve lhe tostou a pelle. Sempre a mesma brancura. E d'uma elegancia, d'um apuro! Prova de como se adeanta a civilisašŃo d'Africa! dizia o primo Arega, este Ú estylo novo de tangas em Macheque!... Como imaginas, muito abrašo, muita beijoca. A tia Louredo choramigou. Ah, jß esquecia! Estava tambem o Visconde de Rio-Manso, com a filha, a Rosinha. Muito linda ella, com um vestido do Redfern, fez sensašŃo. Todos me perguntavam quem era, e o conde d'Arega, estß claro, logo com appetite de ser apresentado. O Rio-Manso tambem choramigou ao abrašar o primo Gonšalo. E ali viemos todos, em nobre sequito, pela estašŃo fˇra, entre o pasmo dos povos. Mas immediatamente uma scena. De repente, no meio de toda aquella nata de braz§es, o primo Gonšalo rompe e cahe nos brašos do homemzinho de bonet agaloado que recebia ß porta os bilhetes. Sempre o mesmo Gonšalo! Parece que o conheceu ao chegar a Lourenšo Marques, onde o homem tratava de se estabelecer como photographo. Mas jß esquecia o melhor--o Bento! NŃo imaginas o Bento... Magnifico! Deixou crescer um bocado de suissa. ╔ um modelo, vestido em Londres, de grande casaco de viagem de panno claro, atÚ aos pÚs, luvas amarelladas, gravidade immensa. Gostou de me vŕr na estašŃo--perguntou logo, com o olho humido, pela Snr.^a D. Graša, e pela Rosa. ┴ noite, o JosÚ e eu jantamos em familia, com o primo Gonšalo, no Braganša, para conversar da Torre e dos Cunhaes. Elle contou muitas cousas interessantes d'Africa. Traz notas para um livro, e parece que o praso prospera. N'estes poucos annos plantou dois mil coqueiros. Tem tambem muito cacau, muita borracha. Gallinhas sŃo aos milhares. ╔ verdade que uma gallinha gorda em Macheque vale um pataco. Que inveja! Aqui em Lisboa custa seis tost§es, sˇ com ossos--por que tendo tambem alguma carne no peito, salta para cß dez tost§es, e agradece! No praso jß se construiu uma grande casa, proximo do rio, com vinte janellas e pintada de azul. E o primo Gonšalo declara que jß nŃo vende o praso nem por oitenta contos. Para felicidade completa atÚ achou um excellente administrador. Eu todavia duvido que elle volte para a Africa. Tenho agora cß a minha linda ideia sobre o futuro do primo Gonšalo. Talvez te rias. E nŃo adivinhas... com effeito, eu mesma sˇ n'essa noite em que jantamos no Braganša, recebi de repente a inspirašŃo. O Rio-Manso estß tambem no Braganša. Quando desciamos para o jantar, para um gabinete, encontramos no corredor o velho com a pequena. O homem tornou logo a abrašar Gonšalo, com uma _ternura de pae_. E a Rosinha tŃo vermelha se fez, que atÚ Gonšalo, apesar de excitado e distrahido, notou e cˇrou de leve. Parece que jß ha entre elles um conhecimento antigo, por causa d'um cesto de rosas, e que, desde annos, o Destino os anda surrateiramente chegando. Ella Ú realmente uma belleza. E tŃo sympathica, tŃo bem educada!... Differenša d'edade, apenas onze annos; e o dote tremendo. Fallam em quinhentos contos. Ha apenas a questŃo de sangue e o d'ella, coitadinha... Emfim, como se diz em heraldica,--ź_o Rei faz a pastora Rainha_.╗ E os Ramires, nŃo sˇ vem dos Reis, mas os Reis vem dos Ramires.--E agora passando a assumpto menos interessante...╗ Discretamente JoŃo Gouveia dobrou a carta, que entregou a Gracinha, louvando a Snr.^a D. Maria Mendonša como um źreporter╗ precioso. Depois, com um cumprimento: --E, minha senhora, se as previs§es d'ella se realisam... Mas nŃo! Gracinha nŃo acreditava! Ora! imaginaš§es da Maria Mendonša. --O primo Antonio bem a conhece, sabe como ella Ú casamenteira... --Pois se atÚ a mim me quiz casar, ribombou o Titˇ saltando do rebordo da varanda. Imagine a prima... AtÚ a mim! Com a viuva Pinho, da loja de pannos. --Credo! Mas o Gouveia insistia, com superioridade, um sentimento verdadeiro da vida positiva: --Olhe, Snr.^a D. Graša, acredite V. Ex.^a, sempre era melhor arranjo para o Gonšalo que a Africa... Eu nŃo acredito n'esses prazos... Nem na Africa. Tenho horror ß Africa. Sˇ serve para nos dar desgostos. Boa para vender, minha senhora! A Africa Ú como essas quintarolas, meio a monte, que a gente herda d'uma tia velha, n'uma terra muito bruta, muito distante, onde nŃo se conhece ninguem, onde nŃo se encontra sequer um estanco; sˇ habitada por cabreiros, e com sez§es todo o anno. Boa para vender. Gracinha enrolava lentamente nos dedos a fita do avental: --O quŕ! vender o que tanto custou a ganhar, com tantos trabalhos no mar, tanta perda de vida e fazenda?! O Administrador protestou logo, com calor, jß enristado para a controversia: --Quaes trabalhos, minha senhora? Era desembarcar alli na areia, plantar umas cruzes de pau, atirar uns safan§es aos pretos... Essas glorias d'Africa sŃo balelas. Estß claro, V. Ex.^a falla como fidalga, neta de fidalgos. Mas eu como economista. E digo mais... O seu dedo agudo ameašava argumentos agudos. Titˇ acudiu, salvou Gracinha: --Oh Gouveia, nˇs estamos a tirar o tempo ß prima Graša, que anda nos seus arranjos. Essas quest§es d'Africa sŃo para depois, com o Gonšalo, ß sobremeza... E entŃo, minha querida prima, atÚ Domingo, em Craquŕde. Lß comparece o rancho todo. E quem atira os foguetes sou eu! Mas Gouveia, cofiando o c˘co com a manga, ainda esperava converter a Snr.^a D. Graša ßs ideias sŃs, sobre Politica Colonial. --Era vender, minha senhora, era vender! Ella sorria, jß consentia--tomando a mŃo do Videirinha, que hesitava, com os dedos espetados: --E entŃo, Snr. Videira, tem agora algumas quadras novas para o _Fado_? Cˇrando, Videirinha balbuciou que źarranjßra uma coisita, tambem n'um fado, para a volta do Snr. Doutor.╗ Gracinha prometteu decorar, para cantar ao piano. --Muito agradecido a V. Ex.^a... Creado de V. Ex.^a... --EntŃo atÚ Domingo, primo Antonio... Estß uma tarde linda. --AtÚ Domingo, em Craquŕde, prima. Mas ß porta envidrašada, JoŃo Gouveia parou mais teso, bateu na testa: --Jß me esquecia, desculpe V. Ex.^a! Recebi uma carta do AndrÚ Cavalleiro, da Figueira da Foz. Manda muitas saudades ao Barr˘lo. E quer saber se o Barr˘lo lhe poderia ceder d'aquelle vinho verde de Vidainhos. ╔ tambem para um africanista, para o conde de S. RomŃo... Parece que a Snr.^a condessa se pÚla por vinho verde! E os tres amigos, em fila, atravessaram a sala de jantar, onde o vozeirŃo do Titˇ ainda ribombou, louvando a esteira nova de c˘res. No corredor, Videirinha espreitou para a Livraria, notou o molho de penas de pato espetado no velho tinteiro de latŃo, que esperava, rebrilhando solitariamente sobre a mesa nua sem papeis nem livros. Depois a Rosa appareceu ß porta do quarto de Gonšalo, ajoujada de roupa, com um riso em cada ruga da sua face redonda e c˘r de tijolo, que o farto lenšo de cambraia, muito branco, circumdava como um nimbo. O Titˇ affagou carinhosamente o hombro da boa cosinheira: --EntŃo, tia Rosa, agora recomešam essas grandes petisqueiras, hein? --Louvado seja Deus, Snr. D. Antonio! Que imaginei que nŃo tornava a vŕr o meu rico senhor. Tambem jß tinha decidido... Se me enterrassem o corpo aqui em Santa Ireneia, antes de eu vŕr o menino, a alma com certesa ia ß Africa para lhe fazer uma visita. Os seus miudos olhos piscaram, lagrimejando de gosto--e seguiu pelo corredor, tesa e decidida, com a sua trouxa que rescendia a mašŃ camoeza. O Gouveia murmurßra com uma careta:--źSafa!╗ E os tres amigos desceram ao pateo onde, por curiosidade do Titˇ, visitaram as obras da cavallariša. --Veja vocŕ! exclamou elle para o Gouveia, que accendia o charuto. Vocŕ a negar!... Mobilias, obras, egoa ingleza... Tudo jß dinheiro d'Africa. O Administrador encolheu os hombros: --Veremos depois como elle traz o figado... Deante do portŃo o Titˇ ainda parou a colher, na roseira costumada, uma rosinha para florir o jaquetŃo de velludilho. E juntamente entrava o Padre Sueiro, recolhendo d'uma volta pelos Bravaes, com o seu grande guarda-sol de panninho e o seu breviario. Todos acolheram com carinho o santo e douto velho, tŃo raro agora na Torre. --E entŃo no Domingo, cß temos o nosso homem, Padre Sueiro! O capellŃo achatou sobre o peito a mŃo gorda, com reverencia, com gratidŃo... --Deus ainda me quiz conceder, na minha velhice, mais esse grande favor... Pois mal o esperava. Terras tŃo asperas, e elle tŃo delicado... E para conversar de Gonšalo, da espera em Craquŕde, acompanhou aquelles senhores atÚ ß ponte da Portella. JoŃo Gouveia manquejava, aperreado por umas infames botas novas que n'essa manhŃ estreßra. E descanšaram um momento no bello banco de pedra que o pae de Gonšalo mandßra collocar, quando Governador Civil d'Oliveira. Era esse o doce sitio d'onde se avista Villa-Clara, tŃo aceada, sempre tŃo branca, ßquella hora toda rosada, d'esde o vasto convento de Santa Theresa atÚ ao muro novo do cemiterio no alto, com os seus finos cyprestes. Para alÚm dos outeiros de Valverde, longe, sobre a Costa, o sol descia, vermelho como um metal candente que arrefece, entre nuvens vermelhas, accendendo ainda, em ouro coruscante, as janellas da Villa. Ao fundo do valle, uma claridade nimbava as altas ruinas de Santa Maria de Craquŕde, entre o seu denso arvoredo. Sob o arco, o rio cheio corria sem um rumor, jß dormente na sombra dos choupos finos, onde ainda passaros cantavam. E na volta da estrada, por cima dos alamos que escondiam o casarŃo, a velha Torre, mais velha que a Villa e que as ruinas do Mosteiro, e que todos os casaes espalhados, erguia o seu esguio miradoiro, envolto no v˘o escuro dos morcegos, espreitando silenciosamente a planicie e o sol sobre o mar, como em cada tarde d'esses mil annos, desde o Conde Ordonho Mendes. Um pequeno com uma alta aguilhada passou, recolhendo duas vaccas lentas. Do lado da Villa, o padre JosÚ Vicente da Finta trotou na sua egoa branca, saudou o Snr. Administrador, o amigo Sueiro, abenšoando tambem a chegada do Fidalgo para quem jß preparßra uma bella cesta da sua uva moscatel. Trez cašadores, com uma matilha de coelheiras, atravessaram a estrada, descendo pelo portello ß quelha que contorna o casal do Miranda. Um silencio ainda claro, de immenso repouso, tŃo doce como se descesse do ceu, cobria a largueza povoada dos campos, onde nŃo se movia uma folha, na macia transparencia do ar de Setembro. Os fumos das lareiras accesas jß se escapavam, lentos e leves, d'entre a telha rala. Na loja do JoŃo ferreiro, adeante da Portella, o clarŃo da forja avivou, mais vermelho. Um _bum-bum_ de tambor bateu festivamente para o lado dos Bravaes, cresceu apressado, marchando:--n'algum cabešo, depois lentamente se afastou, esmoreceu, logo sumido, em arvoredos ou no valle mais fundo. JoŃo Gouveia, que se recostßra no canto do largo assento de pedra, com o seu c˘co sobre os joelhos, acenou para o lado dos Bravaes: --Estou a lembrar aquella passagem do romance do Gonšalo, quando os Ramires se preparam para soccorrer as Infantas, andam a reunir a mesnada. ╔ assim, a estas horas da tarde, com tambores: e por sitios... źNa frescura do valle...╗ NŃo! źPelo valle de Craquŕde...╗ Tambem nŃo! Esperem vocŕs, que eu tenho boa memoria... Ah! źE por todo o fresco valle atÚ Santa Maria de Craquŕde, os atambores mouriscos abafados no arvoredo, tararam! tararam! ou mais vivos nos cerros ralatam! ralatam! convocavam ß mesnada dos Ramires, na došura da tarde...╗ E lindo! Por sobre as costas do Titˇ que, debrušado, riscava pensativamente com o bengalŃo a poeira da estrada, Videirinha adeantou para o seu chefe a face estendida, com um sorriso de finura: --Oh Snr. Administrador, olhe que talvez seja ainda mais bonito, quando os Ramires largam a perseguir o Bastardo! Cß para mim, tem mais poesia. Quando o velho faz aquella jura com a espada e depois lß na Torre, muito devagar, comeša a tocar a finados... ╔ d'appetite! ┴ borda do assento, encolhido contra o Titˇ, para que o Snr. Administrador se alastrasse confortavelmente, Padre Sueiro, com as mŃos no cabo do seu guarda-sol, concordou: --Com certesa! sŃo lances interessantes... Com certesa! N'aquella novella ha imaginašŃo rica, muito rica: e ha saber, ha verdade. O Titˇ, que depois de _SimŃo de Nantua_, em pequeno, nŃo abrira mais as folhas d'um livro, e nŃo lŕra a _Torre de D. Ramires_, murmurou, com um risco mais largo na poeira: --Extraordinario, aquelle Gonšalo! O Videirinha nŃo findßra o seu enlevado sorriso: --Tem muito talento... Ah! o Snr. Doutor tem muito talento. --Tem muita raša! exclamou o Titˇ, levantando a cabeša. E Ú o que o salva dos defeitos... Eu sou um amigo de Gonšalo, e dos firmes. Mas nŃo o escondo, nem a elle... Sobretudo a elle. Muito leviano, muito incoherente... Mas tem a raša que o salva. --E a bondade, Snr. Antonio Villalobos! atalhou docemente Padre Sueiro. A bondade, sobretudo como a do Snr. Gonšalo, tambem salva... Olhe, ßs vezes ha um homem muito serio, muito puro, muito austero, um CatŃo que nunca cumpriu senŃo o dever e a lei... E todavia ninguem gosta d'elle, nem o procura. Por que? Por que nunca deu, nunca perdoou, nunca acarinhou, nunca serviu. E ao lado outro leviano, descuidado, que tem defeitos, que tem culpas, que esqueceu mesmo o dever, que offendeu mesmo a lei... Mas quŕ? ╔ amoravel, generoso, dedicado, servišal, sempre com uma palavra doce, sempre com um rasgo carinhoso... E por isso todos o amam, e nŃo sei mesmo, Deus me perd˘e, se Deus tambem o nŃo prefere... A curta mŃo que acenßra para o ceu, recahiu sobre o cabo d'osso do guarda-sol. Depois, e cˇrado com a temeridade de pensamento tŃo espiritual acudiu cautelosamente: --Que esta nŃo Ú propriamente doutrina da Egreja!... Mas anda nas almas; anda jß em muitas almas. EntŃo JoŃo Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra e teso na estrada, com o c˘co ß banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que estabelecia um resumo: --Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonšalo Mendes. E sabem vocŕs, sabe o Snr. Padre Sueiro quem elle me lembra? --Quem? --Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhanša. Aquelle todo de Gonšalo, a franqueza, a došura, a bondade, a immensa bondade, que notou o Snr. Padre Sueiro... Os fogachos e enthusiasmos, que acabam logo em fumo, e juntamente muita persistencia, muito aferro quando se fila ß sua ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos negocios, e sentimentos de muita honra, uns escrupulos, quasi pueris, nŃo Ú verdade?... A imaginašŃo que o leva sempre a exaggerar atÚ ß mentira, e ao mesmo tempo um espirito pratico, sempre attento ß realidade util. A viveza, a facilidade em comprehender, em apanhar... A esperanša constante n'algum milagre, no velho milagre d'Ourique, que sanarß todas as difficuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de luzir, e uma simplicidade tŃo grande, que dß na rua o brašo a um mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tŃo palrador, tŃo sociavel. A desconfianša terrivel de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, atÚ que um dia se decide, e apparece um heroe, que tudo arrasa... AtÚ aquella antiguidade de raša, aqui pegada ß sua velha Torre, ha mil annos... AtÚ agora aquelle arranque para a Africa... Assim todo completo, com o bem, com o mal, sabem vocŕs quem elle me lembra? --Quem?... --Portugal. Os tres amigos retomaram o caminho de Villa-Clara. No ceu branco uma estrellinha tremeluzia sobre Santa Maria de Craquŕde. E Padre Sueiro, com o seu guarda-sol sob o brašo, recolheu ß Torre vagarosamente, no silencio e došura da tarde, resando as suas AvŔ-Marias, e pedindo a paz de Deus para Gonšalo, para todos os homens, para campos e casaes adormecidos, e para a terra formosa de Portugal, tŃo cheia de graša amoravel, que sempre bemdita fosse entre as terras. FIM * * * * * A revisŃo das provas d'este livro, desde paginas 417 atÚ ß conclusŃo, nŃo foi feita pelo Auctor. Entretanto seguiu-se ß risca o original. End of Project Gutenberg's A Illustre Casa de Ramires, by Eša de Queiroz *** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A ILLUSTRE CASA DE RAMIRES *** ***** This file should be named 23145-8.txt or 23145-8.zip ***** This and all associated files of various formats will be found in: http://www.gutenberg.org/2/3/1/4/23145/ Produced by Rita Farinha and the Online Distributed Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was produced from images generously made available by National Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).) Updated editions will replace the previous one--the old editions will be renamed. Creating the works from public domain print editions means that no one owns a United States copyright in these works, so the Foundation (and you!) can copy and distribute it in the United States without permission and without paying copyright royalties. Special rules, set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you do not charge anything for copies of this eBook, complying with the rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose such as creation of derivative works, reports, performances and research. They may be modified and printed and given away--you may do practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is subject to the trademark license, especially commercial redistribution. *** START: FULL LICENSE *** THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free distribution of electronic works, by using or distributing this work (or any other work associated in any way with the phrase "Project Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project Gutenberg-tm License (available with this file or online at http://gutenberg.org/license). Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm electronic works 1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to and accept all the terms of this license and intellectual property (trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession. If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8. 1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be used on or associated in any way with an electronic work by people who agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works even without complying with the full terms of this agreement. See paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic works. See paragraph 1.E below. 1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation" or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the collection are in the public domain in the United States. If an individual work is in the public domain in the United States and you are located in the United States, we do not claim a right to prevent you from copying, distributing, performing, displaying or creating derivative works based on the work as long as all references to Project Gutenberg are removed. Of course, we hope that you will support the Project Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with the work. You can easily comply with the terms of this agreement by keeping this work in the same format with its attached full Project Gutenberg-tm License when you share it without charge with others. 1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in a constant state of change. If you are outside the United States, check the laws of your country in addition to the terms of this agreement before downloading, copying, displaying, performing, distributing or creating derivative works based on this work or any other Project Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning the copyright status of any work in any country outside the United States. 1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg: 1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed, copied or distributed: This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included with this eBook or online at www.gutenberg.org 1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived from the public domain (does not contain a notice indicating that it is posted with permission of the copyright holder), the work can be copied and distributed to anyone in the United States without paying any fees or charges. If you are redistributing or providing access to a work with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted with the permission of the copyright holder, your use and distribution must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the permission of the copyright holder found at the beginning of this work. 1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm License terms from this work, or any files containing a part of this work or any other work associated with Project Gutenberg-tm. 1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this electronic work, or any part of this electronic work, without prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with active links or immediate access to the full terms of the Project Gutenberg-tm License. 1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary, compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any word processing or hypertext form. However, if you provide access to or distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than "Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org), you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm License as specified in paragraph 1.E.1. 1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying, performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9. 1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided that - You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method you already use to calculate your applicable taxes. The fee is owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he has agreed to donate royalties under this paragraph to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments must be paid within 60 days following each date on which you prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax returns. Royalty payments should be clearly marked as such and sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the address specified in Section 4, "Information about donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation." - You provide a full refund of any money paid by a user who notifies you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm License. You must require such a user to return or destroy all copies of the works possessed in a physical medium and discontinue all use of and all access to other copies of Project Gutenberg-tm works. - You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the electronic work is discovered and reported to you within 90 days of receipt of the work. - You comply with all other terms of this agreement for free distribution of Project Gutenberg-tm works. 1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm electronic work or group of works on different terms than are set forth in this agreement, you must obtain permission in writing from both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the Foundation as set forth in Section 3 below. 1.F. 1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread public domain works in creating the Project Gutenberg-tm collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic works, and the medium on which they may be stored, may contain "Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by your equipment. 1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all liability to you for damages, costs and expenses, including legal fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH DAMAGE. 1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a written explanation to the person you received the work from. If you received the work on a physical medium, you must return the medium with your written explanation. The person or entity that provided you with the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a refund. If you received the work electronically, the person or entity providing it to you may choose to give you a second opportunity to receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy is also defective, you may demand a refund in writing without further opportunities to fix the problem. 1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE. 1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages. If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any provision of this agreement shall not void the remaining provisions. 1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance with this agreement, and any volunteers associated with the production, promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works, harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees, that arise directly or indirectly from any of the following which you do or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause. Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of electronic works in formats readable by the widest variety of computers including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from people in all walks of life. Volunteers and financial support to provide volunteers with the assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will remain freely available for generations to come. In 2001, the Project Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations. To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4 and the Foundation web page at http://www.pglaf.org. Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit 501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent permitted by U.S. federal laws and your state's laws. The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S. Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered throughout numerous locations. Its business office is located at 809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email [email protected]. Email contact links and up to date contact information can be found at the Foundation's web site and official page at http://pglaf.org For additional contact information: Dr. Gregory B. Newby Chief Executive and Director [email protected] Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide spread public support and donations to carry out its mission of increasing the number of public domain and licensed works that can be freely distributed in machine readable form accessible by the widest array of equipment including outdated equipment. Many small donations ($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt status with the IRS. The Foundation is committed to complying with the laws regulating charities and charitable donations in all 50 states of the United States. Compliance requirements are not uniform and it takes a considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up with these requirements. We do not solicit donations in locations where we have not received written confirmation of compliance. To SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any particular state visit http://pglaf.org While we cannot and do not solicit contributions from states where we have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition against accepting unsolicited donations from donors in such states who approach us with offers to donate. International donations are gratefully accepted, but we cannot make any statements concerning tax treatment of donations received from outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff. Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation methods and addresses. Donations are accepted in a number of other ways including checks, online payments and credit card donations. To donate, please visit: http://pglaf.org/donate Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic works. Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm concept of a library of electronic works that could be freely shared with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support. Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S. unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily keep eBooks in compliance with any particular paper edition. Most people start at our Web site which has the main PG search facility: http://www.gutenberg.org This Web site includes information about Project Gutenberg-tm, including how to make donations to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.

114,774 words • 1912h 54m read

— End of A Illustre Casa de Ramires —

Book Information

Title
A Illustre Casa de Ramires
Author(s)
Queirós, Eça de
Language
Portuguese
Type
Text
Release Date
October 22, 2007
Word Count
114,774 words
Library of Congress Classification
PQ
Bookshelves
PT Romance, Browsing: Literature, Browsing: Fiction
Rights
Public domain in the USA.