The Project Gutenberg EBook of A Illustre Casa de Ramires, by Eša de Queiroz
This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org
Title: A Illustre Casa de Ramires
Author: Eša de Queiroz
Release Date: October 22, 2007 [EBook #23145]
Language: Portuguese
Character set encoding: ISO-8859-1
*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A ILLUSTRE CASA DE RAMIRES ***
Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was
produced from images generously made available by National
Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
Eša de Queiroz
A Illustre Casa de Ramires
PORTO
LIVRARIA CHARDRON
De Lello & IrmŃo, editores
1900
Pertence no Brazil o direito de propriedade d'esta obra ao cidadŃo
Francisco Alves, livreiro editor no Rio de Janeiro, que, para a garantia
que lhe offerece a lei n.^o 496 de 1 d'Agosto de 1898, fez o competente
deposito na Bibliotheca nacional, segundo a determinašŃo do art. 13.^o
da mesma Lei.
* * * * *
_Porto_--_Imprensa Moderna_
A ILLUSTRE CASA DE RAMIRES
Obras do mesmo auctor:
*Revista de Portugal*. 4 grossos volumes 12$000
*As Minas de SalomŃo*, 1 volume 600
*Os Maias*. 2 grossos volumes 2$000
*O Crime do Padre Amaro*. Terceira edišŃo
inteiramente refundida, recomposta, e
differente na fˇrma e na acšŃo da edišŃo
primitiva, 1 grosso volume 1$200
*O Primo Bazilio*. Terceira edišŃo, 1 grosso
volume. 1$000
*A Reliquia*, 1 grosso volume 1$000
*O Mandarim*. Quarta edišŃo, 1 volume 500
*Correspondencia de Fradique Mendes*, 1 volume 600
No prelo:
*A Cidade e as Serras.*
A ILLUSTRE CASA DE RAMIRES
I
Desde as quatro horas da tarde, no calor e silencio do domingo de Junho,
o Fidalgo da Torre, em chinellos, com uma quinzena de linho envergada
sobre a camisa de chita c˘r de rosa, trabalhava. Gonšalo Mendes Ramires
(que n'aquella sua velha aldŕa de Santa Ireneia, e na villa visinha, a
aceada e vistosa Villa-Clara, e mesmo na cidade, em Oliveira, todos
conheciam pelo źFidalgo da Torre╗) trabalhava n'uma Novella Historica,
_A Torre de D. Ramires_, destinada ao primeiro numero dos *Annaes de
Litteratura e de Historia*, Revista nova, fundada por JosÚ Lucio
Castanheiro, seu antigo camarada de Coimbra, nos tempos do Cenaculo
Patriotico, em casa das Severinas.
A livraria, clara e larga, escaiolada d'azul, com pesadas estantes de
pau preto onde repousavam, no pˇ e na gravidade das lombadas de
carneira, grossos folios de convento e de f˘ro, respirava para o pomar
por duas janellas, uma de peitoril e poiaes de pedra almofadados de
velludo, outra mais rasgada, de varanda, frescamente perfumada pela
madresilva que se enroscava nas grades. Deante d'essa varanda, na
claridade forte, pousava a mesa--mesa immensa de pÚs torneados, coberta
com uma colcha desbotada de damasco vermelho, e atravancada n'essa tarde
pelos rijos volumes da _Historia Genealogica_, todo o _Vocabulario_ de
Bluteau, tomos soltos do _Panorama_, e ao canto, em pilha, as obras de
Walter Scott sustentando um copo cheio de cravos amarellos. E d'ahi, da
sua cadeira de couro, Gonšalo Mendes Ramires, pensativo deante das tiras
de papel almašo, rošando pela testa a rama da penna de pato, avistava
sempre a inspiradora da sua Novella,--a Torre, a antiquissima Torre,
quadrada e negra sobre os limoeiros do pomar que em redor crescera, com
uma pouca d'hera no cunhal rachado, as fundas frestas gradeadas de
ferro, as ameias e a miradoira bem cortadas no azul de Junho, robusta
sobrevivencia do Pašo acastellado, da fallada Honra de Santa Ireneia,
solar dos Mendes Ramires desde os meiados do seculo X.
Gonšalo Mendes Ramires (como confessava esse severo genealogista, o
morgado de Cidadelhe) era certamente o mais genuino e antigo fidalgo de
Portugal. Raras familias, mesmo coevas, poderiam trašar a sua
ascendencia, por linha varonil e sempre pura, atÚ aos vagos Senhores que
entre Douro e Minho mantinham castello e terra murada quando os bar§es
francos desceram, com pendŃo e caldeira, na hoste do BorguinhŃo. E os
Ramires entroncavam limpidamente a sua casa, por linha pura e sempre
varonil, no filho do Conde Nuno Mendes, aquelle agigantado Ordonho
Mendes, senhor de Treixedo e de Santa Ireneia, que casou em 967 com Dona
Elduara, Condessa de Carrion, filha de Bermudo o _Gottoso_, Rei de LeŃo.
Mais antigo na Hespanha que o Condado Portucalense, rijamente, como
elle, crescera e se afamßra o Solar de Santa Ireneia--resistente como
elle ßs fortunas e aos tempos. E depois, em cada lance forte da Historia
de Portugal, sempre um Mendes Ramires avultou grandiosamente pelo
heroismo, pela lealdade, pelos nobres espiritos. Um dos mais esforšados
da linhagem, Lourenšo, por alcunha o _Cortador_, collašo de Affonso
Henriques (com quem na mesma noite, para receber a pranchada de
cavalleiro, vellßra as armas na SÚ de Zamora), apparece logo na batalha
d'Ourique, onde tambem avista Jesus-Christo sobre finas nuvens d'ouro,
pregado n'uma cruz de dez covados. No cerco de Tavira, Martim Ramires,
freire de San-Thiago, arromba a golpes de acha um postigo da Couraša,
rompe por entre as cimitarras que lhe decepam as duas mŃos, e surde na
quadrella da torre albarran, com os dous pulsos a esguichar sangue,
bradando alegremente ao Mestre:--źD. Payo Peres, Tavira Ú nossa! Real,
Real por Portugal!╗ O velho Egas Ramires, fechado na sua Torre, com a
levadiša erguida, as barbacans errišadas de frecheiros, nega acolhida a
El-Rei D. Fernando e Leonor Telles que corriam o Norte em folgares e
cašadas--para que a presenša da _adultera_ nŃo macule a pureza extreme
do seu solar! Em Aljubarrota, Diogo Ramires o _Trovador_ desbarata um
trošo de bÚsteiros, mata o Adiantado-mˇr de Galliza, e por elle, nŃo por
outro, cahe derribado o pendŃo real de Castella, em que ao fim da lide
seu irmŃo d'armas, D. AntŃo d'Almada, se embrulhou para o levar,
danšando e cantando, ao Mestre d'Aviz. Sob os muros d'Arzilla combatem
magnificamente dois Ramires, o edoso Sueiro e seu neto FernŃo, e deante
do cadaver do velho, trespassado por quatro virotes, estirado no pateo
da Alcašova ao lado do corpo do Conde de Marialva--Affonso V arma
juntamente cavalleiros o Principe seu filho e FernŃo Ramires, murmurando
entre lagrimas: źDeus vos queira tŃo bons como esses que ahi jazem!...╗
Mas eis que Portugal se faz aos mares! E raras sŃo entŃo as armadas e os
combates de Oriente em que se nŃo esforce um Ramires--ficando na lenda
tragico-maritima aquelle nobre capitŃo do Golpho Persico, Balthazar
Ramires, que, no naufragio da _Santa Barbara_, reveste a sua pesada
armadura, e no castello de pr˘a, hirto, se afunda em silencio com a nßu
que se afunda, encostado ß sua grande espada. Em Alcacer-Kebir, onde
dous Ramires sempre ao lado d'El-Rei encontram morte soberba, o mais
novo, Paulo Ramires, pagem do GuiŃo, nem lezo nem ferido, mas nŃo
querendo mais vida pois que El-Rei nŃo vivia, colhe um ginete solto,
apanha uma acha d'armas, e gritando:--źVai-te, alma, que jß tardas,
servir a de teu senhor!╗--entra na chusma mourisca e para sempre
desapparece. Sob os Philippes, os Ramires, amuados, bebem e cašam nas
suas terras. Reapparecendo com os Braganšas, um Ramires, Vicente,
Governador das Armas d'Entre-Douro e Minho por D. JoŃo IV, mette a
Castella, destroša os Hespanhoes do Conde, de Venavente, e toma
Fuente-Gui˝al, a cujo furioso saque preside da varanda d'um Convento de
Franciscanos, em mangas de camisa, comendo talhadas de melancia. Jß,
porÚm, como a našŃo, degenera a nobre raša... Alvaro Ramires, valido de
D. Pedro II, brigŃo fašanhudo, atord˘a Lisboa com arruašas, furta a
mulher d'um VÚdor da Fazenda que mandßra matar a pauladas por pretos,
incendeia em Sevilha depois de perder cem dobr§es uma casa de tavolagem,
e termina por commandar uma urca de piratas na frota de Murad o
_Maltrapilho_. No reinado do Sr. D. JoŃo V Nuno Ramires brilha na C˘rte,
ferra as suas mulas de prata, e arruina a casa celebrando sumptuosas
festes de Egreja, em que canta no c˘ro vestido com o habito de IrmŃo
Terceiro de S. Francisco. Outro Ramires, Christovam, Presidente da Mesa
de Consciencia e Ordem, alcovita os amores d'el-rei D. JosÚ I com a
filha do prior de Sacavem. Pedro Ramires, Provedor e Feitor-mˇr das
Alfandegas, ganha fama em todo o Reino pela sua obesidade, a sua
chalaša, as suas proezas de glutŃo no Pašo da Bemposta com o arcebispo
de Thessalonica. Ignacio Ramires acompanha D. JoŃo VI ao Brazil como
Reposteiro-Mˇr, negoceia em negros, volta com um bah˙ carregado de pešas
d'ouro que lhe rouba um administrador, antigo frade capuchinho, e morre
no seu solar da cornada de um boi. O av˘ de Gonšalo, DamiŃo, doutor
liberal dado ßs Musas, desembarca com D. Pedro no Mindello, comp§e as
empoladas proclamaš§es do Partido, funda um jornal, o _Anti-Frade_, e
depois das Guerras Civis arrasta uma existencia rheumatica em Santa
Ireneia, embrulhado no seu capotŃo de briche, traduzindo para vernaculo,
com um lexicon e um pacote de simonte, as obras de Valerius Flaccus. O
pae de Gonšalo, ora Regenerador, ora Historico, vivia em Lisboa no Hotel
Universal, gastando as solas pelas escadarias do Banco Hypothecario e
pelo lagedo da Arcada, atÚ que um Ministro do Reino, cuja concubina,
corista de S. Carlos, elle fascinßra, o nomeou, (para o afastar da
Capital) Governador Civil de Oliveira. Gonšalo, esse, era bacharel
formado com um R no terceiro anno.
E n'esse anno justamente se estreou nas Lettras Gonšalo Mendes Ramires.
Um seu companheiro de casa, JosÚ Lucio Castanheiro, algarvio muito
magro, muito macilento, de enormes oculos azues, a quem SimŃo Craveiro
chamava o źCastanheiro Patriotinheiro╗, fundßra um Semanario, a
*Patria*--źcom o alevantado intento (affirmava sonoramente o Prospecto)
de despertar, nŃo sˇ na mocidade Academica, mas em todo o paiz, do cabo
Silleiro ao cabo de Santa Maria, o amor tŃo arrefecido das bellezas, das
grandezas e das glorias de Portugal!╗ Devorado por essa idÚa, źa sua
IdÚa╗, sentindo n'ella uma carreira, quasi uma missŃo, Castanheiro
incessantemente, com ardor teimoso de Apostolo, clamava pelos botequins
da Sophia, pelos claustros da Universidade, pelos quartos dos amigos
entre a fumaša dos cigarros,--źa necessidade, caramba, de reatar a
tradišŃo! de desatulhar, caramba, Portugal da alluviŃo do
estrangeirismo!╗--Como o Semanario appareceu regularmente durante tres
Domingos, e publicou realmente estudos recheiados de griphos e citaš§es
sobre as _Capellas da Batalha_, a _Tomada d'Ormuz_, a _Embaixada de
TristŃo da Cunha_, comešou logo a ser considerado uma aurora, ainda
pallida mas segura, de Renascimento Nacional. E alguns bons espiritos da
Academia, sobretudo os companheiros de casa do Castanheiro, os tres que
se occupavam das cousas do saber e da intelligencia (porque dos tres
restantes um era homem de cacete e foršas, o outro guitarrista, e o
outro źpremiado╗), passaram, aquecidos por aquella chamma patriotica, a
esquadrinhar na Bibliotheca, nos grossos tomos nunca d'antes visitados
de Fernam Lopes, de Ruy de Pina, d'Azurara, proezas e lendas--źsˇ
portuguezas, sˇ nossas (como supplicava o Castanheiro), que refizessem ß
našŃo abatida uma consciencia da sua heroicidade!╗ Assim crescia o
Cenaculo Patriotico da casa das Severinas. E foi entŃo que Gonšalo
Mendes Ramires, mošo muito affavel, esvelto e loiro, d'uma brancura sŃ
de porcelana, com uns finos e risonhos olhos que facilmente se
enterneciam, sempre elegante e apurado na batina e no verniz dos
sapatos--apresentou ao Castanheiro, n'um domingo depois do almošo, onze
tiras de papel intituladas _D. Guiomar_. N'ellas se contava a velhissima
historia da castellŃ, que, emquanto longe nas guerras do Ultra-mar o
castellŃo barbudo e cingido de ferro atira a acha-d'armas ßs portas de
Jerusalem, recebe ella na sua camara, com os brašos n˙s, por noite de
Maio e de lua, o pagem de annellados cabellos... Depois ruge o inverno,
o castellŃo volta, mais barbudo, com um bordŃo de romeiro. Pelo villico
do Castello, homem espreitador e de amargos sorrisos, conhece a traišŃo,
a macula no seu nome tŃo puro, honrado em todas as Hespanhas! E ai do
pagem! ai da dama! Logo os sinos tangem a finados. Jß no patim da
Alcašova o verdugo, de capuz escarlate, espera, encostado ao machado,
entre dous cepos cobertos de pannos de dˇ... E no final choroso da _D.
Guiomar_, como em todas essas historias do Romanceiro d'Amor, tambem
brotavam rente ßs duas sepulturas, escavadas no ŕrmo, duas roseiras
brancas a que o vento enlašava os aromas e as rosas. De sorte que (como
notou JosÚ Lucio Castanheiro, cošando pensativamente o queixo) nŃo
resaltava n'esta _D. Guiomar_ nada que fosse źsˇ portuguez, sˇ nosso,
abrolhando do sˇlo e da raša!╗ Mas esses amores lamentosos passavam n'um
solar de Riba-C˘a: os nomes dos cavalleiros, Remarigues, Ordonho,
Froylas, Gutierres, tinham um delicioso sabor godo: em cada tira
resoavam bravamente os genuinos: ź_BofÚ!... Mentes pela gorja!...
Pagem, o meu murzello!_...╗: e atravÚs de toda esta vernaculidade
circulava uma sufficiente turba de cavallarišos com saios alvadios,
beguinos sumidos na sombra das cugulas, ovenšaes sopezando fartas bolsas
de couro, uch§es espostejando nedios lombos de cŕrdo... A Novella
portanto marcava um salutar retrocesso ao sentimento nacional.
--E depois (accrescentava o Castanheiro) este velhaco do Gonšalinho
surde com um estylo terso, masculo, de boa c˘r archaica... D'optima c˘r
archaica! Lembra atÚ o _Bobo_, o _Monge de Cister_!... A Guiomar,
realmente, Ú uma castellŃ vaga, da Bretanha ou da Aquitania. Mas no
villico, mesmo no castellŃo, jß transparecem portuguezes, bons
portuguezes de fibra e d'alma, d'entre Douro e Cavado... Sim senhor!
Quando o Gonšalinho se enfronhar dentro do nosso passado, das nossas
chronicas, temos emfim nas Lettras um homem que sente bem o torrŃo,
sente bem a raša!
_D. Guiomar_ encheu tres paginas da *Patria*. N'esse Domingo, para
celebrar a sua entrada na Litteratura, Gonšalo Mendes Ramires pagou aos
camaradas do Cenaculo e a outros amigos uma ceia--onde foi acclamado,
logo depois do frango com ervilhas, quando os mošos do Camolino,
esbaforidos, renovavam as garrafas de Collares, como źo nosso Walter
Scott!╗ Elle, de resto, annuncißra jß com simplicidade um Romance em
dois volumes, fundado nos annaes da sua Casa, n'um rude feito de sublime
orgulho de Tructesindo Mendes Ramires, o amigo e Alferes-mˇr de D.
Sancho I. Por temperamento, por aquelle saber especial de trajes e
alfaias que revelßra na _D. Guiomar_, atÚ pela antiguidade da sua
linhagem, Gonšalinho parecia gloriosamente votado a restaurar em
Portugal o Romance Historico. Possuia uma missŃo--e comešou logo a
passear pela Calšada, pensativo, com o gorro sobre os olhos, como quem
anda reconstruindo um mundo. No acto d'esse anno levou o R.
Quando regressou das ferias para o Quarto-Anno jß nŃo refervia na rua da
Mathematica o Cenaculo ardente dos Patriotas. O Castanheiro, formado,
vegetava em Villa Real de Santo Antonio: com elle desapparecera a
*Patria*: e os mošos zelosos que na Bibliotheca esquadrinhavam as
Chronicas de Fernam Lopes e de Azurara, desamparados por aquelle
Apostolo que os levantava, recahiram nos romances de Georges Ohnet e
retomaram ß noite o taco nos bilhares da Sophia. Gonšalo voltava tambem
mudado, de luto pelo pae que morrera em Agosto, com a barba crescida,
sempre affavel e suave, porÚm mais grave, averso a ceias e a noites
errantes. Tomou um quarto no Hotel Mondego, onde o servia, de gravata
branca, um velho creado de Santa Ireneia, o Bento:--e os seus
companheiros preferidos foram tres ou quatro rapazes que se preparavam
para a Politica, folheavam attentamente o _Diario das Camaras_,
conheciam alguns enredos da C˘rte, proclamavam a necessidade d'uma
źOrientašŃo positiva╗ e d'um źlargo fomento rural╗, consideravam como
leviandade reles e jacobina a irreverencia da Academia pelos Dogmas, e,
mesmo passeando ao luar no Choupal ou no Penedo da Saudade, discorriam
com ardor sobre os dous Chefes de Partido--o Braz Victorino, o homem
novo dos Regeneradores, e o velho BarŃo de S. Fulgencio, chefe classico
dos Historicos. Inclinado para os Regeneradores, por que a RegenerašŃo
lhe representava tradicionalmente idÚas de conservantismo, de elegancia
culta e de generosidade, Gonšalo frequentou entŃo o Centro Regenerador
da Couraša, onde aconselhava ß noite, tomando chß preto, źo
fortalecimento da auctoridade da Cor˘a╗, e źuma forte expansŃo
colonial!╗ Depois, logo na Primavera, desmanchou alegremente esta
gravidade politica: e ainda tresnoitou, na taberna do Camolino, em
bacalhoadas festivas, entre o estridor das guitarras. Mas nŃo alludio
mais ao seu grande Romance em dous volumes: e ou recußra ou se esquecera
da sua missŃo d'Arte Historica. Realmente sˇ na Paschoa do Quinto-Anno
retomou a penna--para lanšar, na *Gazeta do Porto*, contra um seu
patricio, o Dr. AndrÚ Cavalleiro, que o Ministerio do S. Fulgencio
nomeßra Governador civil de Oliveira, duas correspondencias muito
acerbas, d'um rancor intenso e pessoal, (a ponto de chasquear źa feroz
bigodeira negra de S. Ex.^a╗). Assignara Juvenal, como outr'ora o pae,
quando publicava communicados politicos d'Oliveira n'essa mesma *Gazeta
do Porto*, jornal amigo, onde um Villar Mendes, seu remoto parente,
redigia a _Revista Estrangeira_. Mas lŕra aos amigos no Centro--źos dous
botes decisivos que atirariam o Sr. Cavalleiro abaixo do seu Cavallo!╗ E
um d'esses mošos serios, sobrinho do Bispo de Oliveira, nŃo disfaršou o
seu assombro:
--Oh Gonšalo, eu sempre pensei que vocŕ e o Cavalleiro eram intimos! Se
bem me lembro quando vocŕ chegou a Coimbra, para os Preparatorios, viveu
na casa do Cavalleiro, na rua de S. JoŃo... Pois nŃo ha uma amizade
tradicional, quasi historica, entre Ramires e Cavalleiros?... Eu pouco
conhešo Oliveira, nunca andei para os vossos sitios; mas atÚ creio que
Corinde, a quinta do Cavalleiro, pega com Santa Ireneia!
E Gonšalo enrugou a face, a sua risonha e lisa face, para declarar
seccamente que Corinde nŃo pegava com Santa Ireneia: que entre as duas
terras corria muito justificadamente a ribeira do _Coice_: e que o Sr.
AndrÚ Cavalleiro, e sobre tudo Cavallo, era um animal detestavel que
pastava na outra margem!--O sobrinho do Bispo saudou e exclamou:
--Sim senhor, boa piada!
Um anno depois da Formatura, Gonšalo foi a Lisboa por causa da hypotheca
da sua quinta de Praga, junto a Lamego, que certo f˘ro annual de dez
rÚis e meia gallinha, devido ao Abbade de Praga, andava empecendo
terrivelmente nos Conselhos do Banco Hypothecario;--e tambem para
conhecer mais estreitamente o seu Chefe, o Braz Victorino, mostrar
lealdade e submissŃo partidaria, colher algum fino conselho de conducta
Politica. Ora uma noite, voltando de jantar em casa da velha Marqueza de
Louredo, a źtia Louredo╗, que morava a Santa Clara, esbarrou no Rocio
com JosÚ Lucio Castanheiro; entŃo empregado no Ministerio da Fazenda, na
repartišŃo dos Proprios Nacionaes. Mais defecado, mais macilento, com
uns oculos mais largos e mais tenebrosos, o Castanheiro ardia todo, como
em Coimbra, na chamma da sua IdÚa--źa resurreišŃo do sentimento
portuguez!╗ E agora, alargando a proporš§es condignas da Capital o plano
da *Patria*, labutava devoradoramente na creašŃo d'uma Revista quinzenal
de setenta paginas, com capa azul, os *Annaes de Litteratura e de
Historia*. Era uma noite de Maio, macia e quente. E, passeando ambos em
torno das fontes seccas do Rocio, Castanheiro, que sobrašava um rolo de
papel e um gordo folio encadernado em bezerro, depois de recordar as
cavaqueiras geniaes da rua da Misericordia, de maldizer a falta de
intellectualidade de Villa Real de Santo Antonio--voltou soffregamente ß
sua IdÚa, e supplicou a Gonšalo Mendes Ramires que lhe cedesse para os
*Annaes* esse Romance que elle annuncißra em Coimbra, sobre o seu
avoengo Tructesindo Ramires, Alferes-mˇr de Sancho I.
Gonšalo, rindo, confessou que ainda nŃo comešßra essa grande obra!
--Ah! murmurou o Castanheiro, estacando, com os negros oculos sobre
elle, duros e desconsolados. EntŃo vocŕ nŃo persistio?... NŃo permaneceu
fiel ß IdÚa?...
Encolheu os hombros, resignadamente, jß acostumado, atravez da sua
missŃo, a estes desfallecimentos do Patriotismo. Nem consentio que
Gonšalo, humilhado perante aquella FÚ que se mantivera tŃo pura e
servid˘ra--alludisse, como desculpa, ao inventario laborioso da Casa,
depois da morte do papß...
--Bem, bem! Acabou! _Proscratinare luzitanum est_. Trabalha agora no
verŃo... Para Portuguezes, menino, o verŃo Ú o tempo das bellas fortunas
e dos rijos feitos. No verŃo nasce Nun'Alvares no Bomjardim! No verŃo se
vence em Aljubarrota! No verŃo chega o Gama ß India!... E no verŃo vae o
nosso Gonšalo escrever uma novellasinha sublime!... De resto os *Annaes*
sˇ apparecem em Dezembro, caracteristicamente no Primeiro de Dezembro. E
vocŕ em tres mezes resuscita um mundo. Serio, Gonšalo Mendes!... ╔ um
dever, um santo dever, sobretudo para os novos, collaborar nos *Annaes*.
Portugal, menino, morre por falta de sentimento nacional! Nˇs estamos
immundamente morrendo do mal de nŃo ser Portuguezes!
Parou--ondeou o brašo magro, como a correia d'um latego, n'um gesto que
ašoutava o Rocio, a Cidade, toda a NašŃo. Sabia o amigo Gonšalinho o
segredo d'esta borracheira sinistra? ╔ que, dos Portuguezes, os peores
despresavam a Patria--e os melhores ignoravam a Patria. O remedio?...
Revelar Portugal, vulgarisar Portugal. Sim, amiguinho! Organizar, com
estrondo, o reclamo de Portugal, de modo que todos o conhešam--ao menos
como se conhece o Xarope Peitoral de James, hein? E que todos o
adoptem--ao menos como se adoptou o sabŃo do Congo, hein? E conhecido,
adoptado, que todos o amem emfim, nos seus herˇes, nos seus feitos,
mesmo nos seus defeitos, em todos os seus padr§es, e atÚ nas veras
pedrinhas das suas calšadas! Para esse fim, o maior a emprehender n'este
apagado seculo da nossa Historia, fundava elle os *Annaes*. Para berrar!
Para atroar Portugal, aos bramidos sobre os telhados, com a noticia
inesperada da sua grandeza! E aos descendentes dos que outr'ora fizeram
o Reino incumbia, mais que aos outros, o cuidado piedoso de o refazer...
Como? Reatando a tradišŃo, caramba!
--Assim, vocŕs! Por essa historia de Portugal fˇra, vocŕs sŃo uma
enfiada de Ramires de toda a belleza. Mesmo o desembargador, o que comeu
n'uma ceia de Natal dois leit§es!... ╔ apenas uma barriga. Mas que
barriga! Ha n'ella uma pujanša heroica que prova raša, a raša mais forte
_do que promette a forša humana_, como diz Cam§es. Dois leit§es,
caramba! AtÚ enternece!... E os outros Ramires, o de Silves, o de
Aljubarrota, os de Arzilla, os da India! E os cinco valentes, de quem
vocŕ talvez nem saiba, que morreram no Salado! Pois bem, resuscitar
estes var§es, e mostrar n'elles a alma fašanhuda, o querer sublime que
nada verga, Ú uma soberba lišŃo aos novos... Tonifica, caramba! Pela
consciencia que renova de termos sido tŃo grandes sacode este chocho
consentimento nosso em permanecermos pequenos! ╔ o que eu chamo reatar a
tradišŃo... E depois feito por vocŕ proprio, Ramires, que _chic_!
Caramba, que _chic_! ╔ um fidalgo, o maior fidalgo de Portugal, que,
para mostrar a heroicidade da Patria, abre simplesmente, sem sahir do
seu solar, os archivos da sua Casa, velha de mais de mil annos. ╔ de
rachar!... E vocŕ nŃo precisa fazer um grosso romance... Nem um romance
muito desenvolvido estß na indole militante da Revista. Basta um conto,
de vinte ou trinta paginas... Estß claro, os *Annaes* por ora nŃo podem
pagar. Tambem, vocŕ nŃo precisa! E que diabo! nŃo se trata de pecunia,
mas d'uma grande renovašŃo social... E depois, menino, a litteratura
leva a tudo em Portugal. Eu sei que o Gonšalo em Coimbra, ultimamente,
frequentava o Centro Regenerador. Pois, amigo, de folhetim em folhetim,
se chega a S. Bento! A penna agora, como a espada outr'ora, edifica
reinos... Pense vocŕ n'isto! E adeus! que ainda hoje tenho de copiar,
para lettra christŃ, este estudo do Henriques sobre CeylŃo... Vocŕ nŃo
conhece o Henriques?... NŃo conhece. Ninguem conhece. Pois quando na
Europa, n'essas grandes Academias da Europa, ha uma duvida sobre a
Historia ou a Litteratura cingaleza, gritam para cß, para o Henriques!
Abalou, agarrado ao seu rolo e ao seu tomo--e Gonšalo ainda o avistou,
na porta e claridade da tabacaria Nunes, agitando o brašo esguio
d'Apostolo deante d'um sujeito obeso, de vasto collete branco, que
recuava, com espanto, assim perturbado no quieto gozo do seu grosso
charuto e da doce noite de Maio.
O Fidalgo da Torre recolheu para o Braganša, impressionado, ruminando a
idÚa do Patriota. Tudo n'ella o seduzia--e lhe convinha: a sua
collaborašŃo n'uma Revista consideravel, de setenta paginas, em
companhia de Escriptores doutos, lentes das Escolas, antigos Ministros,
atÚ Conselheiros d'Estado: a antiguidade da sua raša, mais antiga que o
Reino, popularisada por uma historia d'heroica belleza, em que com tanto
fulgor resaltavam a bravura e a soberba d'alma dos Ramires; e emfim a
seriedade academica do seu espirito, o seu nobre gosto pelas
investigaš§es eruditas, apparecendo no momento em que tentava a carreira
do Parlamento e da Politica!... E o trabalho, a composišŃo moral dos
vetustos Ramires, a resurreišŃo archeologica do viver Affonsino, as cem
tiras de almašo a atulhar de prosa forte--nŃo o assustavam... NŃo!
porque felizmente jß possuia a źsua obra╗--e cortada em bom panno,
alinhavada com linha habil. Seu tio Duarte, irmŃo de sua mŃe (uma
senhora de GuimarŃes, da casa das Balsas), nos seus annos de ociosidade
e imaginašŃo, de 1845 a 1850, entre a sua carta de Bacharel e o seu
Alvarß de Delegado, f˘ra poeta--e publicßra no *Bardo*, semanario de
GuimarŃes, um Poemeto em verso solto, o _Castello de Santa Ireneia_, que
assignßra com duas iniciaes D.B. esse castello era o seu, o Pašo
antiquissimo de que restava a negra torre entre os limoeiros da horta. E
o Poemeto cantava, com romantico garbo, um lance de altivez feudal em
que se sublimßra Tructesindo Ramires, Alferes-mˇr de Sancho I, durante
as contendas de Affonso II e das senhoras Infantas. Esse volume do
*Bardo*, encadernado em marroquim, com o brazŃo dos Ramires, o ašor
negro em campo escarlate, ficßra no Archivo da Casa como um trecho da
Chronica heroica dos Ramires. E muitas vezes em pequeno Gonšalo
recitßra, ensinados pela mamŃ, os primeiros versos do Poema, de tŃo
harmoniosa melancolia:
Na pallidez da tarde, entre a folhagem
Que o outomno amarellece...
Era com esse sombrio feito do seu vago avoengo que Gonšalo Mendes
Ramires decidira em Coimbra, quando os camaradas da *Patria* e das ceias
o acclamavam źo nosso Walter Scott╗, comp˘r um Romance moderno, d'um
realismo Úpico, em dous robustos volumes, formando um estudo ricamente
colorido da Meia-Edade Portugueza... E agora lhe servia, e com deliciosa
facilidade, para essa Novella curta e sobria, de trinta paginas, que
convinha aos *Annaes*.
No seu quarto do Braganša abrio a varanda. E debrušado, acabando o
charuto, na dormente suavidade da noite de Maio, ante a magestade
silenciosa do rio e da lua, pensava regaladamente que nem teria a
canceira d'esmiušar as chronicas e os folios massudos... Com effeito!
toda a reconstruccŃo Historica a realisßra, e solidamente, com um saber
destro, o tio Duarte. O Pašo acastellado de Santa Ireneia, com as fundas
carcovas, a torre albarran, a alcašova, a masmorra, o pharol e o balsŃo:
o velho Tructesindo, enorme, e os seus flocos de cabellos e barbas
ancestraes derramados sobre a loriga de malha; os servos mouriscos, de
surr§es de couro, cavando os regueiros da horta; os oblatos resmungando
ß lareira as _Vidas dos Santos_; os pagens jogando no campo do
tavolado--tudo resurgia, com veridico realce, no Poemeto do tio Duarte!
Ainda recordava mesmo certos lances: o truŃo ašoutado; o festim e os
uch§es que arrombavam as cubas de cerveja; a jornada de Violante Ramires
para o Mosteiro de LorvŃo...
Junto Ó fonte mourisca, entre os ulmeiros,
A cavalgada pßra...
O enrŕdo todo com a sua paixŃo de grandeza barbara, os recontros bravios
em que se saciam a punhal os rancores de raša, o heroico fallar
despedido de labios de ferro--lß estavam nos versos do titi, sonoros e
bem balanšados...
Monge, escuta! O solar de D. Ramires
Por si, e pedra a pedra se aluira,
Se jßmais um bastardo lhe pisasse,
Com sapato aviltado, as lages puras!
Na realidade sˇ lhe restava transp˘r as formas fluidas do Romantismo de
1846 para a sua prosa tersa e mascula (como confessava o Castanheiro),
de optima c˘r archaica, lembrando o _Bobo_. E era um plagio? NŃo! A
quem, com mais seguro direito do que a elle, Ramires, pertencia a
memoria dos Ramires historicos? A resurreišŃo do velho Portugal, tŃo
bella no _Castello de Santa Ireneia_, nŃo era obra individual do tio
Duarte--mas dos Herculanos, dos Rebellos, das Academias, da erudišŃo
esparsa. E, de resto, quem conhecia hoje esse Poemeto, e mesmo o
*Bardo*, delgado semanario que perpassßra, durante cinco mezes, ha
cincoenta annos, n'uma villa de Provincia?...! NŃo hesitou mais,
seduzido. E em quanto se despia, depois de beber aos goles um copo
d'agua com bicarbonato de soda, jß martellava a primeira linha do conto,
ß maneira lapidaria da _Salammb˘_:--źEra nos Pašos de Santa Ireneia, por
uma noite d'inverno, na sala alta da Alcašova...╗
Ao outro dia, procurou JosÚ Lucio Castanheiro na repartišŃo dos Proprios
Nacionaes, ß pressa,--por que, depois d'uma conferencia no Banco
Hypothecario, ainda promettera acompanhar as primas Chellas a uma
ExposišŃo de Bordados na livraria Gomes. E annunciou ao Patriota que,
positivamente, lhe assegurava para o primeiro numero dos *Annaes* a
Novella, a que jß decidira o titulo--a _Torre de D. Ramires_:
--Que lhe parece?
Deslumbrado, JosÚ Castanheiro atirou os magrissimos brašos, resguardados
pelas mangas d'alpaca, atÚ ß abobada do esguio corredor em que o
recebera:
--Sublime!... _A Torre de D. Ramires_!... O grande feito de Tructesindo
Mendes Ramires contado por Gonšalo Mendes Ramires!... E tudo na mesma
Torre! Na Torre o velho Tructesindo pratica o feito; e setecentos annos
depois, na mesma Torre, o nosso Gonšalo conta o feito! Caramba, menino,
carambissima! isso Ú que Ú reatar a tradišŃo!
* * * * *
Duas semanas depois, de volta a Santa Ireneia, Gonšalo mandou um creado
da quinta, com uma carroša, a Oliveira, a casa de seu cunhado JosÚ
Barr˘lo, casado com Gracinha Ramires, para lhe trazer da rica livraria
classica que o Barr˘lo herdßra do tio DeŃo da SÚ todos os volumes da
_Historia Genealogica_--źe (accrescentava n'uma carta) todos os
cartapacios que por lß encontrares com o titulo de źChronicas do Rei
Fulano...╗ Depois, do pˇ das suas estantes, desenterrou as obras de
Walter Scott, volumes desirmanados do _Panorama_, a _Historia_ de
Herculano, o _Bobo_, o _Monge de CistÚr_. E assim abastecido, com uma
farta rŕsma de tiras d'almašo sobre a banca, comešou a repassar o
Poemeto do tio Duarte, inclinado ainda a transp˘r para a aspereza d'uma
manhŃ de Dezembro, como mais congenere com a rudeza feudal dos seus
avˇs, aquella lusida cavalgada de donas, monges e homens d'armas que o
tio Duarte estendera, atravez d'uma suave melancolia outomnal, pelas
veigas do Mondŕgo...
Na pallidez da tarde, entre a folhagem
Que o outomno amarellece...
Mas, como era entŃo Junho e a lua crescia, Gonšalo determinou por fim
aproveitar as sensaš§es de calor, luar e arvoredos, que lhe fornecia a
aldeia--para levantar, logo ß entrada da sua Novella, o negro e immenso
Pašo de Santa Ireneia, no silencio d'uma noite d'Agosto, sob o
resplendor da lua cheia.
E jß enchera desembarašadamente, ajudado pelo *Bardo*, duas tiras,
quando uma desavenša com o seu caseiro, o Manoel Relho, que amanhava a
quinta por oitocentos mil reis de renda, veio perturbar, na fresca e
noviša inspirašŃo do seu trabalho, o Fidalgo da Torre. Desde o Natal o
Relho, que durante annos de compostura e ordem se emborrachava sempre
aos domingos com alegria e com pachorra, comešßra a tomar, tres e quatro
vezes por semana, bebedeiras desabridas, escandalosas, em que espancava
a mulher, atroava a quinta de berros, e saltava para a estrada,
esguedelhado, de varapßu, desafiando a quieta aldeia. Por fim, uma noite
em que Gonšalo, ß banca, depois do chß, laboriosamente escavava os
fossos do Pašo de Santa Ireneia--de repente a Rosa cozinheira rompeu a
gritar źAqui d'El-rei contra o Relho!╗ E, atravez dos seus brados e dos
latidos dos cŃes, uma pedra, depois outra, bateram na varanda veneravel
da livraria! Enfiado, Gonšalo Mendes Ramires pensou no revˇlver... Mas
justamente n'essa tarde o creado, o Bento, descŕra aquella sua velha e
unica arma ß cozinha para a desenferrujar e arear! EntŃo, atarantado,
correu ao quarto, que fechou ß chave, empurrando contra a porta a
commoda com tŃo desesperada anciedade que frascos de crystal, um cofre
de tartaruga, atÚ um crucifixo, tombaram e se partiram. Depois gritos e
latidos findaram no pateo--mas Gonšalo nŃo se arredou n'essa noite
d'aquelle refugio bem defendido, fumando cigarros, ruminando um furor
sentimental contra o Relho, a quem tanto perdoßra, sempre tŃo
affavelmente tratßra, e que apedrejava as vidrašas da Torre! Cŕdo, de
manhŃ convocou o Regedor; a Rosa, ainda tremula, mostrou no brašo as
marcas roxas dos dedos do Relho; e o homem, cujo arrendamento findava em
Outubro, foi despedido da quinta com a mulher, a arca e o catre.
Immediatamente appareceu um lavrador dos Bravaes, o JosÚ Casco,
respeitado em toda a freguezia pela sua seriedade e forša espantosa,
propondo ao fidalgo arrendar a Torre. Gonšalo Mendes Ramires porÚm, jß
desde a morte do pae, decidira elevar a renda a novecentos e cincoenta
mil rÚis:--e o Casco desceu as escadas, de cabeša descahida. Voltou logo
ao outro dia, repercorreu miudamente toda a quinta, esfarellou a terra
entre os dedos, esquadrinhou o curral e a adega, contou as oliveiras e
as cŕpas: e n'um esforšo, em que lhe arfaram todas as costellas,
offereceu novecentos e dez mil rÚis! Gonšalo nŃo cedia, certo da sua
equidade. O JosÚ Casco voltou ainda com a mulher; depois, n'um domingo,
com a mulher e um compadre,--e era um cošar lento do queixo rapado, umas
voltas desconfiadas em torno da eira e da horta, umas demoras sumidas
dentro da tulha, que tornavam aquella manhŃ de Junho intoleravelmente
longa ao Fidalgo, sentado n'um banco de pedra do jardim, debaixo d'uma
mimosa, com a *Gazeta do Porto*. Quando o Casco, pallido, lhe veio
offerecer novecentos e trinta mil rÚis--Gonšalo Mendes Ramires
arremessou o jornal, declarou que ia elle, por sua conta, amanhar a
propriedade, mostrar o que era um torrŃo rico, tratado pelo saber
moderno, com phosphatos, com machinas! O homem de Bravaes, entŃo,
arrancou um fundo suspiro, acceitou os novecentos e cincoenta mil reis.
┴ maneira antiga o Fidalgo apertou a mŃo ao lavrador--que entrou na
cozinha a enxugar um largo copo de vinho, esponjando na testa, nas
cordoveias rijas do pescošo, o suor anciado que o alagava.
Mas, como entulhada por estes cuidados, a veia abundante de Gonšalo
estancou--nŃo foi mais que um fio arrastado e turvo. Quando n'essa tarde
se accomodou ß banca, para contar a sala d'armas do Pašo de Santa
Ireneia por uma noite de lua--sˇ conseguiu converter servilmente n'uma
prosa aguada os versos lisos do tio Duarte, sem relŕvo que os
modernisasse, dÚsse magestade senhorial ou bellesa saudosa ßquelles
macissos muros onde o luar, deslisando atravez das rexas, salpicava
scentelhas pelas pontas das lanšas altas, e pela cimeira dos morri§es...
E desde as quatro horas, no calor e silencio do domingo de Junho,
labutava, empurrando a penna como lento arado em chŃo pedregoso,
riscando logo rancorosamente a linha que sentia deselegante e molle, ora
n'um rebolišo, a sacudir e reenfiar sob a mesa os chinellos de
marroquim, ora immovel e abandonado ß esterilidade que o travava, com os
olhos esquecidos na Torre, na sua difficillima Torre, negra entre os
limoeiros e o azul, toda envolta no piar e esvoašar das andorinhas.
Por fim, descoršoado, arrojou a penna que tŃo desastrosamente emperrßra.
E fechando na gavŕta, com uma pancada, o volume precioso do *Bardo*:
--Irra! Estou perfeitamente entupido! ╔ este calor! E depois aquelle
animal do Casco, toda a manhŃ!...
Ainda releu, cošando sombriamente a nuca, a derradeira linha rabiscada e
suja:
--ź...Na sala altaneira e larga, onde os largos e pallidos raios da
lua...╗ Larga, largos!... E os pallidos raios, os eternos _pallidos
raios_!... Tambem este maldito castello, tŃo complicado!... E este D.
Tructesindo, que eu nŃo apanho, tŃo antigo!... Emfim, um horror!
Atirou, n'um repellŃo, a cadeira de couro; cravou, com furor, um charuto
nos dentes;--e abalou da livraria, batendo desesperadamente a porta,
n'um tedio immenso da sua obra, d'aquelles confusos e enredados Pašos de
Santa Ireneia, e dos seus avˇs, enormes, resoantes, chapeados de ferro,
e mais vagos que fumos.
II
Bocejando, apertando os cord§es das largas pantalonas de seda que lhe
escorregavam da cinta, Gonšalo, que durante todo o dia preguišßra,
estirado no divan de damasco azul, com uma vaga d˘r nos rins, atravessou
languidamente o quarto para espreitar, no corredor, o antigo relogio de
charŃo. Cinco horas e meia!... Para desannuviar, pensou n'uma caminhada
pela fresca estrada dos Bravaes. Depois n'uma visita (devida jß desde a
Paschoa!) ao velho Sanches Lucena, eleito novamente deputado, nas
Eleiš§es Geraes de Abril, pelo circulo de Villa Clara. Mas a jornada ß
_Feitosa_, ß quinta do Sanches Lucena, demandava uma hora a cavallo,
desagradavel com aquella teimosa d˘r nos rins que o filßra na vespera ß
noite, depois do chß, na Assembleia da Villa. E, indeciso, arrastava os
passos no corredor, para gritar ao Bento ou ß Rosa que lhe subissem uma
limonada, quando, atravez das varandas abertas, resoou um vozeirŃo de
grosso metal, que gracejando mais se engrossava, rolava pelo pateo,
n'uma cadencia cava de malho malhando:
--Oh s˘ Gonšalo! Oh s˘ GonšalŃo! Oh s˘ Gonšalissimo Mendes Ramires!...
Reconheceu logo o _Titˇ_, o Antonio Villalobos, seu vago parente, e seu
companheiro de Villa Clara, onde aquelle homenzarrŃo excellente, de
velha raša Alemtejana, se estabelecera sem motivo, sˇ por affeišŃo
bucolica ß villa. E havia onze annos que a atulhava com os seus
possantes membros, o lento rebombo do seu vozeirŃo, e a sua ociosidade
espalhada pelos bancos, pelas esquinas, pelas ombreiras das lojas, pelos
balc§es das tabernas, pelas sachristias a caturrar com os padres, atÚ
pelo cemiterio a philosophar com o coveiro. Era um irmŃo do velho
morgado de Cidadelhe (o genealogista), que lhe estabelecŕra uma mesada
de oito moedas para o conservar longe de Cidadelhe--e do seu sujo
serralho de mošas do campo, e da obra tenebrosa a que agora se
atrellßra, a _Veridica InquirišŃo_, uma InquirišŃo sobre as bastardias,
crimes e titulos illegitimos das familias fidalgas de Portugal. E
Gonšalo, desde estudante, amßra sempre aquelle Hercules bonacheirŃo, que
o seduzia pela prodigiosa forša, a incomparavel potencia em beber todo
um pipo e em comer todo um anho, e sobretudo pela independencia, uma
suprema independencia, que, apoiada ao bengalŃo terrifico e com as suas
oito moedas dentro da algibeira, nada temia e nada desejava nem da Terra
nem do CÚo.--Logo debrušado na varanda, gritou:
--Oh Titˇ, sˇbe!... Sˇbe emquanto eu me visto. Tomas um calice de
genebra... Vamos depois passear atÚ aos Bravaes...
Sentado no rebordo do tanque redondo e sem agua que ornava o pateo,
erguendo para o casarŃo a sua franca e larga face requeimada, cheia de
barba ruiva, o Titˇ movia lentamente como um leque um velho chapÚo de
palha:
--NŃo posso... Ouve lß! Tu queres hoje ß noite cear no Gago, commigo e
com o JoŃo Gouveia? Vae tambem o Videirinha e o violŃo. Temos uma tainha
assada, uma famosa. E enorme, que eu comprei esta manhŃ a uma mulher da
Costa por cinco tost§es. Assada pelo Gago!... Entendido, hein? O Gago
abre pipa nova de vinho, do Abbade de Chandim. Eu conhešo o vinho. ╔
d'aqui, da ponta fina.
E Titˇ, com dous dedos, delicadamente, sacudio a ponta molle da orelha.
Mas Gonšalo, repuxando as pantalonas, hesitava:
--Homem, eu ando com o estomago arrazado... E desde hontem ß noite uma
d˘r nos rins, ou no figado, ou no bašo, nŃo sei bem, n'uma d'essas
entranhas!... AtÚ hoje, para o jantar, sˇ caldo de gallinha e gallinha
cosida... Emfim! vß! Mas, ß cautela, recommenda ao Gago que me prepare
para mim um franguinho assado... Onde nos encontramos? Na AssemblÚa?
O Titˇ despegßra logo do tanque, pousando na nuca o chapÚo de palha:
--Hoje nŃo me gasto pela AssemblÚa. Tenho senhora. Das dez para as dez e
meia, no Chafariz... Vae tambem o Videirinha com a viola. Viva!... Das
dez para as dez e meia! Entendido... E franguinho assado para S. Ex.^a,
que se queixa do rim!
E atravessou o pateo, com lentidŃo bovina, parando a colher n'uma
roseira, junto ao portŃo, uma rosa com que florio a quinzena de
velludilho c˘r d'azeitona.
Immediatamente Gonšalo decidira nŃo jantar, certo dos beneficios
d'aquelle jejum atÚ ßs dez horas, depois de um passeio pelos Bravaes e
pelo valle da Riosa. E, antes de entrar no quarto para se vestir,
empurrou a porta envidrašada sobre a escura escada da cozinha, gritou
pela Rosa cozinheira. Mas nem a boa velha, nem o Bento por quem tambem
berrou furiosamente, responderam, no pesado silencio em que jaziam, como
abandonados, esses sombrios fundos de grande lage e de grande abobada
que restavam do antigo Palacio, restaurado por Vicente Ramires depois da
sua campanha em Castella, incendiado no tempo de El-Rei D. JosÚ I. EntŃo
Gonšalo desceu dous degrßos da gasta escadaria de pedra e atirou outro
dos longos brados com que atroava a Torre--desde que as campainhas
andavam desmanchadas. E descia ainda para invadir a cozinha quando a
Rosa acudio. Sahira para o pateo da horta com a filha da Crispola! nŃo
sentira o Snr. Doutor!...
--Pois estou a berrar ha uma hora! E nem vocŕ nem Bento!... ╔ por que
nŃo janto. Vou cear a Villa Clara com os amigos.
A Rosa, do sonoro fundo do corredor, protestou, desolada. Pois o Sr.
Doutor ficava assim em jejum atÚ horas da noite?--Filha d'um antigo
hortelŃo da Torre, crescida na Torre, jß cozinheira da Torre quando
Gonšalo nascŕra, sempre o tratßra por źmenino╗, e mesmo por źseu
riquinho╗ atÚ que elle partio para Coimbra e comešou a ser, para ella e
para o Bento, o źSr. Doutor╗.--E o Sr. Doutor, ao menos, devia tomar o
caldinho de gallinha, que apurßra desde o meio dia, cheirava que nem
feito no cÚo!
Gonšalo, que nunca discordava da Rosa ou do Bento, consentio--e jß
subia, quando reclamou ainda a Rosa para se informar da Crispola, uma
desgrašada viuva que, com um rancho faminto de crianšas, adoecera pela
Paschoa de febres perniciosas.
--A Crispola vae melhor, Sr. Doutor. Jß se levanta. Diz a pequena que jß
se levanta... Mas muito derreadinha...
Gonšalo desceu logo outro degrßo, debrušado na escada, para mergulhar
mais confidencialmente n'aquellas tristezas:
--Olhe, oh Rosa, entŃo se a pequena ahi estß, coitada, que leve para
casa ß mŃe a gallinha que eu tinha para jantar. E o caldo... Que leve a
panella! Eu tomo uma chavena de chß com biscoitos. E olhe! Mande tambem
dez tost§es ß Crispola... Mande dois mil rÚis. Escute! Mas nŃo lhe mande
a gallinha e o dinheiro assim seccamente... Diga que estimo as melhoras,
e que lß passarei por casa para saber. E esse animal do Bento que me
suba agua quente!
No quarto, em mangas de camisa, deante do espelho, um immenso espelho
rolando entre columnas douradas, estudou a lingua que lhe parecia
saburrosa, depois o branco dos olhos, receiando a amarellidŃo de bilis
solta. E terminou por se contemplar na sua feišŃo nova, agora que rapßra
a barba em Lisboa, conservando o bigodinho castanho, frisado e leve, e
uma m˘sca um pouco longa, que lhe alongava mais a face aquilina e fina,
sempre d'uma brancura de nata. O seu desconsolo era o cabello, bem
ondeado, mas tenue e fraco, e, apezar de todas as aguas e pomadas,
necessitando jß risca mais elevada, quasi ao meio da testa clara.
--╔ infernal! Aos trinta annos estou calvo...
E todavia nŃo se despegava do espelho, n'uma contemplašŃo agradada,
recordando mesmo a recommendašŃo da tia Louredo, em Lisboa:--źOh
sobrinho! o menino, assim galante e esperto, nŃo se enterre na
provincia! Lisboa estß sem rapazes. Precisamos cß um bom Ramires!╗--NŃo!
nŃo se enterraria na provincia, immovel sob a hera e a poeira
melancolica das cousas immoveis, como a sua Torre!... Mas vida elegante
em Lisboa, entre a sua parentella historica, como a aguentaria com o
conto e oitocentos mil reis de renda que lhe restava, pagas as dividas
do papß? E depois realmente vida em Lisboa sˇ a desejava com uma posišŃo
politica,--cadeira em S. Bento, influencia intellectual no seu Partido,
lentas e seguras avanšadas para o Poder. E essa, tŃo docemente sonhada
em Coimbra, nas faceis cavaqueiras do Hotel Mondego,--muito remota a
entrevia! Quasi inconquistavel, para alÚm de um muro alto e aspero, sem
porta e sem fenda!... Deputado--como? Agora, com o horrendo S. Fulgencio
e os Historicos no Ministerio durante tres gordos annos, nŃo voltariam
Eleiš§es Geraes. E mesmo n'alguma EleišŃo Supplementar que possibilidade
lograria elle, que, desde Coimbra, bem levianamente, arrastado por uma
elegancia de tradiš§es, se manifestßra sempre Regenerador, no źCentro╗
da Couraša, nas correspondencias para a *Gazeta do Porto*, nas verrinas
ardentes contra o chefe do Districto, o Cavalleiro detestavel?... Agora
sˇ lhe restava esperar. Esperar, trabalhando; ganhando em consistencia
social; edificando com sagacidade, sobre a base do seu immenso nome
historico, uma pequenina nomeada politica; tecendo e estendendo a malha
preciosa das amizades partidarias desde Santa Ireneia atÚ ao Terreiro do
Pašo... Sim! eis a theoria explendida:--mas consistencia, nomeada,
affeiš§es politicas, como se conquistam? źAdvogue, escreva nos jornaes!╗
f˘ra o conselho distrahido e risonho do seu chefe, o Braz Victorino.
Advogar em Oliveira, mesmo em Lisboa? NŃo podia, com aquelle seu horror
ingenito, quasi physiologico, a autos e papelada forense. Fundar um
jornal em Lisboa como o Ernesto Rangel, seu companheiro de Coimbra no
Hotel Mondego? Era fašanha facil para o neto adorado da Snr.^a D.
Joaquina Rangel que armazenava dez mil pipas de vinho nos barrac§es de
Gaia. Batalhar n'um jornal de Lisboa? N'essas semanas de Capital, sempre
pelo Banco Hypothecario, sempre com as źprimas╗, nem formßra relaš§es
duraveis e uteis nos dous grandes Diarios Regeneradores, a _ManhŃ_ e a
_Verdade_... De sorte que, realmente, n'esse muro que o separava da
fortuna sˇ descobria um buraquinho, bem apertado mas servišal--os
*Annaes de Litteratura e d'Historia*, com a sua collaborašŃo de
Professores, de Politicos, atÚ d'um Ministro, atÚ de um Almirante, o
Guerreiro Araujo, esse tocante massador. Appareceria pois nos *Annaes*
com a sua _Torre_, revelando imaginašŃo e um saber rico. Depois,
trepando da InvenšŃo para o terreno mais respeitavel da ErudišŃo, daria
um estudo (que atÚ lhe lembrßra no comboio, ao voltar de Lisboa!) sobre
as źOrigens Visigothicas do Direito Publico em Portugal...╗ Oh, nada
conhecia, Ú certo, d'essas Origens, d'esses Visigodos. Mas, com a bella
historia da _AdministrašŃo Publica em Portugal_ que lhe emprestßra o
Castanheiro, comporia corrediamente um resumo elegante... Depois,
saltando da ErudišŃo ßs Sciencias Sociaes e Pedagogicas--por que nŃo
amassaria uma boa źReforma do Ensino Juridico em Portugal╗ em dous
artigos massudos, de Homem d'Estado?... Assim avanšava, bem chegado aos
Regeneradores, construindo e cinzelando o seu pedestal litterario, atÚ
que os Regeneradores voltassem ao Ministerio, e no muro se escancarasse
a desejada porta triumphal.--E no meio do quarto, em ceroulas, com as
mŃos nas ilhargas, Gonšalo Mendes Ramires concluio pela necessidade de
apressar a sua Novella.
--Mas, quando acabarei eu essa _Torre_? assim emperrado, sem veia, com o
figado combalido?...
O Bento, velho de face rapada e morena, com um lindo cabello branco todo
encarapinhado, muito limpo, muito fresco na sua jaqueta de ganga,
entrßra vagarosamente, segurando a infusa d'agua quente.
--Oh Bento, ouve lß! Tu nŃo encontraste na mala que eu trouxe de Lisboa,
ou no caixote, um frasco de vidro com um pˇ branco? ╔ um remedio inglez
que me deu o Sr. Dr. Mattos... Tem um rotulo em inglez, com um nome
inglez, nŃo sei quŕ, _fruit salt_... Quer dizer sal de fructas...
O Bento cravou no soalho os olhos, que depois cerrou, meditando. Sim, no
quarto de lavar, em cima do bah˙ vermelho, ficßra um frasco com pˇ,
embrulhado num pergaminho antigo como os do Archivo.
--╔ esse! declarou Gonšalo. Eu precisava em Lisboa uns documentos por
causa d'aquelle malvado f˘ro de Praga. E por engano, na balburdia, levo
do Archivo um pergaminho perfeitamente inutil! Vae buscar o rolo... Mas
tem cuidado com o frasco!
O Bento, cuidadoso, sempre lento, ainda enfiou os bot§es d'agatha nos
punhos da camisa do Sr. Doutor, e desdobrou sobre a cama, para elle
vestir, a quinzena, as calšas bem vincadas, de cheviote leve. E Gonšalo,
retomado pela idÚa de artigos para os *Annaes*, folheava, rente ß
janella, a _Historia da AdministrašŃo Publica em Portugal_, quando Bento
voltou com um rolo de pergaminho, d'onde pendia, por fitas roidas, um
sello de chumbo.
--Esse mesmo! exclamou o Fidalgo atirando o volume para o poial da
janella. ╔ esse mesmo que eu enrolei no pergaminho para se nŃo quebrar.
Desembrulha, deixa em cima da commoda... O Sr. Dr. Mattos aconselhou que
o tomasse com agua tepida, em jejum. Parece que ferve. E limpa o sangue,
desannuvia a cabeša... Pois eu muito necessitado ando de desannuviar a
cabeša!... Toma tu tambem, Bento. E dize ß Rosa que tome. Todos tomam
agora, atÚ o Papa!
Com cuidado, o Bento desenrolßra o frasco, estendendo sobre o marmore da
commoda o pergaminho duro, onde a lettra do seculo XVI se encarquilhava
amarella e morta. E Gonšalo, abotoando o colarinho:
--Ora ahi estß o que eu levo preciosamente para deslindar o f˘ro de
Praga! Um pergaminho do tempo de D. SebastiŃo... E sˇ percebo mesmo a
data, mil quatrocentos... NŃo, mil quinhentos e setenta e sete. Nas
vesperas da jornada d'Africa... Emfim! serviu para embrulhar o frasco.
O Bento, que escolhera no gavetŃo um collete branco, relanceou de lado o
pergaminho veneravel:
--Naturalmente foi carta que El-rei D. SebastiŃo escreveu a algum
avosinho do Sr. Doutor...
--Naturalmente, murmurava o Fidalgo, deante do espelho. E para lhe dar
alguma cousa boa, alguma cousa gorda... Antigamente ter rei era ter
renda. Agora... NŃo apertes tanto essa fivella, homem! Trago ha dias o
estomago inchado... Agora, com effeito, esta instituišŃo de Rei anda
muito safada, Bento!
--Parece que anda, observou gravemente o Bento. Tambem, o _Seculo_
affianša que os Reis estŃo a acabar, e por dias. Ainda hontem
affianšava. E o _Seculo_ Ú jornal bem informado... No de hoje, nŃo sei
se o Sr. Doutor leu, lß vem a grande festa dos annos do Sr. Sanches
Lucena, e o fogo de vistas, e o brodio que deram na _Feitosa_...
Enterrado no divan de damasco, Gonšalo estendera os pÚs ao Bento que lhe
lašava as botas brancas:
--Esse Sanches Lucena Ú um idiota! Ora que arranjo farß a esse homem,
aos sessenta annos, ser deputado, passar mezes em Lisboa no Francfort,
abandonar as propriedades, deixar aquella linda quinta... E para quŕ?
Para rosnar de vez em quando źapoiado!╗ Antes elle me cedesse a cadeira,
a mim, que sou mais esperto, nŃo possuo grandes terras, e gosto do Hotel
Braganša. E por Sanches Lucena... O Joaquim amanhŃ que me tenha a egoa
prompta, a esta hora, para eu ir ß _Feitosa_ visitar esse animal... E
ponho entŃo o fato novo de montar que trouxe de Lisboa, com as polainas
altas... Ha mais de dois annos que nŃo vejo a D. Anna Lucena. ╔ uma
linda mulher!
--Pois quando o Sr. Doutor estava em Lisboa elles passaram ahi, na
caleche. AtÚ pararam, e o Sr. Sanches Lucena apontou para a Torre, a
mostrar ß senhora... Mulher muito perfeita! E traz uma grande luneta,
com um grande cabo, e um grande grilhŃo, tudo d'oiro...
--Bravo!... Encharca bem esse lenšo com agoa de Colonia, que tenho a
cabeša tŃo pesada!... Essa D. Anna era uma jornaleira, uma moša do
campo, de Corinde?
Bento protestou, com o frasco suspenso, espantado para o Fidalgo:
--NŃo senhor! A Snr.^a D. Anna Lucena Ú de gente muito baixa! Filha d'um
carniceiro d'Ovar... E o irmŃo andou a monte por ter morto o ferrador
d'Ilhavo.
--Emfim, resumiu Gonšalo, filha de carniceiro, irmŃo a monte, bella
mulher, luneta d'oiro... Merece fato novo!
* * * * *
Em Villa-Clara, ßs dez horas, sentado n'um dos bancos de pedra do
Chafariz, sob as olaias, o Titˇ esperava com o amigo JoŃo Gouveia--que
era o Administrador do Concelho da Villa. Ambos se abanavam com os
chapeus, em silencio, gozando a frescura e o sussurro da agua lenta na
sombra. E a źmeia╗ batia no relogio da Camara, quando Gonšalo, que se
retardßra na AssemblÚa n'um voltarete enremissado, appareceu annunciando
uma fome terrivel, źa fome historica dos Ramires╗, e apressando a marcha
para o Gago--sem mesmo consentir que o Titˇ descesse ß tabacaria do
Brito, a buscar uma garrafa de aguardente de canna da Madeira, velha e
źda ponta fina...╗
--NŃo ha tempo! Ao Gago! Ao Gago!... SenŃo devoro um de Vocŕs, com esta
furiosa fome Ramirica!
Mas, logo ao subirem a Calšadinha, parou elle cruzando os brašos,
interpellando divertidamente o Sr. Aministrador do Concelho pelo
estupendo feito do _seu_ Governo... EntŃo o _seu_ Governo, os _seus_
amigos Historicos, o _seu_ honradissimo S. Fulgencio--nomeavam, para
Governador Civil de Monforte, o Antonio Moreno! O Antonio Moreno, tŃo
justamente chamado em Coimbra Antoninha Morena! NŃo, realmente, era a
derradeira degradašŃo a que podia rolar um paiz! Depois d'esta, para
harmonia perfeita dos servišos, sˇ outra nomeašŃo, e urgente--a da
Joanna Salgadeira, Procuradora Geral da Cor˘a!
E o JoŃo Gouveia, um homem pequeno, muito escuro, muito secco, de bigode
mais duro que piassaba, esticado n'uma sobrecasaca curta, com o chapeu
de coco atirado para a orelha, nŃo discordava. Empregado imparcial,
servindo os Historicos como servira os Regeneradores, sempre acolhia com
imparcial ironia as nomeaš§es de bachareis novos, Historicos ou
Regeneradores, para os gordos logares Administrativos. Mas, n'este caso,
sinceramente, quasi vomitßra, rapazes! Governador Civil, e de Monforte,
o Antonio Moreno, que elle tantas vezes encontrßra no quarto, em
Coimbra, vestido de mulher, de roupŃo aberto, e a carinha bonita coberta
de pˇ de arroz!...--E, travando do brašo do Fidalgo, recordava a noite
em que o JosÚ GorjŃo, muito bebedo, de cartola e com um revˇlver, exigia
furiosamente que o padre Justino, tambem bebedo, o casasse com o
Antoninho deante d'um nicho da Senhora da Boa Morte! Mas o Titˇ, que
esperava, floreando o bengalŃo, declarou ßquelles senhores que se o
tempo sobejava para arrastarem assim na rua, a conversar de Politica e
d'indecencias--entŃo voltava elle ao Brito, buscar a aguardentesinha...
Immediatamente o Fidalgo da Torre, sempre brincalhŃo, sacudiu o brašo do
Administrador, e galgou pela Calšadinha, aos corcovos, com as mŃos
fortemente juntas, como colhendo uma redea, contendo um cavallo que se
desboca.
E na sala alta do Gago, ao cimo da escada esguia e ingreme que subia da
taberna, a um canto da comprida mesa allumiada por dois candieiros de
petroleo, a ceia foi muito alegre, muito saboreada. Gonšalo, que se
declarava miraculosamente curado pelo passeio atÚ aos Bravaes e pelas
emoš§es do voltarete em que ganhßra desenove tost§es ao Manoel
Duarte--comešou por uma pratada d'ovos com chourišo, devorou metade da
tainha, devastou o seu źfrango de doente╗, clareou o prato da salada de
pepino, findou por um montŃo de ladrilhos de marmellada: e atravez
d'este nobre trabalho, sem que a fina brancura da sua pelle se
afogueasse, esvasiou uma caneca vidrada de AlvaralhŃo, porque logo ao
primeiro trago, e com desgosto do Titˇ, amaldišoßra o vinho novo do
Abbade. ┴ sobremesa appareceu o Videirinha, źo Videirinha do violŃo╗,
tocador afamado de Villa Clara, ajudante da Pharmacia, e poeta com
versos de amor e de patriotismo jß impressos no *Independente
d'Oliveira*. Jantßra n'essa tarde, com o violŃo, em casa do commendador
Barros, que celebrava o anniversario da sua commenda: e sˇ acceitou um
copo d'AlvaralhŃo, em que esmagou um ladrilho de marmellada źpara
adocicar a goella╗. Depois, ß meia noite, Gonšalo obrigou o Gago a
espertar o lume, ferver um cafÚ źmuito forte, um cafÚ terrivel, Gago
amigo! um cafÚ capaz de abrir talento no Sr. Commendador Barros!╗ Era
essa a hora divina do violŃo e do źfadinho╗. E jß o Videirinha recußra
para a sombra da sala, pigarreando, affinando os bord§es, pousado com
melancolia ß borda d'um banco alto.
--A _Soledad_, Videirinha! pediu o bom Titˇ, pensativo, enrolando um
grosso cigarro.
Videirinha gemeu deliciosamente a _Soledad_:
Quando f˘res ao cemiterio
Ai Soledad, Soledad!...
Depois, apenas elle findou, acclamado, e emquanto acertava as cravelhas,
o Fidalgo da Torre e JoŃo Gouveia, com os cotovellos na mesa, os
charutos fumegando, conversaram sobre essa venda de Lourenšo Marques aos
Inglezes, preparada surrateiramente (conforme clamavam, arripiados de
horror, os jornaes da OpposišŃo) pelo Governo do S. Fulgencio. E Gonšalo
tambem se arripiava! NŃo com a alienašŃo da Colonia--mas com a
impudencia do S. Fulgencio! Que aquelle careca obeso, filho sacrilego
d'um frade que depois se fizera mercieiro em Cabecelhos, trocasse a
libras, para se manter mais dois annos no Poder, um pedašo de Portugal,
torrŃo augusto, trilhado heroicamente pelos Gamas, os Athaydes, os
Castros, os seus proprios avˇs--era para elle uma abominašŃo que
justificava todas as violencias, mesmo uma revolta, e a casa de Braganša
enterrada no lodo do Tejo! Trincando, sem parar, amendoas torradas, JoŃo
Gouveia observou:
--Sejamos justos, Gonšalo Mendes! Olhe que os Regeneradores...
O Fidalgo sorrio superiormente. Ah! se os Regeneradores realisassem essa
grandiosa operašŃo--bem! Esses, primeiramente, nunca commetteriam a
indecencia de vender a Inglezes terra de Portuguezes! Negociariam com
Francezes, com Italianos, povos latinos, rašas fraternas... E depois os
bons milh§es soantes seriam applicados ao fomento do Paiz, com saber,
com probidade, com experiencia. Mas esse horrendo careca do S.
Fulgencio!...--E no seu furor, engasgado, gritou por genebra, por que
realmente aquelle cognac do Gago era uma pešonha torpe!
O Titˇ encolheu os hombros, resignado:
--NŃo me deixaste ir buscar a aguardentesinha, agora aguenta... E a
genebra Ú ainda mais pešonhenta. Nem para os negros d'esse Lourenšo
Marques que tu queres vender... Portuguezes indecentes, a vender
Portugal! AtÚ o Sr. Administrador do Concelho devia prohibir estas
conversas...
Mas o Sr. Administrador do Concelho affirmou que as consentia, e
rasgadamente... Por que tambem elle, como Governo, venderia Lourenšo
Marques, e Mošambique, e toda a Costa Oriental! E ßs talhadas! Em
leilŃo! Alli, toda a Africa, posta em praša, apregoada no Terreiro do
Pašo! E sabiam os amigos porquŕ? Pelo sŃo principio de forte
administrašŃo--(estendia o brašo, meio alšado do banco, como n'um
Parlamento)... Pelo sŃo principio de que todo o proprietario de terras
distantes, que nŃo pˇde valorisar por falta de dinheiro ou gente, as
deve vender para concertar o seu telhado, estrumar a sua horta, povoar o
seu curral, fomentar todo o bom torrŃo que pisa com os pÚs... Ora a
Portugal restava toda uma riquissima provincia a amanhar, a regar, a
lavrar, a semear--o Alemtejo!
O Titˇ lanšou o vozeirŃo, desdenhando o AlemtÚjo como uma pellicula de
terra de mß qualidade, que, fˇra umas legoas de campos em torno de Beja
e de Serpa, por um grŃo sˇ dava dois, e, apenas esgaravetada, logo
mostrava o granito...
--O mano JoŃo tem lß uma herdade immensa, immensissima, que rende
trezentos mil rÚis!
O Administrador, que advogßra em Mertola, protestou, encristado. O
Alemtejo! Provincia abandonada, sim! Abandonada miseravelmente, desde
seculos, pela imbecilidade dos governos... Mas riquissima, fertilissima!
--Pois entŃo os Arabes... E qual Arabes! Ainda ha dias o Freitas GalvŃo
me contava...
Mas Gonšalo Mendes, que cuspira tambem a genebra com uma carantonha,
acudiu, n'um resumo varredor, condemnando todo o Alemtejo como uma
desgrašada illusŃo!
Estirado por sobre a mesa, o Administrador gritava:
--Vocŕ jß esteve no Alemtejo?
--Tambem nunca estive na China, e...
--EntŃo nŃo falle! Sˇ a vinha espantosa que plantou o JoŃo Maria...
--Quŕ! Umas cem pipas de zurrapa! Mas, n'outros sitios, legoas e legoas
sem...
--Um celleiro!
--Uma charneca!
E atravez do tumulto o Videirinha, repenicando com solitario ardor,
levado na torrente d'ais do źfado╗ da Ariosa, solušava contra uns olhos
negros, donos do seu corašŃo:
Ai! que dos teus negros olhos
Me vem hoje a perdišŃo...
O petroleo dos candieiros findava: e o Gago, reclamado para trazer
castišaes, surdio em mangas de camisa, detraz d'uma cortina de chita,
com a sua esperta humildade banhada em riso, lembrando a suas
Excellencias que passava da uma horasinha da noite... O Administrador,
que detestava noitadas, nocivas ß sua garganta (de amygdalas loucamente
inflammaveis), puxou o relogio com terror. E rapidamente reabotoado na
sobrecasa, de chapÚo c˘co mais tombado ß banda, apressou o lento Titˇ,
por que ambos moravam no alto da Villa--elle defronte do Correio, o
outro na viella das Therezas, n'uma casa onde outr'ora habitßra e
apparecera apunhalado o antigo carrasco do Porto.
O Titˇ porÚm nŃo se aviava. Com o bengalŃo debaixo do brašo, ainda
chamou o Gago ao fundo sombrio da sala estreita, para cochichar sobre o
embrulhado negocio d'uma compra de espingarda, soberba espingarda
Winchester, empenhada ao Gago pelo filho do tabelliŃo Guedes d'Oliveira.
E, quando desceu a escadaria, encontrou ß porta da taberna, no estendido
luar que orlava a rua adormecida, o Fidalgo da Torre e o JoŃo Gouveia
bruscamente engalfinhados na costumada contenda sobre o Governador Civil
de Oliveira--o AndrÚ Cavalleiro!
Era sempre a mesma briga, pessoal, furiosa e vaga. Gonšalo clamando que
nŃo alludissem deante d'elle, pelas cinco chagas de Christo, a esse
bandido, esse Snr. Cavalleiro e sobretudo Cavallo, mandŃo burlesco que
desorganizava o Districto! E JoŃo Gouveia muito teso, muito secco, com o
c˘co mais cahido na orelha, assegurando a inteligencia superior do amigo
Cavalleiro, que estabelecera limpeza e ordem, como Hercules, nas
cavallarišas d'Oliveira! O Fidalgo rugia. E Videirinha, com o violŃo
resguardado atraz das costas, supplicava aos amigos que recolhessem ß
taberna, para nŃo alvorotar a rua...
--Tanto mais que defronte, coitada, a sogra do Dr. Venancio estß desde
hontem com a pontada!
--Pois entŃo, berrou Gonšalo, nŃo venham com disparates que revoltam!
Dizer vocŕ, Gouveia, que Oliveira nunca teve Governador Civil como o
Cavalleiro!... NŃo Ú por meu pae! O papß jß lß vae ha trez annos,
infelizmente. E concordo que nŃo fosse boa auctoridade. Era frouxo,
andava doente... Mas depois tivemos o Visconde de Freixomil. Tivemos o
Bernardino. Vocŕ serviu com elles. Eram dois homens!... Mas este cavallo
d'este Cavalleiro! A primeira condišŃo para a auctoridade superior d'um
Districto Ú nŃo ser burlesca. E o Cavalleiro Ú d'entremez! Aquella
guedelha de trovador, e a horrenda bigodeira negra, e o olho
languinhento a pingar namoro, e o papo empinado, e o _pˇ-pˇ-poh_! ╔
d'entremez! E estupido, d'uma estupidez fundamental, que lhe comeša nas
patas, vem subindo, vem crescendo. Oh senhores, que animal!... Sem
contar que Ú malandro.
Teso na sombra do immenso Titˇ, como uma estaca junto d'uma torre, o
Administrador mordia o charuto. Depois, de dedo espetado, com uma
serenidade cortante:
--Vocŕ acabou?... Pois, Gonšalinho, agora escute! Em todo o districto
d'Oliveira, note bem, em todo elle! nŃo ha ninguem, absolutamente
ninguem, que de longe, muito de longe, se compare ao Cavalleiro em
intelligencia, caracter, maneiras, saber, e finura politica!
O Fidalgo da Torre emmudeceu, varado. Por fim sacudindo o brašo, n'um
desabrido, arrogante desprezo:
--Isso sŃo as opini§es d'um subalterno!
--E isso sŃo as express§es d'um malcreado! uivou o outro, crescendo
todo, com os olhinhos esbugalhados a fuzilar.
Immediatamente entre os dois, mais grosso que um barrote, avanšou o
brašo do Titˇ, estendendo uma sombra na calšada:
--Olß! Oh rapazes! Que desconchavo Ú este? Vocŕs estŃo borrachos?...
Pois tu, Gonšalo...
Mas jß Gonšalo, n'um d'esses seus impulsos generosos e amoraveis que tŃo
finamente seduziam, se humilhava, confessava a sua brutalidade,
sensibilisado:
--Perdoe vocŕ, JoŃo Gouveia! Sei perfeitamente que vocŕ defende o
Cavalleiro por amizade, nŃo por dependencia... Mas que quer, homem?
Quando me fallam n'esse Cavallo... NŃo sei, Ú por contagio da besta,
orneio, atiro coice!
O Gouveia, sem rancor, logo reconciliado (porque admirava carinhosamente
o Fidalgo da Torre), deu um puxŃo forte ß sobrecasaca e apenas observou
źque o Gonšalinho era uma fl˘r, mas picava...╗ Depois, aproveitando a
emošŃo submissa de Gonšalo, recomešou a glorificašŃo do Cavalleiro, mais
sobria. Reconhecia certas fraquezas. Sim, com effeito, aquelle modo
impertigado... Mas que corašŃo!--E o Gonšalinho devia considerar...
O Fidalgo, de novo revoltado, recuou, espalmando as mŃos:
--Escute vocŕ, oh JoŃo Gouveia! Por que Ú que vocŕ lß em cima, ß ceia,
nŃo comeu a salada de pepino? Estava divina, atÚ o Videirinha a
appeteceu! Eu repeti, acabei a travessa... Por que foi? Por que vocŕ tem
horror physiologico, horror visceral ao pepino. A sua natureza e o
pepino sŃo incompativeis. NŃo ha raciocinios, nŃo ha subtilezas, que o
persuadam a admittir lß dentro o pepino. Vocŕ nŃo duvida que elle seja
excellente, desde que tanta gente de bem o adora: mas vocŕ nŃo pˇde...
Pois eu estou para o Cavalleiro como vocŕ para o pepino. NŃo posso! NŃo
ha molhos, nem raz§es, que m'o disfarcem. Para mim Ú ascoroso. NŃo vae!
Vomito!... E agora ouša...
EntŃo Titˇ, que bocejava, interveio, jß farto:
--Bem! Parece-me que apanhamos a nossa dˇse de Cavalleiro, e valente!
Somos todos muito boas pessoas e sˇ nos resta debandar. Eu tive senhora,
tive tainha... Estou derreado. E nŃo tarda a madrugada, que vergonha!
O Administrador pulou. Oh Diabo! E elle, ßs nove horas da manhŃ, com
commissŃo de recenseamento!... Para esmagar bem o am˙o, cingiu Gonšalo
n'um rijo abrašo. E, quando o Fidalgo descia para o Chafariz com o
Videirinha (que n'estas noites festivas de Villa Clara o acompanhava
sempre pela estrada atÚ ao portŃo da Torre), JoŃo Gouveia ainda se
voltou, pendurado do brašo do Titˇ no meio da Calšadinha, para lhe
lembrar um preceito moral źde nŃo sei que philosopho╗:
--źNŃo vale a pena estragar boa ceia por causa de mß politica...╗ Creio
que Ú d'Aristoteles!
E atÚ Videirinha, que de novo afinava a viola, se preparava para um
solto descante ao luar, murmurou respeitosamente por entre abafados
harpejos:
--NŃo vale a pena, Sr. Doutor... Realmente nŃo vale a pena, por que em
Politica hoje Ú branco, ßmanhŃ Ú negro, e depois, zßs, tudo Ú nada!
* * * * *
O fidalgo encolhera os hombros. A Politica! Como se elle pensasse na
Auctoridade, no Sr. Governador civil d'Oliveira--quando injuriava o Sr.
AndrÚ Cavalleiro, de Corinde! NŃo! o que detestava era o homem--o falso
homem d'olho langoroso! Por que entre elles existia um d'esses fundos
aggravos que outr'ora, no tempo dos Tructesindos, armavam um contra o
outro, em dura arrancada de lanšas, dois bandos senhoriaes...--E pela
estrada, com a lua no alto dos oiteiros de Valverde, em quanto no violŃo
do Videirinha tremia o choro lento do fado do Vimioso, Gonšalo Mendes
recordava, aos pedašos, aquella historia que tanto enchera a sua alma
desoccupada. Ramires e Cavalleiros eram familias vizinhas, uma com a
velha torre em Santa Ireneia, mais velha que o Reino--a outra com quinta
bem tratada e rendosa em Corinde. E quando elle, rapaz de dezoito annos,
enfiava enfastiadamente os preparatorios do Lyceu, AndrÚ Cavalleiro,
entŃo estudante do Terceiro-Anno, jß o tratava como um amigo serio.
Durante as fÚrias, como a mŃe lhe dera um cavallo, apparecia todas as
tardes na Torre; e muitas vezes, sob os arvoredos da quinta ou passeando
pelos arredores de Bravaes e Valverde, lhe confiava, como a um espirito
maduro, as suas ambiš§es politicas, as suas idÚas de vida que desejava
grave e toda votada ao Estado. Gracinha Ramires desabrochava na fl˘r dos
seus dezeseis annos; e mesmo em Oliveira lhe chamavam a źfl˘r da Torre╗.
Ainda entŃo vivia a governante ingleza de Gracinha, a boa Miss
Rhodes--que, como todos na Torre, admirava com enthusiasmo AndrÚ
Cavalleiro pela sua amabilidade, a sua ondeada cabelleira romantica, a
došura quebrada dos seus olhos largos, a maneira ardente de recitar
Victor Hugo e JoŃo de Deus. E, com essa fraqueza que lhe amollecia a
alma e os principios perante a soberania do Amor, favorecera demoradas
conversas de AndrÚ com Maria da Graša sob as olaias do Mirante e mesmo
cartinhas trocadas ao escurecer por sobre o muro baixo da MŃe d'Agua.
Todos os domingos o Cavalleiro jantava na Torre:--e o velho procurador
Rebello jß preparßra, com esforšo e resmungando, um conto de reis para o
enxoval da źmenina╗. O pae de Gonšalo, Governador Civil de Oliveira,
sempre atarefado, enredado em Politica e em dividas, amanhecendo sˇ na
Torre aos Domingos, approvava esta collocašŃo de Gracinha, que, meiga e
romanesca, sem mŃe que a velasse, creava na sua vida, jß difficil, um
tropešo e um cuidado. Sem representar como elle uma familia de immensa
Chronica, anterior ao Reino, do mais rico sangue de Reis godos, AndrÚ
Cavalleiro era um mošo bem nascido, filho de general, neto de
desembargador, com brasŃo legitimo na sua casa apalašada de Corinde, e
terras fartas em redor, de boa semeadura, limpas de hypothecas...
Depois, sobrinho de Reis Gomes, um dos Chefes Historicos, jß filiado no
Partido Historico (desde o Segundo Anno da Universidade), a sua carreira
andava marcada com seguranša e brilho na Politica e na AdministrašŃo. E
emfim Maria da Graša amava enlevadamente aquelles reluzentes bigodes, os
hombros fortes de Hercules bem educado, o porte ufano que lhe
encourašava o peitilho e que impressionava. Ella, em contraste, era
pequenina e fragil, com uns olhos timidos e esverdeados que o sorriso
humedecia e enlanguescia, uma transparente pelle de porcellana fina, e
cabellos magnificos, mais lustrosos e negros que a cauda d'um corcel de
guerra, que lhe rolavam atÚ aos pÚs, em que se podia embrulhar toda,
assim macia e pequenina. Quando desciam ambos as alamedas da quinta,
miss Rhodes (que o pae, professor de Litteratura Grega em Manchester,
recheßra de Mithologia) pensava sempre em źMarte cheio de forša amando
PsychÚ cheia de graša.╗ E mesmo os criados da Torre se maravilhavam do
źlindo par!╗ Sˇ a Snr.^a D. Joaquina Cavalleiro, a mŃe de AndrÚ, senhora
obesa e rabugenta, detestava aquella terna assiduidade do filho na
Torre, sem motivo pesado, sˇ por źdesconfiar da pinta da menina e
desejar nˇra mais comesinha...╗ Felizmente, quando AndrÚ Cavalleiro se
matriculava no Quinto Anno, a desagradavel matrona morreu d'uma
anasarca. O pae de Gonšalo recebeu a chave do caixŃo: Gracinha tomou
luto: e Gonšalo, companheiro de casa do Cavalleiro na rua de S. JoŃo, em
Coimbra, enrolou um fumo na manga da batina. Logo em Santa Ireneia se
pensou que o explendido AndrÚ, libertado da pŕca opposišŃo da mamŃ,
pediria a źFl˘r da Torre╗ depois do Acto de Formatura. Mas, findo esse
desejado Acto, Cavalleiro abalou para Lisboa--por que se preparavam
Eleiš§es em Outubro, e elle recebera do tio Reis Gomes, entŃo Ministro
da Justiša, a promessa de źser deputado╗ por Braganša.
E todo esse verŃo o passou na Capital; depois em Cintra, onde o negro
langor dos seus olhos humidos amollecia coraš§es; depois n'uma jornada
quasi triumphal a Braganša com foguetes e źvivas ao sobrinho do Sr.
conselheiro Reis Gomes!╗ Em Outubro Braganša źconfiou ao dr. AndrÚ
Cavalleiro (como escreveu o _Echo de Traz-os-Montes_) o direito de a
representar em C˘rtes com os seus brilhantes conhecimentos litterarios e
a sua formosissima presenša de orador...╗ Recolheu entŃo a Corinde; mas
nas suas visitas ß Torre, onde o pae de Gonšalo convalescia d'uma febre
gastrica que exacerbßra a sua antiga diabetes, AndrÚ jß nŃo arrastava
sofregamente Gracinha, como outr'ora, para as silenciosas sombras da
quinta, permanecendo de preferencia na sala azul, a conversar sobre
Politica com Vicente Ramires, que se nŃo movia da poltrona, embrulhado
n'uma manta. E Gracinha, nas suas cartas para Coimbra a Gonšalo, jß se
carpia de nŃo correrem tŃo doces nem tŃo intimas as visitas do AndrÚ ß
Torre, źoccupado, como andava sempre agora, a estudar para deputado...╗
Depois do Natal o Cavalleiro voltou para Lisboa, para a abertura das
C˘rtes, muito apetrechado, com o seu creado Matheus, uma linda egua que
comprßra em Villa Clara ao Manoel Duarte, e dous caixotes de livros. E a
boa Miss Rhodes sustentava que Marte, como convinha a um herˇe, sˇ
reclamaria PsychÚ depois d'um nobre feito, uma estreia nas Camaras,
źn'um discurso lindo, todo fl˘res...╗ Quando Gonšalo, nas fÚrias de
Paschoa, apparešeu na Torre, encontrou Gracinha inquieta e descorada. As
cartas do seu AndrÚ, que se estreßra źe n'um discurso lindo, todo
fl˘res...╗, eram cada semana mais curtas, mais calmas. E a ultima (que
ella lhe mostrou em segredo), datada da Camara, contava em tres linhas
mal rabiscadas źque tivera muito que trabalhar em commiss§es, que o
tempo se pozera lindo, que n'essa noite era o baile dos condes de
Villaverde, e que elle continuava com muitas saudades o seu fiel
AndrÚ...╗ Gonšalo Mendes Ramires, logo n'essa tarde, desabafou com o
pae, que definhava na sua poltrona:
--Eu acho que o AndrÚ se estß portando muito mal com a Gracinha... O
papß nŃo lhe parece?
Vicente Ramires apenas moveu, n'um gesto de vencida tristeza, a mŃo
descarnada d'onde a cada momento lhe escorregava o annel d'armas.
Por fim em Maio a sessŃo das Camaras terminou--essa sessŃo que tanto
interessßra Gracinha, anciosa źque elles accabassem de discutir e
tivessem fÚrias.╗ E quasi immediatamente ella em Santa Ireneia, Gonšalo
em Coimbra, souberam pelos jornaes que źo talentoso deputado AndrÚ
Cavalleiro partira para Italia e Franša n'uma longa viagem de recreio e
d'estudo.╗ E nem uma carta ß sua escolhida, quasi sua noiva!... Era um
ultraje, um bruto ultraje, que outr'ora, no seculo XII, lanšaria todos
os Ramires, com homens de cavallo e peonagem, sobre o solar dos
Cavalleiros, para deixar cada trave denegrida pela chamma, cada servo
pendurado d'uma corda de canave. Agora Vicente Ramires, apagado e
mortal, murmurou simplesmente: źQue traste!╗ Elle em Coimbra, rugindo,
jurou esbofetear um dia o infame! A boa Miss Rhodes, para se consolar,
desembrulhou a sua velha harpa, encheu Santa Ireneia de magoados
harpejos. E tudo findou nas lagrimas que Gracinha, durante semanas, tŃo
desconsolada da vida que nem se penteava, escondeu sob as olaias do
Mirante.
E, ainda depois d'esses annos, a esta lembranša das lagrimas da irmŃ, um
rancor invadiu Gonšalo, tŃo redivivo que atirou para o lado, para sobre
as sebes da valla, uma bengallada, como se fossem ßs costas do
Cavalleiro!--Caminhavam entŃo junto ß ponte da Portella, onde os campos
se alargam, e da estrada se avista Villa-Clara, que a lua branqueava
toda, desde o convento de Santa Thereza, rente ao Chafariz, atÚ ao muro
novo do cemiterio, no alto, com os seus finos cyprestes. Para o fundo do
valle, clara tambem no luar, era a egrejinha de Craquŕde, Santa Maria de
Craquŕde, resto do antigo Mosteiro em que ainda jaziam, nos seus rudes
tumulos de granito, as grandes ossadas dos Ramires Affonsinos. Sob o
arco, docemente, o riacho lento, arrastando entre os seixos, sussurrava
na sombra. E Videirinha, enlevado n'aquelle silencio e suavidade
saudosa, cantava, n'um gemer surdo de bord§es:
Baldadas sŃo tuas queixas,
Escusados sŃo teus ais,
Que Ú como se eu morto f˘ra.
E nŃo me verßs nunca mais!...
E Gonšalo retomßra as suas recordaš§es, repassava tristezas que depois
cahiram sobre a Torre. Vicente Ramires morrera n'uma tarde d'Agosto, sem
soffrimento, estendido na sua poltrona ß varanda, com os olhos cravados
na velha Torre, murmurando para o padre Soeiro:--źQuantos Ramires verß
ella ainda, n'esta casa, e ß sua sombra?...╗ Todas essas ferias as
consumiu Gonšalo no escuro cartorio, desajudado (por que o procurador, o
bom Rebello, tambem Deus o chamßra), revolvendo papeis, apurando o
estado da casa--reduzida aos dois contos e trezentos mil reis que
rendiam os foros de Craquŕde, a herdade de Praga, e as duas quintas
historicas, Treixedo e Santa Ireneia. Quando regressou a Coimbra deixou
Gracinha em Oliveira, em casa de uma prima, D. Arminda Nunes Viegas,
senhora muito abastada, muito bondosa, que habitava no Terreiro da Louša
um immenso casarŃo cheio de retratos d'avoengos e de arvores de costado,
onde ella, vestida de velludo preto, pousada n'um camapÚ de damasco,
entre aias que fiavam, perpetuamente relia os seus Livros de Cavallaria,
o _Amadis_, _Leandro o Bello_, _TristŃo e Brancafl˘r_, as _Chronicas do
Imperador Clarimundo_... Foi ahi que JosÚ Barr˘lo (senhor d'uma das mais
ricas casas d'Amarante) encontrou Gracinha Ramires, e a amou com uma
paixŃo profunda, quasi religiosa--estranha n'aquelle mošo indolente,
gorducho, de bochechas coradas como uma mašŃ, e tŃo escasso d'espirito
que os amigos lhe chamavam źo JosÚ Bac˘co╗. O bom Barrolo residira
sempre em Amarante com a mŃe, nŃo conhecia o trahido romance da źFl˘r da
Torre╗--que nunca se espalhßra para alÚm dos cerrados arvoredos da
quinta. E, sob o enternecido e romanesco patrocinio de D. Arminda,
noivado e casamento docemente se apressaram, em tres mezes, depois d'uma
carta de Barr˘lo a Gonšalo Mendes Ramires jurando--źque a affeišŃo pura
que sentia pela prima Graša, pelas suas virtudes e outras qualidades
respeitaveis, era tŃo grande que nem achava no Diccionario termos para a
explicar...╗ Houve uma b˘da luxuosa: e os noivos (por desejo de
Gracinha, para se nŃo affastar da querida Torre), depois d'uma jornada
filial a Amarante, źarmaram o seu ninho╗ em Oliveira, ß esquina do largo
d'El-Rei e da rua das Tecedeiras, n'um palacete que o Bac˘co herdßra,
com largas terras, do seu tio Melchior, DeŃo da SÚ. Dois annos correram,
mansos e sem historia. E Gonšalo Mendes Ramires passava justamente em
Oliveira as suas ultimas fÚrias de Paschoa quando AndrÚ Cavalleiro,
nomeado Governador Civil do Districto, tomou posse, estrondosamente, com
foguetes, philarmonicas, o Governo civil e o Pašo do Bispo illuminados,
as armas dos Cavalleiros em transparentes no cafÚ da Arcada e na
Recebedoria!... Barr˘lo conhecia o Cavalleiro quasi intimamente,
admirava o seu talento, a sua elegancia, o seu brilho Politico. Mas
Gonšalo Mendes Ramires, que dominava soberanamente o bom Bac˘co, logo o
intimou a nŃo visitar o Sr. Governador Civil, a nŃo o saudar sequer na
rua, e a partilhar, por dever d'allianša, os rancores que existiam entre
Cavalleiros e Ramires! JosÚ Barr˘lo cedeu, submisso, espantado, sem
comprehender. Depois uma noite, no quarto, enfiando as chinellas, contou
a Gracinha źa exquisitice de Gonšalo╗:
--E sem motivo, sem offensa, sˇ por causa da Politica!... Ora, vŕ tu! Um
bello rapaz como o Cavalleiro! Podiamos fazer um ranchinho tŃo
agradavel!...
Outro sereno anno passou... E n'essa primavera, em Oliveira, onde se
demorßra para a festa dos annos de Barr˘lo, eis que Gonšalo suspeita,
fareja, descobre uma incomparavel infamia! O impertigado homem da
bigodeira negra, o Sr. AndrÚ Cavalleiro, recomešßra com soberba
impudencia a cortejar Gracinha Ramires, de longe, mudamente, em
olhadellas fundas, carregadas de saudade e langor, procurando agora
apanhar como amante aquella grande fidalga, aquella Ramires, que
desdenhßra como esposa!
* * * * *
TŃo levado ia Gonšalo pela branca estrada, no rolo amargo d'estes
pensamentos, que nŃo reparou no portŃo da Torre, nem na portinha verde,
ß esquina da casa, sobre tres degrßos. E seguia, rente do muro da horta,
quando Videirinha, que estacßra com os dedos mudos nos bord§es do
violŃo, o avisou, rindo:
--Oh, Sr. Doutor, entŃo larga assim, a estas horas de corrida para os
Bravaes?
Gonšalo virou, bruscamente despertado, procurando na algibeira, entre o
dinheiro solto, a chavinha do trinco:
--Nem reparava... Que lindamente vocŕ tem tocado, Videirinha! Com lua,
depois de ceia, nŃo ha companheiro mais poetico... Realmente vocŕ Ú o
derradeiro trovador portuguez!
Para o ajudante de Pharmacia, filho d'um padeiro d'Oliveira, a
familiaridade d'aquelle tamanho Fidalgo, que lhe apertava a mŃo na
botica deante do Pires boticario e em Oliveira deante das Auctoridades,
constituia uma gloria, quasi uma coroašŃo, e sempre nova, sempre
deliciosa. Logo sensibilisado, feriu os bord§es rijamente:
--EntŃo, para acabar, lß vae a grande trova, Sr. Doutor!
Era a sua famosa cantiga, o _Fado dos Ramires_, rosario de heroicas
Quadras celebrando as Lendas da Casa illustre--que elle desde mezes
apurava e completava, ajudado na terna tarefa pelo saber do velho Padre
Soeiro, capellŃo e archivista da Torre.
Gonšalo empurrou a portinha verde. No corredor espirrava uma lamparina
mortiša, jß sem azeite, junto ao castišal de prata. E Videirinha,
recuando ao meio da estrada, com um źdlindlon╗ ardente, fitßra a Torre,
que, por cima dos telhados da vasta casa, mergulhava as ameias, o negro
miradoiro, no luminoso silencio do ceu de verŃo. Depois para ella e para
a lua atirou as endeixas glorificadoras, na dolente melodia d'um fado de
Coimbra, rico em _ais_:
Quem te v'rß sem que estremeša,
Torre de Santa Ireneia,
Assim tŃo negra e callada,
Por noites de lua cheia...
Ai! Assim callada, tŃo negra,
Torre de Santa Ireneia!
Ainda suspendeu para agradecer ao Fidalgo, que o convidava a subir e
enxugar um calice de genebra salvadora. Mas retomou logo o descante,
ditoso em descantar, como sempre arrebatado pelo sabor dos seus versos,
pelo prestigio das Lendas, emquanto Gonšalo desapparecia--com folgazŃs
desculpas ao Trovador źpor cerrar a portinha do Castello...╗
Ai! ahi estßs, forte e soberba,
Com uma historia em cada ameia,
Torre mais velha que o reino,
Torre de Santa Ireneia!...
E comešßra a quadra a Muncio Ramires, _Dente de Lobo_, quando em cima
uma sala, aberta ß frescura da noite, se allumiou--e o Fidalgo da Torre,
com o charuto acceso, se debrušou da varanda para receber a serenada.
Mais ardente, quasi solušante, vibrou o cantar do Videirinha. Agora era
a quadra de Gutierres Ramires, na Palestina, sobre o monte das
Oliveiras, ß porta da sua tenda, deante dos Bar§es que o acclamavam com
as espadas nuas, recusando o Ducado de GalilÚa e o senhorio das Terras
d'AlÚm-JordŃo.--Que nŃo podia, em verdade, acceitar terra, mesmo Santa,
mesmo de GalilÚa...
Quem jß tinha em Portugal
Terras de Santa Ireneia!
--Boa piada! murmurou Gonšalo.
Videirinha, enthusiasmado, entoou logo outra nova, trabalhada n'essa
semana--a do sahimento de Aldonša Ramires, Santa Aldonša, trazida do
mosteiro d'Arouca ao solar de Treixedo, sobre o almadraque em que
morrera, aos hombros de quatro Reis!
--Bravo! gritou o Fidalgo pendurado da varanda. Essa Ú famosa, oh
Videirinha! Mas ahi ha Reis de mais... Quatro Reis!
Enlevado, empinando o brašo do violŃo, o ajudante da Pharmacia lanšou
outra, jß antiga--a d'aquelle terrivel Lopo Ramires que, morto, se
erguera da sua campa no Mosteiro de Craquŕde, montßra um ginete morto, e
toda a noite galopßra atravez da Hespanha para se bater nas Navas de
Tolosa! Pigarreou--e, mais chorosamente, atacou a do _Descabešado_:
Lß passa a negra figura...
Mas Gonšalo, que abominava aquella lenda, a silenciosa figura degolada,
errando por noites de inverno entre as ameias da Torre com a cabeša nas
mŃos--despegou da varanda, deteve a Chronica immensa:
--Toca a deitar, oh Videirinha, hein? Passa das tres horas, Ú um horror.
Olhe! O Titˇ e o Gouveia jantam cß na Torre, no Domingo. Appareša
tambem, com o violŃo e cantiga nova: mas menos sinistra... _Bona sera_!
Que linda noite!
Atirou o charuto, fechou a vidraša da sala--a źsala velha,╗ toda
revestida d'esses denegridos e tristonhos retratos de Ramires que elle
desde pequeno chamava as _carantonhas dos vovˇs_. E, atravessando o
corredor, ainda sentia rolarem ao longe, no silencio dos campos cobertos
de luar, fašanhas rimadas dos seus:
Ai! lß na grande batalha...
El-Rei Dom SebastiŃo...
O mais mošo dos Ramires
Que era pagem do guiŃo...
Despido, soprada a vella, depois de um rapido signal da cruz, o Fidalgo
da Torre adormeceu. Mas no quarto, que se povoou de Sombras, comešou
para elle uma noite rev˘lta e pavorosa. AndrÚ Cavalleiro e JoŃo Gouveia
romperam pela parede, revestidos de cˇtas de malha, montados em
horrendas tainhas assadas! E lentamente, piscando o olho mßo,
arremessavam contra o seu pobre estomago pontoadas de lanša, que o
faziam gemer e estorcer sobre o leito de pau preto. Depois era, na
Calšadinha de Villa-Clara, o medonho Ramires morto, com a ossada a
ranger dentro da armadura, e El-rei Dom Affonso II, arreganhando afiados
dentes de lobo, que o arrastavam furiosamente para a batalha das Navas.
Elle resistia, fincado nas lages, gritando pela Rosa, por Gracinha, pelo
Titˇ! Mas D. Affonso tŃo rijo murro lhe despedia aos rins, com o guante
de ferro, que o arremessava desde a Hospedaria do Gago atÚ ß Serra
Morena, ao campo da lide, luzente e fremente de pend§es e d'armas. E
immediatamente seu primo d'Hespanha, Gomes Ramires, Mestre de Calatrava,
debrušado do negro ginete, lhe arrancava os derradeiros cabellos, entre
a retumbante galhofa de toda a hoste sarracena e os prantos da tia
Louredo trazida como um andor aos hombros de quatro Reis!...--Por fim,
moido, sem socŕgo, jß com a madrugada clareando nas fendas das janellas
e as andorinhas piando no beiral dos telhados, o Fidalgo da Torre atirou
um derradeiro repellŃo aos lenšoes, saltou ao soalho, abrio a vidraša--e
respirou deliciosamente o silencio, a frescura, a verdura, o repouso da
quinta. Mas que sŕde! uma sŕde desesperada que lhe encortišava os
labios! Recordou entŃo o famoso _fruit salt_ que lhe recommendßra o Dr.
Mattos,--arrebatou o frasco, correu ß sala de jantar, em camisa. E, a
arquejar, deitou duas fartas colheradas n'um copo d'agua da Bica-Velha,
que esvasiou d'um trago, na fervura picante.
--Ah! que consolo, que rico consolo!...
Voltou derreadamente ß cama: e readormeceu logo, muito longe, sobre as
relvas profundas d'um prado d'Africa, debaixo de coqueiros susurrantes,
entre o apimentado aroma de radiosas flores que brotavam atravez de
pedregulhos d'oiro. D'essa perfeita beatitude o arrancou o Bento, ao
meio dia, inquieto com źaquelle tardar do Sr. Doutor.╗
--╔ que passei uma noite horrenda, Bento! Pesadelos, pavores, bulhas,
esqueletos... Foram os malditos ovos com chourišo; e o pepino...
Sobretudo o pepino! Uma idÚa d'aquelle animal do Titˇ... Depois, de
madrugada, tomei o tal _fruit salt_, e estou optimo, homem!... Estou
optimissimo! AtÚ me sinto capaz de trabalhar. Leva para a livraria uma
chavena de chß verde, muito forte... Leva tambem torradas.
E momentos depois, na livraria, com um roupŃo de flanella sobre a camisa
de dormir, sorvendo lentos goles de chß, Gonšalo relia junto da varanda
essa derradeira linha da Novella, tŃo rabiscada e molle, em que źos
largos raios da lua se estiravam pela larga sala d'armas...╗ De repente,
n'uma rasgada impressŃo de claridade, entreviu detalhes expressivos para
aquella noite de Castello e de verŃo--as pontas das lanšas dos esculcas
faiscando silenciosamente pelos adarves da muralha, e o coaxar triste
das rans nas bordas lodosas dos fossos...
--Bons trašos!
Achegou de vagar a cadeira, consultou ainda no volume do *Bardo* o
Poemeto do tio Duarte. E, desannuviado, sentindo as Imagens e os Dizeres
surgirem como bolhas d'uma agua represa que rebenta, atacou esse lance
do Capitulo I em que o velho Tructesindo Ramires, na sala d'armas de
Santa Ireneia, conversava com seu filho Lourenšo e seu primo D. Garcia
Viegas, o _Sabedor_, de aprestos de guerra... Guerra! Porque? Acaso
pelos cerros arraianos corriam, ligeiros entre o arvoredo, almogavares
mouros? NŃo! Mas desgrašadamente, źn'aquella terra jß remida e christŃ,
em breve se crusariam, umas contra outras, nobre lanšas portuguezas!...╗
Louvado Deus! a penna desemperrßra! E, attento ßs paginas marcadas n'um
tomo da _Historia_ d'Herculano, esbošou com seguranša a Epocha da sua
Novella--que abria entre as discordias de Affonso II e de seus irmŃos
por causa do testamento d'El-Rei seu pae, D. Sancho I. N'esse comešo do
Capitulo jß os Infantes D. Pedro e D. Fernando, esbulhados, andavam por
Franša e LeŃo. Jß com elles abandonßra o Reino o forte primo dos
Ramires, Gonšalo Mendes de Souza, chefe magnifico da casa dos Souzas. E
agora, encerradas nos castellos de Monte-Mˇr e de Esgueira, as senhoras
Infantas, D. Thereza e D. Sancha, negavam a D. Affonso o senhorio real
sobre as villas, fortalezas, herdades e mosteiros, que tŃo copiosamente
lhes doßra El-Rei seu pae. Ora, antes de morrer no Alcašar de Coimbra, o
senhor D. Sancho supplicßra a Tructesindo Mendes Ramires, seu collašo e
Alferes-Mˇr, por elle armado cavalleiro em LorvŃo, que sempre lhe
servisse e defendesse a filha amada entre todas, a infanta D. Sancha,
senhora de Aveyras. Assim o jurßra o leal Rico-Homem junto do leito
onde, nos brašos do Bispo de Coimbra e do Prior do Hospital sustentando
a candeia, agonisava, vestido de burel como um penitente, o vencedor de
Silves... Mas eis que rompe a fÚra contenda entre Affonso II,
asperamente cioso da sua auctoridade de Rei--e as Infantas, orgulhosas,
impellidas ß resistencia pelos freires do Templo e pelos Prelados a quem
D. Sancho legßra tŃo vastos pedašos do Reino! Immediatamente Alemquer e
os arredores d'outros castellos sŃo devastados pela hoste real que
recolhia das Navas de Tolosa. EntŃo D. Sancha e D. Thereza appellam para
El-rei de LeŃo, que entra com seu filho D. Fernando por terras de
Portugal a soccorrer as źDonas opprimidas.╗--E n'este lance o tio
Duarte, no seu _Castello de Santa Ireneia_, interpellava com soberbo
garbo o Alferes-Mˇr de Sancho I:
Que farßs tu, mais velho dos Ramires?
Se ao pendŃo leonez juntas o teu
Trahes o preito que deves ao rei vivo!
Mas se as Infantas deixas indefezas
Trahes a jura que dÚstes ao rei morto!...
Esta duvida, porÚm, nŃo angustißra a alma d'esse Tructesindo rude e leal
que o Fidalgo da Torre rijamente modelava. N'essa noite, apenas recebera
pelo irmŃo do Alcaide d'Aveyras, disfaršado em beguino, um afflicto
recado da senhora D. Sancha--ordenava a seu filho Lourenšo que, ao
primeiro arrebˇl, com quinze lanšas, cincoenta homens de pÚ da sua mercŕ
e quarenta besteiros, corresse sobre Monte-mˇr. Elle no emtanto daria
alarido--e em dous dias entraria a campo com os parentes de solar, um
trošo mais rijo de cavalleiros acontiados e de frecheiros, para se
juntar a seu primo, o _SouzŃo_, que na vanguarda dos leonezes descia
d'Alva-do-Douro.
Depois logo de madrugada o pendŃo dos Ramires, o Ašor negro em campo
escarlate, se plantßra deante das barreiras gateadas: e ao lado, no
chŃo, amarrado ß haste por uma tira de couro, reluzia o velho emblema
senhorial, o sonoro e fundo caldeirŃo polido. Por todo o Castello se
apressavam os servišaes, despendurando as cervilheiras, arrastando com
fragor pelas lages os pesados saios de malhas de ferro. Nos pateos os
armeiros agušavam ascumas, amaciavam a dureza das grevas e coxotes com
camadas d'estopa. Jß o adail, na ucharia, arrolßra as raš§es de vianda
para os dous quentes dias da arrancada. E por todas as cercanias de
Santa Ireneia, na došura da tarde, os atambores mouriscos, abafados no
arvoredo, tararam! tararam! ou mais vivos nos cabešos, ratatam! ratatam!
convocavam os cavalleiros de soldo e a peonagem da mesnada dos Ramires.
No emtanto o irmŃo do Alcaide, sempre disfaršado em beguino, de volta ao
castello d'Aveyras com a boa nova de prestes soccorros, transpunha
ligeiramente a levadiša da carcova... E aqui, para alegrar tŃo sombrias
vesperas de guerra, o tio Duarte, no seu Poemeto, engastßra uma sorte
galante:
┴ moša, que na fonte enchia a bilha,
O frade rouba um beijo e diz _Amen_!
Mas Gonšalo hesitava em desmanchar com um beijo de clerigo a pompa
d'aquella formosa sortida d'armas... E mordia pensativamente a rama da
penna--quando a porta da livraria rangeu.
--O correio...
Era o Bento com os Jornaes e duas cartas. O Fidalgo apenas abriu uma,
lacrada com o enorme sinete d'armas do Barr˘lo--repellindo a outra em
que reconhecera a lettra detestada do seu alfaiate de Lisboa. E
immediatamente, com uma palmada na mesa:
--Oh diabo! quantos do mez, hoje? quatorze, hein?
O Bento esperava com a mŃo no fecho da porta.
--╔ que nŃo tardam os annos da mana Graša! De todo esqueci, esquešo
sempre. E sem ter um presentinho engrašado... Que secca, hein?
Mas na vÚspera o Manoel Duarte, na AssemblÚa, ß mesa do voltarete,
annuncißra uma fuga a Lisboa por tres dias, para tratar do emprego do
sobrinho nas Obras Publicas. Pois corria a Villa-Clara pedir ao snr.
Manoel Duarte que lhe comprasse em Lisboa um bonito guarda-solinho de
sŕda branca com rendas...
--O snr. Manoel Duarte tem gosto; tem muito gosto! E entŃo o Joaquim que
nŃo selle a egoa; jß nŃo vou ao Sanches Lucena. Oh, senhores, quando
pagarei eu esta infame visita? Ha tres mezes!... Emfim, por dous dias
mais a bella D. Anna nŃo envelhece; e o velho Lucena tambem nŃo morre.
E o Fidalgo da Torre, que decidira arriscar o beijo folgazŃo, retomou a
penna, arredondou o seu final com elegante harmonia:
źA moša, furiosa, gritou: _Fu! Fu! villŃo!_ E o beguino, assobiando,
aligeirou as sandalias pelo corrego, na sombra das altas faias, emquanto
que por todo o fresco valle, atÚ Santa Maria de Craquŕde, os atambores
mouriscos, tararam! ratamtam! convocavam ß mesnada dos Ramires, na
došura da tarde...╗
III
Durante a longa semana, nas horas da calma, o Fidalgo da Torre trabalhou
com afferro e proveito. E n'essa manhŃ, depois de repicar a sineta no
corredor, duas vezes o Bento empurrßra a porta da livraria, avisando o
snr. Doutor źque o almocinho, assim ß espera, certamente se estragava.╗
Mas de sobre a tira d'almašo Gonšalo rosnava źjß vou!╗--sem despegar a
penna, que corria como quilha leve em agua mansa, na pressa amorosa de
terminar, antes do almošo, o seu Capitulo I.
Ah! e que canceira lhe custßra, durante esses dias, esse copioso
Capitulo, tŃo difficil, com o immenso Castello de Santa Ireneia a
erguer; e toda uma edade esfumada da Historia de Portugal a condensar em
contornos robustos; e a mesnada dos Ramires a apetrechar, sem que
faltasse uma rašŃo nos alforges, ou uma garruncha nos caixotes, sobre o
dorso das mulas! Mas felizmente, na vespera, jß movera para fˇra do
Castello o trošo de Lourenšo Ramires, em soccorro de Monte-mˇr, com um
vistoso coriscar de capellos e lanšas em torno ao pendŃo tendido.
E agora, n'esse remate do Capitulo, era noite, e o sino de recolher
tangera, e a almenßra luzira na Torre albarran, e Tructesindo Ramires
descera ß sala terrea da Alcašova para ceiar--quando fˇra, deante da
carcova, com tres toques fortes annunciando filho-d'algo, uma bozina
apressada soou. E, sem que o villico tomasse permissŃo do Senhor, o
alšapŃo da levadiša rangeu nas correntes de ferro, rebombou cavamente
nos apoios de pedra. Quem assim chegava em dura pressa era Mendo Paes,
amigo de Affonso II e mordomo da sua Curia, casado com a filha mais
velha de Tructesindo, D. Theresa--aquella que, pelo ondeante e alvo
pescošo, pelo pisar mais leve que um v˘o, os Ramires chamavam a _Garša
Real_. O Senhor de Santa Ireneia correra ao patim para acolher, n'um
abrašo, o genro amado--źmembrudo cavalleiro, com os cabellos ruivos, a
alvissima pelle da raša germanica dos visigodos...╗ E, de mŃos
enlašadas, ambos penetraram n'essa sala de abobada, allumiada por tochas
que toscos anneis de ferro seguravam, chumbados aos muros.
Ao meio pousava a massiša meza de carvalho, rodeada de escanhos atÚ ao
topo, onde se erguia, deante d'um aspero mantel de linho coberto de
pratos de estanho e de picheis luzidios, a cadeira senhorial com o Ašor
grossamente lavrado nas altas espaldas, e d'ellas suspensa, pelo
cinturŃo tauxeado de prata, a espada de Tructesindo. Por traz negrejava
a funda lareira apagada, toda entulhada de ramos de pinheiro, com a
prateleira guarnecida de conchas, entre bocaes de sanguesugas, sob dois
molhos de palmas trazidas da Palestina por Gutierres Ramires, o
_d'Ultramar_. Rente a um esteio da chaminÚ, um falcŃo, ainda emplumado,
dormitava na sua alcondora: e ao lado, sobre as lages, n'uma camada de
juncos, dois al§es enormes dormiam tambem, com o focinho nas patas, as
orelhas rojando. Toros de castanheiro sustentavam a um canto um pipo de
vinho. Entre duas frestas engradadas de ferro, um monge, com a face
sumida no capuz, sentado na borda de uma arca, lia, ß claridade do
candil que por cima fumegava, um pergaminho desenrolado... Assim Gonšalo
adornßra a soturna sala Affonsina com alfaias tiradas do Tio Duarte, de
Walter Scott, de narrativas do _Panorama_. Mas que esforšo!... E mesmo,
depois de collocar sobre os joelhos do monge um folio impresso em
Moguncia por Ulrick Zell, desmanchßra toda essa linha tŃo erudita, ao
recordar, com um murro na mesa, que ainda a Imprensa se nŃo inventßra em
tempos de seu av˘ Tructesindo, e que ao monge lettrado apenas competia
źum pergaminho de amarellada escripta...╗
E caminhando nos ladrilhos sonoros, desde a lareira atÚ ao arco da porta
cerrado por uma cortina de couro, Tructesindo, com a branca barba
espalhada sobre os brašos cruzados, escutava Mendo Paes, que, na
confianša de parente e amigo, jornadeßra sem homens da sua mercŕ,
cingindo apenas por cima do brial de lŃ cinzenta uma espada curta e um
punhal sarraceno. Ašodado e coberto de pˇ correra Mendo Paes desde
Coimbra para supplicar ao sogro, em nome do Rei e dos preitos jurados,
que se nŃo bandeasse com os de LeŃo e com as senhoras Infantas. E jß
desenrolßra ante o velho todos os fundamentos invocados contra ellas
pelos doutos Notarios da Curia--as resoluš§es do Concilio de Toledo! a
bulla do Apostolo de Roma, Alexandre! o velho fˇro dos Visigodos!... De
resto, que injuria fizera ßs senhoras Infantas seu real irmŃo para assim
chamarem hostes Leonezas a terras de Portugal? Nenhuma! Nem regedoria
nem renda dos castellos e villas da doašŃo de D. Sancho lhes negava o
senhor D. Affonso. O Rei de Portugal sˇ queria que nenhum palmo de chŃo
portuguez, baldio ou murado, jazesse fˇra de seu senhorio real. Escasso
e avido El-Rei D. Affonso?... Mas nŃo entregßra elle ß senhora D. Sancha
oito mil morabitinos d'oiro? E a gratidŃo da irmŃ f˘ra o Leonez passando
a raia e logo cahidos os castellos formosos d'Ulgoso, de Contrasta,
d'Urros e de Lanhosello! O mais velho da casa dos Souzas, Gonšalo
Mendes, nŃo se encontrßra ao lado dos cavalleiros da Cruz na jornada das
Navas, mas lß andava em recado das Infantas, como moiro, talando terra
portugueza desde Aguiar atÚ Miranda! E jß pelos cerros d'AlÚm-Douro
apparecera o pendŃo renegado das treze arruellas--e por traz, farejando,
a alcateia dos Castros! Carregada ameaša, e de armas christŃs,
opprimindo o Reino--quando ainda Moabitas e Agarenos corriam ß redea
solta pelos campos do Sul!... E o honrado Senhor de Santa Ireneia, que
tŃo rijamente ajudßra a fazer o Reino, nŃo o deveria decerto desfazer
arrancando d'elle os pedašos melhores para monges e para donas
rebeldes!--Assim, com arremessados passos, exclamßra Mendo Paes, tŃo
acalorado do esforšo e da emošŃo, que duas vezes encheu de vinho uma
conca de pau e d'um trago a despejou. Depois, limpando a bocca ßs costas
da mŃo tremula:
--Ide por certo a Monte-mˇr, senhor Tructesindo Ramires! Mas em recado
de paz e boa avenša, persuadir vossa senhora D. Sancha e as senhoras
Infantas que voltem honradamente a quem hoje contam por seu pae e seu
Rei!
O enorme senhor de Santa Ireneia parßra, pousando no genro os olhos
duros, sob a ruga das sobrancelhas, hirsutas e brancas como saršas em
manhŃ de geada:
--Irei a Monte-mˇr, Mendo Paes, mas levar o meu sangue e o dos meus para
que justiša logre quem justiša tem.
EntŃo Mendo Paes, amargurado, ante a heroica teima:
--Maior dˇ, maior dˇ! Serß bom sangue de Ricos-homens vertido por mßs
desfˇrras... Senhor Tructesindo Ramires, sabei que em Canta-Pedra vos
espera Lopo de BaiŃo, o Bastardo, para vos tolher a passagem com cem
lanšas!
Tructesindo ergueu a vasta face--com um riso tŃo soberbo e claro que os
al§es rosnaram torvamente, e, acordando, o falcŃo esticou a aza lenta:
--Boa nova e de boa esperanša! E, dizei, senhor Mordomo-mˇr da Curia,
tŃo de feišŃo e certa assim m'a trazeis para me intimidar?
--Para vos intimidar?... Nem o Senhor Archanjo S. Miguel vos intimidaria
descendo do cÚo com toda a sua hoste e a sua espada de lume! De sobra o
sei, senhor Tructesindo Ramires. Mas casei na vossa casa. E jß que
n'esta lide nŃo sereis por mim bem ajudado, quero, ao menos, que sejaes
bem avisado.
O velho Tructesindo bateu as palmas para chamar os sergentes:
--Bem, bem, a cear, pois! ┴ ceia, Frei Munio!... E vˇs, Mendo Paes,
deixai receios.
--Se deixo! NŃo vos pˇde vir damno que me anceie de cem lanšas, de
duzentas, que vos surjam a caminho.
E, emquanto o monge enrolava o seu pergaminho, se acercava da
mesa--Mendo Paes ajuntou com tristeza, desafivelando vagarosamente o
cinturŃo da espada:
--Sˇ um cuidado me pesa. E Ú que, n'esta jornada, senhor meu sogro, ides
ficar de mal com o Reino e com o Rei.
--Filho e amigo! De mal ficarei com o Reino e com o Rei, mas de bem com
a honra e commigo!
Este grito de fidelidade, tŃo altivo, nŃo resoava no poemeto do tio
Duarte. E quando o achou, com inesperada inspirašŃo, o Fidalgo da Torre,
atirando a penna, esfregou as mŃos, exclamou, enlevado:
--Caramba! Aqui ha talento!
Rematou logo o Capitulo. Estava esfalfado, ß banca do trabalho desde as
nove horas, a reviver intensamente, e em jejum, as energias magnificas
dos seus fortes avˇs! Numerou as tiras--fechou na gaveta ß chave o
volume do *Bardo*. Depois ß janella, com o collete desabotoado, ainda
lanšou o brado genial n'um grave e rouco tom, como o lanšaria
Tructesindo:--...źde mal com o Reino e com o Rei, mas de bem com a honra
e commigo!...╗ E sentia n'elle realmente toda a alma de um Ramires, como
elles eram no seculo XII, de sublime lealdade, mais presos ß sua palavra
que um santo ao seu voto, e alegremente desbaratando, para a manter,
bens, contentamento e vida!
O Bento, que espalhßra outro repique desesperado, escancarou a porta da
livraria:
--╔ o Pereira... Estß lß em baixo no pateo o Pereira que quer fallar ao
Sr. Doutor.
Gonšalo Mendes franziu a testa, com impaciencia, assim repuxado
d'aquellas alturas onde respirava os nobres espiritos da sua raša:
--Que massada!... O Pereira... Que Pereira?
--O Pereira; o Manoel Pereira, da Riosa; o Pereira Brazileiro.
Era um lavrador, com casal na Riosa, chamado _Brazileiro_ por ter
herdado vinte contos de um tio, regatŃo no Parß. Comprßra entŃo terras,
trazia arrendada a _Cortiga_, a fallada propriedade dos condes de
Monte-Agra, envergava aos domingos uma sobrecasaca de panno fino, e
dispunha de sessenta votos na Freguezia.
--Ah! Dize ao Pereira que suba, que conversamos emquanto almˇšo... E p§e
outro talher.
A sala de jantar da Torre, que abria por trez portas envidrašadas para
uma funda varanda alpendrada, conservava, do tempo do av˘ DamiŃo, (o
traductor de Valerius Flaccus) dous formosos pannos d'Arraz
representando a _ExpedišŃo dos Argonautas_. Loušas da India e do JapŃo,
desirmanadas e preciosas, recheiavam um immenso armario de mogno. E
sobre o marmore dos aparadores rebrilhavam os restos, ainda ricos, das
pratas famosas dos Ramires que o Bento constantemente areava e polia com
amor. Mas Gonšalo, sobretudo de verŃo, sempre almošava e jantava na
varanda luminosa e fresca, bem esteirada, revestida atÚ meio-muro por
finos azulejos do seculo XVIII, e offerecendo a um canto, para as
preguišas do charuto, um profundo canapÚ de palhinha com almofadas de
damasco.
Quando lß entrou, com os jornaes da manhŃ que nŃo abrira, o Pereira
esperava, encostado a um grosso guarda-sol de panninho escarlate,
considerando pensativamente a quinta que, d'alli, se abrangia atÚ aos
ßlamos da ribeira do Coice e aos outeiros suaves de Valverde. Era um
velho esgalgado e rijo, todo ossos, com um carŃo moreno, de olhos
miudinhos e azulados, e uma barbicha rala, jß branca, entre dous enormes
collarinhos presos por bot§es de ouro. Homem de propriedade, acostumado
ß Cidade e ao trato das Auctoridades, estendeu largamente a mŃo ao
Fidalgo da Torre, e acceitou, sem embarašo, a cadeira que elle lhe
empurrßra para a mesa--onde dominavam, com os seus ricos lavores duas
altas enfusas de crystal antigo, uma cheia d'ašucenas e a outra de vinho
verde.
--EntŃo, que bom vento o traz pela Torre, Pereira amigo? NŃo o vejo
desde Abril!
--╔ verdade, meu Fidalgo, desde o sabbado em que cahiu a grande
trovoada, na vespera da eleišŃo! confirmou o Pereira affagando o cabo do
guarda-sol que conservßra entre os joelhos.
Gonšalo, n'uma esfaimada pressa do almošo, repicou a campainha de prata.
Depois rindo:
--E os seus votos, Pereira amigo, segundo o costume, lß foram para o
eterno Sanches Lucena, direitinhos, como os rios vŃo para o mar!
O Pereira tambem riu, com um riso agradado que lhe descobria os mßos
dentes. Pois o circulo era uma propriedade do Sr. Sanches Lucena!
Cavalheiro de fortuna, homem de bem, conhecedor, servišal... E entŃo,
quando lhe calhava como em Abril o apoio do Governo, nem Nosso Senhor
Jesus Christo que voltasse ß terra e se propuzesse por Villa-Clara
desalojava o patrŃo da _Feitosa_!
O Bento, vagaroso, de jaqueta de lustrina preta sobre o avental
resplandecente, entrava com um prato d'ovos estrellados, quando o
Fidalgo, que desdobrßra o guardanapo, o amarrotou, arremessou com nojo:
--Este guardanapo jß serviu! Eu estou farto de gritar. NŃo me importa
guardanapo r˘to, ou com passagens, ou com remendos... Mas branquinho,
fresquinho cada manhŃ, a cheirar a alfazema!
E reparando no Pereira, que discretamente arredava a cadeira:
--O quŕ! Vocŕ nŃo almoša, Pereira?...
NŃo, agradecia muito ao Fidalgo, mas n'essa tarde comia as sopas com o
genro nos Bravaes, que era festa pelos annos do netinho.
--Bravo! Parabens, Pereira amigo! Dŕ lß um beijo meu ao netinho... Mas
entŃo ao menos um copo de vinho verde.
--Entre as comidas, meu Fidalgo, nem agua nem vinho.
Gonšalo farejßra, arredßra os ovos. E reclamou o źjantar da familia╗,
sempre muito farto e saboroso na Torre, e comešando por essas pesadas
sopas de pŃo, presunto e legumes, que elle desde creanša adorava e
chamava as _palanganas_. Depois, barrando de manteiga uma bolacha:
--Pois francamente, Pereira, esse seu Sanches Lucena nŃo faz honra ao
circulo! Homem excellente, decerto, respeitavel, obsequiador... Mas
mudo, Pereira! Inteiramente mudo!
O lavrador rošou vagarosamente pelas ventas cabelludas o lenšo vermelho,
enrolado em bˇla:
--Sabe as cousas, pensa com acŕrto...
--Sim! mas pensamento e acŕrto nŃo lhe sahem de dentro do craneo! Depois
estß muito velho, Pereira! Que edade terß elle? Sessenta?
--Sessenta e cinco. Mas de gente muito rija, meu Fidalgo. O av˘ durou
atÚ aos cem annos. E ainda o conheci na loja...
--Como, na loja?
EntŃo o Pereira, enrolando mais o lenšo, estranhou que o Fidalgo nŃo
soubesse a historia do Sanches Lucena. Pois o av˘, o Manoel Sanches, era
um linheiro do Porto, da rua das Hortas. E casado tambem com uma moša
muito vistosa, muito farfalhuda...
--Bem! atalhou o Fidalgo. Isso Ú honroso para o Sanches Lucena. Gente
que engordou, que trepou... E eu concordo, Pereira, o circulo deve
mandar a Lisboa um homem como o Sanches Lucena, que tenha n'elle terra,
raizes, interesses, nome... Mas Ú preciso que seja tambem homem com
talento, com arrojo. Um deputado, que, nas grandes quest§es, nas crises,
se erga, transporte a Camara!... E depois, Pereira amigo, em Politica
quem mais grita mais arranja. Olhe a estrada da Riosa! Ainda em papel, a
lapis vermelho... E, se o Sanches Lucena fosse homem de berrar em S.
Bento, jß o Pereira trazia por lß os seus carros a chiar.
O Pereira abanou a cabeša, com tristeza:
--Ahi talvez o Fidalgo acerte... Para essa estradinha da Riosa sempre
faltou quem gritasse. Ahi talvez o Fidalgo acerte!
Mas o Fidalgo emmudecera, embebido na cheirosa sopa, dentro d'uma
cašoila nova, com raminhos de hortelŃ. E entŃo o Pereira, acercando mais
a cadeira, cruzou no rebordo da mesa as mŃos, que meio seculo de
trabalho na terra tornßra negras e duras como raizes--e declarou que se
atrevera a incommodar o Fidalgo, ßquellas horas do almocinho, porque
n'essa semana comešava um cˇrte de madeiras para os lados de Sandim, e
desejava, antes que surdissem outros arranjos, conversar com S. Ex.^a
sobre o arrendamento da Torre...
Gonšalo reteve a colhÚr, num pasmo risonho:
--Vocŕ queria arrendar a Torre, Pereira?
--Queria conversar com V. Ex.^a. Como o Relho estß despedido...
--Mas eu jß tratei com o Casco, o JosÚ Casco dos Bravaes! Ficamos meio
apalavrados, ha dias... Ha mais de uma semana.
O Pereira cošou arrastadamente a barba rala. Pois era pena, grande
pena... Elle sˇ no sabbado s'inteirßra da desavenša com o Relho. E, se o
Fidalgo nŃo resalvava o segredo, por quanto ficßra o arrendamento?
--NŃo resalvo, nŃo, homem! Novecentos e cincoenta mil rÚis.
O Pereira tirou da algibeira do collete a caixa de tartaruga, e sorveu
detidamente uma pitada, com o carŃo pendido para a esteira. Pois maior
pena, mesmo para o Fidalgo. Emfim! depois de palavra trocada... Mas era
pena, porque elle gostava da propriedade; jß pelo S. JoŃo pensßra em
abeirar o Fidalgo; e, apezar dos tempos correrem escassos, nŃo andaria
longe de offerecer um conto e cincoenta, mesmo um conto cento e
cincoenta!
Gonšalo esqueceu a sopa, n'uma emošŃo que lhe afogueou a face fina, ante
um tal accrescimo de renda--e a excellencia de tal rendeiro, homem
abastado, com metal no banco, e o mais fino amanhador de terras de todas
as cercanias!
--Isso Ú sÚrio, oh Pereira?
O velho lavrador pousou a caixa de rapÚ sobre a toalha, com decisŃo:
--Meu Fidalgo, eu nŃo era homem que entrasse na Torre para cašoar com V.
Ex.^a! Proposta a valer, escriptura a fazer... Mas se o arrendamento
estß tratado...
Recolheu a caixa, apoiava a mŃo larga na meza para se erguer, quando
Gonšalo acudiu, nervoso, empurrando o prato:
--Escute, homem!... Eu, nŃo contei por miudo o caso do Casco. Vocŕ
comprehende, sabe como essas cousas passam... O Casco veiu, conversamos;
eu pedi novecentos e cincoenta mil reis e porco pelo Natal.
Primeiramente concordou, que sim; logo adiante emendou, que nŃo...
Voltou com o compadre; depois, com a mulher e o compadre, e o afilhado,
e o cŃo! Depois sˇ. Andou ahi pela quinta, a medir, a cheirar a terra;
acho atÚ que a provou. Aquellas rabulices do Casco!... Por fim, uma
tarde, lß gemeu, lß acceitou os novecentos e cincoenta mil reis, sem
porco. Cedi do porco. Aperto de mŃo, copo de vinho. Ficou de apparecer
para combinar, tratar da escriptura. NŃo o avistei mais, ha quasi duas
semanas! Naturalmente jß virou, jß se arrependeu... Para resumir, nŃo
tenho com o Casco contracto firme. Foi uma conversa em que apenas
estabelecemos, como base, a renda de novecentos e cincoenta. E eu, que
detesto cousas vagas, jß andava pensando em encontrar melhor homem!
Mas o Pereira cošava o queixo, desconfiado. Elle, em negocios, gostava
de lisura. Sempre se entendŕra bem com o Casco. Nem por um condado se
atravessaria nos arranjos do Casco, homem violento, assomado. De modo
que desejava as cousas claras, para nŃo surdir desgosto rijo. NŃo se
lavrßra escriptura, bem! Mas ficßra, ou nŃo, palavra dada entre o
Fidalgo e o Casco?
Gonšalo Mendes Ramires, que findßra apressadamente a sopa e enchia um
copo de vinho verde para se calmar, fitou o lavrador, quasi severamente:
--Homem, essa pergunta!... Pois se eu tivesse confirmado ao Casco
decisivamente a palavra de Gonšalo Ramires, estava agora aqui a tratar,
ou sequer a conversar comsigo, Pereira, sobre o arrendamento da Torre?
O Pereira baixou a cabeša. Tambem era verdade!... Pois, n'esse caso,
elle abria a sua tenšŃo, claramente. E, como conhecia a propriedade, e
apurßra o seu calculo--offerecia ao Fidalgo um conto cento e cincoenta
mil rÚis, sem porco. Mas nŃo dava para a familia nem leite, nem
hortališa, nem fructa. O Fidalgo, homem sˇ, pouco se aproveitava. A
Torre, porÚm, casa antiga, enxameava de gentes e d'adherentes. Todos
apanhavam, todos abusavam... Emfim, esse era o seu principio. E de
resto, para a meza do Fidalgo e mesmo dos creados, bastava o pomar e a
horta de regalo... Que horta e pomar necessitavam trato mais geitoso:
mas elle, por amor do Fidalgo, e gosto seu, por lß passaria e tudo
luziria... Emquanto ßs outras condiš§es, acceitava as do antigo
arrendamento. E escriptura assignada para a outra semana, no sabbado...
Estava feito?
Gonšalo, depois de um momento em que pestanejou nervosa e tremulamente,
estendeu a mŃo aberta ao Pereira:
--Toque! Agora sim! Agora fica palavra dada!
--E nosso Senhor lhe ponha virtude, concluiu o Pereira, firmado no
immenso guarda-sol para se erguer. EntŃo no sabbado, em Oliveira, para a
escriptura... Assigna V. Ex.^a ou o Sr. padre Soeiro?
Mas o fidalgo calculava:
--NŃo, homem, nŃo pˇde ser! No sabbado, com effeito, estou em Oliveira,
mas sŃo os annos da mana Maria da Graša...
O Pereira destapou de novo os maus dentes, n'um riso de estima:
--Ah! e como vae a snr.^a D. Maria da Graša? Ha que edades a nŃo vejo!
Desde o anno passado, na procissŃo de Passos, em Oliveira... Muito boa
senhora! Muito dada! E o Sr. JosÚ Barr˘lo? Pessoa excellente tambem, a
valer, o Sr. JosÚ Barr˘lo... E que terra a d'elle, a _Ribeirinha_! A
melhor propriedade d'estas vinte leguas em redor. Linda propriedade! A
do AndrÚ Cavalleiro que lhe estß pegada, a _Biscaia_, nŃo se lhe
compßra--Ú como cardo ao pÚ de couve.
O Fidalgo da Torre descascava um pecego, sorrindo:
--Do AndrÚ Cavalleiro nada presta, Pereira! Nem terra, nem alma!
O lavrador pareceu surprehendido. Elle imaginava que o Fidalgo e o
Cavalleiro continuavam chegados e amigos... NŃo em Politica! Mas
particularmente, como cavalheiros...
--O que? Eu e o Cavalleiro? Nem como cavalheiro nem como politico. Que
elle nem Ú cavalheiro nem politico. ╔ apenas cavallo, e resabiado.
O Pereira ficou silencioso, com os olhos na toalha. Depois, resumindo:
--EntŃo estß entendido, no sabbado, na cidade. E, se nŃo faz transtorno
ao Fidalgo, passamos pelo tabelliŃo Guedes, e fica o feito arrumado. O
Fidalgo, naturalmente, vae para a casa da senhora sua mana...
--Sempre. Appareša vocŕ ßs trez horas. Lß conversamos com o padre
Soeiro.
--Tambem ha que edades nŃo encontro o Sr. padre Soeiro!
--Oh! esse ingrato, agora, raramente apparece na Torre. Sempre em
Oliveira, com a mana Graša, que Ú a menina dos seus encantos... EntŃo
nem um calice de vinho do Porto, Pereira?... Bem, atÚ sabbado. NŃo
esqueša o beijinho para o neto.
--Cß me vae no corašŃo, meu Fidalgo... Ora essa! Pois consentia eu que
V. Ex.^a se levantasse? Sei perfeitamente a escada, e ainda passo pela
cozinha para debicar com a tia Rosa. Jß desde o tempo do paesinho de V.
Ex.^a, que Deus haja, conhešo bem a Torre!... E sempre m'esperancei de
trazer n'esta quinta uma lavoura a meu gosto, de consolar!
Durante o cafÚ, esquecido dos jornaes, Gonšalo gozou a excellencia
d'aquelle negocio. Duzentos mil rÚis mais de renda. E a Torre tratada
pelo Pereira, com aquelle amor da terra e saber de lavra que
transformßra o chavascal do Monte-Agra n'uma maravilha de seßra, vinha e
horta!... AlÚm d'isso, homem abastado, capaz de um adeantamento. E eis
ahi mais uma evidencia do valor da Torre, esse affinco do Pereira em a
arrendar, elle tŃo apertado, tŃo seguro... Quasi se arrependia de lhe
nŃo ter arrancado um conto e duzentos. Emfim, a manhŃ f˘ra fecunda! E,
realmente, nenhum accordo firmado o collava ao Casco. Entre elles apenas
s'esbošßra uma conversa, sobre um arrendamento possivel da Torre, a
debater depois miudamente, n'uma base nova de novecentos e cincoenta mil
reis... E que insensatez se elle, por escrupuloso respeito d'essa
conversa esbošada, recusasse o Pereira, retivesse o Casco, lavrador de
rotina--dos que raspam a terra para comer, e a deixam cada anno
deperecendo, mais canšada e chupada!...
--Bento, traze charutos! E o Joaquim que tenha a egua sellada das cinco
para as cinco e meia. Sempre vou ß _Feitosa_... Hoje Ú o dia!
Accendeu um charuto, voltou ß livraria. E, immediatamente releu o final
magnifico: źDe mal com o Reino e com o Rei, mas de bem com a honra e
commigo!╗--Ah! como alli gritava a alma inteira do velho portuguez, no
seu amor religioso da palavra e da honra! E, com a tira d'almasso entre
os dedos, junto da varanda, considerou um momento a Torre, as poeirentas
frestas engradadas de ferro, as resistentes ameias, ainda inteiras, onde
agora adejava um bando de pombas... Quantas manhŃs, ßs frescas horas
d'alva, o velho Tructesindo se encostßra ßquellas ameias, entŃo novas e
brancas! Toda a terra em redor, semeada ou bravia, decerto pertencia ao
poderoso Rico-Homem. E o Pereira, n'esse tempo colono ou servo, sˇ
abordava o seu Senhor de joelhos e tremendo! Mas nŃo lhe pagava um conto
cento e cincoenta mil rÚis de sonora moeda do Reino. Tambem, que diabo,
o v˘v˘ Tructesindo nŃo precisava... Quando os saccos rareavam nas arcas,
e os acostados rosnavam por tardanša de soldo, o leal Rico-Homem, para
se prover, tinha as tulhas e as adÚgas dos Concelhos mal defendidos--ou
entŃo, n'uma volta de estrada, o ovenšal voltando de recolher as rendas
reaes, o bufarinheiro genovez com os machos ajoujados de trouxas. Por
baixo da Torre (como lhe contßra o papß) ainda negrejava a masmorra
feudal, meio atulhada, mas com restos de correntes chumbadas aos
pilares, e na abobada a argola d'onde pendia a polÚ, e no lagedo os
buracos em que se escorava o potro. E, n'essa surda e humida cova,
ovenšal, bufarinheiro, clerigos e mesmo burguezes de f˘ro uivavam sob o
ašoite ou no torniquete, atÚ largarem agonizando o derradeiro
morabitino. Ah! a ramantica Torre, cantada tŃo meigamente ao luar pelo
Videirinha, quantos tormentos abafßra!...
E de repente, com um berro, Gonšalo agarrou de sobre a mesa um volume de
Walter Scott, que atirou sem piedade, como uma pedra, contra o tronco de
uma faia. ╔ que descortinßra o gato da Rosa cozinheira, trepado, d'unhas
fincadas n'um ramo, arqueando a espinha, para assaltar um ninho de
melros.
* * * * *
Quando n'essa tarde o Fidalgo da Torre, airoso no seu fato novo de
montar, polainas de couro polido, luvas de camurša branca, parou a egua
ao portŃo da _Feitosa_--um velho todo esfarrapado, com longos cabellos
cahidos pelos hombros e immensas barbas espalhadas pelo peito,
immediatamente se ergueu do banco de pedra onde comia rodellas de
chourišo, bebendo d'uma cabaša, para o avisar que o Sr. Sanches Lucena e
a Sr.^a D. Anna andavam por fˇra, de carruagem. Gonšalo pediu ao velho
que puchasse o ferro da sineta. E entregando um cartŃo ao mošo, que
entreabrira a rica grade dourada, com um _S_ e um _L_ entrelašados, sob
uma cor˘a de conde:
--O Sr. Sanches Lucena, bem?
O Sr. Conselheiro, agora, um pouquinho melhor...
--O que? Esteve doente?
--Pois o Sr. Conselheiro, aqui ha tres ou quatro semanas, andou muito
agoniado...
--Oh! Sinto muito... Diga ao Sr. Conselheiro que sinto muitissimo!
Chamou o velho que repicßra a sineta para o recompensar com um tostŃo.
E, interessado por aquellas barbašas e melenas de mendigo de Melodrama:
--Vocemecŕ pede esmola por estes sitios?
O homem ergueu para elle os olhos sujos, avermelhados da poeira e do
sol, mas risonhos, quasi contentes:
--Tambem me chego pela Torre, meu Fidalgo. E, grašas a Deus, lß me fazem
muito bem.
--EntŃo quando lß voltar diga ao Bento... Vocŕ conhece o Bento?
Se conhecia! E a Snr.^a Rosa...
--Pois diga ao Bento que lhe dŕ umas calšas, homem! Vocŕ assim, com
essas calšas, nŃo anda decente.
O velho riu, n'um riso lento e desdentado, mirando com gosto os sordidos
farrapos que lhe trapejavam nas canellas, mais denegridas e seccas que
galhos de inverno:
--R˘tinhas, r˘tinhas... Mas o Sr. dr. Julio diz que me ficam assim bem.
O Sr. dr. Julio, quando lß passo, sempre me tira o retrato na machina.
Ainda na semana passada... AtÚ com uns pedašos de grilh§es dependurados
do pulso, e uma espada erguida na mŃo... Parece que para mostrar ao
Governo.
Gonšalo, rindo, picou a egua. Pensava agora em alongar por Valverde:
depois recolheria por Villa-Clara, e tentaria o Gouvŕa a partilhar na
Torre um cabrito assado no espeto de cerejeira, para que elle na
vespera, na AssemblÚa, convidßra o Manoel Duarte e o Titˇ. Mas ao
atravessar a źCruz das Almas╗, onde a estrada de Corinde, tŃo linda, com
as suas filas d'alamos, crusa a ladeira de Valverde, parou--notando ao
fundo, para o lado de Corinde, como o confuso esbarro d'uma carrada de
lenha, e uma carriola d'ašougue, e uma mulher de lenšo escarlate
bracejando sobre a albarda d'um burro, e dous lavradores de enxada ßs
costas. E, de repente, todo o encalhe se despegou--a mulher trotando no
seu burrinho, logo sumida n'uma volta de arvoredo; a carriola
solavancando n'um rolo leve de poeira; o carro avanšando para a źCruz
das Almas╗ a chiar tardamente; os cavadores descendo para uma chŃ
atravez das leiras de feno... Na estrada sˇ restou, como desamparado, um
homem de jaqueta ao hombro, que se arrastava penosamente, coxeando.
Gonšalo trotou, com curiosidade:
--Que foi?... Vocemecŕ que tem?
O homem, com a perna encolhida, levantou para Gonšalo uma face
arrepanhada, quasi desmaiada, que reluzia sob as camarinhas de suor:
--Nosso Senhor lhe dŕ muito boas tardes, meu Fidalgo! Ora o que hade
ser? Desgrašas d'esta vida!
E, gemendo, contou a sua historia.--Desde mezes padecia d'uma chaga n'um
tornozello, que nŃo seccßra, nem com emplastos, nem com pˇ de murtinhos,
nem com benzeduras... E agora andava arriba, na fazenda do Sr. dr.
Julio, a concertar um socalco, para ajudar um compadre tambem doente com
maleitas--e, zßs, desaba um pedregulho, que tˇpa na ferida, leva a
carne, lasca o osso, o deixa n'aquella lastima!... AtÚ rasgßra a fralda
para ensopar o sangue e amarrar por cima o lenšo.
--Mas assim nŃo pˇde andar, homem! D'onde Ú vocemecŕ?
--De Corinde, meu Fidalgo. Manoel S˘lha, do logar da Finta. AtÚ lß,
sempre me hei-de arrastar.
--E entŃo, d'essa gente toda, que ahi estava ha bocado, ninguem o poude
ajudar?... Uma carriola, dous latag§es...
Uma rija guinada, no teimoso esforšo de firmar a perna, arrancou um
grito ao S˘lha. Mas sorriu, arquejando... Que queria o Fidalgo? Cada um,
n'este mundo, tem a sua pressa... Emfim, a rapariga do burro promettŕra
passar pela Finta, para avisar. E talvez um dos seus rapazes apparecesse
na estrada com uma eguasita que elle comprßra pela Paschoa--e que, por
desgraša, tambem mancava!...
Immediatamente, com um salto leve, o Fidalgo da Torre desmontou:
--Bem! EntŃo, egua por egua, jß vocemecŕ tem aqui esta...
O S˘lha embasbacou para Gonšalo:
--Ora essa! Santo nome de Deus!... Pois eu havia de ir a cavallo, e V.
Ex.^a a pÚ?
Gonšalo ria:
--Homem, com essas discuss§es de źeu a pÚ╗ e źvocŕ a cavallo╗, e źfaz
fav˘r╗ e źnŃo senhor╗, Ú que perdemos um tempo precioso. Monte, esteja
quieto, e trote para a Finta!
O outro recuava para a valleta da estrada, sacudindo a cabeša,
esgazeado, como no espanto de um sacrilegio:
--Isso Ú que nŃo, meu senhor, isso Ú que nŃo! Antes eu acabasse aqui ß
mingoa, com a chaga em bolor!
Gonšalo bateu o pÚ, com auctoridade:
--Monte, que mando eu! Vocemecŕ Ú um lavrador de enxada, eu sou um
Doutor formado em Coimbra, sou eu que sei, sou eu que mando!
E o S˘lha, logo submisso ante aquella forša deslumbrante do Saber
superior, agarrou em silencio a crina da egua, enfiou respeitosamente o
estribo, ajudado pelo Fidalgo, que, sem tirar as luvas brancas, lhe
amparava o pÚ entrapado e manchado de sangue.
Depois, quando elle repousou no sellim com um _ah!_ consolado:
--EntŃo que tal?
O homem sˇ murmurava o nome de Nosso Senhor, na gratidŃo e no assombro
d'aquella caridade:
--Mas isto Ú a volta do mundo... Eu aqui, na egua do Fidalgo! E o
Fidalgo, o Sr. Gonšalo Ramires, da Torre, a pÚ pela estrada!
Gonšalo gracejou. E, para entreter a caminhada, perguntou pela quinta do
Dr. Julio, que agora se arrojßra a obras e plantaš§es de vinha. Depois,
como o Manoel S˘lha conhecia o Pereira Brasileiro (que pensßra em
arrendar as terras do Dr. Julio), conversaram sobre esse esperto homem,
sobre as grandezas da _Cortiga_. Jß sem embarašo, direito no sellim, no
gosto d'aquella intimidade com o Fidalgo da Torre, o S˘lha esquecia a
chaga, a d˘r que adormentßra. E ß estribeira do S˘lha, attento e
sorrindo, o Fidalgo estugava o passo na poeira branca.
Assim se avizinhavam da _Bica-Santa_, um dos sitios decantados
d'aquellas cercanias formosas. Ahi a estrada, cortada na encosta d'um
monte, alarga e fˇrma um arejado terrašo, d'onde se abrange todo o valle
de Corinde, tŃo rico em casaes, em arvoredos, em seßras, em aguas. No
pendor do monte, coberto de carvalhos e de fragas musgosas, brˇta a
fonte nomeada, que jß em tempos d'El-Rei D. JoŃo V curava males
d'entranhas--e que uma devota senhora de Corinde, D. Rosa Miranda
Carneiro, mandou encanar desde o alto atÚ a um tanque de marmore, onde
agora corre beneficamente, por uma bica de bronze, sob a imagem e
patrocinio de Santa Rosa de Lima. De cada lado do tanque se encurvam
dous compridos bancos de pedra, que a espalhada ramaria das carvalheiras
tolda de sombra e frescura. ╔ um suave retiro onde se apanham violetas,
se comem merendas, e senhoras dos arredores se sentam em rancho, nas
tardinhas de domingo, escutando os melros, gozando a povoada, luminosa e
verdejante largueza do valle.
Antes porÚm de desembocar na _Bica-Santa_, e perto do logar do Serdal, a
estrada de Corinde quebra n'uma volta:--e, ahi, de repente, a egua
pulou, n'um reparo, que obrigou o Fidalgo da Torre, desconfiado da
pericia do S˘lha, a deitar a mŃo ß caimba do freio. F˘ra o encontro
inesperado d'uma carruagem--uma caleche forrada d'azul, com a parelha
coberta de rŕdes brancas contra a m˘sca, e na almofada, tŕzo, um
cocheiro de bigode, farda de golla escarlate e chapÚo de tˇpe amarello.
E Gonšalo mantinha ainda a egua pelo freio, como arrieiro servišal em
trilho perigoso--quando avistou, sentado n'um dos bancos de pedra, junto
da Bica, com um chale-manta por cima dos joelhos, o velho Sanches
Lucena. Ao lado o trintanario, agachado, esfregava com um mˇlho d'herva
a botina que a bella D. Anna lhe estendia, apanhando o vestido de linho
cr˙, apoiando a outra mŃo, sem luva, na cinta vergada e fina.
A desconcertada apparišŃo do Fidalgo da Torre, puxando pela rÚdea a sua
egua onde se escarranchava regaladamente um cavador em mangas de camisa,
alvorotou aquelle repousado e dormente recanto da _Bica_. Sanches Lucena
esbugalhava os olhos, esbugalhava os oculos, n'um arremesso de
curiosidade que o levantßra, com o pescošo esticado, o chale-manta
escorregado para a relva. D. Anna recolheu bruscamente a botina, logo
empertigada, na gravidade condigna da senhora da _Feitosa_, retomando
como uma insignia o cabo d'ouro da luneta d'ouro, suspensa por um cordŃo
d'ouro. E atÚ o trintanario ria pasmadamente para o S˘lha.
Mas jß, com o seu desembarašo elegante, Gonšalo, n'um relance, saudßra
D. Anna, apertava com fervor a mŃo espantada do Sanches Lucena, e,
alegremente se congratulava por aquelle encontro ditoso! Pois vinha
justamente da _Feitosa_! E ahi soubera com desgosto, por um mošo da
quinta decerto exagerado, que o Sr. Conselheiro nas ultimas semanas
andßra doente... E, entŃo como estava? como estava?--Oh! a physionomia
era excellente!
--Pois nŃo Ú verdade, Sr.^a D. Anna? O aspecto Ú excellente!
Com um leve requebro da cabeša, um fofo ondear do mˇlho de plumas
brancas sobre o chapÚo de palha vermelha, ella volveu n'uma voz rolada,
lenta e gorda, que arripiou Gonšalo:
--O Sanches agora, grašas a Deus, desfructa melhor saude...
--Um pouco melhor, sim, com effeito, muito agradecido a V. Ex.^a, Sr.
Gonšalo Ramires! murmurou o descarnado e corcovado homem, repuxando para
os joelhos o chale-manta.
E, com os oculos a luzir, cravados em Gonšalo, na curiosidade que o
abrazava, quasi lhe rosßra a face afilada, mais amarella que um cirio:
--Mas, com perdŃo de V. Ex.^a! como Ú que V. Ex.^a anda por aqui, pela
estrada de Corinde, n'este estado, a pÚ, trazendo ß rÚdea um lavrador de
enxada?...
Rindo, sobretudo para D. Anna, cujos olhos formosamente negros, d'uma
funda refulgencia liquida, tambem esperavam, serios e reservados,
Gonšalo contou o desastre do bom homem, que encontrßra no caminho
gemendo, arrastando a perna escalavrada...
--De sorte que lhe offereci a minha egua... E atÚ, se V. Ex.^a me
permitte, minha senhora, Ú necessario que eu combine com elle o resto da
jornada...
Rapidamente, voltou ao S˘lha, que, de novo acanhado ante os senhores da
_Feitosa_, com o chapeu na mŃo, encolhido sobre o sellim, como
attenuando a sua grandeza, logo se desestribou para desmontar. Mas jß
Gonšalo lhe ordenava que trotasse para a Finta--e lhe mandasse a egua
por um dos seus rapazes, alli ß Bica-Santa, onde elle se demorava com o
Snr. Conselheiro. E quando o S˘lha largou, saudando desabaladamente,
torcido, como impellido a seu pezar pelos acenos risonhos com que o
Fidalgo o despedia, o assombro do Sanches Lucena recomešou:
--Ora uma cousa d'estas! Eu tudo esperaria, tudo, menos o Sr. Gonšalo
Mendes Ramires a trazer ß rÚdea, pela estrada de Corinde, um cavador
d'enxada! ╔ a repetišŃo do Bom Samaritano... Mas para melhor!
Gonšalo gracejou, sentado no banco, junto de Sanches Lucena.--Oh! o Bom
Samaritano nŃo merecera uma pagina tŃo amavel no Evangelho sˇmente por
offerecer o burro a um Levita doente: decerto mostrßra virtudes mais
bellas...--E sorrindo para D. Anna, que, do outro lado de Sanches
Lucena, espalhava a luneta, com lentidŃo magestosa, pelas arvores e pela
Fonte que tŃo bem conhecia:
--Ha dous annos, minha senhora, que eu nŃo tenho a honra...
Mas Sanches Lucena despediu um grito:
--Oh! Sr. Gonšalo Ramires! V. Ex.^a traz sangue na mŃo!
O Fidalgo reparou, espantado. Sobre a luva de camurša branca resaltavam
duas manchas arroxeadas:
--NŃo Ú sangue meu! foi naturalmente quando o S˘lha montou, e eu lhe
segurei o pÚ escalavrado...
Arrancou a luva, que arremessou para as hervas bravas, por traz do banco
de pedra. E continuando o sorriso:
--Com effeito, nŃo tenho a honra de encontrar a V. Ex.^a, minha senhora,
desde o baile do barŃo das Marges, em Oliveira, o famoso baile de
Entrudo... Ha mais de dois annos, era eu estudante. E ainda me recordo
que V. Ex.^a estava vestida esplendidamente de Catharina da Russia...
E, emquanto a envolvia no sorrir dos olhos finos e meigos,
pensava:--źFormosa creatura! mas ordinaria! e que voz!...╗ D. Anna
tambem se recordava do baile dos Marges:
--O cavalheiro, porÚm, estß equivocado. Eu nŃo fui de Russa, fui de
Imperatriz...
--Sim, d'Imperatriz da Russia, de Grande Catharina... E com um gosto!
com um luxo!
Sanches Lucena voltou vagarosamente para Gonšalo os oculos d'ouro,
apontou um dedo alongado e livido:
--Pois tambem eu me lembro que sua mana, e minha senhora, a Sr.^a D.
Graša, trazia um trage de lavradeira de Vianna... Foi uma luzidissima
festa; nem admira; o nosso Marges Ú sempre primoroso... E desde essa
noite nŃo tornei a encontrar a mana de V. Ex.^a em intimidade. Apenas de
longe, na missa...
De resto pouco residia agora em Oliveira, apesar de conservar a casa
montada, creadagem e cocheira--porque, ou culpa do ar ou culpa da agua,
nŃo se dava bem na Cidade.
Gonšalo acalorou mais o seu interesse:
--Mas entŃo, realmente, V. Ex.^a o que tem tido?
Sanches Lucena sorriu, com amargura. Os medicos, em Lisboa, nŃo se
entendiam. Uns attribuiam ao estomago--outros attribuiam ao corašŃo.
Portanto, aqui ou alli, viscera essencial atacada. E soffria crises--mßs
crises... Emfim, com a graša de Deus, e regimen, e leite, e descanšo,
ainda esperava arrastar uns annos.
--Oh! com certeza! exclamou Gonšalo alegremente. E V. Ex.^a nŃo pensa
que a estada em Lisboa, e as Camaras, e a Politica, a terrivel Politica,
o fatiguem, o agitem?...
NŃo, pelo contrario, Sanches Lucena passava toleravelmente em Lisboa.
Melhor mesmo que na _Feitosa_! Depois, gostava d'aquella distracšŃo das
Camaras. E como conservava amigos na Capital, uma roda escolhida, uma
roda fina...
--Um d'esses nossos excellentes amigos, V. Ex.^a decerto conhece. Elle Ú
parente de V. Ex.^a... O D. JoŃo da Pedrosa.
Gonšalo, alheio ao homem, mesmo ao nome, murmurou polidamente:
--Sim, o D. JoŃo, decerto...
E Sanches Lucena, passando pelas suissas brancas a mŃo magrissima, quasi
transparente, onde reluzia um enorme annel d'armas de saphira:
--E nŃo sˇmente o D. JoŃo... Outro dos nossos amigos Ú egualmente
parente de V. Ex.^a, e chegado. Muitas vezes temos fallado de V. Ex.^a,
e da sua casa. Que elle pertence tambem ß primeira nobreza... ╔ o
Arronches Manrique.
--Cavalheiro muito dado, muito divertido! accrescentou D. Anna, com uma
convicšŃo que lhe alteou o peito, a que o corpete justo marcava a forša
višosa e a perfeišŃo.
A Gonšalo tambem nunca chegßra esse nome sonˇro. Mas nŃo hesitou:
--Sim, perfeitamente, o Manrique... De resto, eu tenho tantos parentes
em Lisboa, e vou tŃo pouco a Lisboa!... E V. Ex.^a, Sr.^a D. Anna...
Mas o Sanches Lucena insistia, deliciado n'aquella conversa de
parentescos fidalgos:
--V. Ex.^a, naturalmente, tem em Lisboa toda a sua parentella historica.
Assim eu creio que V. Ex.^a Ú primo do Duque de Lourenšal... O Duarte
Lourenšal! Elle nŃo usa o titulo, por Miguelismo, ou antes por habito:
mas emfim Ú o legitimo Duque de Lourenšal. ╔ quem representa a casa de
Lourenšal.
Gonšalo, sorrindo attentamente, desabotoßra o fraque, procurava a sua
velha charuteira de couro.
--Sim, com effeito, o Duarte... Somos primos. Diz elle que somos primos.
E eu acredito. Entendo tŃo pouco d'arvores de costado!... De facto as
casas em Portugal andam muito cruzadas; todos somos parentes, nŃo sˇ
pelo lado d'AdŃo, mas pelos Godos... E V. Ex.^a, Sr.^a D. Anna, prefere
a estada em Lisboa?
Mas, reparando que escolhera um charuto, distrahidamente o trincßra:
--Oh! perdŃo minha senhora... Ia fumar sem saber se V. Ex.^a...
Ella saudou, descendo as longas pestanas:
--O cavalheiro pˇde fumar; o Sanches nŃo fuma, mas eu atÚ aprecio o
cheiro.
Gonšalo agradeceu, enjoado com aquella voz redonda e gorda, aquelles
horrendos ź_cavalheiro, o cavalheiro_!...╗ Mas pensava:--źque linda
pelle! que bella creatura!...╗ E Sanches Lucena, inexoravel, estendera o
dedo agudo:
--Pois eu conhešo muito, nŃo o Sr. D. Duarte Lourenšal, nŃo tenho essa
subida honra por ora, mas seu irmŃo, o Sr. D. Philippe. Cavalheiro
estimabilissimo, como V. Ex.^a decerto sabe... E depois, que talento...
Que talento, no cornetim!
--Ah!
--O quŕ! V. Ex.^a nŃo ouviu seu primo, o Sr. D. Philippe Lourenšal,
tocar cornetim?
E atÚ a bella D. Anna se animou, com um sorriso languido dos beišos
cheios, mais vermelhos que cerejas maduras sobre o fresco rebrilho dos
dentes pequeninos:
--Oh! tˇca ricamente! O Sanches gosta muito de musica; eu tambem... Mas,
como V. Ex.^a comprehende, qui na aldÚa, com a falta de recursos...
Gonšalo, arremessando o phosphoro, exclamßra logo, n'um sincero
interesse:
--EntŃo, queria que V. Ex.^a ouvisse um amigo meu, que Ú verdadeiramente
sublime no violŃo, o Videirinha!...
Sanches Lucena estranhou o nome, a sua vulgaridade. E o Fidalgo,
singelamente:
--╔ um rapaz muito meu amigo, de Villa-Clara... O JosÚ Videira, ajudante
da Pharmacia...
Os oculos de Sanches Lucena cresceram de puro espanto:
--Ajudante da Pharmacia e amigo do Sr. Gonšalo Mendes Ramires!
Sim, desde estudante, dos exames do Lyceu. AtÚ o Videirinha passava as
ferias na Torre, com a mŃe, antiga costureira da casa. TŃo bom rapaz,
tŃo simples... E na realidade, no violŃo, um genio!
--Agora tem elle uma cantiga admiravel que chamou o _Fado dos Ramires_.
A musica Ú com effeito um fado de Coimbra, um fado conhecido. Mas os
versos sŃo d'elle, umas quadras engrašadas sobre cousas da minha Casa,
lendas, patranhas... Pois ficou sublime! Ainda ha dias na Torre, comigo
e com o Titˇ...
E a este nome, familiar e menineiro, Sanches Lucena mostrou outro
reparo:
--O Titˇ?
O Fidalgo ria:
--╔ uma velha alcunha d'amizade que nˇs damos ao Antonio Villalobos.
EntŃo Sanches Lucena atirou ambos os brašos, como se alguem muito
querido apparecesse na estrada:
--O Antonio Villalobos! Mas esse Ú um dos nossos fieis e bons amigos!
Cavalheiro estimabilissimo! Quasi todas as semanas nos faz o favor de
apparecer pela _Feitosa_...
E agora era o Fidalgo que pasmava ante essa intimidade a que nunca o
Titˇ alludira, quando no Gago, na Torre, na AssemblÚa, se berrava,
politicando, o nome do Sanches Lucena!
--Ah V. Ex.^a conhece...
Mas D. Anna, que se erguera bruscamente do banco, e, debrušada, recolhia
a luva e a sombrinha--lembrou ao marido o estriar lento da tarde, a
neblina subindo sempre ßquella hora do valle aquecido:
--Sabes que nunca te faz bem... E tambem nŃo faz bem ß parelha, assim
parada, ha tanto tempo.
Immediatamente Sanches Lucena, receioso, puxßra da algibeira um espesso
lenšo de sŕda branca para abafar o pescošo. E, receioso tambem pela
parelha, logo se arrancou pesadamente do banco de pedra, com um aceno
canšado ao trintanario para apanhar o chale, avisar o cocheiro. Mas
ainda atravessou, vergado e arrimado ß bengala, para o parapeito que
resguarda a estrada sobre o despenhado pendor do monte, dominando o
valle. E confessava a Gonšalo que aquelle era, nos arredores da
_Feitosa_, o seu passeio preferido. NŃo sˇ pela belleza do sitio, jß
cantado pelo źnosso mavioso Cunha Torres╗;--mas porque do terrašo da
Bica, sem esforšo, sentado no banco, avistava n'uma largueza terras
suas:
--Olhe V. Ex.^a... Para alÚm d'aquelle souto, atÚ ß chŃ e ao comoro onde
estß a casota amarella e por traz o pinhal, tudo Ú meu... O pinhal ainda
Ú meu... Acolß, do renque d'ßlamos para deante, depois do lameiro, Ú
tambem meu... Alli, do lado da ermida, pertence ao Monte-Agra... Mas,
mais para lß, passado o azinhal, pelo monte acima, Ú tudo meu!
O livido dedo, o brašo escanifrado na manga de casimira preta, cresciam
por sobre o valle.--AlÚm os pastos... Adeante os centeios... Depois o
bravio...--Tudo d'elle! E, por traz da magra figura alquebrada, de
chapÚo enterrado na nuca, o abafo de seda subido atÚ ßs pallidas orelhas
quasi despegadas, D. Anna, esvelta, clara e sŃ como um marmore, com um
sorriso esquecido nos labios gulosos, o formoso peito mais cheio,
acompanhava a enumerašŃo copiosa, affincava a luneta sobre os pastos, e
os pinhaes, e os centeios, sentindo jß--tudo d'ella!
--E agora acolß, detraz do olival, concluiu Sanches Lucena com respeito,
Ú sitio seu, Sr. Gonšalo Mendes Ramires...
--Meu?...
--De V. Ex.^a, quero dizer, ligado ß casa de V. Ex.^a. Pois nŃo
reconhece?... AlÚm, por traz do moinho, passa a estrada de Santa Maria
de Craquŕde. SŃo os tumulos dos seus antepassados... Passeio que eu
tambem ßs vezes fašo, e com gosto. Ainda ha um mez visitamos detidamente
as ruinas. E acredite que fiquei impressionado! Aquelle bocado de
claustro tŃo antigo, os grandes esquifes de pedra, a espada chumbada ß
abobada por cima do tumulo do meio... ╔ de commover! E achei muito
bonito, muito filial, da parte de V. Ex.^a, o ter sempre aquela lampada
de bronze accŕsa de noite e de dia...
Gonšalo engrolou um murmurio risonho--porque nŃo se recordava da espada,
nunca recommendßra a lampada. Mas Sanches Lucena, agora, supplicava um
precioso favor ao snr. Gonšalo Mendes Ramires. E era que S. Ex.^a lhe
concedesse a honra de o conduzir na carruagem ß Torre... Alvorošadamente
Gonšalo recusou. Nem podia! combinßra com o homem da perna dorida
esperar alli, na Bica, pela sua egoa.
--Mas fica aqui o meu trintanario, que leva a egoa de V. Ex.^a ß Torre.
--NŃo, nŃo, se V. Ex.^a me permitte, eu espero... Depois metto pelo
atalho da Crassa, porque tenho ßs oito horas na Torre, ß minha espera
para jantar, o Titˇ.
D. Anna, do meio da estrada, apressou logo o marido sacudidamente, com a
ameaša renovada da friagem, do relento... Mas, junto da caleche, Sanches
Lucena ainda emperrou para affirmar a Gonšalo, com a descarnada mŃo
sobre o encovado peito, que aquella tarde lhe ficava celebre...
--Porque vi uma cousa que poucas vezes se terß visto: o maior fidalgo de
Portugal, a pÚ pela estrada de Corinde, levando ß rÚdea no seu proprio
cavallo um cavador de enxada!
Ajudado por Gonšalo, trepou emfim pesadamente ao estribo. D. Anna jß se
enterrßra nas almofadas, alšando entre as mŃos, como uma insignia, o
cabo rebrilhante da luneta d'ouro. O trintanario tambem se entezou,
cruzou os brašos: e a caleche apparatosa, com as manchas brancas das
rŕdes dos cavallos, mergulhou no silencio e na penumbra da estrada, sob
a espalhada ramaria das faias.
źQue massada!╗ exclamou Gonšalo. E nŃo se consolava de tarde tŃo linda
assim desperdišada... Intoleravel, esse Sanches Lucena, com o Snr. D.
Fulano e o Snr. D. Sicrano, e a sua gula de źrˇda fina╗, e źtudo d'elle╗
por collina e valle! A mulher, explendida pÚša de carne, como filha de
carniceiro,--mas sem migalha de graša ou alma. E que voz, Jesus, que
voz! Gente pedante e sabuja...--E agora sˇ desejava recuperar a sua
egoa, galopar para a Torre, e desabafar com o Titˇ, familiar da
_Feitosa_! o seu ßsco por toda aquella Sancharia.
A egoa nŃo tardou, a trˇte largo, montada pelo filho do S˘lha, que, ao
avistar o Fidalgo, saltou ß estrada, de chapeu na mŃo, encouchado e
encarnado, balbuciando que o pae chegßra bem, pedia a Nosso Senhor lhe
pagasse a caridade...
--Bem, bem! Recados a teu pae. Que estimo as melhoras. Lß mandarei
saber.
N'um pulo montßra--galopava pelo facil atalho da Crassa. Mas, deante do
portŃo da Torre, encontrou um mošo do Gago, com um bilhete do Titˇ,
annunciando que nŃo podia jantar na Torre porque partia n'essa semana
para Oliveira!
--Que disparate! Para Oliveira tambem eu parto; mas janto hoje! AtÚ
combinavamos, o levava na carruagem... Elle que ficou a fazer, o Snr. D.
Antonio?
O rapaz cošou pensativamente a cabeša:
--O Snr. D. Antonio passou lß por casa para eu trazer o bilhete ao
Fidalgo... Depois, creio que tem festa, porque entrou defronte no tio
Cosme fogueteiro, a comprar bichas de rabear...
Aquellas inesperadas bichas de rabear causaram logo ao Fidalgo uma
immensa inveja:
--E onde Ú a festa, sabes?
--Eu nŃo sei, meu Fidalgo... Mas parece que Ú cousa rija, porque o Snr.
JoŃo Gouvŕa encommendou lß ao patrŃo dous grandes pratos de bolos de
bacalhau.
Bolos de bacalhau! Gonšalo sentio como a amargura de uma traišŃo:
--Oh! que animaes!
E de repente ideou uma vinganša alegre:
--Pois se vires hoje o Snr. D. Antonio ou o Snr. JoŃo Gouvŕa nŃo te
esquešas de lhes dizer que sinto muito... Que eu tambem cß tinha ß noite
na Torre uma festa. E havia senhoras. Vinha a Snr.^a D. Anna Lucena...
NŃo te esquešas, hein?
Gonšalo galgou as escadas rindo da sua invenšŃo. Mas, n'essa noite, ßs
nove horas, depois do arrastado e atochado jantar com o Manoel Duarte,
entrou na sala grande dos retratos, apenas allumiada pelo lampeŃo
dourado do corredor, para buscar uma caixa de charutos. E casualmente,
atravez da janella aberta, reparou n'um homem que, em baixo, rente da
sombra dos alamos, rondava, espreitava... Mais attento, imaginou
reconhecer os poderosos hombros, o andar bovino do Titˇ. Mas nŃo, com
certesa! o homem trasia jaqueta e carapušo de lŃ. Curioso, abafando os
passos, ainda se abeirou da varanda. O vulto porÚm descera da estrada,
logo sumido sob as arvores d'uma quelha que contorna o Casal do Miranda,
e desemboca adiante, na Portella, junto das primeiras casas de
Villa-Clara.
IV
O palacete dos Barr˘los em Oliveira (conhecido desde o comešo do seculo
pela Casa dos _Cunhaes_) erguia a sua fidalga fachada de doze varandas
no Largo d'El-Rei, entre uma solitaria viella que conduz ao Quartel e a
rua das Tecedeiras, velha rua mal empedrada, ladeirenta, opprimida pelo
comprido terrašo do jardim, e pelo muro fronteiro da antiga cerca das
Monicas. E n'essa manhŃ, justamente quando Gonšalo, na caleche da Torre
puxada pela parelha do Torto, desembocava no Largo d'El-Rei, subia pela
Tecedeiras, dobrando a esquina dos Cunhaes, n'um cavallo negro de fartas
clinas, que feria as lages com soberba e garbo, o Governador Civil, o
AndrÚ Cavalleiro, de collete branco e chapeu de palha. N'um relance, do
fundo da caleche, o Fidalgo ainda o surprehendeu levantando os
pestanudos olhos negros para as varandas de ferro do palacete. E pulou,
com um murro no joelho, rugindo surdamente--źque biltre!╗ Ao apear no
portŃo (um portŃo baixo, como esmagado pelo immenso escudo de armas dos
Sßs) tŃo suffocada indignašŃo o impellia que nŃo reparou nas effus§es do
porteiro, o velho Joaquim da Porta, e esqueceu dentro da caleche os
presentes para Gracinha, a caixa com o guardasolinho e um cesto de
flores da Torre coberto de papel de sŕda. Depois em cima, na sala
d'espera, onde JosÚ Barr˘lo correra, ao sentir nas lages do Largo
silencioso o estrepito do calhambeque, desabafou logo, arrebatadamente,
atirando o guarda pˇ para uma cadeira de couro:
--Oh senhores! Que eu nŃo possa vir ß cidade sem encontrar de cara este
animal do Cavalleiro! E sempre no Largo, defronte da casa! ╔ sorte!...
Esse bigodeira nŃo acharß outro logar para onde vß caracolar com a
pileca?
JosÚ Barr˘lo, um mošo gordo, de cabello ruivo e crespo, com um bušo
claro n'uma face mais redonda e cˇrada que uma bella mašŃ, accudiu,
ingenuamente:
--Pileca?!... Oh, menino, tem agora um cavallo lindo! Um cavallo lindo,
que comprou ao Marges!
--Pois bem! ╔ um burro feio em cima d'um cavallo bonito. Que fiquem
ambos na cavallariša. Ou que vŃo ambos pastar para as Devezas!
O Barr˘lo escancarou a b˘ca larga e fresca, de soberbos dentes, n'um
lento pasmo. E de repente, com uma patada no soalho, vergado pela cinta,
rompeu n'uma risada que o suffocava, lhe inchava as veias:
--Essa Ú d'arromba! NŃo, essa Ú para contar no Club... Um burro feio em
cima d'um cavallo bonito! E ambos a pastarem!... Tu vens hoje rico,
menino! Olha que essa! Ambos a pastarem, com os focinhos na herva, o
Governador civil e o cavallo... ╔ d'arromba!
Rebolava pela sala, com palmadas radiantes sobre a coxa obesa. E
Gonšalo, adošado por aquella ovašŃo que celebrava a sua facecia:
--Bem. Dß cß esses ossos, ou antes esses untos. E como vae a familia? A
Gracinha?... Oh! viva a linda fl˘r!
Era ella, com a sua ligeiresa airosa e menineira, os magnificos cabellos
soltos sobre um penteador de rendas, correndo alvorošada para o irmŃo,
que a envolveu n'um abrašo e em dous beijos sonoros. E immediatamente,
recuando, a declarou mais bonita, mais gorda:
--Positivamente estßs mais gorda, atÚ mais alta... ╔ sobrinho?... NŃo?
nada, por ora?
Gracinha cˇrou, com aquelle seu languido sorriso que mais lhe humedecia
e lhe enternecia a došura dos olhos esverdeados.
--Se ella nŃo quer, ella nŃo quer! gritava o JosÚ Barr˘lo, gingando, com
as mŃos enterradas nos bolsos do jaquetŃo que lhe desenhava as ancas
rolišas. A culpa nŃo Ú cß do patrŃo... Mas ella nŃo se decide!
O fidalgo da Torre reprehendeu a irmŃ:
--Pois Ú necessßrio um menino. Eu por mim nŃo caso, nŃo tenho geito: e
lß se vŃo d'esta feita Barr˘los e Ramires! A extincšŃo dos Barr˘los Ú
uma limpeza. Mas, acabados os Ramires, acaba Portugal. Portanto, Snr.^a
D. Graša Ramires, depressa, em nome da našŃo, um morgado! Um morgado
muito gordo, que eu pretendo que se chame Tructesindo!
Barr˘lo protestou, aterrado:
--O que? Turtesinho? NŃo! para tal sorte nŃo o fabrÝco eu!
Mas Gracinha deteve aquelles gracejos picantes, desejosa de saber da
Torre, e do Bento, e da Rosa cosinheira, e da horta, e dos pav§es...
Conversando, penetraram na outra sala, guarnecida de contadores da
India, de pesados cadeir§es dourados de damasco azul, com tres varandas
sobre o Largo d'El-Rei. Barr˘lo enrolou um cigarro, reclamou a historia
do Relho, da grande desordem. Tambem elle arranjßra uma źpega╗ com o
rendeiro da _Ribeirinha_, por causa d'um cˇrte de pinhal. Essa do Relho
porÚm f˘ra tremenda...
E Gonšalo, enterrado ao canto do fundo camapÚ azul, desabotoando
preguišosamente o jaquetŃo de chaviote claro:
--NŃo! foi muito simples. Jß ha mezes esse Relho andava bebedo, sem
despegar... Uma noite berrou, ameašou a Rosa, agarrou n'uma espingarda.
Eu desci, e n'um instante a Torre ficou desembarašada de Relhos e de
barulhos.
--Mas veio o Regedor, com cabos! accudio o Barr˘lo.
Gonšalo saccudiu os hombros, impaciente:
--Veio o regedor? Veio depois, para legalisar! Jß o homem abalßra,
corrido. E como resultado arrendei a Torre ao Pereira, ao Pereira da
Riosa...
Contou esse negocio excellente, tratado na varanda, ao almošo, entre
dous copos de vinho verde. Barr˘lo admirou a renda--gabou o rendeiro.
Assim Gonšalo descortinasse outro Pereira para a quinta de Treixedo,
terra tŃo generosa, tŃo mal amanhada!
┴ borda do camapÚ, coberta pelos bellos cabellos que lavßra n'essa manhŃ
e que cheiravam a alecrim, Gracinha comtemplava o irmŃo com ternura:
--E do estomago, andas melhor? Continuam as ceias com o Titˇ?
--Oh! esse animal! exclamou Gonšalo. Ha dias prometteu jantar na Torre,
atÚ a Rosa assou um cabrito no espeto, magnifico... Depois falhou: creio
que teve uma orgia infame, com bichas de rabear. Elle vem esta semana a
Oliveira... E Ú verdade! vocŕs sabiam da intimidade do Titˇ com o
Sanches Lucena?
Historiou entŃo, com exagero alegre, o encontro da Bica-Santa, o horror
que lhe causßra a bella D. Anna, a descoberta inesperada d'essa
familiaridade do Titˇ na _Feitosa_.
Barr˘lo recordou que uma tarde, antes do S. JoŃo, avistßra o Titˇ,
deante do portŃo da _Feitosa_, a passear pela trela um cŃosinho branco
de regašo...
--Mas o que eu nŃo comprehendo, menino, Ú esse teu źhorror╗ pela D.
Anna... Caramba! Mulher soberba! Um quebrado de quadris, uns olh§es, um
peitoril...
--Calle essa b˘ca impura, devasso! gritou Gonšalo. Pois aqui ao lado da
sua mulher, que Ú a fl˘r das Grašas, ousa louvar semelhante peša de
carne!
Gracinha rindo, sem ciumes, comprehendia źa admirašŃo do JosÚ.╗
Realmente, a Anna Lucena, que vistosa, que bella!...
--Sim, concedeu Gonšalo, bella como uma bella egoa... Mas aquella voz
gorda, papuda... E a luneta, os modos... E źo cavalheiro pˇde fumar, o
cavalheiro estß enganado...╗ Oh! senhores, pavorosa!
Barr˘lo gingava, deante do sophß, com as mŃos nos bolsos da rabona:
--Uvas verdes, Snr. D. Gonšalo, uvas verdes!
O Fidalgo dardejou sobre o cunhado uns olhos ferozes:
--Nem que ella se me offerecesse, de joelhos, em camisa, com os duzentos
contos do Sanches n'uma salva d'ouro!
Sorrindo, vermelha como uma pionia, com um źoh╗ escandalisado, Gracinha
bateu no hombro de Gonšalo--que puxou por ella, galhofeiramente:
--Venha lß essa bochecha, e outra beijoca, para purificar! Com effeito,
sˇ pensar na D. Anna arrasta a gente ßs imagens brutaes... Dizias entŃo
do estomago... Sim, filha, combalido. E ha dias mais pesado, desde o tal
cabrito no espeto e da companhia beberrona do Manoel Duarte. Tu tens cß
agua de Vidago?... EntŃo, Barr˘linho, sŕ angelico. Manda trazer jß uma
garrafinha bem fresca. E olha! pergunta se subiram um ašafate e uma
caixa de papelŃo que eu deixei na caleche? Que ponham no meu quarto. E
nŃo desembrulhes, que Ú surpreza... Escuta! Que me levem agua bem
quente. Preciso mudar toda a roupa... Estava uma poeirada por esse
caminho!
E quando o Barr˘lo abalou, a rebolar e a assobiar, Gonšalo, esfregando
as mŃos:
--Pois vocŕs ambos estŃo explendidos! E na harmonia que convem. Tu
positivamente mais fˇrte, mais cheia. AtÚ pensei que fosse sobrinho. E o
Barr˘lo mais delgado, mais leve...
--Oh, agora o JosÚ passeia, monta a cavallo, jß nŃo adormece tanto
depois de jantar...
--E a outra familia? A tia Arminda, o rancho Mendonša? Bem?... Padre
Sueiro, que Ú feito d'esse santo?
--Teve um ataquesito de rheumatismo, muito ligeiro. Agora bom, sempre no
Pašo do Bispo, na Bibliotheca... Parece que se entretem a fazer um livro
sobre os Bispos.
--Bem sei, a Historia da SÚ d'Oliveira... Pois eu tambem tenho
trabalhado muito, Gracinha! Ando a escrever um Romance.
--Ah!
--Um Romance pequeno, uma Novella, para os _Annaes de Litteratura e de
Historia_, uma Revista que fundou um rapaz meu amigo, o Castanheiro... ╔
sobre um facto historico da nossa gente... Sobre um av˘ nosso, muito
antigo, Tructesindo.
--Tem graša, que fez elle?
--Horrores. Mas Ú pittoresco... E depois o Pašo de Santa Ireneia, no
sÚculo XII, em todo o seu explendor! Emfim uma bella reconstrucšŃo do
velho Portugal e sobre tudo dos velhos Ramires. Has-de gostar... NŃo ha
amores, tudo guerras. Apenas, muito remotamente, uma das nossas
antepassadas, uma D. Menda, que eu nem sei se realmente existiu. Tem seu
chic, hein?... E tu comprehendes, como eu desejo tentar a Politica,
preciso primeiramente apparecer, espalhar o meu nome...
Gracinha sorria docemente para o irmŃo, no costumado enlevo:
--E agora tens alguma idÚa? A tia Arminda lß continua sempre com a teima
que devias entrar na Diplomacia. Ainda ha dias... źAi, o Gonšalinho,
assim galante, e com aquelle nome, sˇ n'uma grande embaixada!╗
Gonšalo despegßra lentamente do vasto camapÚ, reabotoando o jaquetŃo
claro:
--Com effeito ando com uma idÚa, ha dias... Talvez me viesse d'um
romance inglez, muito interessante, e que te recommendo, sobre as
antigas Minas de Ophir, _King Salomon's Mines_... Ando com idÚas de ir
para a Africa.
--Oh Gonšalo, credo! Para a Africa?
O escudeiro entrßra com duas garrafas de agua de Vidago, ambas
desarrolhadas, n'uma salva. Precipitadamente, para aproveitar o
źpiquesinho╗, Gonšalo encheu um copo enorme de crystal lavrado. Ah! que
delicia d'agua!--E como o Barr˘lo voltava, annunciando que cumprira as
ordens de S. Ex.^a:
--Bem! entŃo logo conversamos ao almošo, Gracinha! Agora lavar, mudar de
roupa, que nŃo paro com estas infames comich§es...
Barr˘lo acompanhou o cunhado ao quarto, um dos mais espašosos e alegres
do Palacete, forrado de cretones c˘r de canario com uma varanda para o
jardim, e duas janellas de peitoril sobre a rua das Tecedeiras e os
velhos arvoredos do convento das Monicas. Gonšalo impaciente despiu logo
o casaco, saccudiu para longe o collete:
--Pois tu estßs explendido, Barr˘lo! Deves ter perdido tres ou quatro
kilos. SŃo naturalmente os kilos que Gracinha ganhou... Vocŕs, se assim
se equilibram, ficam perfeitos.
Deante do espelho Barr˘lo acariciava a cinta, com um risinho deleitado:
--Realmente, parece que adelgacei... AtÚ sinto nas calšas...
Gonšalo abrira o gavetŃo da rica commoda de ferragens douradas, onde
conservava sempre roupa (atÚ duas casacas), para evitar o transporte de
malas entre os Cunhaes e a Torre. E ria, aconselhava o bom Barr˘lo a
źadelgašar╗ sem descanšo, para belleza da futura raša Barrolica--quando
em baixo, na silenciosa rua das Tecedeiras as patas de um cavallo de
luxo feriram as lages em cadencia lenta.
Logo desconfiado, Gonšalo correu ß janella, ainda com a camisa que
desdobrava. E era _elle_! Era o AndrÚ Cavalleiro, que descia ladeando,
sopeando a rÚdea, para escarvar com garbo e fragor a rampa mal
empedrada. Gonšalo virou para o Barr˘lo a face chammejante de fur˘r:
--Isto Ú uma provocašŃo! Se este descarado d'este Cavalleiro passa outra
vez na maldita pileca, por debaixo das janellas, apanha com um balde
d'agua suja!...
Barr˘lo, inquieto, espreitou:
--Naturalmente vae para casa das Louzadas... Anda agora muito intimo das
Louzadas... Sempre por aqui o vejo... E Ú para as Louzadas.
--Que seja para o inferno! Pois, em toda a cidade, nŃo ha outro caminho
para casa das Louzadas? Duas vezes em meia hora! Grande insolente! Tem
uma chapada d'agua de sabŃo, pela grenha e pela bigodeira, tŃo certo
como eu ser Ramires, filho de meu pae Ramires!
Barr˘lo beliscava a pelle do pescošo, constrangido ante aquelles
rancores ruidosos que desmanchavam o seu socego. Jß, por imposišŃo de
Gonšalo, rompera desconsoladamente com o Cavalleiro. E agora antevia
sempre uma bulha, um escandalo que o indisporia com os amigos do
Cavalleiro, lhe vedaria o Club e as došuras da Arcada, lhe tornaria
Oliveira mais enfadonha que a sua quinta da _Ribeirinha_ ou da
_Murtosa_, solid§es detestadas. NŃo se conteve, arriscou o costumado
reparo:
--Ë Gonšalinho, olha que tambem todo esse espalhafato sˇ por causa da
Politica...
Gonšalo quasi quebrou o jarro, na furia com que o pousou sobre o marmore
do lavatorio:
--Politica! Ahi vens tu com a Politica! Por Politica nŃo se atira agua
suja aos Governadores Civis. Que elle nŃo Ú Politico, Ú sˇ malandro!
AlÚm d'isso...
Mas terminou por encolher os hombros, emmudecer, diante do pobre bac˘co
de bochechas pasmadas, que, n'aquellas rondas do Cavalleiro pelos
Cunhaes, sˇ notava o źlindo cavallo╗ ou źo caminho mais curto para as
Louzadas!...╗
--Bem! resumiu. Agora larga, que me quero vestir... Do bigodeira me
encarrego eu.
--EntŃo, atÚ logo... Mas se elle passar nada d'asneiras, hein?
--Sˇ justiša, aos baldes!
E bateu com a porta nas costas resignadas do bom Barr˘lo, que, pelo
corredor, suspirando, lamentava o assomado genio do Gonšalinho, as
coleras desproporcionadas em que o lanšava źa Politica.╗
Em quanto se ensaboava com vehemencia, depois se vestia n'uma pressa
irada, Gonšalo ruminou aquelle intoleravel escandalo. Fatalmente, apenas
se apeava em Oliveira, encontrava o homem da grande guedelha,
caracolando por sob as janellas do palacete, na pileca de grandes
clinas! E o que o desolava era perceber no corašŃo de Gracinha, pobre
corašŃo meigo e sem fortaleza, uma teimosa raiz de ternura pelo
Cavalleiro, bem enterrada, ainda vivaz, facil de reflorir... E nenhum
outro sentimento forte que a defendesse, n'aquella ociosidade
d'Oliveira--nem superioridade do marido, nem encanto d'um filho no seu
beršo. Sˇ a amparava o orgulho, certo respeito religioso pelo nome de
Ramires, o medo da pequena terra espreitadeira e mexeriqueira. A sua
salvašŃo seria o abandono da cidade, o encerrado retiro n'uma das
quintas do Barr˘lo, a _Ribeirinha_, sobretudo a _Murtosa_, com a linda
matta, os musgosos muros de convento, a aldŕa em redor para ella se
occupar como castellŃ benefica. Mas quŕ! Nunca o Barr˘lo, consentiria em
perder o seu voltarete no Club, e a cavaqueira da tabacaria źElegante╗,
e as chalašas do Major Ribas!
Afogueado pelo calor, pela emošŃo, Gonšalo abriu a varanda. Em baixo, no
curto terrašo ladrilhado, orlado de vasos de louša, precedendo o jardim,
Gracinha, ainda soltos os cabellos por cima do penteador, conversava com
outra senhora, muito alta, muito magra, de chapeu marujo enfeitado de
papoulas, que segurava entre os brašos um repolhudo mˇlho de rosas.
Era a źprima╗ Maria Mendonša, mulher de JosÚ Mendonša, condiscipulo do
Barr˘lo em Amarante, agora capitŃo do Regimento de Cavallaria
estacionado em Oliveira. Filha d'um certo D. Antonio, senhor (hoje
Visconde) dos Pašos de Severim, devorada pela preoccupašŃo de
parentescos fidalgos, de origens fidalgas, ligava sempre surrateiramente
o vago solar de Severim a todas as casas nobres de Portugal--sobre tudo,
mais gulosamente, ß grande casa de Ramires: e, desde que o regimento se
aquartellßra em Oliveira, tratßra logo Gracinha por źtu╗ e Gonšalo por
źprimo╗, com a intimidade especial, que convem a sangues superiores.
Todavia mantinha amisades muito seguidas e activas com brazileiras ricas
d'Oliveira--atÚ com a viuva Pinho, dona da loja de pannos, que (segundo
se murmurava) lhe fornecia os dous filhos ainda pequenos de calš§es e de
jalecas. Tambem convivia intimamente, jß na cidade, jß na _Feitosa_, com
D. Anna Lucena. Gonšalo gostava da sua graša, da sua agudeza, da
vivacidade maliciosa que a agitava n'uma linda crepitašŃo de galho,
ardendo com alegria. E quando, ao rumor da janella perra, ella levantou
os olhos lusidios e espertos, foi em ambos uma surpresa carinhosa:
--Oh prima Maria! Que felicidade, logo que chego e que abro a janella...
--E para mim, primo Gonšalo, que o nŃo via desde a sua volta de
Lisboa!... Pois estß mais lindo, assim de bigode...
--Dizem que estou lindissimo, absolutamente irresistivel! AtÚ aconselho
ß prima Maria que se nŃo approxime muito de mim, para se nŃo incendiar.
Ella deixou pender desoladamente nos brašos o seu pesado molho de rosas:
--Ai Jesus, entŃo estou perdida, que ainda agora prometti ß prima Graša
jantar cß esta tarde!... Oh Gracinha, por quem Ús, p§e um biombo entre
os dois!
Gonšalo gritou, pendurado da varanda, jß deliciado com os chistes da
prima Maria:
--NŃo! enfio eu um _abat-jour_ pela cabeša para attenuar o meu
brilho!... E o maridinho, os pequenos? Como vae o nobre rancho?
--Vivendo, com algum pŃo e muita graša de Deus... EntŃo atÚ logo, primo
Gonšalo! E seja misericordioso!
E ainda elle ria, encantado--jß a prima Maria depois de cochichar e
d'estalar dois beijos apressados na face de Gracinha, desapparecŕra pela
porta envidrašada da sala com a sua elegancia esgalgada. Gracinha,
lentamente, subiu os tres degraus de marmore do jardim. Da varanda,
Gonšalo ainda avistou atravez da ramaria leve, entre as sebes de buxo, o
penteador branco, os fartos cabellos cabidos, relusindo no sol como uma
cascata de azeviche. Depois o negro brilho, as claras rendas,
desappareceram sob os loureiros da rua que conduzia ao Mirante.
Mas Gonšalo nŃo se arredou d'entre as janellas, limando vagamente as
unhas, espreitando pelas cortinas, n'uma desconfianša, quasi n'um terror
que o Cavalleiro de novo surgisse na pileca--agora que Gracinha se
embrenhßra para os lados d'esse commodo Mirante, construcšŃo do seculo
XVIII, imitando um Templosinho do Amor, que rematava o longo terrašo do
jardim e dominava a rua das Tecedeiras. Mas a calšada permanecia
silenciosa, sob as derramadas sombras de arvoredo do Palacete e do
Convento. E por fim decidiu descer, envergonhado da espionagem--certo
que a irmŃ nŃo se mostraria ao Cavalleiro na varandinha do Mirante,
assim com os cabellos em desalinho, por cima d'um penteador.
E cerrava a porta, quando se encontrou deante dos brašos do Padre
Sueiro, que o prenderam pela cinta com affago e respeito.
--Oh! meu ingratissimo Padre Sueiro! exclamava Gonšalo, batendo
ternamente nas gordas costas do CapellŃo. EntŃo que feia acšŃo foi esta?
Mais de um mez sem apparecer na Torre! Agora para o Sr. Padre Sueiro jß
nŃo ha Gonšalinho, ha sˇ Gracinha...
Enternecido, quasi com uma lagrima a bailar nos mansos olhos miudos, que
mais negrejavam entre a frescura rozea da face roliša e a cabecinha
branca como algodŃo--Padre Sueiro sorria, fechando as mŃos sobre o peito
da batina d'alpaca, d'onde surdia a ponta de um lenšo de quadrados
vermelhos. E nŃo lhe escasseßra certamente o desejo d'ir ß Torre. Mas
aquelle trabalhinho na Bibliotheca do Pašo do Bispo... Depois o seu
rheumatismosito... Emfim a Sr.^a D. Graša sempre esperando S. Ex.^a, um
dia, outro dia...
--Bem, bem! acudiu alegremente Gonšalo, comtanto que o corašŃo nŃo se
esquecesse da Torre...
--Ah! esse! murmurou Padre Sueiro com commovida gravidade.
E pelo corredor de paredes azues, adornadas com gravuras coloridas das
batalhas de NapoleŃo, Gonšalo resumiu as novidades da Torre:
--Como o Padre Sueiro sabe, rebentou aquelle escandalo do Relho... E
ainda bem, porque conclui um negocio explendido. Imagine! Arrendei ha
dias a quinta ao Pereira Brazileiro, ao Pereira da Riosa, por um conto
cento e cincoenta mil rÚis...
O capellŃo suspendeu a pitada, que colhera n'uma caixa de prata dourada,
pasmado para o Fidalgo:
--Ora ahi estß como as cousas se inventam! Pois por cß constou que V.
Ex.^a tratßra com o JosÚ Casco, o JosÚ Casco dos Bravaes. AtÚ no
Domingo, ao almošo, a Sr.^a D. Graša...
--Sim, interrompeu o Fidalgo com uma fugidia c˘r na face fina.
Effectivamente o Casco veio ß Torre, conversßmos. Primeiramente quiz,
depois nŃo quiz. Aquellas cousas do Casco! Einfim, uma massada... NŃo
ficou nada decidido. E quando o Pereira, uma bella manhŃ, me appareceu
com a proposta, eu, inteiramente desligado, acceitei, e com que
alvorošo!... Imagine! Um augmento soberbo de renda, o Pereira como
rendeiro... O Padre Sueiro conhece bem o Pereira...
--Homem entendido, concordou o CapellŃo cošando embarašadamente o
queixo. NŃo ha duvida. E homem de bem... Depois nŃo havendo palavra dada
ao Cas...
---Pois o Pereira para a semana vem ß cidade, atalhou apressadamente
Gonšalo. O Padre Sueiro previne o tabelliŃo Guedes, e assignamos essa
bella escriptura. SŃo as condiš§es costumadas. Creio que ha uma reserva
a respeito da hortališa e do porco... Emfim o Padre Sueiro deve receber
carta do Pereira.
E immediatamente, descendo a escada, passando o lenšo perfumado pelo
bigode, gracejou com o capellŃo sobre o famoso _Fado dos Ramires_ em que
elle collaborava com o Videirinha. Oh! Padre Sueiro fornecera lendas
sublimes! Mas aquella de Santa Aldonša, realmente, f˘ra ataviada com
exagerašŃo... Quatro Reis a levarem a Santa aos hombros!
--SŃo Reis de mais, Padre Sueiro!
O bom capellŃo protestou, logo interessado e serio, no amor d'aquella
obra que glorificava a Casa:
--Ora essa! Com perdŃo de V. Ex.^a... Perfeitissimamente exacto. Lß o
conta o Padre Guedes do Amaral, nas suas _Damas da C˘rte do Ceu_, livro
precioso, livro rarissimo, que o Sr. JosÚ Barr˘lo tem na Livraria. NŃo
especifica os Reis, mas diz quatro... źAos hombros de quatro Reis e com
acompanhamento de muitos Condes.╗ Mas o nosso JosÚ Videira declarou que
nŃo podia metter os Condes por causa da rima.
O Fidalgo ria, dependurando n'um cabide, ao fundo da escada, o chapeu de
palha com que descŕra:
--Por causa da rima, pobres Condes... Mas o fado estß lindo. Eu trago
uma copia para a Gracinha cantar ao piano... E agora outra cousa, Padre
Sueiro. O que se conta por ahi do Governador Civil, d'esse Sr. AndrÚ
Cavalleiro?...
O capellŃo encolheu os hombros, desdobrando cautelosamente o seu vasto
lenšo de quadrados vermelhos:
--Eu, como V. Ex.^a sabe, nŃo entendo de Politica. Depois tambem nŃo
frequento os cafÚs, os sitios onde se questiona Politica... Mas parece
que gostam.
No corredor um escudeiro gordo, de opulentas suissas ruivas, que Gonšalo
nŃo conhecia, badalou a sineta do almošo. Gonšalo reparou, avisou o
homem que a Snr.^a D. Maria da Graša andava para o fundo do jardim...
--Entrou agora, Snr. D. Gonšalo! accudiu o escudeiro. E atÚ manda
perguntar se V. Ex.^a deseja para o almošo vinho verde de Amarante, de
_Vidainhos_.
Sim, com certeza, vinho de _Vidainhos_. Depois sorrindo:
--Oh Padre Sueiro, previna este escudeiro novo que eu nŃo tenho _Dom_.
Sou simplesmente Gonšalo, grašas a Deus!
O capellŃo murmurou que todavia, em documentos da Primeira Dynastia,
appareciam Ramires com _Dom_. E, como Gonšalo parara deante do
reposteiro corrido da sala, logo o bom velho se curvou, com as suas
escrupulosas, reverentes ceremonias, para o Fidalgo passar.
--EntŃo, Padre Sueiro, por quem Ú!
Mas elle, com apegado respeito:
--Depois de V. Ex.^a, meu senhor...
Gonšalo afastou o reposteiro, empurrou docemente o capellŃo:
--Padre Sueiro, jß nos documentos da Primeira Dynastia se estabeleceu
que os Santos nunca andam atraz dos Peccadores!
--V. Ex.^a manda, e sempre com que graša!
Depois dos annos de Gracinha, uma tarde, pelas tres horas, Gonšalo,
recolhendo com Padre Sueiro d'uma visita ß Bibliotheca do Pašo do Bispo,
sentiu logo da antecamara o vozeirŃo do Titˇ, que rolava na sala azul em
trovŃo lento. Franziu vivamente o reposteiro--e sacudiu o punho para o
immenso homem que enchia um dos cadeir§es dourados, estirando por sobre
as fl˘res do tapete umas botas novas de grossas tachas reluzentes:
--Oh infame!... EntŃo n'outro dia assim me larga, sem escrupulo, depois
de eu lhe preparar um cabrito estupendo, assado n'um espeto de
cerejeira? E para quŕ?... Para uma orgia reles, com bolinhos de bacalhau
e bichinhas de rabear!
Titˇ nŃo desmanchou a sua conchegada beatitude:
--Impossibilissimo. De tarde encontrei o JoŃo Gouveia no Chafariz. E sˇ
entŃo nos lembrßmos de que eram os annos da D. Casimira. Dia sagrado!
Aquellas ceias de Villa-Clara, as tresnoutadas źpandegas╗ com violŃo,
impressionavam sempre Barr˘lo, que as appetecia. E com o olho agušado,
do canto da mesa onde esfarelava cuidadosamente pacotes de tabaco dentro
de uma terrina do JapŃo:
--Quem Ú a D. Casimira? Vocŕs em Villa-Clara descobrem uns typos...
Conta lß!
--Um monstro! declarou Gonšalo. Uma matronaša bojuda como uma pipa, com
um pŕllo nojento no queixo. Vive ao pÚ do Cemiterio, n'um cacifro que
tresanda a petroleo, onde este senhor e as auctoridades vŃo jogar o
quino, e derrišar com umas serigaitas de cazabeque vermelho e de
farripas... Nem se pˇde decentemente contar deante do Snr. Padre Sueiro!
O capellŃo, que sem rumor se esbatera n'uma sombra discreta, entre os
franjados setins d'uma cortina e um pesado contador da India, moveu os
hombros n'um consentimento risonho, como acostumado a todas as fealdades
do Peccado. E, com pachorra, o Titˇ emendava o esbošo burlesco do
Fidalgo:
--A D. Casimira Ú gorda, mas muito aceada. AtÚ me pediu para eu lhe
comprar hoje, na cidade, uma bacia nova d'assento. A casa nŃo cheira a
petroleo e fica por traz do convento de Santa Theresa. As serigaitas sŃo
simplesmente as sobrinhas, duas raparigas alegres que gostam de rir e de
trošar... E o Snr. Padre Sueiro podia, sem medo...
--Bem, bem! atalhou Gonšalo. Gente deliciosa! Deixemos a D. Casimira,
que tem bacia nova para os seus semicupios... Vamos ß outra infamia do
Sr. Antonio Villalobos!
Mas Barr˘lo insistia, curioso:
--NŃo, nŃo, conta lß, Titˇ... Noite d'annos, patuscada rija, hein?
--Ceia pacata, contou o Titˇ com a seriedade que lhe merecia a festa das
suas amigas. A D. Casimira tinha uma bella frangalhada com ervilhas. O
JoŃo Gouveia trouxe do Gago uma travessa de b˘los de bacalhau que
calharam... Depois, fogo de vistas na horta. O Videirinha tocou, as
pequenas cantaram... NŃo se passou mal.
Gonšalo esperava--irresistivelmente interessado pela ceia das Casimiras:
--Acabou, hein?... Agora a outra infamia, mais grave! EntŃo o Snr.
Antonio Villalobos Ú intimo do Sanches Lucena, frequenta todas as
semanas a _Feitosa_, toma chß e torradas com a bella D. Anna, e esconde
tenebrosamente dos seus amigos estes privilegios gloriosos?...
--Sem contar, gritou o Barr˘lo deliciosamente divertido, que lhe passeia
ß trela os cŃesinhos felpudos!
--Sem contar que lhe passeia ß trela os cŃesinhos felpudos! echoou
cavamente Gonšalo. Responda, meu illustre amigo!
O Titˇ remecheu o vasto corpo dentro do cadeirŃo, recolheu as botas de
tachas luzentes, afagou lentamente a face barbuda, que uma vermelhidŃo
aquecŕra. E depois de encarar Gonšalo, intensamente, com um esforšo de
sagacidade que mais o afogueou:
--Tu jß alguma vez, por curiosidade, me perguntaste se eu conhecia o
Sanches Lucena? Nunca me perguntaste...
O Fidalgo protestou. NŃo! Mas constantemente na Assembleia, no Gago, na
Torre, elles berravam, em quest§es de Politica, o nome do Sanches
Lucena! Nada mais natural, atÚ mais prudente, do que alludir o Snr. Titˇ
ß sua intimidade illustre! Ao menos para evitar que elle, ou os amigos,
deante do Snr. Titˇ que comia as torradas da _Feitosa_, tratassem o
Sanches Lucena como um trapo!
O Titˇ despegou do cadeirŃo. E afundando as mŃos nos bolsos da quinzena
d'alpaca, sacudindo desinteressadamente os hombros:
--Cada um tem sobre o Sanches a sua opiniŃo... Eu apenas o conhešo ha
quatro ou cinco mezes, mas acho que Ú serio, que sabe as cousas...
Agora, lß nas Camaras...
Gonšalo, indignado, bradava que se nŃo discutiam os meritos do Snr.
Sanches Lucena--mas os segredos do Snr. Titˇ Villalobos! E o escudeiro
novo, avanšando as suissas ruivas por uma fenda do reposteiro, annunciou
que o Snr. Administrador de Villa-Clara procurava Suas Ex.^{as}...
Barr˘lo largou logo a terrina de tabaco:
--O Snr. JoŃo Gouveia! Que entre! Bravo! temos cß toda a rapaziada de
Villa-Clara!
E Titˇ, da janella onde se refugiara, lanšou o vozeirŃo, mais troante,
abafando a importuna conversa do Sanches e da _Feitosa_:
--Viemos ambos! Por signal n'uma traquitana infame... AtÚ se nos
desferrou uma das pilecas e tivemos de parar na Vendinha. NŃo se perdeu
tempo, que ha agora lß um vinhinho branco que Ú d'aqui da ponta fina!...
Beliscava a orelha. Aconselhava ruidosamente Barr˘lo e Gonšalo a
passarem na Vendinha, para provar a pinga celeste.
--AtÚ aqui o Snr. Padre Sueiro lhe atišava uma caneca valente, apesar do
Peccado!
Mas JoŃo Gouveia entrou, encalmado, empoeirado, com um vinco vermelho na
testa, do chapeu e do calor--e abotoado na sobrecasaca preta, de calšas
pretas, de luvas pretas. Sem folego, apertou silenciosamente pela sala
as mŃos amigas que o acolhiam. E desabou sobre o camapÚ, implorando ao
amigo Barr˘lo a caridade d'uma bebidinha fresca!
--Estive para entrar no cafÚ Monaco. Mas reflecti que n'esta grandiosa
casa dos Barr˘los as bebidas sŃo de mais confianša.
--Ainda bem! Vocŕ que quer? Orchata? Sangria? Limonada?
--Sangria.
E, limpando o pescošo e a testa, amaldišoou o indecente calor
d'Oliveira:
--Mas ha gente que gosta! Lß o meu chefe, o Snr. Governador Civil,
escolhe sempre a hora do calor para passear a cavallo. Ainda hoje... Na
repartišŃo atÚ ao meio dia; depois, cavallo ß porta; e larga atÚ ß
estrada de Ramilde, que Ú uma Africa... NŃo sei como lhe nŃo fervem os
miolos!
--Oh! acudiu Gonšalo, Ú muito simples. Se elle os nŃo tem!
O administrador saudou gravemente:
--Jß cß faltava com a sua ferroadasinha o Snr. Gonšalo Mendes Ramires!
NŃo comecemos, nŃo comecemos... Este seu cunhado, Barr˘lo, Ú bicho
indomesticavel! Sempre reponta!
O bom Barr˘lo gaguejou, constrangido, que Gonšalinho em Politica nŃo
dispensava a piada...
--Pois olhe! declarou o administrador, sacudindo o dedo para Gonšalo.
Esse Snr. AndrÚ Cavalleiro, que nŃo tem miolos, ainda esta manhŃ na
RepartišŃo gabou com immensa sympathia os miolos do Snr. Gonšalo Mendes
Ramires!...
E Gonšalo, muito serio:
--Tambem nŃo faltava mais nada! Para esse Governador Civil ser
perfeitamente absurdo sˇ lhe restava que me considerasse um asno!
--PerdŃo! gritou o Administrador, que se erguera, desabotoando logo a
sobrecasaca, para commodidade da contenda.
Barr˘lo acudio, afflicto, carregando nos hombros do Gouveia--para o
socegar e o rep˘r no camapÚ:
--NŃo, meninos, nŃo! Politica, nŃo! E entŃo essa massada do
Cavalleiro... Vamos ao que importa. Vocŕ janta comnosco, JoŃo Gouveia?
--NŃo, obrigado. Jß prometti jantar com o Cavalleiro. Temos lß o Ignacio
Vilhena. Vae lŕr um artigo que escreveu para o _Boletim de GuimarŃes_
sobre umas f˘rmas de fabricar ossos de martyres, descobertas nas obras
do convento de S. Bento. Estou com curiosidade... E a Snr.^a D. Graša,
bem? Quem eu nŃo avistava havia mezes era o Snr. Padre Sueiro. Nunca
apparece agora pela Torre!... Mas sempre rijo, sempre višoso. Oh, Snr.
Padre Sueiro, qual Ú o seu segredo para toda essa meninice?
Do seu canto, o capellŃo sorriu timidamente. O segredo? Poupar a
Vida--nŃo a consumindo nem com ambiš§es nem com decepš§es. Ora para
elle, louvado Deus, a vida corria muito simples e muito pequenina. E
fˇra o seu rheumatismo...
Depois, cˇrando d'acanhamento, atravez das sentenšas evangelicas que lhe
escapavam:
--Mas mesmo o rheumatismo nŃo Ú mal perdido. Deus, que o manda, sabe
porque o manda... Soffrer edifica. Por que enfim o que nˇs soffremos nos
leva a pensar no que os outros soffrem...
--Pois olhe, volveu com alegre incredulidade o Administrador, eu, quando
tenho os meus ataques de garganta, nŃo penso na garganta dos outros!
Penso sˇ na minha que me dß bastante cuidado. E agora a vou regalar
n'aquella bella sangria...
O escudeiro vergava, com a luzente bandeja de prata, carregada de copos
de sangria onde boiavam rodellinhas de limŃo. E todos se tentaram, todos
beberam, atÚ Padre Sueiro, para mostrar ao Snr. Antonio Villalobos que
nŃo desdenhava o vinho, dadiva amavel de Deus--pois como ensina Tibulo
com verdade, apezar de gentilico, _vinus facit dites animos, mollia
corda dat_, enrija a alma e adoša o corašŃo.
JoŃo Gouveia, depois d'um suspiro consolado, pousou na bandeja o copo
que esvasißra d'um trago e interpellou Gonšalo:
--Vamos a saber! EntŃo n'outro dia que historia phantastica foi essa
d'uma festa na Torre, com senhoras, com a D. Anna Lucena?... Eu nŃo
acreditei quando o pequeno do Gago me encontrou, me deu o recado.
Depois...
Mas d'entre as cortinas da janella, onde acabava a sangria, Titˇ
novamente rebombou, interpellando tambem o Fidalgo:
--Oh s˘ Gonšalo! E o que me contou ha pouco o Barr˘lo?... Que andavas
com idÚas de abalar para a Africa?
Ao espanto de JoŃo Gouveia quasi se misturou terror. Para a Africa?... O
quŕ? Com um emprego para a Africa?...
--NŃo! plantar c˘cos! plantar cacau! plantar cafÚ! exclamava o Barr˘lo,
com divertidas palmadas na c˘xa.
Pois Titˇ approvava a idÚa! Tambem elle, se arranjasse um capital, dez
ou quinze contos, tentava a Africa, a traficar com o preto... E tambem
se f˘sse mais pequeno, mais secco. Que homens do seu corpanzil,
necessitando muita comezaina e muita vinhaša, nŃo aguentam a Africa,
rebentam!
--O Gonšalo sim! ╔ chupado, Ú rijo; nŃo carrega na agua-ardente; estß na
conta para Africanista... E sempre te digo! Carreira bem mais decente
que essa outra por que tens mania, de deputado! Para que? Para palmilhar
na Arcada, para bajular Conselheiros.
Barr˘lo concordou, com alarido. Tambem nŃo comprehendia a teima de
Gonšalo em ser deputado! Que massada! Eram logo as intrigas, e as
desandas nos jornaes, e os enxovalhos. E sobretudo aturar os eleitores.
--Eu, nem que me nomeassem depois Governador Civil, com um titulo e uma
gran-cruz a tiracollo, como o Freixomil!
Gonšalo escutßra, n'um silencio risonho e superior, enrolando
laboriosamente um cigarro com o tabaco do Barr˘lo:
--Vocŕs nŃo comprehendem... Vocŕs nŃo conhecem a organisašŃo de
Portugal. Perguntem ahi ao Gouveia... Portugal Ú uma fazenda, uma bella
fazenda, possuida por uma parceria. Como vocŕs sabem ha parcerias
commerciaes e parcerias ruraes. Esta de Lisboa Ú uma _parceria
politica_, que governa a herdade chamada Portugal... Nˇs os Portuguezes
pertencemos todos a duas classes: uns cinco a seis milh§es que trabalham
na fazenda, ou vivem n'ella a olhar, como o Barr˘lo, e que pagam; e uns
trinta sujeitos em cima, em Lisboa, que formam a _parceria_, que recebem
e que governam. Ora eu, por gosto, por necessidade, por habito de
familia, desejo mandar na fazenda. Mas, para entrar na _parceria
politica_, o cidadŃo portuguez precisa uma habilitašŃo--ser deputado.
Exactamente como, quando pretende entrar na Magistratura, necessita uma
habilitašŃo--ser bacharel. Por isso procuro comešar como deputado para
acabar como parceiro e governar... NŃo Ú verdade, JoŃo Gouveia?
O Administrador voltßra ß bandeja das sangrias, de que saboreava outro
copo, agora lentamente, aos goles:
--Sim, com effeito, essa Ú a carreira... Candidato, Deputado, Politico,
Conselheiro, Ministro, Mandarim. ╔ a carreira... E melhor que a
d'Africa. Por fim na Arcada, em Lisboa, tambem cresce cacau e ha mais
sombra!
Barr˘lo no emtanto abrašßra o hombro possante do Titˇ, com quem
mergulhou no vŃo da janella, n'uma confraternidade d'ideias, gracejando:
--Pois eu, sem ser dos taes _parceiros_, tambem mando nos bocados de
Portugal que mais me interessam por que me pertencem!... E sempre queria
vŕr que esse S. Fulgencio, ou o Braz Victorino, ou lß os politicos do
Terreiro do Pašo, se mettessem a disp˘r nas minhas terras, na
_Ribeirinha_ ou na _Murtosa_... Era a tiro!
Encostado ß vidraša, Titˇ cošava a barba, impressionado:
--Pois sim, Barr˘lo! Mas vocŕ na _Ribeirinha_ e na _Murtosa_ tem de
pagar as contribuiš§es que elles mandarem. E n'esses concelhos tem
d'aguentar as auctoridades que elles nomearem. E goza para lß d'estradas
se elles lh'as fizerem. E vende o carro de pŃo e a pipa de vinho com
mais ou menos proveito, segundo as leis que elles votarem... E assim
tudo. O Gonšalo nŃo deixa de acertar. ╔ o diabo! Quem manda Ú quem
lucra... Olhe! o maroto do meu senhorio em Villa-Clara, agora para o S.
Miguel, augmenta a renda da casa em que eu moro, um cochicho que ninguem
quer, por que mataram lß o carrasco, que ainda lß apparece... E o
Cavalleiro, esse, como _parceiro_, vive de graša n'este bello palacio de
S. Domingos, com cocheira, com jardim, com horta...
Barr˘lo atirou um _chut_, de mŃo espalmada, abafando o vozeirŃo do Titˇ,
com medo que as regalias do Cavalleiro, assim proclamadas, renovassem as
furias de Gonšalo. Mas o Fidalgo nŃo percebera, attento ao JoŃo Gouveia,
que, enterrado no camapÚ depois da sangria, novamente contava o seu
assombro, ao encontrar no chafariz, em Villa-Clara, o rapasola do Gago
com o recado da grande festa na Torre:
--E cheguei a desconfiar que realmente vocŕ dÚsse festa, quando bateram
as nove, depois as nove e meia, e o Titˇ sem chegar para a ceia da D.
Casimira!... Bem, pensei, tambem recebeu recado e abalou para a Torre!
Por fim, apenas elle appareceu, de carapušo e de jaqueta, percebi que
f˘ra troša do Snr. D. Gonšalo...
EntŃo o Fidalgo pasmou com uma inesperada, estranha suspeita:
--De carapušo e jaqueta? O Titˇ andava n'essa noite de carapušo e de
jaqueta?...
Mas bruscamente Barr˘lo, da funda janella, lanšou para dentro, para a
sala, um brado de pavor:
--Oh! rapazes! Santo Deus! Ahi veem as Louzadas!
JoŃo Gouveia saltou do camapÚ, como n'um perigo, reabotoando
arrebatadamente a sobrecasaca; Gonšalo, atarantado, esbarrou com o Titˇ
e o Barr˘lo que recuavam, no terror de serem apercebidos atravez dos
vidros largos; atÚ Padre Sueiro, prudente, abandonou o seu recanto onde
corria os oculos pela _Gazeta do Porto_. E todos, d'entre a fenda das
cortinas, como soldados na fresta de uma cidadella, espreitavam o Largo,
que o sol das quatro horas dourava por sobre os telhados musgosos da
Cordoaria. Do lado da rua das Pŕgas, as duas Louzadas, muito esgalgadas,
muito sacudidas, ambas com manteletes curtos de seda preta e vidrilhos,
ambas com guardasoes de xadresinbo desbotado, avanšavam, estirando pelo
largo empedrado duas sombras agudas.
As duas manas Louzadas! Seccas, escuras e garrulas como cigarras, desde
longos annos, em Oliveira, eram ellas as esquadrinhadoras de todas as
vidas, as espalhadoras de todas as maledicencias, as tecedeiras de todas
as intrigas. E na desditosa Cidade nŃo existia nodoa, pÚcha, bule
rachado, corašŃo dorido, algibeira arrasada, janella entreaberta, poeira
a um canto, vulto a uma esquina, chapeu estreado na missa, bolo
encommendado nas Mathildes, que os seus quatro olhinhos furantes
d'azeviche sujo nŃo descortinassem--e que a sua solta lingoa, entre os
dentes ralos, nŃo commentasse com malicia estridente! D'ellas surdiam
todas as cartas anonymas que infestavam o Districto: as pessoas devotas
consideravam como penitencias essas visitas em que ellas durante horas
galravam, abanando os brašos escanifrados: e sempre por onde ellas
passassem ficava latejando um sulco de desconfianša e receio. Mas quem
ousaria rechašar as duas manas Louzadas? Eram filhas do decrepito e
venerando General Louzada; eram parentas do Bispo; eram poderosas na
poderosa confraria do Senhor dos Passos da Penha. E depois d'uma
castidade tŃo rigida, tŃo antiga e tŃo resequida, e por ellas tŃo
espaventosamente alardeada--que o Marcolino do Independente as alcunhßra
de _Duas Mil Virgens_.
--NŃo veem para cß! trovejou o Titˇ, com immenso allivio.
Com effeito no meio do Largo, rente ß grade que circumda o antigo
Relogio-de-Sol, as duas manas paradas, erguiam o bico escuro, farejando
e espiando a Egrejinha de S. Matheus onde o sino lanšßra um repique de
baptisado.
--Oh, c'os diabos, que Ú para cß!
As Louzadas, decididas, investiam contra o portŃo dos Cunhaes! EntŃo foi
um panico! As gordas pernas do Barr˘lo, fugindo, abalaram, quasi
derrubaram sobre os contadores, os potes bojudos da India. Gonšalo
bradava que se escondessem no pomar. Desconcertado, o Gouveia rebuscava
com desespero o seu chapeu c˘co. Sˇ o Titˇ, que as abominava e a quem
ellas chamavam o _Polyphemo_, retirou com serenidade, abrigando o Padre
Sueiro sob o seu brašo forte. E jß o bando espavorido se arremessßra
sobre o reposteiro--quando Gracinha appareceu, com um fresco vestido de
sedinha c˘r de morango, sorrindo, pasmada, para o tropel que rolava:
--Que foi? Que foi?...
Um clamor abafado envolveu a d˘ce senhora ameašada:
--As Louzadas!
--Oh!
Fugidiamente o Titˇ e JoŃo Gouveia apertaram a mŃo que ella lhes
abandonou, esmorecida. A sineta do portŃo tilintßra, temerosa! E a fila
acavallada, onde Padre Sueiro rebolava a reboque, enfiou para a livraria
que o Barr˘lo aferrolhou, gritando ainda a Gracinha, com uma inspirašŃo:
--Esconde as sangrias!
Pobre Gracinha! Atarantada, sem tempo de chamar o escudeiro, carregou
ella para uma banqueta do corredor, n'um esforšo desesperado, a pesada
salva--com que as Louzadas, se a descortinassem, edificariam por sobre a
cidade, e mais alta que a Torre de S. Matheus, uma historia pavorosa de
źvinhaša e bebedeira╗. Depois, offegando, relanceou no espelho o
penteado. E direita como n'uma arena, com a temeridade simples e risonha
dos antigos Ramires, esperou a arremettida das manas terriveis.
* * * * *
No outro domingo, depois do almošo, Gonšalo acompanhou a irmŃ a casa da
tia Arminda Villegas, que na vespera, ao tomar (como costumava todos os
sabbados) o seu banho aos pÚs, se escaldßra e recolhera ß cama,
apavorada, reclamando uma junta dos cinco cirurgi§es d'Oliveira. Depois
acabou o charuto sob as acacias do Terreiro da Louša, pensando na sua
Novella abandonada na Torre durante essas semanas, e no lance famoso do
Capitulo II que o tentava e que o assustava--o encontro de Lourenšo
Ramires com Lopo de BayŃo, _o Bastardo_, no valle fatal de Cantapedra. E
recolhia aos Cunhaes (porque promettera ao Barr˘lo uma trotada a
cavallo, atÚ ao Pinhal de Estevinha, para aproveitar a došura do domingo
ennevoado) quando, na rua das Vellas, avistou o tabelliŃo Guedes, que
sahia da confeitaria das Mathildes com um grosso embrulho de pasteis.
Ligeiramente, o Fidalgo atravessou logo a rua--emquanto o Guedes, da
borda do passeio, pesado e barrigudo, na ponta dos botins miudinhos
gaspeados de verniz, descobria, n'uma cortezia immensa, a calva,
emplumada ao meio pelo famoso tufo de cabello grisalho que lhe valera a
alcunha de źGuedes P˘pa╗:
--Por quem Ú, meu caro Guedes, ponha o chapeu! Como estß? Sempre fÚro e
mošo. Ainda bem!... Fallou com o meu Padre Sueiro? O Pereira da Riosa,
por fim, sˇ vem ß cidade na quarta feira...
Sim! Sim! O Snr. Padre Sueiro passßra pelo cartorio, para avisar--e elle
apresentava os parabens a S. Ex.^a pelo seu novo rendeiro...
--Homem muito competente, o Pereira! Jß ha vinte annos que o conhešo...
E olhe V. Ex.^a a propriedade do Conde de Monte-Agra! Ainda me lembro
d'ella, um chavascal; hoje que primor! Sˇ a vinha que elle tem plantado!
Homem muito competente... E V. Ex.^a com demora?
--Dois ou tres dias... NŃo se atura este calor de Oliveira. Hoje,
felizmente, refrescou. E que ha de novo? Como vae a politica? O amigo
Guedes sempre bom Regenerador, leal e ardente, hein?
Subitamente o TabelliŃo, com o seu embrulho de doces conchegado ao
collete de seda preta, agitou o brašo gordo e curto, n'uma indignašŃo
que lhe esbraseou de sangue o pescošo, as orelhas cabelludas, a face
rapada, toda a testa atÚ ßs abas do chapeu branco orlado de fumo negro:
--E quem o nŃo ha-de ser, Snr. Gonšalo Mendes Ramires? Quem o nŃo ha-de
ser?... Pois este ultimo escandalo!
Os risonhos olhos de Gonšalo logo se alargaram, serios:
--Que escandalo?
O TabelliŃo recuou. Pois S. Ex.^a nŃo sabia da ultima prepotencia do
Governador Civil, do Snr. AndrÚ Cavalleiro?
--O quŕ, caro amigo?...
O Guedes cresceu todo sobre o bico dos botins pequeninos, e bojou, e
inchou, para exclamar:
--A transferencia do Noronha!... A transferencia do desgrašado Noronha!
Mas uma senhora, tambem obesa, de bušo carregado, toda a estalar em
ricas e rugidoras sŕdas de missa, arrastando severamente pela mŃo um
menino que rabujava, parou, fitou o Guedes--porque o digno homem com o
seu ventre, o seu embrulho, a sua indignašŃo, atravancava a entrada das
Mathildes. Apressadamente, o Fidalgo levantou, para ella entrar, o fecho
da porta envidrašada. Depois, n'um alvorošo:
--O amigo Guedes naturalmente vae para casa. ╔ o meu caminho. Andamos e
conversamos... Ora essa! Mas o Noronha... Que Noronha?
--O Ricardo Noronha... V. Ex.^a conhece. O pagador das Obras-Publicas!
--Ah! sim, sim... EntŃo transferido? Transferido arbitrariamente?
Na rua das Brocas por onde desciam, no silencio, a solidŃo das lojas
cerradas, a colera do Guedes resoou, mais solta:
--Infamemente, Snr. Gonšalo Mendes Ramires, infamissimamente! E para
Almodovar, para os confins do Alemtejo!... Para uma terra sem recursos,
sem distracš§es, sem familias!...
Parßra, com os doces contra o corašŃo, os olhinhos esbugalhados para o
Fidalgo, coriscando. O Noronha! Um empregado trabalhador, honradissimo!
E sem Politica, absolutamente sem Politica. Nem dos Historicos, nem dos
Regeneradores. Sˇ da familia, das tres irmŃs que sustentava, tres
fl˘res... E homem estimadissimo na cidade, cheio de prendas! Um talento
immenso para a musica!... Ah! o Snr. Gonšalo Ramires nŃo sabia? Pois
compunha ao piano cousas lindas! Depois precioso para reuni§es, para
annos. Era elle quem organisava sempre em Oliveira as representaš§es de
curiosos...
--Porque, como ensaiador, creia V. Ex.^a que nŃo ha outro, mesmo na
capital... NŃo ha outro! E, zßs, de repente, para Almodovar, para o
Inferno, com as irmŃs, com os tarecos! Sˇ o piano!... Veja V. Ex.^a sˇ o
transporte do piano!
Gonšalo resplandecia:
--╔ um bello escandalo. Ora que felicidade esta de o ter encontrado, meu
caro Guedes!... E nŃo se sabe o motivo?
De novo caminhavam demoradamente pelo passeio estreito. E o tabelliŃo
encolhia os hombros, com amargura. O motivo! Publicamente, como sempre
n'estas prepotencias, o motivo era a conveniencia do Servišo...
--Mas todos os amigos do Noronha, por toda a cidade, conhecem o
verdadeiro motivo... O intimo, o secreto, o medonho!
--EntŃo?
Guedes relanceou a rua, com prudencia. Uma velha atravessava, coxeando,
segurando uma bilha. E o tabelliŃo segredou cavamente, junto ß face
deslumbrada do fidalgo.--╔ que o Snr. AndrÚ Cavalleiro, esse infame, se
encantßra com a mais velha das irmŃs Noronhas, a D. Adelina,
formosissima rapariga, alta e morena, uma estatua!... E repellido
(porque a menina, cheia de juizo, uma perola, percebera a intenšŃo
villissima) em quem se vinga, por despeito, o Snr. Governador Civil? No
pagador! Para Almodovar com as meninas, com os tarecos!... Era o pagador
quem pagava!
--╔ uma bella maroteira! murmurou Gonšalo, banhado de gosto e riso.
--E note V. Ex.^a! exclamava o Guedes, com a mŃo gorda a tremer por cima
do chapeu. Note V. Ex.^a que o pobre Noronha, na sua innocencia, tŃo bom
homem, gostando sempre d'agradar aos seus chefes, ainda ha semanas
dedicßra ao Cavalleiro uma valsa linda!... A _Mariposa_, uma valsa
linda!
Gonšalo nŃo se conteve, esfregou as mŃos n'um triumpho:
--Mas que preciosa maroteira!... E nŃo se tem fallado? Esse jornal
d'opposišŃo, o _Clarim d'Oliveira_, nem uma denuncia, nem uma
allusŃo?...
O Guedes pendeu a cabeša, descoršoado. O Snr. Gonšalo Ramires conhecia
bem essa gente do _Clarim_... Estylo--e estylo brincado, opulento... Mas
para assoalhar, assim n'um caso gravissimo como o do Noronha, a verdade
bem nua--pouco nervo, nenhuma valentia. E depois o Biscainho, o redactor
principal, andava a passar surrateiramente para os Historicos. Ah! O
Snr. Gonšalo Mendes Ramires nŃo se inteirßra? Pois esse torpissimo
Biscainho bolinava. De certo o Cavalleiro lhe acenßra com posta... AlÚm
d'isso, como provar a infamia? Cousas intimas, cousas de familia. NŃo se
podia apresentar a declarašŃo da D. Adelina, menina virtuosissima--e com
uns olhos!... Ah! se fosse no tempo do Manoel Justino e da _Aurora de
Oliveira_!... Esse era homem para estampar logo na primeira pagina, em
letra gra˙da: źAlerta! que a Auctoridade superior do Districto tentou
levar a deshonra ao seio da familia Noronha!...╗
--Esse era um homem! Coitado, lß estß no cemiterio de S. Miguel... E
agora, Snr. Gonšalo Ramires, o despotismo campeia, desenfreado!
Bufava, arfava, esfalfado d'aquelle fogoso desabafo. Dobraram calados a
esquina das Brocas para a bella rua, novamente calšada, da Princeza D.
Amelia. E logo na segunda porta, parando, tirando da algibeira o trinco,
o Guedes, que ainda resfolgava, offereceu a S. Ex.^a para descanšar.
--NŃo, nŃo, obrigado, meu caro amigo. Tive immenso, immenso prazer, em o
encontrar... Essa historia do Noronha Ú tremenda!... Mas nada me espanta
do Snr. Governador Civil. Sˇ me espanta que o nŃo tenham corrido
d'Oliveira, como elle merece, com pancada e assuada... Emfim, nem toda a
gente boa jaz no cemiterio de S. Miguel... AtÚ ßmanhŃ, meu Guedes. E
obrigado!
Da rua da Princeza D. Amelia atÚ o Largo de El-Rei, Gonšalo correu com o
deslumbramento de quem descobrisse um thesouro e o levasse debaixo da
capa! E ahi levava com effeito o źescandalo, o rico escandalo╗, que
tanto farejßra, por que tanto almejßra, para desmantelar o Snr.
Governador Civil na sua fiel cidade de Oliveira que lhe levantava arcos
de buxo! E, por uma mercŕ de Deus, o źrico escandalo╗ demoliria tambem o
homem no corašŃo de Gracinha, onde, apezar do antigo ultraje, elle
permanecia como um bicho n'um fructo, esfuracando e estragando... E nŃo
duvidava da efficacia do escandalo! Toda a cidade se revoltaria contra a
Authoridade femieira, que opprime, desterra um funccionario
admiravel--por que a irmŃ do pobre senhor se recusou ß baba dos seus
beijos. E Gracinha?... Como resistiria Gracinha ßquelle desengano--o seu
antigo AndrÚ abrazado pela menina Noronha e por ella repellido com n˘jo
e com mˇfa? Oh! o escandalo era soberbo! Sˇ restava que estalasse, bem
ruidoso, sobre os telhados d'Oliveira e sobre o peito de Gracinha como
trovŃo benefico que limpa ares corrompidos. E d'esse trovŃo, rolando por
todo o Norte, se encarregava elle com delicia. Libertava a cidade d'um
Governador detestavel, Gracinha d'um sonho errado. E assim, com uma
certeira pennada, trabalhava _pro patria et pro domo_!
Nos Cunhaes correu ao quarto do Barr˘lo, que se vestia trauteando o
_Fado dos Ramires_, e gritou atravez da porta com uma decisŃo
flammejante:
--NŃo te posso acompanhar ß Estevinha. Tenho que escrever urgentemente.
E nŃo subas, nŃo me perturbes. Necessito socego!
Nem attendeu aos protestos desolados com que o Barr˘lo accudira ao
corredor, em ceroulas. Galgou a escada. No seu quarto, depois de despir
rapidamente o casaco, de excitar a testa com um borrifo d'agua de
Colonia, abancou ß mesa--onde Gracinha collocava sempre entre flores,
para elle trabalhar, o monumental tinteiro de prata que pertencera ao
tio Melchior. E sem emperrar, sem rascunhar, n'um d'esses soltos fluxos
de Prosa que brotam da paixŃo, improvisou uma Correspondencia rancorosa
para a *Gazeta do Porto* contra o Snr. Governador Civil. Logo o titulo
fulminava--_Monstruoso attentado_! Sem desvendar o nome da familia
Noronha, contava miudamente, como um acto certo e por elle testemunhado,
źa tentativa vill˘a e baixa da primeira Auctoridade do Districto contra
a pudicicia, a paz de corašŃo, a honra de uma doce rapariga de dezeseis
primaveras!╗ Depois era a resistencia desdenhosa--źque a nobre creanša
oppuzera ao Don Juan administrativo, cujos bellos bigodes sŃo o espanto
dos povos!╗ Por fim vinha--źa desforra torpe e sem nome que S. Ex.^a
tomßra sobre o zeloso empresado (que Ú tambem um talentoso artista),
obtendo d'este nefasto Governo que fosse transferido, ou antes arrojado,
cruelmente exilado, com a familia de tres delicadas senhoras, para os
confins do Reino, para a mais arida e escassa das nossas Provincias, por
o nŃo poder empacotar para a Africa no porŃo sordido d'uma fragata!╗
Lanšava ainda alguns rugidos sobre źa agonia politica de Portugal╗. Com
pavor triste, recordava os peiores tempos do Absolutismo, a innocencia
soterrada nas masmorras, o prazer desordenado do Principe sendo a
expressŃo unica da Lei! E terminava perguntando ao Governo se cobriria
este seu agente--źeste grotesco Nero, que como outr'ora o outro, o
grande, em Roma, tentava levar a seducšŃo ao seio das familias melhores,
e commettia esses abusos de poder, motivados por lascivias de
temperamento, que foram sempre, em todos os seculos e todas as
civilisaš§es, a execrašŃo do justo!╗--E assignava _Juvenal_.
Eram quasi seis horas quando desceu ß sala, ligeiro e resplandecente.
Gracinha martellava o piano, estudando o _Fado dos Ramires_. E Barr˘lo
(que nŃo se arriscßra a um passeio solitario) folheava, estendido no
camapÚ, uma famosa _Historia dos Crimes da InquizišŃo_ que comešßra
ainda em solteiro.
--Estou a trabalhar desde as duas horas! exclamou logo Gonšalo,
escancarando a janella. Fiquei derreado. Mas, louvado seja Deus, fiz
obra de Justiša... D'esta vez o Snr. AndrÚ Cavalleiro vae abaixo do seu
cavallo!
Barr˘lo fechou immediatamente o livro, com o cotovello nas almofadas,
inquieto:
--Houve alguma coisa?
E Gonšalo, plantado deante d'elle, com um risinho suave, um risinho
feroz, remexendo na algibeira o dinheiro e as chaves:
--Oh! quasi nada. Uma bagatella. Apenas uma infamia... Mas para o nosso
Governador Civil infamias sŃo bagatellas.
Sob os dedos de Gracinha o _Fado dos Ramires_ esmoreceu, apenas rošado,
n'um murmurio incerto.
O Barr˘lo esperava, esgaseado:
--Desembucha!
E Gonšalo desabafou, com estrondo:
--Pois uma maroteira immensa, homem! O Noronha, o pobre Noronha,
perseguido, espesinhado, expulso! Com a familia... Para o inferno, para
o Algarve!
--O Noronha pagador?
--O Noronha pagador. Foi o infeliz pagador que pagou!
E, regaladamente, desenrolou a historia lamentavel. O Snr. AndrÚ
Cavalleiro namoradissimo, todo em chammas pela irmŃ mais velha do
Noronha. E atacando a rapariga com ramos, cartas, versos, estropidos
cada manhŃ por deante da janella, a ladear na pileca! AtÚ lhe soltßra,
ao que parece, uma velha marafona, uma alcoviteira... E a rapariga, um
anjo cheio de dignidade, impassivel. Nem se revoltava, apenas se ria.
Era uma troša em casa das Noronhas, ao chß, com a leitura da versalhada
ardente em que elle a tratava de źNympha, d'estrella da tarde...╗ Emfim
uma sordidez funambulesca!
O pobre _Fado dos Ramires_ debandou pelo teclado, n'um tumulto de
gemidos desconcertados e asperos.
--E eu nŃo ter ouvido nada! murmurava o Barr˘lo, assombrado. Nem no
Club, nem na Arcada...
--Pois, meu amiguinho, quem ouviu, e um famoso estampido, foi o pobre
Noronha. Arremessado para o fundo do Alemtejo, para um sitio doentio,
coalhado de pantanos. ╔ a morte... ╔ uma condemnašŃo ß morte!
A esta apparicŃo da Morte, surdindo dos pantanos, Barr˘lo atirou uma
palmada ao joelho, desconfiado:
--Mas quem diabo te contou tudo isso?
O Fidalgo da Torre encarou o cunhado com desdem, com piedade:
--Quem me contou!? E quem me contou que D. SebastiŃo morreu em
Alcacer-Kebir?... SŃo os factos. ╔ a Historia. Toda Oliveira sabe. Por
acaso ainda esta manhŃ o Guedes e eu conversamos sobre o caso. Mas eu jß
sabia!... E tenho tido pena. Que diabo! NŃo ha crime em se estar
apaixonado como o pobre AndrÚ. Louco, perdido! AtÚ a chorar na
RepartišŃo, deante do Secretario Geral. E a rapariga ßs gargalhadas!...
Agora onde ha crime, e horrendo, Ú na perseguišŃo ao irmŃo, ao pagador,
empregado excellente, d'um talento raro... E o dever de todo o homem de
bem, que prese a dignidade da AdministrašŃo e a dignidade dos costumes,
Ú denunciar a infamia... Eu, pela minha parte, cumpri esse bom dever. E
com certo brilho, louvado Deus!
--Que fizeste?
--Enterrei na ilharga do Snr. Governador Civil a minha b˘a penna de
Toledo, atÚ ß rama!
O Barr˘lo, impressionado, beliscava a pelle do pescošo. O piano
emmudecera: mas Gracinha nŃo se movia do m˘cho, com os dedos
entorpecidos nas teclas, como esquecida deante da larga folha onde se
enfileiravam, na lettra apurada do Videirinha, as quadras triumphaes dos
Ramires. E subitamente Gonšalo sentiu n'aquella immobilidade suffocada o
despeito que a trespassava. Sensibilisado, para a libertar, lhe poupar
algum solušo escapando irresistivelmente, correu ao piano, bateu com
carinho nos pobres hombros vergados que estremeceram:
--Tu nŃo dßs conta d'esse lindo fado, rapariga! Deixa, que eu te
cantarolo uma quadra, ß b˘a moda do Videirinha... Mas primeiramente sŕ
um anjo... Grita ahi no corredor que me tragam um copo d'agua bem fresca
do Pošo Velho.
Ensaiou as teclas, entoou versos, ao accaso, n'um esforšo esganišado:
Ora na grande batalha,
Quatro Ramires valentes...
Gracinha desapparecera por uma fenda do reposteiro, sem rumor. EntŃo o
bom Barr˘lo, que deante da sua terrina da India enrolava um cigarro com
pensativo cuidado, correu, desafogou, debrušado sobre Gonšalo, da
certeza que lentamente o invadira:
--Pois, menino, sempre te digo... Essa irmŃ do Noronha Ú um mulherŃo
soberbo! Mas o que eu nŃo acredito Ú que ella se fizesse arisca. Com o
Cavalleiro, bonito rapaz, Governador civil?... NŃo acredito. O
Cavalleiro saboreou!
E com as bochechas lusidias d'admirašŃo:
--Aquelle velhaco! Para cavallos e para mulheres nŃo ha outro, em
Oliveira!
V
A *Gazeta do Porto*, com a Correspondencia vingadora, devia desabar
sobre Oliveira na quarta-feira de manhŃ, dia dos annos da prima Maria
Mendonša. Mas Gonšalo, ainda que nŃo temesse (resalvado pelo seu
pseudonymo de _Juvenal_) uma briga grosseira com o Cavalleiro nas ruas
da Cidade, nem mesmo com algum dos seus partidarios servis e fašanhudos
como o Marcolino do *Independente*--recolheu discretamente a Santa
Ireneia na terša-feira, a cavallo, acompanhado pelo Barr˘lo atÚ ß
Vendinha, onde ambos provaram o vinho branco celebrado pelo Titˇ.
Depois, para recordar os logares memoraveis em que na sua Novella se
encontravam, com desastrado choque d'armas, Lourenšo Ramires e o
Bastardo de BayŃo--tomou o caminho que, atravessando os pomares da
espalhada aldŕa de Canta-Pedra, entronca na estrada dos Bravaes.
N'um trote folgado passßra ß Fabrica de Vidros, depois o Cruzeiro sempre
coberto pelas pombas que esvoašam do pombal da Fabrica. E entrava no
logar de Nacejas--quando, ß janella d'uma casinha muito limpa, rodeada
de parreiras, appareceu uma linda rapariga, morena e fina, com jaquÚ de
panno azul e lenšo de cambraieta bordada sobre fartos bandˇs ondeados.
Gonšalo, sopeando a egua, saudou, sorriu suavemente:
--PerdŃo, minha menina... Vou bem por aqui, para Canta-Pedra?
--Vae, sim senhor. Em baixo, ß ponte, mette para a direita, para os
alamos. E Ú sempre a seguir...
Gonšalo suspirou, gracejando:
--Antes desejava ficar!
A moša corou. E o Fidalgo ainda se torceu no selim para gosar a fina
face morena, entre os dous craveiros da janellinha, na casa tŃo bem
caiada.
N'esse momento, ao lado, d'uma quelha enramada, desembocava um cašador
do campo, de jaleca e barrete vermelho, com a espingarda atravessada nas
costas, seguido por dois perdigueiros. Era um latagŃo airoso, que todo
elle, no bater dos sapat§es brancos, no menear da cinta enfaixada em
seda, no levantar da face clara de suissas louras, transbordava de
presumpšŃo e pimponice. N'um relance surprehendeu o sorriso, a attenšŃo
galante do Fidalgo. E estacou, pregando sobre elle, com lenta
arrogancia, os bellos olhos pestanudos. Depois passou desdenhosamente,
sem se arredar da egua na ladeira estreita, quasi raspando pela perna do
Fidalgo o cano da cašadeira. Mas adiante ainda atirou uma tossidela
secca e de chasco--com um bater mais petulante dos tac§es.
Gonšalo picou a egoa, colhido logo por aquelle desgrašado temor, aquelle
desmaiado arrepio da carne, que sempre, ante qualquer risco, qualquer
ameaša, o foršava irresistivelmente a encolher, a recuar, a abalar. Em
baixo, na ponte, desesperado contra a sua timidez, deteve o trote,
espreitou para traz, para a branca casa florida. O mocetŃo parßra,
encostado ß espingarda, sob a janella onde a rapariga morena se
debrušava entre os dous vasos de cravos. E assim encostado, depois de
rir para a moša, acenou ao Fidalgo, n'um desafio largo, com a cabeša
alta, a borla do barrete toda espetada como uma crista flammante.
Gonšalo Mendes Ramires metteu a galope pelo copado caminho d'alamos que
acompanha o riacho das Donas. Em Canta-Pedra nem se demorou a estudar
(como tencionava para proveito da sua Novella) o valle, a ribeira
espraiada, as ruinas do Mosteiro de RecadŃes sobre a collina, e no
cabešo fronteiro o moinho que assenta sobre as denegridas pedras da
antiga e tŃo fallada Honra d'Avellans. De resto o ceu, cinzento e
abafado desde manhŃ, entenebrecia para os lados de Craquede e de
Villa-Clara. Um bafo m˘rno remexeu a folhagem sedenta. E jß gotas
pesadas se esmagavam na poeira--quando elle, sempre galopando, entrou na
estrada dos Bravaes.
Na Torre encontrou uma carta do Castanheiro. O patriota andava por saber
źse essa _Torre de D. Ramires_ se erguia emfim para honra das letras,
como a outra, a genuina, se erguera outr'ora, em seculos mais ditosos,
para orgulho das armas...╗ E accrescentava n'um
_Post-Scriptum_--źPlaneio immensos cartazes, pregados a cada esquina de
cada cidade de Portugal, annunciando em letras de covado a apparišŃo
salvadora dos *Annaes*! E, como tenciono prometter n'elles aos povos a
sua preciosa Novellasinha, desejo que o amigo Gonšalo me informe se ella
tem, ß moda de 1830, um saboroso sub-titulo, como _Episodios do seculo
XII_, ou _Chronica do Reinado de Affonso II_, ou _Scenas da Meia-Idade
Portugueza_... Eu voto pelo sub-titulo. Como o sub-solo n'um edificio, o
sub-titulo n'um livro alteia e dß solidez. ┴ obra, pois, meu Ramires,
com essa sua imaginašŃo feracissima!...╗
Esta invenšŃo de immensos cartazes, com o seu nome e o titulo da sua
Novella em letras de c˘res estridentes, enchendo cada esquina de
Portugal, deleitou o Fidalgo. E logo n'essa noite, ao rumor da chuva
densa que estalava na folhagem dos limoeiros, retomou o seu manuscripto,
parado nas primeiras linhas, amplas e sonoras, do Cap. II...
Atravez d'ellas, e na frescura da madrugada, Lourenšo Mendes Ramires,
com o trošo de cavalleiros e peonagem da sua mercŕ, corria sobre
Monte-Mˇr em soccorro das senhoras Infantas. Mas, ao penetrar no valle
de Canta-Pedra, eis que o esforšado filho de Tructesindo avista a
mesnada do Bastardo de BayŃo, esperando desde alva (como annuncißra
Mendo Paes) para tolher a passagem.--E entŃo, n'esta sombria Novella de
sangue e homizios, brotava inesperadamente, como uma rosa na fenda d'um
bastiŃo, um lance de amor, que o tio Duarte cantßra no *Bardo* com
dolente elegancia.
Lopo de BayŃo, cuja belleza loura de fidalgo godo era tŃo celebrada por
toda a terra d'Entre Minho-e-Douro que lhe chamavam o _Claro-Sol_, amßra
arrebatadamente D. Violante, a filha mais nova de Tructesindo Ramires.
Em dia de S. JoŃo, no solar de Lanhoso, onde se celebravam lides de
toiros e jogos de tavolagem, conhecera elle a donzella explendida, que o
tio Duarte no seu Poemeto louvava com deslumbrado encanto:
Que liquido fulgor dos negros olhos!
Que fartas tranšas de lustroso ebano!
E ella, certamente, rendera tambem o corašŃo ßquelle mošo resplandecente
e c˘r d'ouro, que, n'essa tarde de festa, arremessando o rojŃo contra os
toiros, ganhßra duas fachas bordadas pela nobre Dona de Lanhoso--e ß
noite, no sarau, se requebrßra com tŃo repicado garbo na danša dos
Marchatins... Mas Lopo era bastardo, d'essa raša de BayŃo, inimiga dos
Ramires por velhissimas brigas de terras e precedencias desde o conde D.
Henrique--ainda assanhadas depois, durante as contendas de D. Tareja e
de Affonso Henriques, quando na curia dos Bar§es, em GuimarŃes, Mendo de
BayŃo, bandeado com o Conde de Trava, e Ramires o _Cortador_, collašo do
mošo Infante, se arrojaram ßs faces os guantes ferrados. E, fiel ao odio
secular, Tructesindo Ramires recusßra com ßspera arrogancia a mŃo de
Violante ao mais velho dos de BayŃo, um dos valentes de Silves, que pelo
Natal, na Alcašova de S.^{ta} Ireneia, lh'a pedira para Lopo, seu
sobrinho, o _Claro-Sol_, offerecendo avenšas quasi submissas d'allianša
e doce paz. Este ultraje revoltßra o solar de BayŃo--que se honrava em
Lopo, apezar de bastardo, pelo lustre da sua bravura e graša galante. E
entŃo Lopo ferido doridamente no seu corašŃo, mais furiosamente no seu
orgulho, para fartar o esfaimado desejo, para infamar o claro nome dos
Ramires--tentou raptar D. Violante. Era na primavera, com todas as
veigas do Mondego jß verdes. A donosa senhora, entre alguns escudeiros
da Honra e parentes, jornadeava de Treixedo ao mosteiro de LorvŃo, onde
sua tia D. Branca era abbadeša... Languidamente, no *Bardo*, descantßra
o tio Duarte o romantico lance:
Junto ß fonte mourisca, entre os ulmeiros,
A cavalgadura pßra...
E junto aos ulmeiros da fonte surgira o _Claro-Sol_--que, com os seus,
espreitava d'um cabešo! Mas, logo no comešo da curta briga, um primo de
D. Violante, o agigantado Senhor dos Pašos d'Avellim, o desarmou, o
manteve um momento ajoelhado sob o lampejo e gume da sua adaga. E com
vida perdoada, rugindo de surda raiva, o Bastardo abalou entre os poucos
solarengos que o acompanhavam n'esta affouta arremettida. Desde entŃo
mais fero ardera o rancor entre os de BayŃo e os Ramires. E eis agora,
n'esse comešo da Guerra das Infantas, os dois inimigos rosto a rosto no
valle estreito de Canta-Pedra! Lopo com um bando de trinta lanšas e mais
de cem besteiros da Hoste Real. Lourenšo Mendes Ramires com quinze
cavalleiros e noventa homens de pÚ do seu pendŃo.
Agosto findava: e o demorado estio amarellecera toda a relva, as
pastagens famosas do valle, atÚ a folhagem de amieiros e freixos pela
beira do riacho das Donas que s'arrastava entre as pedras lustrosas, em
fios escassos, com dormido murmurio. Sobre um outeiro, dos lados de
Ramilde, avultava, entre possantes ruinas errišadas de saršas, a
denegrida _Torre Redonda_, resto da velha Honra de Avellans, incendiada
durante as cruas rixas dos de Salzedas e dos de Landim, e agora habitada
pela alma gemente de Guiomar de Landim, a _Mal-casada_. No cabešo
fronteiro e mais alto, dominando o valle, o mosteiro de RecadŃes
estendia as suas cantarias novas, com o forte torreŃo, asseteado como o
d'uma fortaleza--d'onde os monges se debrušavam, espreitando, inquietos
com aquelle coriscar d'armas que desde alva enchia o valle. E o mesmo
temor acossßra as aldeias chegadas--porque, sobre a crista das collinas,
se apressavam para o santo e murado refugio do convento gentes com
trouxas, carros toldados, magras filas de gados.
Ao avistar tŃo rijo trošo de cavalleiros e pe§es, espalhado atÚ ß beira
do riacho por entre a sombra dos freixos, Lourenšo Ramires soffreou,
susteve a leva, junto d'um montŃo de pedras onde apodrecia, encravada,
uma tosca cruz de pau. E o seu esculca que largßra redeas soltas,
estirado sob o escudo de couro, para reconhecer a mesnada--logo voltou,
sem que frecha ou pedra de funda o colhessem, gritando:
--SŃo homens de BayŃo e da Hoste Real!
Tolhida pois a passagem! E em que desigualado recontro! Mas o denodado
Ramires nŃo duvidou avanšar, travar peleja. Sˇsinho que assomasse ao
valle, com uma quebradiša lanša de monte, arremetteria contra todo o
arraial do Bastardo...--No emtanto jß o adail de BayŃo se adeantßra,
curveteando no rosilho magro, com a espada atravessada por cima do
morriŃo que pennas de garša emplumavam. E pregoava, atroava o valle com
o rouco pregŃo:
--Deter, deter! que nŃo ha passagem! E o nobre senhor de BayŃo, em
recado d'El-Rey e por mercŕ de Sua Senhoria, vos guarda vidas salvas se
volverdes costas sem rumor e tardanša!
Lourenšo Ramires gritou:
--A elle, besteiros!
Os virotes assobiaram. Toda a curta ala dos cavalleiros de Santa-Ireneia
tropeou para dentro do valle, de lanšas ristadas. E o filho de
Tructesindo, erguido nos estrib§es de ferro, debaixo do panno solto do
seu pendŃo que apressadamente o alferes saccßra da funda, descerrou a
vizeira do casco para que lhe mirassem bem a face destemida, e lanšou ao
Bastardo injurias de furioso orgulho:
--Chama outros tantos dos vill§es que te seguem que, por sobre elles e
por sobre ti, chegarei esta noite a Monte-Mˇr!
E o Bastardo, no seu fouveiro, que uma rŕde de malha cobria, toda
acairelada d'ouro, atirava a mŃo calšada de ferro, clamava:
--Para traz, d'onde vieste, voltarßs, bulrŃo traidor, se eu por mercŕ
mandar a teu pae o teu corpo n'umas andas!
Estes feros desafios rolavam em versos serenamente compassados no
Poemeto do Tio Duarte. E depois de os reforšar, Gonšalo Mendes Ramires,
(sentindo a alma enfunada pelo heroismo da sua raša como por um vento
que sopra de funda compina) arrojou um contra o outro os dous bandos
valorosos. Grande briga, grande grita...
--Ala! Ala!
--Rompe! Rompe!
--Cerra por BayŃo!
--Casca pelos Ramires!
AtravÚs da grossa poeirada e do alevanto zunem os garruch§es, as rudes
balas de barro despedidas das fundas. Almogavres de Santa-Ireneia,
almogavres da Hoste Real, em turmas ligeiras, carregam, topam, com
baralhado arremesso d'ascumas que se partem, de dardos que se cravam: e
ambas logo refogem, refluem--em quanto, no chŃo revolto, algum
mal-ferido estrebucha aos urros, e os atordoados cambaleando buscam, sob
o abrigo do arvoredo, a fresquidŃo do riacho. Ao meio, no embate mais
nobre da peleja, por cima dos corceis que se empinam, arfando ao peso
das coberturas de malha, as lisas pranchas dos montantes lampejam,
retinem, embebidas nas chapas dos broqueis:--e jß, dos altos arš§es de
couro vermelho, desaba algum hirto e chapeado senhor, com um baque de
ferragens sobre a terra molle. Cavalleiros e infanš§es, porÚm, como n'um
torneio, apenas teršam lanšas para se derribarem, abolados os arnezes,
com clamores de excitada ufania: e sobre a villanagem contraria, em quem
cevam o furor da matanša, se abatem os seus espad§es, se despenham as
suas achas, esmigalhando os cascos de ferro como bilhas de grŕda.
Por entre a pionagem de BayŃo e da Hoste Real Lourenšo Ramires avanša
mais levemente que ceifeiro apressado entre herva tenra. A cada arranque
do seu rijo murzello, alagado d'espuma, que sacode furiosamente a
testeira rostrada--sempre, entre pragas ou gritos por _Jesus!_ um peito
verga trespassado, brašos se retorcem em agonia. Todo o seu afan era
chocar armas com Lopo. Mas o Bastardo, tŃo arremessado e affrontador em
combate, nŃo se arredßra n'essa manhŃ da lomba do outeiro onde uma fila
de lanšas o guardava, como uma estacada: e com brados, nŃo com golpes,
aquentava a lide! No ardor desesperado de romper a viva cerca Lourenšo
gastava as foršas, berrando roucamente pelo Bastardo com os duros
ultrajes de _churdo!_ e _marrano!_ Jß d'entre a trama falseada do
camalho lhe borbulhavam do hombro, pela loriga, fios lentos de sangue.
Um lanšo de virotŃo, que lhe partira as charneiras da greva esquerda,
fendera a perna d'onde mais sangue brotava, ensopando o forro d'estopa.
Depois, varado por uma frecha na anca, o seu grande ginete abateu,
rolou, estalando no escoucear as cilhas pregueadas. E, desembrulhado dos
loros com um salto, Lourenšo Ramires encontrou em roda uma sebe errišada
de espadas e chušos, que o cerraram--em quanto do outeiro, debrušado na
sella, o Bastardo bramava:
--Tende! tende! para que o colhaes ßs mŃos!
Trepando por cima de corpos, que se estorcem sob os seus sapatos de
ferro, o valente mošo arremette, a golpes arquejados, contra as pontas
luzentes que recuam, se furtam... E, triumphantes, redobram os gritos de
Lopo de BayŃo:
--Vivo, vivo! tomadel-o vivo!
--NŃo, se me restar alma, villŃo! rugia Lourenšo.
E mais raivosamente investia, quando um calhau agudo lhe acertou no
brašo--que logo amorteceu, pendeu, com a espada arrastando, presa ainda
ao punho pelo grilhŃo, mas sem mais servir que uma roca. N'um relance
ficou agarrado por pe§es que lhe filavam a gorja, emquanto outros com
varadas de ascuma lhe vergavam as pernas retesadas. Tombou por fim
direito como um madeiro;--e nas cordas com que logo o amarraram, jazeu
hirto, sem elmo, sem cervilheira, os olhos duramente cerrados, os
cabellos presos n'uma pasta de poeira e de sangue.
Eis pois captivo Lourenšo Ramires! E, deante das andas feitas de ramos e
franšas de faias em que o estenderam, depois de o borrifarem ß pressa
com a agua fresca do riacho,--o Bastardo, limpando ßs costas da mŃo o
suor que lhe escorria pela face formosa, pelas barbas douradas,
murmurava, commovido:
--Ah! Lourenšo, Lourenšo, grande d˘r, que bem poderamos ser irmŃos e
amigos!
Assim, ajudado pelo tio Duarte, por Walter Scott por noticias do
_Panorama_, compozera Gonšalo a mal-venturada lide de Canta-Pedra. E com
este desabafo de Lopo, onde perpassava a magua do amor vedado, fechou o
Cap. II, sobre que labutßra tres dias--tŃo embrenhadamente que em torno
o Mundo como que se calßra e se fundira em penumbra.
* * * * *
Uma girandola de foguetes estoirou ao longe, para o lado dos Bravaes,
onde no Domingo se fazia a romaria celebrada da Senhora das Candeias.
Depois da chuva d'aquelles tres dias, uma frescura descia do ceu
amaciado e lavado sobre os campos mais verdes. E como ainda restava meia
hora farta antes de jantar, o Fidalgo agarrou o chapeu, e mesmo na sua
velha quinzena de trabalho, com uma bengalinha de canna, desceu ß
estrada, tomou pelo caminho que s'estreita entre o muro da Torre e as
terras de centeio onde assentavam no seculo XII as barbacans da Honra de
Santa Ireneia.
Pela silenciosa vereda, ainda humida, Gonšalo pensava nos seus avˇs
formidaveis. Como elles resurgiam, na sua Novella, solidos e resoantes!
E realmente uma comprehensŃo tŃo segura d'aquellas almas Affonsinas
mostrava que a sua alma conservava o mesmo quilate e sahira do mesmo
rico bloco d'ouro. Porque um corašŃo molle, ou degenerado, nŃo saberia
narrar coraš§es tŃo fortes, d'eras tŃo fortes:--e nunca o bom Manoel
Duarte ou o Barr˘lo excellente entenderiam, bastante para lhes
reconstruir os altos espiritos, Martim de Freitas ou Affonso de
Albuquerque... N'esta fina verdade desejaria elle que os Criticos
insistissem ao estudar depois a _Torre de D. Ramires_--pois que o
Castanheiro lhe assegurßra artigos consideraveis nas *Novidades* e na
*ManhŃ*. Sim! eis o que convinha marcar com relevo (e elle o lembraria
ao Castanheiro!)--que os Ricos Homens de Santa-Ireneia reviviam no seu
neto, senŃo pela continuašŃo heroica das mesmas fašanhas, pela mesma
alevantada comprehensŃo do heroismo... Que diabo! sob o reinado do
horrendo S. Fulgencio elle nŃo podia desmantelar o solar de BayŃo,
desmantelado ha seiscentos annos por seu av˘ Lionel Ramires--nem retomar
aos Mouros essa torreada Monforte onde o Antoninho Moreno era o languido
Governador Civil! Mas sentia a grandeza e o prestimo historico d'esse
arrojo que outr'ora impellia os seus a arrasar Solares rivaes, a escalar
Villas mouriscas: resuscitava pelo Saber e pela Arte, arrojava para a
vida ambiente, esses var§es temerosos, com os seus coraš§es, os seus
trajes, as suas immensas cutiladas, as suas bravatas sublimes: dentro do
espirito e das express§es do seu Seculo era pois um bom Ramires--um
Ramires de nobres energias, nŃo fašanhudas, mas intellectuaes, como
competia n'uma Edade d'intellectual descanšo. E os jornaes, que tanto
motejam a decadencia dos Fidalgos de Portugal, deveriam em justiša
affirmar (e elle o lembraria ao Castanheiro!):--źEis ahi um, e o maior,
que, com as fˇrmas e os modos do seu tempo, continua e honra a sua
raša!╗
AtravÚs d'estes pensamentos, que mais lhe enrijavam as passadas sobre
chŃo tŃo calcado pelos seus--o Fidalgo da Torre chegßra ß esquina do
muro da quinta, onde uma ladeirenta e apertada azinhaga a divide do
pinheiral e da matta. Do portŃo nobre, que outr'ora se erguera n'esse
recanto com lavores e brazŃo d'armas, restam apenas os dois humbraes de
granito, amarellados de musgo, cerrados contra o gado por uma cancella
de taboas mal pregadas, carcomidas da chuva e dos annos. E n'esse
momento, da azinhaga funda, apagada em sombra, subia chiando, carregado
de matto, um carro de bois, que uma linda boeirinha guiava.
--Nosso Senhor lhe dŕ muito boas tardes!
--Boas tardes, fl˘rzinha!
O carro lento passou. E logo atraz surdio um homem, esgrouviado e
escuro, trazendo ao hombro o cajado, d'onde pendia um mˇlho de cordas.
O Fidalgo da Torre reconheceu o JosÚ Casco dos Bravaes. E seguia, como
desattento, pela orla do pinheiral, assobiando, raspando com a
bengalinha as silvas floridas do vallado. O outro porÚm estugou o passo
esgalgado, lanšou duramente, no silencio do arvoredo e da tarde, o nome
do Fidalgo. EntŃo, com um pulo do corašŃo, Gonšalo Mendes Ramires parou,
foršando um sorriso affavel:
--Olß! ╔ vossŕ, JosÚ! EntŃo que temos?
O Casco engasgßra, com as costellas a arfar sob a encardida camisa de
trabalho. Por fim, desenfiando das cordas o marmelleiro que cravou no
chŃo pela choupa:
--Temos que eu fallei sempre claro com o Fidalgo, e nŃo era para que
depois me faltasse ß palavra!
Gonšalo Ramires levantou a cabeša com uma dignidade lenta e
custosa--como se levantasse uma massa de ferro:
--Que estß vossŕ a dizer, Casco? Faltar ß palavra! em que lhe faltei eu
ß palavra?... Por causa do arrendamento da Torre? Essa Ú nova! EntŃo
houve por acaso escriptura assignada entre nˇs? Vocŕ nŃo voltou, nŃo
appareceu...
O Casco emmudecera, assombrado. Depois, com uma colera em que lhe
tremiam os beišos brancos, lhe tremiam as seccas mŃos cabelludas,
fincadas ao cabo do varapau:
--Se houvesse papel assignado o Fidalgo nŃo podia recuar!... Mas era
como se houvesse, para gente de bem!... AtÚ V. S.^a disse, quando eu
acceitei: źviva! estß tratado!...╗ O fidalgo deu a sua palavra!
Gonšalo, enfiado, apparentou a paciencia d'um senhor benevolo:
--Escute, JosÚ Casco. Aqui nŃo Ú logar, na estrada. Se quer conversar
commigo appareša na Torre. Eu lß estou sempre, como vossŕ sabe, de
manhŃ... Vß ßmanhŃ, nŃo me encommˇda.
E endireitava para o pinhal, com as pernas molles, um suor arripiado na
espinha--quando o Casco, n'um rodeio, n'um salto leve, atrevidamente se
lhe plantou diante, atravessando o cajado:
--O Fidalgo ha-de dizer aqui mesmo! O Fidalgo deu a sua palavra!... A
mim nŃo se me fazem d'essas desfeitas... O Fidalgo deu a sua palavra!
Gonšalo relanceou esgaseadamente em redor, na ancia d'um soccorro. Sˇ o
cercava solidŃo, arvoredo cerrado. Na estrada, apenas clara sob um resto
de tarde, o carro de lenha, ao longe, chiava, mais vago. As ramas altas
dos pinheiros gemiam com um gemer dormente e remoto. Entre os troncos jß
se adensava sombra e nevoa. EntŃo, estarrecido, Gonšalo tentou um
ref˙gio na ideia de Justiša e de Lei, que aterra os homens do campo. E
como amigo que aconselha um amigo, com brandura, os beišos resequidos e
tremulos:
--Escute, Casco, escute, homem! As coisas nŃo se arranjam assim, a
gritar. Pˇde haver desgosto, apparecer o regedor. Depois Ú o tribunal, Ú
a cadeia. E vocŕ tem mulher, tem filhos pequenos... Escute! Se descobriu
motivo para se queixar, vß ß Torre, conversamos. Pacatamente tudo se
esclarece, homem... Com berros, nŃo! Vem o cabo, vem a enxovia...
EntŃo de repente o Casco cresceu todo, no solitario caminho, negro e
alto como um pinheiro, n'um furor que lhe esbugalhava os olhos
esbraseados, quasi sangrentos:
--Pois o Fidalgo ainda me ameaša com a justiša!... Pois ainda por cima
de me fazer a maroteira me ameaša com a cadeia!... EntŃo, com os diabos!
primeiro que entre na cadeia lhe hei-de eu esmigalhar esses ossos!...
Erguera o cajado...--Mas, n'um lampejo de razŃo e respeito, ainda
gritou, com a cabeša a tremer para traz, atravez dos dentes cerrados:
--Fuja, fidalgo, que me perco!... Fuja que o mato e me perco!
Gonšalo Mendes Ramires correu ß cancella entalada nos velhos humbraes de
granito, pulou por sobre as taboas mal pregadas, enfiou pela latada que
orla o muro, n'uma carreira furiosa de lebre acossada! Ao fim da vinha,
junto aos milheiraes, uma figueira brava, densa em folha, alastrßra
dentro d'um espigueiro de granito destelhado e desusado. N'esse
esconderijo de rama e pedra se alapou o Fidalgo da Torre, arquejando. O
crepusculo descera sobre os campos--e com elle uma serenidade em que
adormeciam frondes e relvas. Affoutado pelo silencio, pelo socego,
Gonšalo abandonou o cerrado abrigo, recomešou a correr, n'um correr
manso, na ponta das botas brancas, sobre o chŃo molle das chuvadas, atÚ
ao muro da MŃe d'Agua. De novo estacou, esfalfado. E julgando entrever,
longe, ß orla do arvoredo, uma mancha clara, algum jornaleiro em mangas
de camisa, atirou um berro ancioso:--źOh! Ricardo! Oh! Manoel! Eh lß!
alguem! Vai ahi alguem?...╗--A mancha indecisa fundira na indecisa
folhagem. Uma rŃ pinchou n'um regueiro. Estremecendo, Gonšalo retomou a
carreira atÚ ao canto do pomar--onde encontrou fechada uma porta, velha
porta mal segura, que abanava nos gonzos ferrugentos. Furioso, atirou
contra ella os hombros que o terror enrijßra como trancas. Duas taboas
cederam, elle furou atravez, esgašando a quinzena n'um prÚgo.--E
respirou emfim no agazalho do pomar murado, deante das varandas da casa
abertas ß frescura da tarde, junto da Torre, da sua Torre, negra e de
mil annos, mais negra e como mais carregada d'annos contra a macia
claridade da lua-nova que subia.
Com o chapeu na mŃo, enxugando o suor, entrou na horta, costeou o
feijoal. E agora subitamente sentia uma colera amarga pelo desamparo em
que se encontrßra, n'uma quinta tŃo povoada, exameando de gentes e
dependentes! Nem um caseiro, nem um jornaleiro, quando elle gritßra, tŃo
afflicto, da borda da MŃe d'Agua! De cinco creados nenhum acudira,--e
elle perdido, alli, a uma pedrada da eira e da abegoaria! Pois que dois
homens corressem com paus ou enxadas--e ainda colhiam o Casco na
estrada, o malhavam como uma espiga.
Ao pÚ do gallinheiro, sentindo uma risada fina de rapariga, atravessou o
pateo para a porta alumiada da cosinha. Dois mošos da horta, a filha da
Crispola, a Rosa, tagarellavam, regaladamente sentados n'um banco de
pedra, sob a fresca escuridŃo da latada. Dentro o lume estrallejava--e a
panella do caldo, fervendo, rescendia. Toda a colera do Fidalgo rompeu:
--EntŃo, que sarau Ú este? Vocŕs nŃo me ouviram chamar?... Pois
encontrei lß em baixo, ao pÚ do pinheiral, um bebedo, que me nŃo
conheceu, veiu para mim _com uma foice_!... Felizmente levava a bengala.
E chamo, grito... Qual! Tudo aqui de palestra, e a ceia a cozer! Que
desaforo! Outra vez que succeda, todos para a rua... E quem resmungar, a
cacete!
A sua face chammejava, alta e valente. A pequena da Crispola logo se
escapulira, encolhida, para o recanto da cosinha, para traz da maceira.
Os dois mošos, erguidos, vergavam como duas espigas sob um grande vento.
E emquanto a Rosa, aterrada, se benzia, se derretia em lamentaš§es sobre
źdesgrašas que assim s'armam!╗--Gonšalo, deleitado pela submissŃo dos
dois homens, ambos tŃo rijos, com tŃo grossos varapaus encostados ß
parede, amansava:
--Realmente! sois todos surdos, n'esta pobre casa!... AlÚm d'isso a
porta do pomar fechada! Tive de lhe atirar um empurrŃo. Ficou em
pedašos.
EntŃo um dos mošos, o mais alentado, ruivo, com um queixo de cavallo,
pensando que o Fidalgo censurava a frouxidŃo da porta pouco cuidada,
cošou a cabeša, n'uma desculpa:
--Pois, com perdŃo do fidalgo!... Mas jß depois da saÝda do Relho se lhe
p˘z uma travessa e fechadura nova... E valente!
--Qual fechadura! gritou, o Fidalgo soberbamente. Despedacei a
fechadura, despedacei a travessa... Tudo em estilhas!
O outro mošo, mais desembarašado e esperto, riu, para agradar:
--Santo nome de Deus!... EntŃo, Ú que o fidalgo lhe atirou com forša!
E o companheiro, convencido, espetando o queixo enorme:
--Mas que forša! a matar! Que a porta era rija... E fechadura nova, jß
depois do Relho!
A certeza da sua forša, louvada por aquelles fortes, reconfortou
inteiramente o fidalgo da Torre, jß brando, quasi paternal:
--Grašas a Deus, para arrombar uma porta, mesmo nova, nŃo me falta
forša. O que eu nŃo podia, por decencia, era arrastar ahi por essas
estradas um bebedo com uma foice atÚ casa do Regedor... Foi para isso
que chamei, que gritei. Para que vossŕs o agarrassem, o levassem ao
Regedor!... Bem, acabou. Oh! Rosa, dŕ a estes rapazes, para a ceia, mais
uma caneca de vinho... A vŕr se para outra vez se affoutam, se
apparecem...
Era agora como um antigo senhor, um Ramires d'outros seculos, justo e
avisado, que reprehende uma fraqueza dos seus solarengos--e logo perd˘a
por conta e amor das fašanhas proximas. Depois com a bengala ao hombro,
como uma lanša, subio pela lobrega escada da cozinha. E em cima no
quarto, apenas o Bento entrßra para o vestir, recomešou a sua epopeia,
mais carregada, mais terrifica--assombrando o sensivel homem, estacado
rente da commoda, sem mesmo pousar a enfusa d'agoa quente, as botas
envernisadas, a brašada de toalhas que o ajoujavam... O Casco! O JosÚ
Casco dos Bravaes, bebedo, rompendo para elle, sem o conhecer, com uma
foice enorme, a berrar--źMorra, que Ú marrŃo!...╗ E elle na estrada,
deante do bruto, de bengalinha! Mas atira um salto, a foišada resvala
sobre um tronco de pinheiro... EntŃo arremette desabaladamente,
brandindo a bengala, gritando pelo Ricardo e pelo Manoel como se ambos o
escoltassem--e ataranta o Casco, que recua, se some pela azinhaga, a
cambalear, a grunhir...
--Hein, que te parece? Se nŃo Ú a minha audacia, o homem positivamente
me ferra um _tiro de espingarda_!
O Bento, que quasi se babava, com o jarro esquecido a pingar no tapete,
pestanejou, confuso, mais attonito:
--Mas o Snr. Dr. disse que era uma foice!
Gonšalo bateu o pÚ, impaciente:
--Correu para mim com uma foice. Mas vinha atraz do carro... E no carro
trazia uma espingarda. O Casco Ú cašador, anda sempre d'espingarda...
Emfim estou aqui vivo, na Torre, por mercŕ de Deus. E tambem porque
felizmente, n'estes casos, nŃo me falta decisŃo!
E apressou o Bento--porque com o abalo, o esforšo, positivamente lhe
tremiam as pernas de canšasso e de fome... AlÚm da sŕde!
--Sobretudo sŕde! Esse vinho que venha bem fresco... Do Verde e do
AlvaralhŃo, para misturar.
O Bento, com um tremulo suspiro da emošŃo atravessada, enchera a bacia,
estendia as toalhas. Depois, gravemente:
--Pois, Snr. Dr., temos esse andašo nos sitios! Foi o mesmo que succedeu
ao Snr. Sanches Lucena, na _Feitosa_...
--Como, ao Snr. Sanches Lucena?
O Bento desenrolou entŃo uma tremenda historia trazida ß Torre, durante
a estada do Snr. Doutor em Oliveira, pelo cunhado da Crispola, o Ruy
carpinteiro, que trabalhava nas obras da _Feitosa_. O Snr. Sanches
Lucena descŕra uma tarde, ao lusco fusco, ß porta do Mirante, quando
passam na estrada dous jornaleiros, bebedos ou facinoras, que implicam
com o excellente senhor. E chufas, risinhos, momices... O Snr. Sanches,
com paciencia, aconselhou os homens que seguissem, nŃo se desmandassem.
De repente um d'elles, um rapazola, sacode a jaqueta do hombro, ergue o
cajado! Felizmente o companheiro, que se affirmßra, ainda gritou:--źAi!
rapaz, que elle Ú o nosso deputado!╗ O rapazola abalou, espavorido. O
outro atÚ se atirou de joelhos deante do Snr. Sanches Lucena... Mas o
pobre senhor, com o abalo, recolheu ß cama!
Gonšalo acompanhßra a historia, seccando vagarosamente as mŃos ß toalha,
impressionado:
--Quando foi isso?
--Pois disse ao Snr. Dr.... Quando o Snr. Dr. estava em Oliveira. Um dia
antes ou um dia depois dos annos da Snr.^a D. Graša.
O Fidalgo arremessou a toalha, limpou pensativamente as unhas. Depois
com um risinho incerto e leve:
--Emfim, sempre serviu d'alguma coisa ao Sanches Lucena ser deputado por
Villa-Clara...
E jß vestido, abastecendo a charuteira (porque resolvera passar a noite
na Villa, a desabafar com o Gouveia)--de novo se voltou para Bento, que
arrumava a roupa:
--EntŃo o bebedo, quando o outro lhe gritou źAi, que Ú o nosso
deputado,╗ cahiu em si, fugiu, hein?... Ora vŕ tu! Ainda vale ser
deputado! Ainda inspira respeito, homem! Pelo menos inspira mais
respeito que descender dos reis de LeŃo!... Paciencia, toca a jantar.
* * * * *
Durante o jantar, misturando copiosamente o Verde e o AlvaralhŃo,
Gonšalo nŃo cessou de ruminar a ousadia do Casco. Pela vez primeira, na
historia de Santa Ireneia, um lavrador d'aquellas aldŕas, crescidas ß
sombra da Casa illustre, por tantos seculos senhora em monte e valle,
ultrajava um Ramires! E brutamente, alšando o cajado, deante dos muros
da quinta historica!... Contava seu pae que, em vida do bisav˘ Ignacio,
ainda desde Ramilde atÚ Corinde os homens dobravam o joelho nos caminhos
quando passava o Senhor da Torre. E agora levantavam a foice!... E
porque? Por que elle nŃo se desfalcßra submissamente das suas rendas em
proveito d'um fašanhudo!--Em tempos do av˘ Tructesindo, villŃo de tal
attentado assaria, como porco montez, n'uma ruidosa fogueira, deante das
barbacans da Honra. Ainda em dias do bisav˘ Ignacio apodreceria n'uma
masmorra. E o Casco nŃo podia escapar sem castigo. A impunidade sˇ lhe
incharia a audacia: e assomado, rancoroso, n'outro encontro, sem mais
fallas, desfechava a cašadeira. Oh! nŃo lhe desejava um mal duravel,
coitado, com dois filhos pequeninos--um que mamava. Mas que o
arrastassem ß AdministrašŃo, algemado, entre dois cabos de policia--e
que na triste saleta, d'onde se avistam as grades da cadeia, apanhasse
uma reprehensŃo tremenda do Gouveia, do Gouveia muito secco, muito
esticado na sobrecasaca negra... Assim se devia resguardar, por meios
tortuosos--pois que nŃo era deputado, e que, com o seu talento, o seu
nome, essa espantosa linhagem d'avˇs que edificßra o Reino, carecia o
prestigio d'um Sanches Lucena, o precioso prestigio que suspende no ar
os varapßus atrevidos!
Apenas findou o cafÚ, mandou pelo Bento avisar os dous mošos da horta, o
Ricardo e o outro de queixo de cavallo, que o esperassem no pateo,
armados. Porque na Torre ainda sobrevivia uma źSala d'armas╗--cacifro
tenebroso, junto ao Archivo, onde se amontoavam pešas aboladas
d'armaduras, um lorigŃo de malha, um broquel mourisco, alabardas,
espad§es, polvarinhos, bacamartes de 1820, e entre esta poeirenta
ferralhagem negra tres espingardas limpas com que os mošos da quinta, na
romaria de S. Gonšalo, atiravam descargas em louvor do Santo.
Depois, elle, encafuou o revˇlver na algibeira, desenterrou do armario
do corredor um velho bengalŃo de cabo de chumbo entranšado, agarrou um
apito. E assim precavido, aquecido pelo Verde e pelo AlvaralhŃo, com os
dous creados de cašadeira ao hombro, importantes e tesos, partiu para
Villa-Clara, procurar o Snr. Administrador do Concelho. A noite envolvia
os campos em socego e frescura. A lua nova, que alimpßra o tempo, rošava
a crista dos outeiros de Valverde como a roda lustrosa d'um carro de
ouro. No silencio os rijos sapat§es pregueados dos dous jornaleiros
resoavam em cadencia. E Gonšalo adiante, de charuto flammante, gosava
aquella marcha, em que de novo um Ramires trilhava os caminhos de Santa
Ireneia com homens da sua mercŕ e solarengos armados.
Ao comešo da villa, porÚm, recolheu discretamente a escolta na taverna
da Serena: e elle cortou para o Mercado da Herva, para a Tabacaria do
Sim§es, onde o Gouveia, ßquella hora, antes da partida da AssemblÚa,
costumava pousar, comprar uma caixa de phosphoros, considerar
pensativamente na vidraša as cautelas da Loteria. Mas n'essa noite o
Snr. Administrador faltßra ao Sim§es costumado. Largou entŃo para a
AssemblÚa: e logo em baixo, no bilhar, um sujeito calvo, que contemplava
as carambolas solitarias do marcador, espapado na bancada, de collete
desabotoado, mascando um palito--informou o Fidalgo da doenša do amigo
Gouveia:
--Cousa leve, inflammašŃo de garganta... V. Ex.^a de certo o encontra em
casa. NŃo arreda do quarto desde Domingo.
Outro cavalheiro porÚm, que remexia o seu cafÚ ß esquina d'uma mesa
atulhada de garrafas de lic˘r, affianšou que o Snr. Administrador jß
espairecera n'essa tarde. Ainda pelas cinco horas elle o encontrßra na
Amoreira, com o pescošo atabafado n'uma manta de lŃ.
Gonšalo, impaciente, abalou para a Calšadinha. E atravessava o Largo do
Chafariz quando descortinou o desejado Gouveia, ß porta muito alumiada
da loja de pannos do Ramos, conversando com um homemzarrŃo de forte
barba retinta e de guarda-pˇ alvadio.
E foi o Gouveia, que, de dedo espetado, investiu para Gonšalo:
--EntŃo, jß sabe?
--O quŕ?
--Pois nŃo sabe, homem?... O Sanches Lucena!
--O quŕ?
--Morreu!
O fidalgo embasbacou para o Administrador, depois para o outro
cavalheiro, que repuxava na mŃo enorme, com um esforšo inchado, uma luva
preta apertada e curta.
--Santo Deus!... Quando?
--Esta madrugada. De repente. źAngina pectoris,╗ nŃo sei quŕ no
corašŃo... De repente, na cama.
E ambos se consideraram, em silencio, no espanto renovado d'aquella
morte que impressionava Villa-Clara. Por fim Gonšalo:
--E eu ainda ha bocado, na Torre, a fallar d'elle! E, coitado, como
sempre, com pouca admirašŃo...
--E eu! exclamou o Gouveia. Eu, que ainda hontem lhe escrevi!... E uma
carta comprida, por causa d'um empenho do Manoel Duarte... Foi o cadaver
que recebeu a carta.
--Boa piada! rosnou o sujeito obeso, que se debatia ferrenhamente contra
a luva. O cadaver recebeu a carta... Boa piada!
O Fidalgo torcia o bigode, pensativo:
--Ora, ora... E que edade tinha elle?
O Gouveia sempre o imaginßra um completo velho, de setenta invernos.
Pois nŃo! apenas sessenta, em Dezembro. Mas consumido, arrasado. Casßra
tarde, com fŕmea forte...
--E ahi temos a bella D. Anna, viuva aos vinte e oito annos, sem filhos,
naturalmente herdeira, com o seu mealheiro de duzentos contos... Talvez
mais!
--Boa maquia! roncou de novo o oupado homem que enfißra a luva, e agora
gemia, com as veias tumidas, para lhe apertar o colchete.
Aquelle cavalheiro constrangia o Fidalgo--ancioso por desafogar com o
Gouveia sobre źa vacatura politica,╗ assim inesperadamente aberta, no
circulo de Villa-Clara, pela brusca desapparišŃo do Chefe tradicional. E
nŃo se conteve, puchou o Administrador pelo botŃo da sobrecasaca para a
sombra favoravel da parede:
--Oh! Gouveia! entŃo agora, hein?... Temos eleišŃo supplementar... Quem
virß pelo circulo?
E o Administrador, muito simplesmente, sem se resguardar do homemzarrŃo
de guarda-pˇ, que, emfim enluvado, accendera o charuto, se acercava com
familiaridade--deduziu os factos:
--Agora, meu amigo, com o tio do Cavalleiro ministro da Justiša e o JosÚ
Ernesto ministro do Reino, vae deputado pelo circulo quem o AndrÚ
Cavalleiro mandar. ╔ claro... O Sanches Lucena manteve sempre o seu
logar em S. Bento por uma indicašŃo natural do partido. Era aqui o
primeiro homem, o grande homem dos Historicos... Bem! Hoje, para decidir
o Governo, como falta a indicašŃo natural do partido, que resta? O
desejo pessoal do Cavalleiro. Vocŕ sabe como o Cavalleiro Ú
regionalista. Pelo circulo pois, logicamente, sahe quem se apresente ao
Cavalleiro como um bom continuador do Lucena, pela influencia e pela
estabilidade territorial... N'outro circulo ainda se podia encaixar ß
pressa um deputado fabricado em Lisboa, nas Secretarias. Aqui nŃo! O
deputado tem de ser local e Cavalleirista. E o proprio Cavalleiro,
acredite vocŕ, estß a esta hora embarašado.
O gordalhufo murmurou com importancia, atravez do immenso charuto que
mamava:
--AmanhŃ jß estou com elle, jß sei...
Mas o Administrador emmudecera, cošava o queixo, cravando em Gonšalo os
olhos espertos, que rebrilhavam, como se uma ditosa idÚa, quasi uma
inspirašŃo, o illuminasse. E de repente, para o outro, que cofiava a
barba retinta:
--Pois, meu caro senhor, atÚ alÚm d'ßmanha. Ficamos entendidos. Eu
remetto o cestinho dos queijos directamente ao Snr. Conselheiro.
Tomou o brašo de Gonšalo, que apertou com impaciencia. E sem attender
mais ao homemzarrŃo, que saudava rasgadamente, arrastou o Fidalgo para a
Calšadinha silenciosa:
--Oh, Gonšalo, ouša lß... Vossŕ agora tinha uma occasiŃo soberba! Vocŕ,
se quizesse, dentro de poucos dias, estava deputado por Villa-Clara!
O Fidalgo da Torre estacßra--como se uma estrella de repente se
despenhasse na rua mal allumiada.
--Ora escute! exclamou o Administrador, largando o brašo de Gonšalo,
para desenrolar mais livremente a sua idÚa. Vocŕ nŃo tem compromissos
serios com os Regeneradores. Vocŕ deixou Coimbra ha um anno, tenta agora
a vida publica, nunca fez acto definitivo de partidario. Lß uma ou outra
correspondencia para os jornaes, historias!...
--Mas...
--Escute, homem! Vocŕ quer entrar na Politica? Quer. EntŃo, pelos
Historicos ou pelos Regeneradores, pouco importa. Ambos sŃo
constitucionaes, ambos sŃo christŃos... A questŃo Ú entrar, Ú furar. Ora
vocŕ, agora, inesperadamente, encontra uma porta aberta. O que o pˇde
embarašar? As suas inimisades particulares com o Cavalleiro? Tolices!
Atirou um gesto, largo e secco, como se varresse essas puerilidades:
--Tolices! Entre vocŕs nŃo ha morte d'homem. Nem vocŕs, no fundo, sŃo
inimigos. O Cavalleiro Ú rapaz de talento, rapaz de gosto... NŃo vejo
outro, aqui no districto, com quem vocŕ tenha mais conformidade de
espirito, de educašŃo, de maneiras, de tradiš§es... N'uma terra pequena,
mais dia menos dia, fatalmente, se impunha a reconciliašŃo. EntŃo seja
agora, quando a reconciliašŃo o leva ßs Camaras!... E repito. Pelo
circulo de Villa-Clara sahe deputado quem o Cavalleiro mandar!
O Fidalgo da Torre respirou, com esforšo, na emošŃo que o suffocava. E
depois d'um silencio em que tirßra o chapÚo, abanßra com elle,
pensativamente, a face descahida:
--Mas o Cavalleiro, como vocŕ disse, Ú todo local todo regional... NŃo
quererß imp˘r senŃo um homem como o Lucena, com fortuna, com
influencia...
O outro parou, alargou os brašos:
--E entŃo, vocŕ?... Que diabo! Vocŕ tem aqui propriedade. Tem a Torre,
tem Treixedo. Sua irmŃ hoje Ú rica, mais rica que o Lucena. E depois o
nome, a familia... Vocŕs, os Ramires, estŃo estabelecidos, com solar em
Santa Ireneia, ha mais de duzentos annos.
O fidalgo da Torre ergueu com viveza a cabeša:
--Duzentos?... Ha mil, ha quasi mil!
--Ora ahi tem! Ha mil annos. Uma casa anterior ß monarchia. Pelo menos
coeva! Vocŕ Ú portanto mais fidalgo que o Rei! E entŃo, isso nŃo Ú uma
situašŃo muito superior ß do Lucena? Sem contar a intelligencia... Oh!
diabo!
--Que foi?
--A garganta... Uma picadita na garganta. Ainda nŃo estou consolidado.
E decidiu logo recolher, gargarejar, porque o Dr. Macedo prohibira as
noitadas festivas. Mas Gonšalo acompanhava atÚ ß porta o amigo Gouveia.
E, conchegando o abafo de lŃ, o Administrador resumiu a sua idÚa:
--Pelo circulo de Villa-Clara, Gonšalinho, sahe quem o Cavalleiro
mandar. Ora o Cavalleiro, creia vocŕ, tem immenso empenho de o eleger,
de o lanšar na Politica. Se vocŕ portanto estender a mŃo ao Cavaleiro, o
circulo Ú seu. O Cavalleiro tem o maior, o maiorissimo empenho,
Gonšalinho!
--Isso Ú que eu nŃo sei, JoŃo Gouveia...
--Sei eu!
E em confidencia, na solidŃo da Calšadinha, JoŃo Gouveia revelou ao
Fidalgo que o Cavalleiro anciava pela occasiŃo de reatar a velha
fraternidade com o seu velho Gonšalo! Ainda na semana passada o
Cavalleiro lhe affirmßra (palavras textuaes):--źEntre os rapazes d'esta
gerašŃo nenhum com mais seguro e mais largo futuro na Politica que o
Gonšalo. Tem tudo! grande nome, grande talento, a seducšŃo, a
eloquencia... Tem tudo! E eu, que conservo pelo Gonšalo todo o carinho
antigo, gostava ardentemente, ardentissimamente, de o levar ßs Camaras.╗
--Palavras textuaes, meu amigo!... Ainda ha seis ou sete dias, em
Oliveira, depois do jantar, a tomarmos ambos cafÚ no quintal.
A face de Gonšalo ardia na sombra, devorando as revelaš§es do
Administrador. Depois, com lentidŃo, como descobrindo candidamente todos
os recantos da sua alma:
--Eu, na realidade, tambem conservo a antiga sympathia pelo Cavalleiro.
E certas quest§es intimas adeus!... Envelheceram, caducaram, tŃo
obsoletas hoje como os aggravos dos Horacios e dos Curiacios... Como
vocŕ lembrou ha pouco, com razŃo, nunca se ergueu entre nˇs morte de
homem. Que diabo! Eu fui educado com o Cavalleiro, eramos como irmŃos...
E acredite vocŕ, Gouveia! Sempre que o vejo, sinto um appetite doido,
mas doido, de correr para elle, de lhe gritar: źOh! AndrÚ! nuvens
passadas nŃo voltam, atira para cß esses ossos!╗ Creia vocŕ, nŃo o fašo
por timidez... ╔ timidez... Oh! nŃo, lß por mim, estou prompto ß
reconciliašŃo, todo o corašŃo m'a pede! Mas elle?... Porque, emfim,
Gouveia, eu, nas minhas Correspondencias para a _Gazeta do Porto_, tenho
sido feroz com o Cavalleiro!
JoŃo Gouveia parou, de bengala ao hombro, considerando o fidalgo com um
sorriso divertido:
--Nas Correspondencias? Que lhe tem vocŕ dito nas Correspondencias? Que
o Snr. Governador Civil Ú um despota, e um D. Juan?... Meu caro amigo,
todo o homem gosta que, por opposišŃo politica, lhe chamem despota e D.
Juan. Vocŕ imagina que elle se affligiu? Ficou simplesmente babßdo!
O fidalgo murmurou, inquieto:
--Sim! Mas as allus§es ß bigodeira, ß guedelha...
--Oh! Gonšalinho! Bellos cabellos annellados, bellos bigodes torcidos,
nŃo sŃo defeitos de que um macho se envergonhe... Pelo contrario! Todas
as mulheres admiram. Vocŕ pensa que ridicularisou o Cavalleiro? NŃo!
annunciou simplesmente ßs madamas e meninas, que lŕem a _Gazeta do
Porto_, a existencia d'um mocetŃo esplendido que Ú Governador Civil
d'Oliveira.
E parando de novo (por que defronte, na esquina, luziam as duas janellas
abertas da sua casa), o Administrador estendeu o dedo firme para um
conselho supremo:
--Gonšalo Mendes Ramires, vocŕ ßmanhŃ manda buscar a parelha do Torto,
salta para a sua caleche, corre ß cidade, entra pelo Governo Civil de
brašos abertos, e grita sem outro prologo:--źAndrÚ, o que lß vae, lß
vae, venham essas costellas! E como o circulo estß vago, venha tambem
esse circulo!╗--E vocŕ, dentro de cinco ou seis semanas, Ú o Snr.
Deputado por Villa-Clara, com todos os sinos a repicar... Quer tomar
chß?
--NŃo, obrigado.
--Bem, entŃo viva! Tipoia ßmanhŃ e Governo Civil. Estß claro, Ú
necessario arranjar um pretexto...
O fidalgo acudiu, com alvorošo:
--Eu tenho um pretexto! NŃo!... Quero dizer, tenho necessidade real,
absoluta, de fallar com o Cavalleiro ou com o Secretario Geral. ╔ uma
questŃo de caseiro... AtÚ por causa d'essa infeliz trapalhada o
procurava eu hoje a vocŕ, Gouveia!
E aldravou a aventura do Casco, com trašos mais pesados que a
ennegreciam. Durante semanas, afferradamente, esse fatal Casco o
torturßra para lhe arrendar a Torre. Mas elle tratßra com o Pereira, o
Pereira Brazileiro, por uma renda explendidamente superior ß que o Casco
offerecia a gemer. Desde entŃo o Casco rugia, ameašava, por todas as
tabernas da Freguezia. E, n'essa tarde, surde d'uma azinhaga, rompe para
elle, de varapau erguido! Mercŕ de Deus, lß se defendera, lß sacudira o
bruto, com a bengala. Mas agora, sobre o seu socego, sobre a sua vida,
pairava a affronta d'aquelle cajado. E, se o assalto se renovasse, elle
varava o Casco com uma bala, como um bicho montez... Urgia pois que o
amigo Gouveia chamasse o homem, o reprehendesse rijamente, o entaipasse
mesmo por algumas horas na cadeia...
O Administrador, que escutßra palpando a garganta, atalhou logo, com a
mŃo espalmada:
--Governo Civil, caro amigo, Governo Civil! Esses casos de prisŃo
preventiva pertencem ao Governo Civil. ReprehensŃo nŃo basta, com tal
fÚra!... Sˇ cadeia, um dia de cadeia, a meia rašŃo... O Governo Civil
que me mande um officio ou telegramma. Vocŕ realmente corre perigo. Nem
um instante a perder!... AmanhŃ tipoia e Governo Civil. Mesmo por amor
da Ordem Publica!
E Gonšalo, compenetrado, com os hombros vergados, cedeu ante esta
soberana razŃo da Ordem Publica:
--Bem, JoŃo Gouveia, bem!... Com effeito Ú uma questŃo de Ordem Publica.
Vou ßmanhŃ ao Governo Civil.
--Perfeitamente, concluiu o Administrador puxando o cordŃo da campainha.
Dŕ recados meus ao Cavalleiro. E sˇ lhe digo que havemos de arranjar uma
votašŃo tremenda, e foguetorio, e vivas, e ceia magna no Gago... Vocŕ
nŃo quer tomar chß, nŃo? EntŃo, boas noites... E olhe! D'aqui a dous
annos, quando vocŕ f˘r ministro, Gonšalo Mendes Ramires, recorde esta
nossa conversa, ß noite, na Calšadinha de Villa-Clara!
Gonšalo seguiu pensativamente por defronte do Correio; torneou a branca
escadaria da Egreja de S. Bento; metteu, alheado e sem reparar, pela
estrada plantada de acacias que conduz ao Cemiterio. E, n'aquelle alto
da Villa, d'onde, ao desembocar da Calšadinha, se abrange a largueza
rica dos campos desde Valverde a Craquŕde--sentiu que tambem na sua
vida, apertada e solitaria como a Calšadinha, se alargßra um arejado
espašo cheio d'interessante bulicio e de abundancia. Era o muro, em que
sempre se imaginßra irreparavelmente cerrado, que de repente rachava.
Eis a fenda facilitadora! Para alÚm reluziam todas as bellas realidades
que desde Coimbra appetecera! Mas...--Mas no atravessar da fenda fragosa
de certo se rasgaria a sua dignidade ou se rasgaria o seu orgulho. Que
fazer?...
Sim! seguramente! Estendendo os brašos ao animal do Cavalleiro
conquistava a sua EleišŃo. O circulo, infeudado aos Historicos, elegeria
submissamente o Deputado que o chefe Historico ordenasse com indolente
aceno. Mas essa reconciliašŃo importava a entrada triumphal do
Cavalleiro na quieta casa do Barr˘lo... Elle vendia pois o socego da
irmŃ por uma cadeira em S. Bento! NŃo! nŃo podia por amor de
Gracinha!--E Gonšalo suspirou, com ruidoso suspiro, no luminoso silencio
da estrada.
Agora porÚm, durante tres, quatro annos, os Regeneradores nŃo trepavam
ao Governo. E elle, alli, atravez d'esses annos, no buraco rural,
jogando voltaretes somnolentos na AssemblÚa da Villa, fumando cigarros
calaceiros nas varandas dos Cunhaes, sem carreira, parado e mudo na
vida, a ganhar musgo, como a sua caduca, inutil Torre! Caramba! era
faltar cobardemente a deveres muito santos para comsigo e para com o seu
nome!... Em breve os seus camaradas de Coimbra penetrariam nos altos
Empregos, nas ricas Companhias; muitos nas Camaras por vacaturas
abenšoadas como a do Sanches; um ou outro mesmo, mais audaz ou servil,
no Ministerio. Sˇ elle, com talentos superiores, um tal brilho
historico, jazeria esquecido e resmungando como um c˘xo n'uma estrada
quando passa a romaria. E por quŕ? Pelo receio pueril de p˘r a bigodeira
atrevida do Cavalleiro muito perto dos fracos labios de Gracinha... E
por fim esse receio constituia uma injuria, uma nojenta injuria, ß
seriedade da irmŃ. Porque Portugal nŃo se honrava com mulher mais
rigidamente seria, de mais grave e puro pensar! Aquelle corpinho
ligeiro, que o vento levava, continha uma alma heroica. O Cavalleiro?...
Podia sua exc.^a sacudir a guedelha com graša fatal, jorrar dos olhos
pestanudos a languidez ßs ondas--que Gracinha permaneceria tŃo
inaccessivel e solida na sua virtude como se fosse insexual e de
marmore. Oh, realmente, por Gracinha, elle abriria ao Cavalleiro todas
as portas dos Cunhaes--mesmo a porta do quarto d'ella, e bem larga, com
uma solidŃo bem preparada!... E depois nŃo se cuidava de uma donzella,
nem d'uma viuva. Na casa do Largo d'El-Rei governava, mercŕ de Deus,
marido brioso, marido rijo. A esse, sˇ a esse, competia escolher as
intimidades do seu lar--e n'elle manter quietašŃo e recato. NŃo! esse
receio de uma imaginavel fragilidade de Gracinha, da sua honrada, altiva
Gracinha--esse receio, perverso e louco, certamente o devia varrer, com
o corašŃo desafogado e sorrindo.--E, na clara solidŃo da estrada,
Gonšalo Mendes Ramires atirou um gesto decidido e terminante que varria.
Restava porÚm a sua propria humilhašŃo. Desde annos, ruidosamente,
conversando e escrevendo, em Coimbra, em Villa-Clara, em Oliveira, na
*Gazeta do Porto*--elle demolira o Cavalleiro! E subiria agora, de
espinhašo vergado, as escadarias do Governo Civil, murmurando o
seu--_peccavi, mea culpa, mea maxima culpa_?... Que escandalo na
cidade!--źO Fidalgo da Torre lß precisou e lß veio...╗ Era o
transbordante triumpho do Cavalleiro. O unico homem que no Districto se
conservava erguido, pelejando, trovejando as verdades--desarmava,
emmudecia, e encolhidamente se enfileirava no sequito louvaminheiro de
Sua Exc.^a! Bem duro!... Mas, que diabo, havia superiormente o interesse
do paiz!--E, tŃo admiravel lhe appareceu esta razŃo, que a bradou com
ard˘r na mudez da estrada:--źHa o paiz!...╗
Sim, o paiz! Quantas reformas a proclamar, a realisar! Em Coimbra, no
quinto anno, jß se occupßra da InstrucšŃo Publica--d'uma remodelašŃo do
Ensino, todo industrial, todo colonial, sem latim, sem ociosas
bellas-lettras, creando um povo formigueiro de Productores e
d'Exploradores... E os camaradas, nos sonhos ondeantes de Futuro, quando
repartiam os Ministerios, concordavam sempre:--źO Gonšalo para a
InstrucšŃo Publica!╗ Por essas ideas poderosas, pelo saber accumulado,
todo elle se devia ß NašŃo--como outr'ora, pela forša, os grandes
Ramires armados. E pela NašŃo cumpria que o seu orgulho de homem cedesse
ante a sua tarefa de cidadŃo...
Depois, quem sabe? Entre o Cavalleiro e elle afogadamente se enroscava
todo um passado de camaradagem, apenas entorpecido--que talvez revivesse
n'esse encontro, os enlašasse logo n'um abrašo penetrante, onde os
antigos aggravos se sumiriam como um pˇ sacudido... Mas para que
imaginar, remoer? Uma necessidade se sobrepunha, inilludivel--a de
comparecer logo de manhŃ em Oliveira, no Governo Civil, requerendo a
suppressŃo do Casco. D'essa pressa dependia o seu socego de vida e
d'intelligencia. Nunca elle lograria trabalhar na Novella, trilhar
folgadamente a estrada de Villa-Clara, sabendo que em torno o outro,
pelas quÚlhas e sombras, rondava com a espingarda. E para nŃo regressar
aos costumes bravios dos seus avˇs, circulando atravez do Concelho entre
as carabinas dos creados, necessitava o Casco domado, immobilisado. Era
pois inadiavel correr ao Governo Civil, para bem da Ordem. E depois,
quando elle se encontrasse no gabinete do Cavalleiro, deante da mesa do
Cavalleiro--a Providencia decidiria...--źA Providencia decidirß!╗
E ancorado n'esta resolušŃo, o Fidalgo da Torre parou, olhou. Levado
pela quente rajada de pensamentos, chegßra ß grade do cemiterio da Villa
que o luar branqueava como um lenšol estendido. Ao fundo da alameda que
o divide, clara na claridade triste, o escarnado Christo chagado e
livido, sobre a sua alta cruz negra, pendia, mais dolorido e livido no
silencio e na solidŃo, com uma tristissima lampada aos pÚs esmorecendo.
Em torno eram cyprestes, sombras de cyprestes, brancuras de lapides, as
cruzes rasteiras das campas pobres, uma paz morta pesando sobre os
mortos: e no alto a lua amarella e parada. EntŃo o Fidalgo sentiu um
arripiado mŕdo do Christo, das lousas, dos defuntos, da lua, da solidŃo.
E despedio n'uma carreira atÚ avistar as casas da Calšadinha, por onde
descambou como uma pedra solta. Quando se deteve no Largo do Chafariz,
um m˘cho piava na torre da Camara, melancolisando o repouso de
Villa-Clara apagada e adormecida. Mais impressionado, Gonšalo correu ß
taberna da Serena, recolheu os creados que esperavam jogando a bisca
lambida. E com elles atravessou de novo a Villa atÚ ß cocheira do
Torto--para recommendar que lhe mandassem ß Torre, ßs nove horas da
manhŃ, a parelha russa.
Atravez do postigo, que se abrira com cautella no portŃo chapeado, a
mulher do Torto gemeu, indecisa:
--Ai, meu Deus, nŃo sei se poderß... Elle ßs nove tem um servišo... Pois
nŃo faria mais conta ao Fidalgo ahi pela volta das onze?
--┴s nove! berrou Gonšalo.
Desejava apear cŕdo ao portŃo do Governo Civil para evitar a curiosidade
d'aquelles cavalheiros de Oliveira--que, depois do meio dia, se juntavam
na Praša, vadiando por debaixo da Arcada.
* * * * *
Mas ßs nove e meia Gonšalo, que atÚ ao luzir da madrugada se agitßra
pelo quarto n'um tumulto d'esperanšas e receios--ainda se barbeava, em
camisa, deante do vasto espelho de coluninas douradas. Depois aproveitou
a caleche para deixar na _Feitosa_ os seus bilhetes de pezames ß bella
viuva, ß D. Anna. Ao meio dia, esfaimado, almošou na Vendinha emquanto a
parelha resfolgava. E batia a meia depois das duas quando emfim se apeou
em Oliveira deante do portŃo do antigo convento de S. Domingos, ao fundo
da Praša, onde seu pae, quando Chefe do Districto, installßra
faustosamente as repartiš§es do Governo Civil.
┴quella hora, jß na frescura e sombra da Arcada que orla um lado da
Praša (outr'ora _Praša da Prataria_, hoje _Praša da Liberdade_) os
cavalheiros d'Oliveira mais desoccupados, os źrapazes╗, preguišavam, em
cadeiras de verga, ß porta da Tabacaria Elegante e da loja do LeŃo.
Gonšalo, cautelosamente, baixßra as cortinas verdes da caleche. Mas no
pateo do Governo Civil, ainda guarnecido de bancos monumentaes do tempo
dos frades, esbarrou com o primo JosÚ Mendonša, que descia a escadaria,
fardado. Foi um assombro para o alegre capitŃo, mošo esvelto, de bigode
curto, picado levemente de bexigas.
--Tu por aqui, Gonšalinho! E de chapeu alto! Caramba, deve ser coisa
gorda!
O Fidalgo da Torre confessou, corajosamente. Chegava n'esse instante de
Santa Ireneia para fallar ao AndrÚ Cavalleiro...
--Estß elle cß, esse illustre senhor?
O outro recuou, quasi aterrado:
--Ao Cavalleiro?! ╔ ao Cavalleiro que vens fallar?!... Santissima
Virgem! EntŃo desabou Troia!
Gonšalo gracejou, corando. NŃo! nŃo se passßra desgraša epica como a de
Troia... De resto podia revelar ao amigo Mendonša o caso que o arrastava
ß presenša augusta de Sua Exc.^a o Snr. Governador Civil. Era um homem
dos Bravaes, um Casco, que, furioso por nŃo conseguir o arrendamento da
Torre, o ameašßra, rondava agora a estrada de Villa-Clara de noite, ß
espreita, com uma espingarda. E elle, nŃo ousando źfazer alta e boa
justiša╗ pelas mŃos dos seus creados, como os Ramires feudaes--reclamava
modestamente da Auctoridade Superior uma ordem para que o Gouveia
mantivesse dentro da legalidade e dos Mandamentos de Deus o fašanhudo
dos Bravaes...
--Sˇ isto, uma pequenina questŃo de paz publica... E entŃo o grande
homem estß lß em cima? Bem, atÚ logo, ZÚzinho... A prima, de saude? Eu
naturalmente janto nos Cunhaes. Apparece!
Mas o capitŃo nŃo despegava do degrau de pedra, abrindo pachorrentamente
a cigarreira de couro:
--E que me dizes tu ß novidade? O pobre Sanches Lucena?...
Sim, Gonšalo soubera na Assembleia. Um ataque, hein?--Mendonša accendeu,
chupou o cigarro:
--De repente, com um aneurisma, a ler o _Noticias_!... Pois ainda ha
tres dias a Maricas e eu jantamos na _Feitosa_. AtÚ eu toquei a duas
mŃos, com a D. Anna, o quarteto do Rigoleto. E elle bem, conversando,
tomando a sua aguardentesinha de canna...
Gonšalo esbošou um gesto de piedade e tristeza:
--Coitado... Tambem ha semanas o encontrei na Bica-Santa. Bom homem, bem
educado... E ahi temos agora a bella D. Anna vaga.
--E o circulo!
--Oh, o circulo! murmurou o Fidalgo da Torre com risonho desdem. A mim
antes me convinha a viuva. ╔ Venus com duzentos contos! Infelizmente tem
uma voz medonha...
O primo Mendonša accudiu, com interesse, uma convicšŃo dedicada:
--NŃo! nŃo! na intimidade, perde aquelle tom empapado... NŃo imaginas!
atÚ um timbre natural, agradavel... E depois, menino, que corpo! que
pelle!
--Deve ficar explendida agora com o luto! concluiu Gonšalo. Bem,
adeusinho! Apparece nos Cunhaes... Eu corro ao Cavalleiro para que Sua
Exc.^a me salve com o seu brašo forte!
Sacudiu a mŃo do Mendonša, galgou a escadaria de pedra.
Mas o capitŃo, que mettera para a travessa de S. Domingos, desconfiou
d'aquella historia d'ameašas, d'espingardas... źQual! Aqui anda
Politica!╗ E quando, passada uma hora lenta, repenetrou na Praša e
avistou a caleche da Torre ainda encalhada ß porta do Governo
Civil--correu ß Arcada, desabafou logo com os dois Villa-Velhas, ambos
pensativamente encostados aos dois humbraes da Tabacaria Elegante:
--Vocŕs sabem quem estß no Governo Civil?... O Gonšalo Ramires!... Com o
Cavalleiro!
Todos em roda se mexeram, como acordando, nas gastas cadeiras de
verga--onde os estendera somnolentamente o silencio e a ociosidade da
arrastada tarde de verŃo. E o Mendonša, excitado, contou que desde as
duas horas e meia Gonšalo Mendes Ramires, źem carne e osso╗, se
conservava fechado com o Cavalleiro, no Governo Civil, n'uma conferencia
magna! O espanto e a curiosidade foram tŃo ardentes que todos se
ergueram, se arremessaram para fˇra dos Arcos, a espiar a bojuda varanda
do convento, sobre o portŃo--que era a do gabinete de Sua Excellencia.
Precisamente, n'esse momento, JosÚ Barr˘lo, a cavallo, de calša branca,
de rosa branca na quinzena d'alpaca, dobrava a esquina da rua das
Vendas. E o interesse todo d'aquelles cavalheiros se precipitou para
elle, na esperanša d'uma revelašŃo:
--Oh Barr˘lo!
--Oh Barrolinho, chega cß!
--Depressa, homem, que Ú caso rijo!
Barr˘lo, ladeando, abeirou da Arcada: e os amigos immediatamente lhe
atiraram a nova formidavel, apertados em volta da egoa. O Gonšalo e o
Cavalleiro cochichando secretamente toda a manhŃ! A caleche da Torre ß
espera, com a parelha adormecida! E jß comešavam a repicar os sinos da
SÚ!
Barr˘lo, n'um pulo, desmontou. E emquanto um garoto lhe passeava a
egoa--estacou entre os amigos, com o chicote detraz das costas, pasmando
tambem para a varanda de pedra do Governo Civil.
--Pois eu nŃo sei nada! O Gonšalo a mim nŃo me disse nada! affirmava
elle, assombrado. Tambem jß ha dias nŃo vem ß cidade... Mas nŃo me disse
nada! E da ultima vez que cß esteve, nos annos da Graša, ainda
destemperou contra o Cavalleiro!
A todos o caso parecia źd'estrondo!╗ E subitamente um silencio esmagou a
Arcada, trespassada d'emošŃo. Na varanda, entre as vidrašas abertas
vagarosamente, apparecera o Cavalleiro com o Fidalgo da Torre,
conversando, risonhos, de charutos accesos. Os largos olhos do
Cavalleiro pousaram logo, com malicia, sobre os źrapazes╗ apinhados em
pasmo ß borda dos Arcos. Mas foi um lampejar de visŃo. S. Ex.^a
remergulhßra no gabinete--o Fidalgo tambem, depois de se debrušar da
varanda, espreitar a caleche da Torre. Entre os amigos rompeu um clamor:
--Viva! ReconciliašŃo!
--Acabou a guerra das Rosas!
--E as correspondencias da _Gazeta do Porto_?...
--╔ que houve peripecia tremenda!
--Temos o Gonšalinho administrador d'Oliveira!
--Upa, Ex.^{mo} Snr., upa!
Mas de novo emmudeceram. O Cavalleiro e o Fidalgo reappareciam, n'uma
enfronhada conversa, que os deteve um momento esquecidos, na evidencia
da varanda escancarada. Depois o Cavalleiro, com uma familiaridade
carinhosa, bateu nas costas do Gonšalo--como se publicasse a sua
reconciliašŃo diante da Praša maravilhada. E outra vez se sumiram,
n'esse passear conversado e intimo, que os trazia da sombra do gabinete
para a claridade da janella, rošando as mangas, misturando o fumo leve
dos charutos. Em baixo o bando crescia, mais excitado. Passßra o Mello
Alboim, o BarŃo das Marges, o Dr. Delegado: e, chamados com ancia, cada
um correra, devorßra esgazeadamente a novidade, embasbacßra para o velho
balcŃo de pedra que o sol dourava. Os grossos ponteiros do relogio do
Governo Civil jß se acercavam das quatro horas. Os dous Villa-Velhas,
outros źrapazes╗, estafados, retrocederam ßs cadeiras de verga da
Tabacaria. O Dr. Delegado, que jantava ßs quatro e soffria do estomago,
despegou desconsoladamente dos Arcos, supplicando ao Pestana seu visinho
źque apparecesse ao cafÚ, para contar o resto...╗ Mello Alboim, esse,
enfißra para casa, defronte do Governo Civil, na esquina do Largo: e da
janella, disfaršado por traz da mulher e da cunhada, ambas de chambres
brancos e de papelotes, sondava o gabinete de S. Ex.^a com um binoculo.
Por fim bateram, com estendida pancada, as quatro horas. EntŃo o BarŃo
das Marges, na sua impaciencia borbulhante, decidiu subir ao Governo
Civil, źpara farejar!...╗
Mas n'esse momento AndrÚ Cavalleiro assomava de novo ß varanda--sˇzinho,
com as mŃos enterradas no jaquetŃo de flanella azul. E quasi
immediatamente a caleche da Torre largou da porta do Governo Civil,
atravessou a Praša, com os stores verdes meio corridos, descobrindo
apenas, ßquelles cavalheiros avidos, as calšas claras do Fidalgo.
--Vae para os Cunhaes!
Lß o apanhava pois o Barr˘lo! E todos apressaram o bom Barr˘lo a que
montasse, recolhesse, para ouvir do cunhado os motivos e os lances
d'aquella paz historica! O BarŃo das Marges atÚ lhe segurou o estribo.
Barr˘lo, alvorošadamente, trotou para o Largo d'El-Rei.
Mas Gonšalo Mendes Ramires, sem parar nos Cunhaes, seguia para a
Vendinha, onde decidira jantar, dando um descanšo ß parelha esfalfada. E
logo depois das ultimas casas da cidade subiu as stores, respirou
deliciosamente, com o chapeo sobre os joelhos, a luminosa frescura da
tarde--mais fresca e de uma claridade mais consoladora que todas as
tardes da sua vida... Voltava d'Oliveira vencedor! Furßra emfim atravez
da fenda, atravez do muro! E sem que a sua honra ou o seu orgulho se
esgašassem nas asperezas estreitas da fenda!... Abenšoado Gouveia,
esperto Gouveia! E abenšoada a esperta conversa, na vespera, pela
calšadinha de Villa-Clara!...
Sim, de certo, f˘ra custoso aquelle mudo momento em que se sentßra
seccamente, hirtamente, ß borda da poltrona, junto da pesada meza
administrativa de S. Ex.^a. Mas mantivera muita dignidade e muita
simplicidade...--źSou foršado (dissera) a dirigir-me ao Governador
Civil, ß Auctoridade, por um motivo de ordem publica...╗ E a primeira
avenša partira logo do Cavalleiro, que torcia a bigodeira, pallido:--ź
Sinto profundamente que nŃo seja ao homem, ao velho amigo, que Gonšalo
Mendes Ramires se dirija...╗ Elle ainda se conservßra retrahido,
resistente, murmurando com uma frieza triste:--źAs culpas nŃo sŃo
decerto minhas...╗ E entŃo o Cavalleiro, depois de um silencio em que
lhe tremera o beišo:--źAo cabo de tantos annos, Gonšalo, seria mais
caridoso nŃo alludir a culpas, lembrar somente a antiga amizade, que,
pelo menos em mim, se conservou a mesma, leal e sÚria.╗ A esta
sensibilisada invocašŃo, elle volvera, com došura, com indulgencia:--źSe
o meu antigo amigo AndrÚ recorda a nossa antiga amizade, eu nŃo posso
negar que em mim tambem ella nunca inteiramente se apagou...╗ Ambos
balbuciaram ainda alguns confusos lamentos sobre os desaccordos da vida.
E quasi insensivelmente se trataram por _tu_! Elle contou ao Cavalleiro
a torpe ousadia do Casco. E o Cavalleiro, indignado como amigo, mais
como Auctoridade, telegraphßra logo ao Gouveia um mandado forte para
inutilisar o valentŃo dos Bravaes... Depois conversaram da morte do
Sanches Lucena, que impressionava o Districto. Ambos louvaram a belleza
da viuva, os seus duzentos contos. O Cavalleiro recordou a manhŃ, na
_Feitosa_, em que entrando pela porta pequena do jardim, a
surprehendera, dentro d'um caramanchŃo de rosas, a apertar a liga. Uma
perna divina! Ambos se recusaram, rindo, a casar com a D. Anna, apezar
dos duzentos contos e da divina perna...--Jß entre elles se
restabelecera a antiga familiaridade de Coimbra. Era źtu Gonšalo, tu
AndrÚ, oh menino, oh filho!╗
E f˘ra AndrÚ, naturalmente, que alludira ß desapparišŃo do Deputado do
Governo, ß surpreza do circulo vago... Elle entŃo, com indifferenša,
estirado na poltrona, rufando com os dedos na borda da mesa, murmurßra:
--Sim, com effeito... Vocŕs agora devem estar embarašados, assim de
repente...
Mais nada! apenas estas indolentes palavras, murmuradas atravÚs do rufo.
E o Cavalleiro, logo, sem preparašŃo, apressadamente, empenhadamente,
lhe offerecera o Circulo!--Pousßra os olhos n'elle com lentidŃo, como
para o penetrar, o escutar... Depois, insinuante e grave:
--Se tu quizesses, Gonšalo, nŃo estavamos embarašados...
Elle ainda exclamßra, com surpreza e riso:
--Como, se eu quizesse?
E o AndrÚ, sempre com os olhos n'elle cravados, os largos olhos
lustrosos, tŃo persuasivos:
--Se tu quizesses servir o Paiz, ser deputado por Villa-Clara, jß nŃo
estavamos embarašados, Gonšalo!
_Se tu quisesses_... E perante esta insistencia que rogava, tŃo sincera
e commovida, em nome do Paiz, elle consentira, vergßra os hombros:
--Se te posso ser util, e ao Paiz, estou ßs vossas ordens.
E eis a fenda transposta, a aspera fenda, sem rasgŃo no seu orgulho ou
na sua dignidade! Depois conversaram desafogadamente, passeando pelo
gabinete, desde a estante carregada de papeis atÚ ß varanda--que AndrÚ
abrira, por causa d'um cheiro persistente de petroleo entornado na
vespera. AndrÚ tencionava partir n'essa noite para Lisboa--para
conferenciar com o Governo, depois d'aquella inesperada desapparišŃo do
Lucena. E, agora em Lisboa, imporia o querido Gonšalo como o unico
Deputado, depois do Sanches de Lucena, seguro e substancial--pelo nome,
pelo talento, pela influencia, pela lealdade. E eis a eleišŃo
consummada! De resto (declarßra o Cavalleiro, rindo) aquelle Circulo de
Villa-Clara constituia uma propriedade sua--tŃo sua como Corinde.
Livremente, poderia eleger o servente da RepartišŃo que era gago e
bebado. Prestava pois um servišo esplendido ao Governo, ß NašŃo,
apresentando um m˘šo de tŃo alta origem e de tŃo fina intelligencia...
Depois accrescentßra:
--NŃo tens a pensar mais na eleišŃo. Vaes para a Torre. NŃo contas a
ninguem, a nŃo ser ao Gouveia. Esperas lß, muito quietinho, telegramma
meu de Lisboa. E, recebido elle, estßs Deputado por Villa-Clara,
annuncias a teu cunhado, aos amigos... Depois, no domingo, vens almošar
comigo a Corinde, ßs onze.
EntŃo ambos se apertaram n'um abrašo que fundiu de novo, e para sempre,
as duas almas apartadas. Depois, ao cimo da escadaria de pedra onde o
acompanhßra, AndrÚ, repenetrando timidamente no Passado, murmurou com um
riso pensativo:--źQue tens tu feito ultimamente, n'essa querida Torre?╗
E, ao saber da Novella para os *Annaes*, suspirou com saudade dos tempos
de ImaginašŃo e d'Arte em Coimbra, quando elle amorosamente lapidava o
primeiro canto d'um poema heroico, o _Fronteiro de Ceuta_. Emfim outro
abrašo--e alli voltava deputado por Villa-Clara.
Todos esses campos, esses povoados que avistava da portinhola da
caleche, era elle que os representava em C˘rtes, elle, Gonšalo Mendes
Ramires... E superiormente os representaria, mercŕ de Deus! Porque jß as
idÚas o invadiam, višosas e ferteis. Na Vendinha, emquanto esperava que
lhe frigissem um chourišo com ovos e duas postas de savel, meditou, para
a Resposta ao Discurso da Cor˘a, um esbošo sombrio e ßspero da nossa
AdministrašŃo na Africa. E lanšaria entŃo um brado ß NašŃo, que a
despertasse, lhe arrastasse as energias para essa Africa portentosa,
onde cumpria, como gloria suprema e suprema riqueza, edificar de costa a
costa um Portugal maior!... A noite cerrßra, ainda outras idÚas o
revolviam, vastas e vagas--quando o trote esfalfado da parelha estacou
no portŃo da Torre.
Ao outro dia (terša feira) ßs dez horas, o Bento entrou no quarto do
Fidalgo com um telegramma, que chegara ß Villa de madrugada. Gonšalo
pensou com um deslumbrado pulo do corašŃo:--ź╔ do Governo!╗--Era do
Pinheiro, gritando pela Novella. Gonšalo amarrotou o telegramma. A
Novella! Como poderia labutar na Novella, agora, todo na impaciencia e
no esforšo da sua EleišŃo?... Nem almošou socegadamente--retendo,
atravez dos pratos que arredava, um desejo desesperado de źcontar ao
Bento.╗ E, sorvido o cafÚ n'um sorvo impaciente, atirou para
Villa-Clara, a desafogar com o Gouveia. O pobre administrador jazia de
novo no camapÚ de palhinha, com papas na garganta. E toda a tarde, na
estreita sala forrada de papel verde-gaio, Gonšalo exaltou os talentos
do AndrÚ, źhomem de governo e de idÚas, Gouveia!╗--celebrou o Ministerio
Historico, źo unico capaz de salvar esta choldra, Gouveia!╗---desenrolou
vistosos Projectos de Lei que meditava sobre a Africa, źa nossa
esperanša magnifica, Gouveia!╗--Emquanto o Gouveia, estirado, sˇ rompia
a mudez e a immobilidade, para murmurar ch˘chamente, apalpando o calor
das papas:
--E a quem deve vossŕ tudo isso, Gonšalinho?... Cß ao meco!╗
Na quarta-feira, ao accordar, tarde, o seu pensamento saltou logo
soffregamente para o AndrÚ Cavalleiro, que a essa hora, em Lisboa,
almošava no Hotel Central (sempre, desde rapaz, AndrÚ se conservßra fiel
ao Hotel Central). E todo o dia, fumando cigarros insaciavelmente
atravez do silencio da casa e da quinta, seguiu o Cavalleiro nos seus
giros de Chefe de Districto, pela Baixa, pela Arcada, pelos
Ministerios... Naturalmente jantaria com o tio Reis Gomes, Ministro da
Justiša. Outro convidado certamente seria o JosÚ Ernesto, Ministro do
Reino, condiscipulo do Cavalleiro, seu confidente politico... N'essa
noite, pois, tudo se decidia!
--┴manhŃ, pelas dez horas, tenho cß telegramma do AndrÚ.
Nenhuma noticia chegou ß Torre:--e o Fidalgo passou a lenta quinta feira
ß janella, vigiando a estrada poeirenta por onde surdiria o mošo do
telegrapho, um rapaz gordo que elle conhecia pelo bonnÚ d'oleado e pela
perna manca. ┴ noitinha, intoleravelmente inquieto, mandou um mošo a
Villa-Clara. Talvez o telegramma arrastasse, esquecido, pela mesa
d'aquella źbesta do Nunes do Telegrapho!╗ NŃo havia telegramma para o
Fidalgo. EntŃo ficou certo de surgirem em Lisboa difficuldades! E toda a
noite, sem socego, n'uma indignašŃo que rolava e crescia, imaginou o
Cavalleiro cedendo mollemente a outras exigencias do
Ministro--acceitando com servilismo para Villa-Clara a candidatura
d'algum imbecil da Arcada, d'algum chulo escrevinhador do Partido!
Pela manhŃ injuriou o Bento por lhe trazer tŃo tarde os jornaes e o chß:
--E nŃo ha telegramma, nem carta?
--NŃo ha nada.
Bem, f˘ra trahido! Pois nunca, nunca, aquelle infame Cavalleiro
transporia a porta dos Cunhaes! De resto, que lhe importava a burlesca
EleišŃo? Mercŕ de Deus que lhe sobravam outros meios de provar
soberbamente o seu valor--e bem superiores a uma ensebada cadeira em S.
Bento! Que miseria, na verdade, curvar o seu espirito e o seu nome ao
rasteiro servišo do S. Fulgencio, o obeso e horrendo careca! E resolveu
logo regressar aos cimos puros da Arte, occupar altivamente todo o dia
no nobre e elegante trabalho da sua Novella.
Depois de almošo ainda abancou, com esforšo, remexeu nervosamente as
tiras de papel. E de repente agarrou o chapÚo, abalou para Villa-Clara,
para o telegrapho. O Nunes nŃo recebera nada para sua exc.^a!--Correu,
coberto de suor e pˇ, ß AdministrašŃo do Concelho. O snr. Aministrador
partira para Oliveira!... Positivamente vencera outra combinašŃo--eis a
sua confianša burlada! E recolheu ß Torre, decidido a tomar um desforšo
tremendo do Cavalleiro por tanta injuria amontoada sobre o seu nome,
sobre a sua dignidade! Toda a abafada e enevoada Sexta-feira a consumio
amargamente meditando esta vinganša, que queria bem publica e bem
sangrenta. A mais saborosa, mais simples, seria rasgar a bigodeira do
infame com chicotadas, na escadaria da SÚ, um domingo, ß sahida da
missa! Ao escurecer, depois do jantar que mal debicßra, n'aquelle
despeito e humilhašŃo que o pungiam, envergou o casaco para voltar a
Villa-Clara. NŃo entraria no Telegrapho--jß com vergonha do Nunes. Mas
gastaria a noite na AssemblÚa, jogando o bilhar, tomando um alegre chß,
lendo risonhamente os Jornaes Regeneradores, para que todos recordassem
a sua indifferenša--se por acaso, mais tarde, conhecessem a trama em que
resvalßra.
Desceu ao pßteo, onde as arvores adensavam a sombra do crepusculo
carregado de fuscas nuvens. E abria o portŃo, quando esbarrou com um
rapaz que s'esbaforia sobre a perna manca e gritava:--ź╔ um telegramma!╗
Com que voracidade lh'o arrancou das mŃos! Correu ß cozinha, ralhou
desabridamente ß Rosa pela falta da luz tardia! E, com um phosphoro a
arder nos dedos, devorou, n'um lampejo, as linhas bemditas:--ź_Ministro
acceita, tudo arranjado_...╗ O resto era o Cavalleiro lembrando que no
domingo o esperava em Corinde, ßs onze, para almošarem e conversarem...
Gonšalo Mendes Ramires deu cinco tost§es ao mošo do telegrapho--galgou
as escadas. Na livraria, ß claridade mais segura do candieiro, releu o
telegramma delicioso. _Ministro acceita, tudo arranjado!_... Na sua
transbordante gratidŃo pelo Cavalleiro, ideou logo um jantar soberbo,
offerecido nos Cunhaes pelo Barr˘lo, cimentando para sempre a
reconciliašŃo das duas Casas. E recommendaria a Gracinha que, para mais
honrar a doce festa, se decotasse, pozesse o seu collar magnifico de
brilhantes, a derradeira joia historica dos Ramires.
--Aquelle AndrÚ! que fl˘r, que rapaz!
* * * * *
O relogio de charŃo, no corredor, rouquejou as nove horas. E sˇ entŃo
Gonšalo percebeu a densa chuva que alagava a quinta, e a que elle,
embebido na sua gloria, passeando pela livraria n'um luminoso rolo de
imaginaš§es, nŃo sentira o rumor sobre a pedra da varanda, nem sobre a
folhagem dos limoeiros.
Para se calmar, occupar a noite encerrada, deliberou trabalhar na
Novella. E realmente agora convinha que terminasse essa _Torre de D.
Ramires_ antes do afan da EleišŃo--para que em Janeiro, ao abrir das
C˘rtes, surgisse na Politica com o seu velho nome aureolado pela
ErudišŃo e pela Arte. Envergou o roupŃo de flanella. E ß banca, com o
costumado bule de chß inspirador, repassou lentamente o comešo do
Capitulo II--que o nŃo contentava.
Era no castello de Santa Ireneia, n'aquelle dia de Agosto em que
Lourenšo Ramires cahira no valle de Canta-Pedra, mal ferido e captivo do
Bastardo de BayŃo. Pelo Almocadem dos pe§es, que, com o brašo varado por
uma chušada, voltßra em desesperada carreira ao Castello, jß Tructezindo
Ramires conhecia o desventuroso desfecho da lide.--E n'este lance o tio
Duarte, no seu poemeto do Bardo, com um lyrismo molle, mostrava o enorme
Rico-Homem gemendo derramadamente atravez da sala-d'armas, na saudade
d'esse filho, fl˘r dos Cavalleiros de Riba-Cavado, derrubado, amarrado
n'umas andas, ß mercŕ da gente de BayŃo...
Lagrimas irrepresas lhe rebentam,
Arfa o arnez c'o solušar ardente!...
Ora, levado no harmonioso sulco do tio Duarte, tambem elle, nas linhas
primeiras do Capitulo, esbošßra o velho abatido sobre um escanho, com
lagrimas relusentes sobre as barbas brancas, as duras mŃos descahidas
como as de languida Dona--em quanto que nas lages, batendo a cauda, os
seus dois lebreus o contemplam n'uma sympathia anciada e quasi humana.
Mas, agora, este choroso desalento nŃo lhe parecia coherente com a alma
tŃo indomavelmente violenta do av˘ Tructezindo. O tio Duarte, da casa
das Balsas, nŃo era um Ramires, nŃo sentia hereditariamente a fortaleza
da raša:--e, romantico plangente de 1848, inundßra logo de prantos
romanticos a face ferrea de um lidador do seculo XII, d'um companheiro
de Sancho I! Elle porÚm devia restabelecer os espiritos do Senhor de
Santa Ireneia dentro da realidade epica. E, riscando logo esse descorado
e falso comešo de Capitulo, retomou o lance mais vigorosamente, enchendo
todo o castello de Santa-Ireneia d'uma irada e rija alarma. Na sua
lealdade sublime e simples Tructezindo nŃo cuida do filho--adia a
desforra do amargo ultraje. E o seu esforšo todo se commette a apressar
os aprestos da mesnada, para correr elle sobre Montemor, e levar ßs
Senhoras Infantas os soccorros de que as privßra a embuscada de
Canta-Pedra! Mas quando o impetuoso Rico-Homem com o Adail, na
sala-d'armas, regia a ordem da arrancada--eis que os esculcas, abrigados
do calor d'Agosto nos miradouros, enxergam ao longe, para alÚm do
arvoredo da Ribeira, coriscos d'armas, uma cavalgada subindo para
Santa-Ireneia. O Villico, o gordo e azafamado Ordonho, galga arquejando
aos eirados da torre albarrŃ--e reconhece o pendŃo de Lopo de BayŃo, o
seu toque de trompas ß mourisca, arrastado e triste no silencio dos
campos. EntŃo arqueia as cabelludas mŃos na b˘ca, atira o alarido:
--Armas, armas! que Ú gente de BayŃo!... Besteiros, ßs quadrellas!
Homens em chusma ßs lavadišas da carcova!
E Gonšalo, cošando a testa com a rama da penna, rebuscava ainda outros
veridicos brados, de bravo som Affonsino--quando a porta da livraria
abriu cautellosamente, atravez d'aquelle perro rangido que o
desesperava. Era o Bento, em mangas de camisa:
--O Snr. Dr. nŃo poderia descer cß baixo ß cozinha?
Gonšalo embasbacou para o Bento, pestanejando, sem comprehender:
--┴ cozinha?...
--╔ que estß lß a mulher do Casco a levantar uma celeuma. Parece que lhe
prenderam o homem esta tarde... Appareceu ahi por baixo de agoa, com os
pequenos, atÚ um de mama. Quer por forša fallar com o Snr. Dr. E nŃo se
calla, lavada em lagrimas, de joelhos com os filhos, que Ú mesmo uma
Ignez de Castro!
Gonšalo murmurou--źque massada!╗ E que contrariedade! A mulher, n'uma
agonia, entre gritos, arrastando os filhos supplicantes atÚ ao portŃo da
Torre! E elle, nas vesperas da sua EleišŃo, apparecendo a todas as
freguezias enternecidas como um fidalgo deshumano!...--Atirou a penna
furiosamente:
--Que massada! Dize ß creatura que me deixe, que se nŃo afflija... O
Snr. Aministrador ßmanhŃ manda soltar o Casco. Eu mesmo vou a
Villa-Clara, antes d'almošo, para pedir. Que se nŃo afflija, que nŃo
aterre os pequenos... Corre, dize, homem!
Mas o Bento nŃo despegava da porta:
--Pois a Rosa e eu jß lhe dissemos... Mas a mulherzinha nŃo acredita,
quer pedir ao Snr. Dr.! Veio por baixo d'agoa. AtÚ um dos pequenitos
estß bem doentinho, ainda nŃo fez senŃo tremer...
EntŃo Gonšalo, sensibilisado, atirou ß meza um murro que tresmalhou as
tiras da Novella:
--Ora se uma cousa d'estas se atura! Um homem que me quiz matar! E
agora, por cima, Ú sobre mim que desabam as lagrimas, e as scenas, e a
creanša doente! NŃo se pode viver n'esta terra! Um dia vendo casa e
quinta, emigro para Mošambique, para o Transvaal, para onde nŃo haja
massadas... Bem, dize ß mulher que jß desšo.
O Bento approvou, com effusŃo:
--Pois se o Snr. Dr. lhe nŃo custa... E como Ú para dar uma boa nova...
Sempre consola a pobre mulherzinha!...
--Lß vou, homem, lß vou! NŃo me masses tambem... Impossivel trabalhar
n'esta casa! Outra noite perdida!
Enfiou violentamente para o quarto, atirando as portas--com a ideia de
metter na algibeira do roupŃo duas notas de dez tost§es que consolariam
os pequenos. Mas, deante da gaveta, recuou, vexado. Que brutalidade,
compensar com dinheiro creancinhas--a quem elle arrancßra o pae,
algemado, para o trancar n'uma enxovia! Agarrou simplesmente n'uma
boceta de alperces seccos--dos famosos alperces do Convento de
Santa-Brigida de Oliveira, que na vespera lhe mandßra Gracinha. E,
cerrando lentamente o quarto, jß se arrependia da sua severidade, tŃo
estouvada, que assim desmanchava a quietašŃo de um casal. Depois no
corredor, ante a chuva clamorosa que dos telhados se despenhava nas
lages do pateo, ainda mais doridamente se impressionou, com a imagem da
pobre mulher, tresloucada pela negra estrada, puxando os filhinhos
encharcados, moÝdos, contra a tormenta solta. E ao penetrar no corredor
da cozinha--tremia como um culpado.
Atravez da porta envidrašada sentiu logo a Rosa e o Bento consolando a
mulher, com palradora confianša, quasi risonhos. Mas os źais╗ d'ella, os
ruidosos lamentos pelo źseu rico homem╗, resoavam, mais agudos, como a
rebater e a abafar toda a consolašŃo. E apenas Gonšalo empurrou
timidamente a porta--quasi acuou no espanto e medo d'aquella afflicšŃo
estridente que se arremessava para elle e para a sua misericordia! De
rojos nas lages, torcendo as magras mŃos sobre a cabeša, toda de negro,
parecendo mais negra e dolorosa contra a vermelhidŃo do lenšol estendido
que seccava ao lume forte da lareira--a creatura estalßra n'um tumulto
de supplicas e gritos:
--Ai, meu rico Senhor, tenha compaixŃo! Ai, que me prenderam o meu
homem, que m'o vŃo mandar para a Africa degredado! Jesus, meus filhinhos
da minha alma que ficam sem pae! Ai, pelas suas almas, meu senhor, e por
toda a sua felicidade!... Eu sei que elle teve culpa! Aquillo foi
perdišŃo que lhe deu! Mas tenha piedade d'estas creancinhas! Ai, o meu
pobre homem que estß a ferros! Ai, meu rico Senhor, por quem Ú!
Com as palpebras humedecidas, agarrando desesperadamente, a boceta
d'alperces, Gonšalo balbuciava, atravez da emošŃo que o estrangulßra:
--Oh mulher, socegue, jß o vŃo soltar! Socegue! Jß dei ordem! Jß o vŃo
soltar!
E d'um lado a Rosa, debrušada sobre a escura creatura que gemia,
recomešava docemente:--źPois foi o que lhe dissemos, tia Maria! Logo
pela manhŃ, o vŃo soltar!╗--E do outro o Bento, batendo na coxa, com
impaciencia:--źOh mulher, acabe com esse escarceu! Pois se o Snr. Dr.
prometteu! Logo pela manhŃ o vŃo soltar!╗
Mas ella nŃo se calmava, com o lenšo da cabeša desmanchado, uma tranša
desprendida, solušando e clamando atravez dos solušos:
--Ai que eu morro, se o nŃo vejo solto! Ai perdŃo, meu rico Senhor da
minha alma!...
EntŃo Gonšalo, que aquelle infindavel e obtuso queixume torturava, como
um ferro cravado e recravado, bateu o chinello nas lages, berrou:
--Escute, mulher! E olhe para mim! Mas de pÚ, de pÚ!... E olhe bem, olhe
direita!
Hirtamente erguida, atirando as mŃos para as costas como a escapar
d'algemas que tambem a ameašassem--ella arregalou para o Fidalgo os
olhos espavoridos, fundos olhos pretos, de fundas olheiras tristes, que
lhe enchiam a face rechupada e morena.
--Bem, perfeitamente! exclamava Gonšalo. E agora diga! Acha que tenho
bojo de lhe mentir, quando vocemecŕ estß n'essa afflicšŃo? Pois entŃo
socegue, acabe com os gritos, que, sob minha palavra, ßmanhŃ cedo, o seu
homem estß solto!
E a Rosa e o Bento, ambos triumphando:
--Pois que lhe dizia a gente, creatura de Deus? Se o Snr. Dr. tinha
promettido... ┴manhŃ lß tem o homem!
Lentamente ella limpava as lagrimas, jß silenciosas, ß ponta do avental
negro. Mas, ainda desconfiada, com os tenebrosos olhos mais arregalados,
devorando Gonšalo. E o Fidalgo mandava com certeza a ordem, cedinho, de
madrugada?...--Foi o Bento que a convenceu, com violencia:
--Oh mulher, vossŕ atÚ parece atrevida! Ora essa! Pois duvida da palavra
do Snr. Dr.?
Ella soltou o avental, baixou a cabeša, suspirou simplesmente:
--Ai, entŃo muito obrigada, seja pela felicidade de todos...
E agora a curiosidade de Gonšalo procurava os pequenos que ella
acarretßra desde os Bravaes atravez da chuva cerrada. A pequenina de
mama dormia com beatitude sobre a tampa de uma arca, onde a boa Rosa a
aconchegßra entre mantas e fronhas. Mas o pequeno, de sete annos,
encolhido n'uma cadeira deante do lume, rente ao lenšol que seccava,
seccando tambem, com a carinha afogueada de febre, tossia
despedašadamente, n'um cabecear de somno e canšasso, a arquejar, a gemer
contra a tosse que o esfalfava. Gonšalo pousou a boceta de alperces na
arca, palpou a mŃo com que elle, sem cessar, raspava pela abertura da
camisa encardida o peito ainda mais encardido.
--Mas esta creanca tem febre!... E vossŕ, com uma noite d'estas, traz o
pequeno assim desde os Bravaes, mulher?
Da cadeirinha baixa, onde se sentßra prostrada, ella murmurou, sem
erguer a magra face, torcendo a ponta do avental:
--Ai! era para que elles tambem pedissem, que estavam sem pae,
coitadinhos!
--Vocemecŕ Ú doida, mulher! E pretende talvez voltar para os Bravaes,
debaixo d'agoa, com as creanšas?
Ella suspirou:
--Ai! volto, volto... NŃo posso deixar sˇzinha a mŃe do meu homem, que
tem oitenta annos e estß entrevada.
EntŃo o Fidalgo cruzou descoršoadamente os brašos--no embarašo d'aquella
aventura, em que, por culpa da sua ferocidade, se arriscavam duas
creanšas. Mas a Rosa entendia que a pequenina, a de mama, nŃo soffreria
com a caminhada, bem achegadinha ao collo da mŃe, debaixo de uma manta
grossa. Agora o outro, com a tosse, com a febre...
--Esse fica cß! exclamou logo Gonšalo, decidido. Como se chama elle?
Manoel... Bem! O Manoel fica cß. E vß descanšada, que a Sr.^a Rosa toma
cuidado. Precisa uma boa gemada, depois um bom suadoiro. Um d'estes dias
lß lhe apparece nos Bravaes, curado e mais gordo... Vß socegada!
De novo a mulher suspirou, no canšasso immenso que a invadira, a
amollecia. E sem resistir, no seu longo e abatido habito de submissŃo:
--Pois sim senhor, se o Fidalgo manda, estß muito bem...
O Bento, entreabrindo a porta do pateo, annunciava uma źaberta╗, o
negrume a levantar. Gonšalo immediatamente apressou a volta aos Bravaes:
--E nŃo tenha medo, mulher. Vae um mošo da quinta com uma lanterna, e um
guarda chuva para abrigar a pequena... Escute! Vocemecŕ atÚ podia levar
uma capa de borracha!... Oh Bento, corre, desce a minha capa de
borracha. A nova, a que comprei em Lisboa...
E quando o Bento trouxe o źimpermeavel╗ de longa romeira, o lanšou por
sobre os hombros da mulher, que o estofo rico intimidava, com o seu
ruge-ruge de seda--foi na cozinha uma divertida risada. O pranto
passßra, como a chuva. Agora era uma visita amoravel, findando n'um
arranjo alegre d'agasalhos. A Rosa apertava as mŃos, banhada de gosto:
--Assim Ú que vocemecŕ fica uma bonita Madama, hein!... Se fosse de dia,
olhe que se juntava gente!
A mulher sorria emfim, descoradamente, sem interesse:
--Ai! nem sei que parešo... Que avantesma!
Atravez do pateo, onde as acacias gottejavam docemente, Gonšalo
acompanhou o rancho atÚ ß porta do pomar, gritando ainda--źAgasalhem bem
a pequena!╗--quando jß a lanterna do mošo se fundia na humida espessura
da noite acalmada. Depois, na cozinha, batendo contra as lages as solas
dos chinellos molhados, apalpou novamente o Manoelsinho, que adormecera
n'um somno rouquejado, torcido sobre as costas da cadeira.
--Tem pouca febre... Mas precisa um suadoiro forte. E, antes de o
cobrirem bem, um leite quente, quasi a ferver, com cognac... O que elle
precisava tambem era esfregado a c˘co... Que porcaria de gente! Emfim
fica para mais tarde, quando se curar... E agora, oh Rosa, mande acima
alguma cousa para eu cear, cousa solida, que nŃo jantei, e o sarau foi
tremendo!
Na livraria, depois de mudar os chinellos, descanšar, Gonšalo escreveu
ao Gouveia uma carta reclamando com commovida urgencia a liberdade do
Casco. E accrescentava:--ź╔ o primeiro pedido que lhe faz o deputado por
Villa-Clara (comprimente!), porque acabo de receber telegramma do nosso
AndrÚ, annunciando que ź_tudo feito, ministro concorda, etc._╗ De sorte
que precisamos communicar! Queira pois vossa mercŕ vir jantar ßmanhŃ a
esta sua Torre, ß sombra do Titˇ e com acompanhamento de Videirinha.
Estes dous benemeritos sŃo indispensaveis para que haja appetite e
harmonia. E rogo, Gouveia amigo, que os avise do festim, para me evitar
a remessa de circulares eloquentes...╗
Lacrada a carta, retomou languidamente o manuscripto da Novella. E,
trincando a rama da penna, ainda procurou vozes, de bom sabor medieval,
para aquelle lance em que o Villico e as roldas enxergavam a cavalgada
do Bastardo, pela encosta da Ribeira, com refulgidos d'armas, sob o rijo
sol d'Agosto...
Mas a sua imaginašŃo, desde a carta escripta ao Gouveia pelo źDeputado
de Villa-Clara╗ escapava desassocegadamente da velha Honra de Santa
Ireneia--esvoašava teimosamente para os lados de Lisboa, da Lisboa do S.
Fulgencio. E o eirado da torre albarran, onde o gordo Ordonho gritava
esbaforido--incessantemente se desfazia como nevoa molle, para sobre
elle surgir, appetitoso e mais interessante, um quarto do Hotel Braganša
com varanda sobre o Tejo... Foi um allivio quando o Bento o apressou
para a ceia. E ß mesa espalhou livremente a imaginašŃo por Lisboa, pelos
corredores de S. Carlos, por sob as arvores da Avenida, atravez dos
antiquados palacios dos seus parentes em S. Vicente e na Graša, atravez
das salas mais modernas de cultos e alegres amigos--parando ßs vezes
deante de vis§es que considerava com um riso deleitado e mudo. Alugaria
aos mezes, certamente, uma carruagem da Companhia. E para as sess§es de
S. Bento sempre luvas c˘r de perola, uma flor no peito. Por commodidade
levava o Bento, bem apurado, com casaca nova...
O Bento entrou com a garrafa do cognac n'uma salva. Dera a carta ao
Joaquim da Horta com a recommendašŃo de correr logo ßs seis horas a casa
do Snr. Administrador, de se demorar na Villa por deante da Cadeia atÚ
soltarem o Casco.
--E jß deitamos o pequeno no quarto verde. Fica perto de mim, que tenho
o somno leve, se elle berrar... Mas jß dorme regaladamente.
--Estß socegado, hein? acudiu Gonšalo, sorvendo ß pressa o calice de
cognac. Vamos vŕr esse cavalheiro!
E tomou um castišal, subiu ao quarto verde com o Bento, sorrindo,
abafando os passos pela estreita escada. No corredor, junto da poria,
n'um desbotado camapÚ de damasco verde, a Rosa dobrßra carinhosamente a
roupa trapalhona do pequeno, o collete esgašado, as calšas enormes, sˇ
com um botŃo. Dentro o leito de pau preto, vasto leito de ceremonia,
atravancava a parede forrada d'um velho papel avelludado de ramagens
verdes. Ao lado dos dous postes torneados, ß cabeceira, pendiam dous
paineis, retratos de antigos Ramires, um Bispo obeso folheando um folio,
um formoso Cavalleiro de Malta, de barba ruiva, appoiado ß espada, com
um lašarote de rendas sobre a couraša polida. E nos altos colch§es o
Manoelzinho resonava, sem tosse, quieto, abafado pela grossura dos
cobertores, humedecido por um suor fresco e sereno.
Gonšalo, caminhando sempre de leve, repuxou cuidadosamente a dobra do
lenšol. Desconfiado das janellas decrepitas, experimentou que nŃo
entrasse traišoeiro ar pelas gretas. Mandou pelo Bento buscar uma
lamparina, que arranjou sobre o lavatorio, com a luz esbatida por traz
d'uma vazilha. Ainda attentamente relanceou os olhos lentos pelo quarto,
para se assegurar do socego, do silencio, da penumbra, do conforto. E
sahiu, sempre na ponta dos pÚs, sorrindo, deixando o filho do Casco
velado pelos dous nobres Ramires--o Bispo com o seu Tratado, o
Cavalleiro de Malta com a sua pura espada.
Recolhendo do Tanque-Velho, do fundo da quinta, onde passßra a calma,
depois do almošo, na frescura do arvoredo, entre susurros de agoas
correntes, a folhear um volume do _Panorama_--Gonšalo encontrou sobre a
mesa da livraria, com o correio de Oliveira, uma carta que o
surprehendeu, enorme, em papel almašo, fechada por uma obreia. E dentro
a assignatura, desenhada a tinta azul, era um corašŃo chammejante.
N'um relance devorou as linhas, pautadas a lapis, d'uma lettra gorda,
arredondada com esmero:--źCaro e Ex.^{mo} Snr. Gonšalo Ramires. O
galante Governador civil do Districto, o nosso atiradišo AndrÚ
Cavalleiro, passeiava agora coastantemente por deante dos Cunhaes,
olhando com ternura para as janellas e para o honrado brazŃo dos
Barr˘los. Como nŃo era natural que andasse a estudar a architetura do
Palacete (que nada tem de notavel), concluiu a gente seria que o digno
Chefe do Districto esperava que V. Ex.^a apparecesse a alguma das
janellas do Largo, ou das que deitam para a rua das Tecedeiras, ou
sobretudo _no mirante do Jardim_, para reatar com V. Ex.^a a antiga e
quebrada amizade. Por isso muito acertadamente procedeu V. Ex.^a em
correr pessoalmente ao Governo Civil, e propor a reconciliašŃo, e abrir
os brašos generosos ao velho amigo, evitando assim que a primeira
Auctoridade do Districto continuasse a esbanjar um tempo precioso
n'aquelles passeios, de olhos pregados no Palacete dos fidalguissimos
Barr˘los. Enviamos portanto a V. Ex.^a os nossos sinceros parabens por
esse acertado passo que deve calmar as impaciencias do fogoso Cavalleiro
e redondar em beneficio dos servišos publicos!╗
Revirando o papel nas mŃos, Gonšalo pensou:
--╔ das Louzadas!
Ainda estudou a lettra, as express§es, descortinando que _redundar_ fora
escripto com um O, _architectura_ sem C. E rasgou furiosamente a grossa
folha, rosnando no silencio da livraria:
--Aquellas bebadas!
Sim, era d'ellas, das odiosas Louzadas! E essa origem mais o
aterrava--porque maledicencia, lanšada por tŃo ardentes espalhadoras de
maledicencias, jß certamente penetrßra em todas as casas d'Oliveira,
mesmo na Cadeia, mesmo no'Hospital! E agora a cidade divertida, lambendo
o escandalo, relacionava perfidamente os rodeios do AndrÚ pelos Cunhaes
com essa sua visita ao Governo Civil que assombrßra a Arcada. Na ideia
pois d'Oliveira, e sob a inspirašŃo das Louzadas--f˘ra elle, elle,
Gonšalo Mendes Ramires, que arrancßra o Cavalleiro ß sua RepartišŃo, o
conduzira servišalmente ao Largo d'El-Rei, lhe escancarßra as portas do
Palacete atÚ ahi rondadas e miradas sem proveito, e com sereno descaro
alcovitßra os amores da irmŃ! Se taes desavergonhadas nŃo mereciam que
lhes arregašassem as sujas saias no meio da Praša, em manhŃ de Missa, e
lhes fustigassem as nadegas melladas, furiosamente, atÚ que o sangue
ensopasse as lages!...
E, para maior damno, as apparencias todas se combinavam contra elle,
traidoramente! Essa insistencia de AndrÚ, cocando Gracinha, estrondeando
a calšada em torno do Palacete, crescera, impressionava, justamente
agora, n'este Agosto, nas vesperas d'essa sua apparišŃo ß janella do
Governo Civil, que Oliveira commentava como um misterio historico. Que
inopportunamente morrera o animal do Sanches de Lucena! Mezes antes, nem
mesmo a malicia das Louzadas ligaria a sua reconciliašŃo com AndrÚ a um
cŕrco amoroso que nŃo comešßra, ou nŃo andava tŃo murmurado. Tres ou
quatro mezes depois, AndrÚ, sem esperanša ante o Palacete inaccessivel,
certamente findaria os seus giros pelo Largo, de rosa ao peito! Mas nŃo!
infelizmente quando esse AndrÚ, com maior estrepito, ronda a porta
almejada--Ú que elle acode, e abraša o rondador, e lhe facilita a porta!
E assim a maledicencia das Louzadas encontrava uma base, a que todos na
cidade podiam palpar a substancia, e a solidez, e sobre ella se erigia
como Verdade Publica! Infames Louzadas!
Mas agora? O que? manter rigidamente as suas relaš§es com o Cavalleiro
dentro da Politica, evitando escorregadias intimidades que o tornassem
logo nos Cunhaes, como outr'ora na Torre, o conviva desejado? Como
poderia? Desde que elle se reconciliava com AndrÚ, logo e tŃo
naturalmente como a sombra segue a inclinašŃo do ramo, se reconciliava
tambem o Barr˘lo, seu cunhado e sua sombra... Mas como imp˘r ao Barr˘lo
que a sua renovada familiaridade com o Cavalleiro se realisasse
unicamente dentro da Politica como dentro d'um Lazareto?--źEu sou outra
vez o velho amigo do AndrÚ, tu, Barr˘lo, tambem--mas nunca o convides
para a tua mesa, nem lhe abras a tua porta!╗--ImposišŃo desconcertada,
de dura impertinencia--e que, na pequena Oliveira, logo os faceis
encontros, a simplicidade hospitaleira do Barr˘lo, quebrariam como um
barbante poido... E depois que grotesca attitude a sua, hirto deante do
portŃo do Palacete, como um Archanjo S. Miguel, de bengala de fogo na
mŃo, para sustar a intrusŃo de Satanaz, Chefe do Districto! Mas tambem
que toda a cidade largasse a cochichar pelos cantos o nome de Gracinha
embrulhado ao nome de AndrÚ, com o nome d'elle, Gonšalo, emmaranhado
atravez como o fio favoravel que os atßra--era horrivel.
E na impaciencia d'esta difficuldade, de malhas tŃo asperas, que tanto o
feriam, terminou por esmurrar a meza, revoltado:
--Irra, que massada! SŃo tudo massadas, n'estas terras pequenas e
coscovilheiras...
Em Lisboa quem se importaria que o Snr. Governador civil passeasse n'um
certo Largo--e que certo Fidalgo da Torre se reconciliasse com o Snr.
Governador Civil?... Pois acabou! Romperia soberbamente para diante,
como se habitasse Lisboa, desafogado de mexericos e de malignos olhinhos
a cocar. Era Gonšalo Mendes Ramires, da casa de Ramires! Mil annos de
nome e de solar! Dominava bem acima de Oliveira, de todas as suas
Louzadas. E nŃo sˇ pelo nome, louvado Deus, mas pelo espirito... O AndrÚ
era seu amigo, entrava em casa de sua irmŃ--e Oliveira que estoirasse!
E nem consentiu que a suja carta das Louzadas desmanchasse a quieta
manhŃ de trabalho para que se preparßra desde o almošo, relendo trechos
do Poemeto do Tio Duarte, folheando artigos do _Panorama_ sobre as
guerras de muralhas no seculo XII. Com um esforšo d'attenšŃo erudita
abancou, mergulhou a penna no tinteiro de latŃo que servira a trez
geraš§es de Ramires. E emquanto repassava as tiras trabalhadas, nunca o
Castello de Santa Ireneia lhe parecera tŃo heroico, de tŃo soberana
estatura, sobre tamanha collina d'Historia, sobranceando o Reino, que em
torno d'elle se alargava, se cobria de villas e messes, pelo esforšo dos
seus castell§es!
Temerosa, com effeito, se erguia a antiga Honra de Santa Ireneia, n'essa
Affonsina manhŃ d'Agosto e rijo sol, em que o pendŃo do Bastardo
surgira, entre fulgidos d'armas, para alÚm dos arvoredos da Ribeira! Jß
por todas as ameias se apinhavam os besteiros, espiando, encurvadas as
bÚstas. Das torres e adarves subia o fumo grosso do breu, fervendo nas
cubas, para despejar sobre os homens de BayŃo que tentassem a escalada.
O Adail corria pelas quadrellas, relembrando as trašas de defeza,
revistando os feixes de virot§es, os pedregulhos d'arremesso. E no
immenso terreiro, por entre os alpendres colmados, surdiam velhos
solarengos, servos do forno, servos da abegoaria, que se benziam com
terror, puchavam pelo saiŃo d'algum apressado homem de rolda, para
saberem da hoste que avanšava. No emtanto a cavalgada passßra a Ribeira
sobre a rude ponte de pau--jß, por entre os alamos, serenamente se
acercava do Cruzeiro de granito, outr'ora erguido nos confins da Honra
por Gonšalo Ramires, o _Cortador_. E, no socego da manhŃ abrazada, mais
fundamente resoaram as buzinas do Bastardo, e o seu toque lento e triste
ß mourisca...
Mas quando Gonšalo, enlevado no trabalho, tentava reproduzir, com termos
bem sonoros, avidamente rebuscados no _Diccionario de Synonimos_, o toar
arrastado das buzinas de BayŃo--sentiu realmente, do lado da Torre, um
gemer de sons graves que crescia atravez dos limoeiros. Deteve a
penna--e eis que o _Fado dos Ramires_ s'eleva offertadamente da horta,
em serenada, para a varanda florida de madresilva:
Ora, quem te vŕ solitaria,
Torre de Santa Ireneia...
O Videirinha!--Correu alvorošadamente ß janella. Um chapeu c˘co tremulou
entre os ramos, um brado estrugio, acclamador:
--Viva o deputado por Villa-Clara! Viva o illustre deputado Gonšalo
Ramires!
No violŃo rompera triumphalmente o Hymno da Carta. Videirinha, alšado na
biqueira das botas gaspeadas de verniz, gritava--źViva a illustre casa
de Ramires!╗ E por baixo do chapeu c˘co, sacudido com delirio, JoŃo
Gouveia, sem poupar a garganta, urrava--źViva o illustre deputado por
Villa-Clara! Viva!╗
Magestosamente, Gonšalo, alagado de riso, estendeu da varanda o brašo
eloquente:
--Obrigado, meus queridos concidadŃos! Obrigado!... A honra que me
fazeis, vindo assim, n'esse formoso grupo, o chefe glorioso da
AdministrašŃo, o inspirado Pharmaceutico, o...
Mas reparou... E o Titˇ?
--O Titˇ nŃo veio?... Oh JoŃo Gouveia, vocŕ nŃo avisou o Titˇ?
Repondo sobre a orelha o chapeu c˘co, o Administrador, que arvorßra uma
gravata de setim escarlate, declarou o Titˇ źum animal╗:
--Estava combinado virmos todos trez. AtÚ elle devia trazer uma duzia de
foguetes, para estalar aqui com o Hymno... A reuniŃo era ao pÚ da
Ponte... Mas o animal nŃo appareceu. Em todo o caso ficou avisado,
avisadissimo... E se nŃo vier, Ú traidor.
--Bem, subam vocŕs! gritou Gonšalo. Eu n'um instante me visto. E, para
agušar o appetite, proponho um vermouth, depois uma volta pela quinta
atÚ ao pinhal!...
Immediatamente Videirinha, tŕso, empinando o violŃo, metteu pela rua
larga da horta, recoberta de parreira; e atraz JoŃo Gouveia atirava os
passos em cadencia nobre, alšando o guarda-sol como um pendŃo. Quando
Gonšalo entrou no quarto, berrando pelo Bento e por agoa quente--o _Fado
dos Ramires_ soava, em trinados heroicos, atravez do feijoal, por sob a
janella aberta onde seccava o lenšol do banho. E eram as quadras
preferidas do Fidalgo, as quadras em que o grande av˘ Ruy Ramires,
sulcando os mares de Mascate n'uma urca, encontra trez fortes naus
inglezas, e, do alto do seu castello de pr˘a, vestido de gran-vermelha,
com a mŃo no cinto d'anta tauxeado d'ouro e pedras, soberbamente as
intima a que se rendam...
Todo alegre, e a mŃo no cinto.
Junto da Signa Real,
Gritando ßs naus--źAmainae
Por El-Rei de Portugal!...╗
Gonšalo abotoava ß pressa os suspensorios, retomßra o canto
glorificador--_Todo alegre, a mŃo no cinto_... _Junto da Signa
Real_...--E, atravez do esforšo esganišado, pensava que com tal linha
d'avˇs, bem podia desprezar Oliveira e as suas Louzadas horrendas. Mas o
trovŃo lento de Titˇ retumbou no corredor:
--EntŃo esse deputado de Villa-Clara?... Jß estß a vestir a farda?
Gonšalo correu ß porta do quarto, radiante:
--Entra, Titˇ! Os deputados jß nŃo usam farda, homem! Mas se a tivesse,
c'os diabos, ia hoje farda, e espadim e chapeu armado, para honrar
hospedes tŃo illustres!
O outro avanšßra vagarosamente, com as mŃos nas algibeiras da rabona de
velludo c˘r d'azeitona, o vasto chapeu braguez atirado para a nuca,
desafogando a honesta face barbuda, vermelha de saude e sol:
--Eu, por farda, queria dizer librÚ... LibrÚ de lacaio.
--Ora essa!?
E o outro mais retumbante:
--Pois o que vaes tu ser, homem, senŃo um sujeito ßs ordens do S.
Fulgencio, _do horrendo careca_? NŃo lhe serves o chß, quando elle te
mandar; mas, quando elle te mandar votar, votas! Alli, direitinho, ßs
ordens! źOh Ramires, vote lß!╗ E Ramires, zßs, vota... ╔ de escudeiro,
homem, Ú de escudeiro de librÚ...
Gonšalo sacudiu os hombros, impaciente:
--Tu Ús uma creatura das selvas, lacustre, quasi prehistorica... NŃo
entendes nada das realidades sociaes!... Na sociedade nŃo ha principios
absolutos!...
Mas o Titˇ, imperturbavel:
--E esse Cavalleiro? Tambem jß Ú rapaz de talento? Tambem jß governa bem
o Districto?
EntŃo Gonšalo protestou, picado, com uma roseta forte na face. E quando
negßra elle ao AndrÚ talento ou geito de governar? Nunca! Sˇ rira,
gracejando, da sua pompa, da bigodeira lustrosa... E de resto, o servišo
do Paiz exigia que por vezes se alliassem homens que nem partilhavam os
mesmos gostos, nem procuravam os mesmos interesses!
--E emfim o Snr. Antonio Villalobos vem hoje um moralista muito
terrivel, um CatŃo com quem se nŃo pode jantar!... Ora foi sempre o
costume dos Philosophos muito rispidos fugir da sala do banquete onde
triumpha o devasso, e protestar comendo na cosinha!
Titˇ, serenamente, virou as costas magestosas.
--Onde vaes, ˇ Titˇ?
--Para a cosinha!
E, como Gonšalo ria, Titˇ, junto da porta, girando como uma torre que
gira, encarou o seu amigo:
--SÚrio, sÚrio, Gonšalo! EleišŃo, reconciliašŃo, submissŃo, e tu em
Lisboa ßs cortezias ao S. Fulgencio, e em Oliveira de brašo dado com o
AndrÚ, tudo isso me parece que destoa... Mas emfim se a Rosa hoje se
apurou, nŃo alludamos mais a cousas tristes!
E Gonšalo bracejava, de novo protestava--quando o violŃo resoou no
corredor, com as patadas bem marchadas do Gouveia, e o _Fado_ recomešou,
mais meigo, mais glorificador:
--Velha casa de Ramires,
Honra e flor de Portugal!
VI
A casa do Cavalleiro em Corinde era uma edificašŃo dos fins do seculo
XVIII, sem elegancia e sem arte, pintada d'amarello, lisa e vasta, com
quatorze janellas de frente, quasi ao meio d'uma quinta chŃ, toda de
terras lavradas. Mas uma avenida de castanheiros conduzia, com alinhada
nobreza, ao pateo da frente, ornado por dois tanques de marmore. Os
jardins conservavam a abundancia esplendida de rosas que os tornßra
famosos--e lhes merecera em tempos do av˘ de AndrÚ, o Desembargador
Martinho, uma visita da Snr.^a D. Maria II. E dentro todas as salas
reluziam d'asseio e ordem, pelos cuidados da velha governanta, uma
parenta pobre do Cavalleiro, a Snr.^a D. Jesuina Rollim.
Quando Gonšalo, que viera da Torre na egoa, atravessou a ante-sala,
ainda reconheceu um dos paineis da parede, fumarento combate de gali§es,
que elle uma tarde rasgßra jogando o espadŃo com AndrÚ. Sob esse painel,
ß borda do canapÚ de palhinha, esperava melancolicamente um amanuense do
Governo Civil, com a sua pasta vermelha sobre os joelhos. E d'uma porta
remota, ao fundo do corredor, AndrÚ, avisado pelo creado, o fiel
Matheus, gritou alegremente:
--Oh Gonšalo, entra para cß, para o quarto! Sahi da tina... Ainda estou
em ceroulas!
E em ceroulas o abrašou, n'um generoso abrašo de parabens. Depois, em
quanto se vestia, por entre as cadeiras atravancadas com o recheio das
malas--gravatas, peugas de sŕda, garrafas de perfumes--conversaram do
calor, da jornada enfadonha, de Lisboa despovoada...
--Um horror! exclamava o Cavalleiro aquecendo um ferro de frisar ß
lampada d'alcool. Todas as ruas da Baixa em obras, cobertas de cališa,
de poeirada. O Central enfestado de mosquitos. Muito mulato. Uma Tunis,
Lisboa!... Mas emfim, lß combatemos bravamente o bom combate!
Gonšalo sorria, do canto do divan onde se accommodßra, entre uma pilha
de camisas de c˘r e outra de ceroulas com monogramma flammante:
--E entŃo, AndrÚsinho, tudo arranjado, hein?
O Cavalleiro, deante do toucador, frisava com enlevado esmero as pontas
grossas do bigode. E sˇ depois de o ensopar em brilhantina, d'acamar as
ondas da cabelleira rebelde, de se mirar, de se requebrar, assegurou a
Gonšalo, jß inquieto, que a eleišŃo ficßra solida...
--Mas imagina tu! Quando appareci em Lisboa, no Ministerio do Reino,
encontrei o circulo promettido ao Pitta, ao Theotonio Pitta, o grande
homem da _Verdade_...
O Fidalgo pulou, despenhando a ruma de camisas:
--E entŃo?...
E entŃo elle mostrßra muito asperamente ao JosÚ Ernesto a inconveniencia
de disp˘r do Circulo como d'um charuto, sem o consultar, a elle,
Governador Civil--e dono do circulo... E como o JosÚ Ernesto se
arrebitava, alludia ß conveniencia superior do Governo, elle logo,
estendendo o dedo firme:--źPois ZÚsinho, fl˘r, ou trago o Ramires por
Villa-Clara, ou me demitto, e arde Troia!...╗ Espantos, escarceus,
berreiros--mas o JosÚ Ernesto cedŕra, e tudo findou jantando ambos em
AlgÚs com o tio Reis Gomes, onde ß noite, ao źbluff╗, as senhoras lhe
arrancaram quatorze mil reis.
--Em resumo, Gonšalinho, precisamos conservar os olhos attentos. O JosÚ
Ernesto Ú rapaz leal, meu velho amigo. E depois conhece o meu genio...
Mas ha os compromissos, as press§es... E agora a novidade pittoresca.
Sabes quem se prop§e contra ti, pelos Regeneradores?... Adivinha... O
Julinho!
--Que Julinho?... O Julio das photographias?
--O Julio das photographias.
--Diabo!
O Cavalleiro encolheu os hombros, com piedade:
--Arranja dez votos ß porta da quinta, tira o retrato a todos os
taverneiros do circulo em mangas de camisa, e continua a ser o
Julinho... NŃo! sˇ Lisboa me inquieta, a canalha politica de Lisboa!
Gonšalo torcia o bigode, desconsolado:
--Imaginei tudo mais solido, mais inabalavel... Assim com todas essas
intrigas, ainda surde trapalhada... Ainda lß nŃo vou!
O Cavalleiro, ao espelho, esticava o fraque--que experimentßra abotoado,
depois repuxadamente aberto sobre o collete de fustŃo c˘r de azeitona
onde, no trespasse largo, tufava a gravata de sedinha clara, prendida
por uma saphira. Por fim, encharcando o lenšo com essencia de fŕno:
--Nˇs estamos bem alliados, bem consagrados, nŃo Ú verdade? EntŃo, meu
caro Gonšalo, socega, e almocemos regaladamente!... Creio que este
fraque do nosso Amieiro assenta com certa graša, hein?
--Magnifico! affirmou Gonšalo.
--Bem. EntŃo agora descemos ao jardim, para tu reveres os velhos poisos
e te florires com uma rosa de Corinde.
E logo no corredor, ornado de jarr§es da India, de arcas de charŃo,
enlašando o brašo de Gonšalo, do seu recuperado Gonšalo:
--Pois, meu filho, aqui pisamos ambos de novo os nobres soalhos de
Corinde, como ha cinco annos... E nada mudou, nem um creado, nem uma
cortina! Agora, um d'estes dias, preciso visitar a Torre.
Gonšalo accudiu ingenuamente:
--Oh! a Torre estß muito mudada... Muito mudada!
E um embarašado silencio pesou--como se entre elles surgisse a imagem
entristecida da antiga quinta, no tempo dos amores e das esperanšas,
quando AndrÚ e Gracinha procuravam as ultimas violetas d'Abril, sob o
sorriso tutelar de Miss Rhodes, rente aos humidos muros da MŃe d'Agoa.
Ainda em silencio desceram a escada de caracol--por onde ambos outr'ora
se despenhavam cavalgando o corrimŃo. E em baixo, n'uma sala abobadada,
rodeada de bancos de madeira com as armas dos Cavalleiros nas espaldas,
AndrÚ quedou deante da porta envidrašada do jardim, ondeou um gesto
desconsolado e languido:
--Eu tambem, agora, pouco apparešo em Corinde. E, comprehendes bem que
nŃo me reteem em Oliveira os cuidados da AdministrašŃo... Mas este
casarŃo arrefeceu, alargou, desde a morte da mamŃ. Ando aqui como
perdido. E acredita, quando cß me demoro, sŃo uns passeios tristonhos
por esses jardins, pela Rua Grande... Ainda te lembras da Rua Grande?...
Vou envelhecendo muito solitariamente, meu Gonšalo!
Gonšalo murmurou, por concordancia, sympathia renovada:
--Eu tambem m'aborrešo na Torre...
--Mas tens outro genio!... E eu realmente sou um elegiaco.
Correu, com um esforšo, o fecho perro da porta envidrašada. E limpando
os dedos ao lenšo perfumado:
--Eu creio que Corinde, agora, sˇ me encantava com grandes cerros
escalvados, grandes rochedos agrestes... ┴s vezes, cß dentro d'alma,
necessito o ermo de S. Bruno...
Gonšalo sorria d'aquelle appetite ascetico, murmurado com preciosidade,
atravez da bigodeira torcida a ferro, resplandecente de brilhantina. E
no terrašo, junto ß balaustrada de pedra enramada d'hera, galhofou,
louvando o areado alinho, o relusente višo do jardim:
--Com effeito, para um discipulo de S. Bruno, que escandalo, todo este
asseio! Mas para um peccador como eu, que delicia!... O jardim da Torre
anda um chavascal.
--A prima Jesuina gosta de fl˘res. Tu nŃo conheces a prima Jesuina? Uma
velha parenta da mamŃ, que governa agora a casa. Coitada! e com um
escrupulo, com um amor... Se nŃo fosse a santa creatura, os porcos
fossavam nos canteiros... Meu filho, onde nŃo ha saia, nŃo ha ordem!
Desceram a escadaria redonda, por entre os vasos de louša azul que
trasbordavam de geranios, de secias, de canas da India. Gonšalo recordou
a vespera de S. JoŃo em que rolßra por aquelles degraus, n'um trambulhŃo
tremendo, com os brašos carregados de foguetes. E lentamente, atravez do
jardim, evocavam memorias da camaradagem antiga. Lß se conservava o
trapezio, dos tempos em que ambos cultivavam a religiŃo heroica da
forša, da gymnastica, do banho frio... N'aquelle banco, sob a magnolia,
lera uma tarde AndrÚ o primeiro canto do seu Poema, o _Fronteiro
d'Arzilla_. E o alvo? O alvo onde se exerciam ß pistola, para os futuros
duellos, inevitaveis na campanha que ambos meditavam contra o velho
Syndicato Constitucional?...--Oh! toda essa parte do muro, que pegava
com o lavadoiro, f˘ra derrubada depois da morte da mamŃ, para alargar a
estufa...
--De resto o alvo era inutil! accrescentou o Cavalleiro. Eu logo por
esse tempo entrei tambem no Syndicato... E agora entras tu, pela porta
que eu te abro!
EntŃo Gonšalo, que colhŕra e esmagava entre os dedos, para lhe sorver o
perfume, folhas de lucia-lima--acudiu com uma franqueza, que aquelle
desenterrar de recordaš§es tornava mais penetrante e sentida:
--E eu desejo entrar, e ardentemente, bem sabes. Mas tu afianšas a
eleišŃo, com seguranša? NŃo surgirß difficuldade, AndrÚsinho?... Esse
Pitta Ú um habil!
O Cavalleiro murmurou apenas, mergulhando os dedos nas cavas do collete:
--Da habilidade dos Pittas se ri a forša dos Cavalleiros...
Por trez degraus de tijolo baixaram ao outro jardim, desafogado de
arvoredo e sombra, onde desabrochava desde Maio, com explendor, o tŃo
celebrado bosque de roseiras, orgulho da quinta de Corinde, que
deleitßra uma Rainha. Aquelle facil desdem pelo Pitta confirmava a
seguranša da EleišŃo. Gonšalo, caminhando respeitosamente como n'um
Museu, regou de louvores deslumbrados as rosas do Cavalleiro:
--Uma belleza, AndrÚ, uma maravilha! Tens aqui rosas sublimes...
Aquellas repolhudas, alÚm, que luxo! E estas amarellas? deliciosas!...
Olha este encanto! o ruborsinho a surdir, a raiar, do fundo das petalas
brancas... Oh, que escarlate! Oh, que divino escarlate!
O Cavalleiro cruzßra os brašos, com gracejadora melancolia:
--Pois vŕ tu! Tal Ú a minha solidŃo social e sentimental que, com todas
estas rosas abertas, nŃo tenho a quem mandar um ramo!... Estou reduzido
a florir as Louzadas!
Um escarlate, mais vivo do que as rosas que gabava, cobriu as faces do
Fidalgo:
--As Louzadas! Oh que desavergonhadas!
AndrÚ atirou ao seu amigo os lustrosos olhos, n'um inquieto reparo de
curiosidade:
--Por quŕ?... Desavergonhadas, por quŕ?
--Por quŕ? Por que o sŃo! Pela sua natureza, e pela vontade de Deus!...
SŃo desavergonhadas como estas rosas sŃo vermelhas.
E o Cavalleiro, tranquillisado:
--Ah, genericamente... Com effeito tŕm immensa pešonha. Por isso eu as
cubro de rosas. E em Oliveira, todas as semanas, meu filho, tomo com
ellas um chß respeitoso!
--Pois nŃo as amansas, rosnou o Fidalgo.
Mas o Matheus apparecŕra nos degraus de tijolo com o guardanapo na mŃo,
a calva rebrilhando ao sol. Era o almošo. O Cavalleiro colheu para
Gonšalo uma źrosa triumphal╗--e para si um źbotŃo innocente...╗ E,
enflorados, subiam para o terrašo entre o brilho e o perfume de outras
roseiras--quando o Cavalleiro parou com uma ideia:
--A que horas vaes tu para Oliveira, Gonšalinho?
O Fidalgo hesitou. Para Oliveira?... NŃo tencionava apparecer em
Oliveira, toda essa semana...
--Por quŕ? ╔ urgente que vß a Oliveira?
--Pois certamente, filho! ┴manhŃ mesmo precisamos conversar com o
Barr˘lo, combinarmos, por causa dos votos da Murtosa!... Meu querido
Gonšalo, nŃo podemos adormecer. NŃo Ú pelo Julio, Ú pelo Pitta!
--Bem! bem! acudio logo Gonšalo, assustado. Parto para Oliveira.
--Por que entŃo, continuava AndrÚ, vamos ambos logo, a cavallo. ╔ um
bonito passeio pelos Freixos, sempre com sombra... Tens talvez de mandar
ß Torre, por causa de roupa...
NŃo! Gonšalo, para evitar a importunidade de malas, conservava nos
Cunhaes um bragal inteiro, desde a chinella atÚ ß casaca. E entrava em
Oliveira como o Philosopho Bias em Athenas--com uma simples bengala e
paciencia infinita...
--Delicioso! declarou AndrÚ. Fazemos entŃo logo a nossa entrada official
em Oliveira. ╔ o comešo da campanha.
O Fidalgo torcia o bigode, consternado, pensando nos risinhos perversos
das Louzadas, de toda a cidade, perante uma entrada tŃo apparatosamente
fraternal. E, quando o Cavalleiro recommendou ao Matheus que mandasse
apromptar o _Rossilho_ e a egoa do Fidalgo para as quatro horas e meia,
Gonšalo exagerou o seu receio do calor, da poeira. Antes partissem ßs
sete, pela fresca! (Assim esperava penetrar em Oliveira
desapercebidamente, esbatido no crepusculo). Mas AndrÚ protestou:
--NŃo, Ú uma secca, chegamos ß noite. Precisamos entrar com solemnidade,
ß hora da musica no Terreiro... ┴s cinco, hein?
E Gonšalo, vergando os hombros sob a Fatalidade:
--Pois sim, ßs cinco.
Na sala de jantar, esteirada, com denegridos paineis de fl˘res e fructas
sobre um papel vermelho imitando damasco, AndrÚ occupou a veneranda
cadeira de brašos do av˘ Martinho. O brilho das pratas, a frescura das
rosas n'uma floreira de Saxe, revelavam os desvelos da prima
Jesuina--que, com d˘r d'entranhas n'essa manhŃ, nŃo se vestira, almošava
no quarto... Gonšalo louvou aquella elegante ordem, tŃo rara n'uma casa
de solteirŃo, lamentando a falta de uma prima Jesuina na Torre... E
AndrÚ sorria deliciadamente, desdobrando o guardanapo, com a esperanša
que Gonšalo contasse aos Barr˘los o confortavel luxo de Corinde. Depois,
picando com o garfo uma azeitona:
--Pois Ú verdade, meu querido Gonšalo, lß estive n'essa grande Capital,
depois um dia em Cintra...
O Matheus entre-abriu a porta para recordar a S. Ex.^a o amanuense do
Governo Civil, que esperava.
--Pois que espere! gritou S. Ex.^a.
Gonšalo lembrou que talvez o digno homem se impacientasse, com fome...
--Pois que almoce! gritou S. Ex.^a.
Aquelle secco desprezo de AndrÚ pelo pobre empregado, esquecido no banco
d'entrada, com a sua pasta sobre os joelhos--constrangia o Fidalgo. E
espetando tambem uma azeitona:
--Dizias entŃo, Cintra...
--Semsabor, resumiu AndrÚ. Poeirada horrenda, femeašo mediocre... E jß
me esquecia. Sabes quem lß encontrei, na estrada de Collares? O
Castanheiro, o nosso Castanheiro, o dos _Annaes_, de chapÚo alto. Ergueu
logo os brašos ao cÚo, desolado:--źE entŃo esse Gonšalo Mendes Ramires
nŃo me manda o romance?╗ Parece que o primeiro numero da Revista sae em
Dezembro, e elle precisa o original em comešos d'Outubro... Lß me
supplicou que te saccudisse, que te recordasse a gloria dos Ramires. E
tu devias acabar a Novella... AtÚ convem que, antes d'entrares na
Camara, appareša um trabalho teu, um trabalho serio, d'erudišŃo forte,
bem portuguez...
--Pois convem! concordou vivamente Gonšalo. E ß Novella sˇ falta o
Capitulo quarto. Mas esse justamente demanda mais preparašŃo, mais
pesquizas... Para o acabar precisava o espirito bem socegado, a certeza
d'esta infernal eleišŃo... NŃo Ú o animal do Julio que me inquieta. Mas
a canalha intrigante de Lisboa... Que te parece?
Cavalleiro riu, estendendo de novo o garfo para as azeitonas:
--Que me parece, Gonšalinho? Que estßs como uma creanša pequena,
afflicta, com medo que te nŃo chegue o prato de arroz doce. Socega,
menino, apanhas o teu arroz doce!... Mas com effeito, encontrei o JosÚ
Ernesto muito teimoso. Jß existiam compromissos antigos com o Pitta. _A
Verdade_ tem sido furiosamente ministerial... E esse Pitta, agora quando
souber que lhe tapei Villa-Clara, arde em furor contra mim. O que me Ú
soberanamente indifferente; colerasinhas ou piadinhas do Pitta nŃo me
tiram o appetite... Mas o JosÚ Ernesto admira o Pitta, necessita do
Pitta, estß empenhado em pagar ao Pitta com um circulo... Ainda no
ultimo dia me disse na Secretaria, atÚ lhe achei graša:--źEu vejo que os
deputados por Villa-Clara morrem; ora se, por esse bom costume, o teu
Ramires morrer em breve, entŃo entra o Pitta.╗
Gonšalo recuou a cadeira:
--Se eu morrer!... Que animal!
--Oh, se morreres para o Circulo! atalhou o Cavalleiro rindo. Por
exemplo, se nos zangassemos, se ßmanhŃ entre nˇs surgisse uma
dissidencia... Emfim o impossivel!
O Matheus entrava com a terrina de caldo de gallinha, que rescendia.
--A elle! exclamou AndrÚ. E nŃo se falle mais de Circulos, nem de
Pittas, nem de Julios, nem da negregada Politica!... Conta antes o
enredo da tua Novella... Historica, hein?... Meia-idade? D. JoŃo V?...
Eu, se tentasse agora um Romance, escolhia uma epocha deliciosa,
Portugal sob os Philippes...
* * * * *
Os tres quartos, depois das seis, batiam no relogio sempre adeantado da
Egreja de S. ChristovŃo, em Oliveira, quando AndrÚ Cavalleiro e Gonšalo,
descendo da rua Velha, penetraram no Terreiro da Louša (agora _Largo do
Conselheiro Costa Barroso_).
Todos os Domingos, tocando n'um coreto que o Conselheiro, quando
Presidente da Camara, mandßra construir sobre o velho Pelourinho
demolido, a charanga do Regimento ou a philarmonica _Lealdade_ tornavam
aquelle Largo o centro mais sociavel da quieta e caseira cidade. N'essa
tarde, porÚm, como comešßra no Convento de Santa Brigida o bazar
patrocinado pelo Bispo, as senhoras rareavam nos bancos de pedra e nas
cadeiras do Asylo espalhadas por sob as acacias. As Louzadas faltavam no
seu pouso reservado, superiormente escolhido para espiarem todo o
Terreiro, as casas que o cerram do lado de S. ChristovŃo e do lado das
Trinas, a rua Velha e a rua das Vellas, a barraca da limonada, e atÚ
outro retiro pudicamente disfaršado por uma cannišada de heras. E o
unico rancho conhecido, D. Maria Mendonša, a Baroneza das Marges, as
duas Alboins, conversavam com as costas para o Terreiro, junto da grade
de ferro que o limita sobre a antiga muralha--d'onde se dominam campos,
a cŕrca do Seminario Novo, todo o pinhal da Estevinha e as voltas
lustrosas da ribeira de Crŕde.
Mas entre os cavalheiros que trilhavam vagarosamente a alŕa do Largo
denominada o źPicadeiro╗, gosando a _Marcha do Propheta_, o espanto
reviveu (apezar de todos conhecerem a reconciliašŃo famosa do Governo
Civil) quando os dous amigos appareceram, ambos de chapÚos de palha,
ambos de polainas altas, ao passo solemne das duas egoas--a de Gonšalo
airosa e baia de cauda curta ß ingleza, a do Cavalleiro pesada e preta,
de pescošo arqueado, a cauda farta rojando as lages. Mello Alboim, o
BarŃo das Marges, o Dr. Delegado, pararam n'uma fila pasmada, a que se
juntou um dos Villa-Velhas, depois o morgado Pestana, depois o gordo
major Ribas com a farda desabotoada, rebolando e galhofando sobre
źaquella amigašŃo...╗ O tabelliŃo Guedes, o Guedes _p˘pa_, derrubou a
cadeira no alvorošo com que se ergueu, indignado mas respeitoso,
descobrindo a calva n'uma cortesia immensa em que o chapeu branco lhe
tremia. E o velho Cerqueira, o advogado, que sahia do retiro encannišado
d'hera e se abotoava, embasbacou, com os oculos na ponta do nariz
alšado, os dedos esquecidos nos bot§es das calšas.
No emtanto os dous amigos, gravemente, seguiam pela correnteza de casas
que o palacete de D. Arminda Villegas domina, com o pesado brazŃo dos
Villegas na cimalha, as suas dez nobres varandas de ferro opulentadas
por cortinas de damasco amarello. Na varanda d'esquina, o Barr˘lo e JosÚ
Mendonša fumavam, sentados em mochos de palhinha. E ao sentir as patas
lentas das egoas, ao avistar tŃo inesperadamente o cunhado--o bom
Barr˘lo quasi se despenhou da varanda:
--Oh Gonšalo! Oh Gonšalo!... Vaes lß para casa?
E nem esperou uma certeza, berrou de novo, bracejando:
--Nˇs jß vamos! Jantßmos cß esta tarde... A Gracinha estß lß em cima,
com a tia Arminda. Vamos jß tambem! ╔ um momento!
O Cavalleiro acenou risonhamente ao capitŃo Mendonša. Jß Barr˘lo
mergulhßra com enthusiasmo para dentro dos damascos amarellos. E os dois
amigos, deixando pelo Terreiro aquelle sulco de espanto, penetraram na
rua das Vellas onde um Policia se perfilou com a mŃo no bonet--o que foi
agradavel ao Fidalgo da Torre.
O Cavalleiro acompanhou Gonšalo ao Largo d'El-Rei. Deante do Palacete um
homem de boina vermelha remoÝa no seu realejo o c˘ro nupcial da _Lucia_,
espiando as janellas desertas. O Joaquim da Porta correu do pateo a
segurar a egoa do Fidalgo. Com um mudo sorriso o tocador estendera a
boina. E depois de lhe atirar um punhado de cobre--Gonšalo hesitou,
murmurou emfim, com embarašo e corando:
--NŃo queres entrar e descanšar, AndrÚ?...
--NŃo, obrigado... EntŃo ßmanhŃ ßs duas, no Governo Civil, com o
Barr˘lo, para combinarmos sobre os votos da Murtosa... Adeus, minha
fl˘r! DÚmos um bello passeio e espantamos os povos!
E S. Ex.^a, envolvendo o Palacete n'um demorado olhar, desceu pela rua
das Tecedeiras.
No seu quarto (sempre preparado, com a cama feita) Gonšalo acabava de se
lavar, de se escovar, quando Barr˘lo se precipitou pelo corredor,
esbofado, soffrego--e atraz d'elle Gracinha, offegante tambem,
desapertando nervosamente as fitas escarlates do chapeu. Desde a tarde
em que Barr˘lo źpresenceßra com os olhos bem acordados!╗ a palestra de
Gonšalo e de AndrÚ na varanda do Governo Civil--fervera n'elle e em
Gracinha uma impaciencia desesperada por penetrar os motivos, a
encoberta historia d'aquella reconciliašŃo surprehendente. Depois a fuga
de Gonšalo na caleche para a Torre, sem parar nos Cunhaes; a repentina
jornada do Cavalleiro a Lisboa; o silencio que sobre aquelle caso se
abatera mais pesado que uma tampa de ferro--quasi os aterrou. Gracinha ß
noite, no Oratorio, murmurava atravez das resas distrahidas:--źOh, minha
rica Nossa Senhora, que serß?╗--Barr˘lo nŃo ousßra correr ß Torre; mas
atÚ sonhava com a varanda do Governo Civil, que lhe apparecia enorme,
crescendo, atravancando Oliveira, rošando jß as janellas dos Cunhaes
d'onde elle a repellia com o cabo d'uma vassoura... E eis agora Gonšalo
e AndrÚ que entram na cidade a cavallo, muito serenamente, ambos de
chapeus de palha, como companheiros constantes recolhendo d'um passeio!
Logo ß porta do quarto, Barr˘lo atirou os brašos, rompeu aos brados:
--EntŃo que tem sido tudo isto?... NŃo se falla n'outra coisa!... Tu com
o AndrÚ!
Gracinha, arfando, tŃo vermelha como as fitas do chapeu, sˇ balbuciava:
--E nem vens, nem escreves... Nˇs com tanto cuidado...
E mesmo rente da porta aberta, sem se sentarem, o Fidalgo aclarou o
źMysterio╗, com a toalha ainda nas mŃos:
--Uma cousa muito inesperada, mas muito natural. O Sanches Lucena
morreu, como vocŕs sabem. Ficou vago o circulo de Villa-Clara. ╔ um
circulo por onde sˇ pˇde sahir um homem da terra, com propriedade, com
influencia. O governo immediatamente me mandou perguntar, pelo
telegrapho, se eu me desejava prop˘r... Ora eu, no fundo, estou de bem
com os Historicos, sou amigo do JosÚ Ernesto... Estimava entrar na
Camara... Acceitei.
O Barr˘lo esmagou a coxa com uma palmada triumphal:
--EntŃo era certo, caramba!
O Fidalgo continuava, enxugando interminavelmente as mŃos:
--Acceitei, estß claro, com condiš§es; e muito fortes. Mas acceitei...
N'este caso, como vocŕs sabem, convem que o candidato se entenda com o
Governador Civil. Eu, ao principio, nŃo queria renovar relaš§es. Instado
porÚm, muito instado de Lisboa, e por consideraš§es superiores de
Politica, consenti n'esse sacrificio. Nas difficuldades em que se
encontra o paiz todos devem fazer sacrificios. Eu fiz esse... O AndrÚ,
de resto, foi muito amavel, muito affectuoso. De sorte que estamos outra
vez amigos. Amigos politicos: mas muito bem, muito lealmente... Almocei
hoje com elle em Corinde, viemos juntos pelos Freixos. Uma tarde
linda!... Emfim renasceu a antiga harmonia. E a eleišŃo estß segura.
--Venham de lß esses ossos! berrou o Barr˘lo, transportado.
Gracinha terminßra por se sentar ß borda do leito, com o chapeu no
regašo, enlevada para o irmŃo, n'um silencioso enternecimento em que os
seus doces olhos se humedeciam e riam. O Fidalgo, que se desprendera do
abrašo do Barr˘lo, dobrava a toalha com um vagar distrahido:
--A eleišŃo estß segura, mas precisamos trabalhar. Tu, Barr˘lo, tens de
conversar tambem com o Cavalleiro. Jß combinei. ┴manhŃ no Governo Civil,
ßs duas horas. ╔ necessario que vocŕs se entendam por causa dos votos da
Murtosa...
--Prompto, menino! o que vocŕs quizerem! Votos, dinheiro...
E Gonšalo, borrifando vagamente o jaquetŃo com agua de Colonia que
pingava no soalho:
--Desde o momento em que eu me reconciliei com o AndrÚ, tudo acabou. Tu,
Barr˘lo, immediatamente te reconcilias tambem...
Barr˘lo quasi pulou, no seu deslumbramento:
--Pois estß claro! E ainda bem, que eu gosto immensamente do Cavalleiro!
AtÚ sempre teimava com Gracinha... źOh senhores, esta tolice, por causa
da Politica!...╗
--Bem! concluiu o Fidalgo. A Politica nos separou, a Politica nos
reune... ╔ o que se chama a inconstancia dos Tempos e dos Imperios.
E agarrou Gracinha pelos hombros, com um beijo brincalhŃo, estalado em
cada face:
--A tia Arminda? Boa, da escaldadella? Jß voltou ßs fašanhas de _Leandro
o Bello_?
Gracinha resplandecia, com o lento sorriso que se nŃo desfizera, a
envolvia toda em claridade e došura:
--A tia Arminda estß melhor, jß anda. Perguntou por ti... Mas, oh
Gonšalo, tu de certo queres jantar!
--NŃo, almocei tremendamente em Corinde... Vocŕs, como jantaram ß hora
antiga da tia Arminda, ceiam, hein? EntŃo logo ceio... Agora apenas uma
chavena de chß, muito forte!
Gracinha correu, no alvorošo de servir o heroe querido. E pela escada,
descendo com Barr˘lo que o contemplava, o Fidalgo da Torre lamentou os
seus sacrificios:
--╔ verdade, menino, Ú uma massada... Mas que diabo! todos devemos
concorrer para tirar o paiz do atoleiro!
Barr˘lo, maravilhado, murmurava:
--E sem dizeres nada... Assim ß capucha! Assim ß capucha!...
--E agora outra cousa, Barr˘lo. ┴manhŃ, no Governo Civil, deves convidar
o AndrÚ a jantar...
--Com certeza! gritou o Barr˘lo. Jantar d'estrondo?
---NŃo, homem! Jantar muito quieto, muito intimo. Unicamente o AndrÚ e o
JoŃo Gouveia. Telegraphas ao JoŃo Gouveia. Tambem pˇdes convidar os
Mendonšas... Mas jantar muito discreto, sˇ para conversarmos, para
firmar a reconciliašŃo d'um modo mais sociavel, mais elegante.
Ao outro dia, no Governo Civil, Barr˘lo e o Cavalleiro apertaram as mŃos
com tanta singelleza, como se ambos, ainda na vespera, andassem jogando
o bilhar e caturrando no club da rua das Pŕgas. De resto conversaram
summariamente sobre a EleišŃo. Apenas o Cavalleiro alludira com
indolencia aos votos de Murtosa--o bom Barr˘lo quasi se engasgou, na
ancia de os offerecer:
--E o que vocŕs quizerem... Votos, dinheiro, o que vocŕs quizerem!...
Vocŕs digam! Eu vou para a Murtosa, e Ú comezaina, e pipa de vinho
aberta, e a freguezia inteira a votar no meio de foguetorio...
O Cavalleiro, rindo, amansou aquelle fervor faustoso:
--NŃo, meu caro Barr˘lo, nŃo! Nˇs preparamos uma eleišŃo muito sobria,
muito socegada. Villa Clara elege Gonšalo Mendes Ramires deputado,
naturalmente, como o seu melhor homem. NŃo ha combate, o Julinho Ú uma
sombra. Portanto...
O Barr˘lo persistia, radiante, gingando:
--PerdŃo, AndrÚ, perdŃo! Lß isso vinhaša, e vivorio, e foguetorio, e
festanša magna...
Mas Gonšalo, embarašado, ancioso por suster a garrulice do Barr˘lo, as
palmadas carinhosas com que elle se atufava na intimidade do Cavalleiro,
apontou para a mesa de S. Ex.^a:
--Tu tens que fazer, AndrÚ. Vejo ahi uma papelada pavorosa... NŃo
roubemos mais tempo ao chefe illustre do Districto! Ao trabalho!
Trabalhar, meu irmŃo, que o trabalho
╔ AndrÚ, Ú virtude, Ú valor!...
Agarrßra o chapeu, acenando ao cunhado. EntŃo Barr˘lo, com as bochechas
a estalar de gosto, balbuciou o convite que firmaria a reconciliašŃo
d'um modo sociavel e elegante:
--Cavalleiro, para conversarmos melhor, se vocŕ nos quizer dar o gosto
de vir jantar... Quinta feira, ßs seis e meia... Nˇs, quando cß estß o
Gonšalo, jantßmos sempre mais tarde.
O Cavalleiro, que corßra, agradeceu com discreta ceremonia:
--╔ para mim um immenso prazer, uma immensa honra...
E ß porta da antesala onde os acompanhßra, segurando o pesado reposteiro
de baeta escarlate com as Armas Reaes bordadas--supplicou ao Barr˘lo que
pozesse os seus respeitos aos pÚs da snr.^a D. Graša...
Barr˘lo, descendo a larga escadaria de pedra, limpava a testa, o
pescošo, humedecidos pela emošŃo. E no pßteo desabafou:
--Muito sympathico este AndrÚ! Rapaz franco, de quem sempre gostei...
Realmente estava morto que acabassem estas historias... E mesmo lß para
os Cunhaes, para a companhia, para o cavaco, que bella acquisišŃo!
Quinta feira de manhŃ depois do almošo, no terrašo do jardim onde
tomavam cafÚ, Gonšalo recommendou ao Barr˘lo que źpara accentuar mais
completamente a intimidade simples do jantar nŃo pozesse casaca...╗
--E tu, Gracinha, vestido afogado. Mas vestidinho claro, alegre...
Gracinha sorriu, indecisamente, continuando a folhear um _Almanach de
Lembranšas_ estendida n'uma cadeira de verga, com um gatinho branco no
regašo.
Depois do alvorošo e pasmo de Domingo, ella apparentava agora um
desinteresse silencioso pela reconciliašŃo que ainda abalava Oliveira,
pela EleišŃo, pelo jantar. Mas n'esses dias nŃo socegßra--tŃo impaciente
e sensivel que o bom Barr˘lo incessantemente lhe aconselhava o grande
remedio da MamŃ contra os nervos, źfl˘res d'alecrim, cosidas em vinho
branco.╗
Gonšalo percebia claramente a perturbašŃo em que a lanšava aquella
entrada triumphal de AndrÚ, do antigo AndrÚ, na sua casa de casada, nos
Cunhaes. E para se tranquillisar evocava (como na estrada do cemiterio
em Villa-Clara) a seriedade de Gracinha, o seu rigido e puro pensar, a
altivez da sua almasinha heroica. N'essa manhŃ mesmo, todo no fresco e
soffrego cuidado da sua EleišŃo, sˇ receava que Gracinha, por embarašo
ou cautella, acolhesse seccamente o Cavalleiro, o esfriasse no seu
renovado fervor pela casa de Ramires, no seu patrocinato Politico. E
insistiu, gracejando:
--Ouviste, Gracinha? Um vestido branco. Um vestidinho alegre, que sorria
aos hospedes...
Ella murmurou, mergulhada no seu _Almanach_:
--Sim, realmente, com este calor...
Mas Barr˘lo bateu uma palmada na c˘xa. Que pena! que pena nŃo ter em
Oliveira, źpara o brinde de reconciliašŃo╗, um famoso vinho do Porto, da
garrafeira da MamŃ, preciosissimo, velhissimo, do tempo de D. JoŃo II...
--D. JoŃo II? rosnou Gonšalo. Estß estragado!
Barr˘lo hesitou:
--D. JoŃo II ou D. JoŃo VI... Um d'esses Reis. Emfim um vinho unico, do
seculo passado! Sˇ restam ß mamŃ oito ou dez garrafas... E hoje, era dia
para uma, hein?
O Fidalgo deu um sorvo lento ao cafÚ:
--O AndrÚ, antigamente, tambem gostava muito d'ovos queimados...
Bruscamente Gracinha fechou o _Almanach_--e, com uma fuga e um silencio
que emmudeceram Gonšalo, sacudiu do collo o gato dorminhoco, atravessou
o terrašo, desappareceu entre os teixos altos do jardim.
Mas ß tarde, quando o Fidalgo occupou o seu logar na mesa oval, junto da
prima Maria Mendonša--logo notou, entre duas compoteiras, uma travessa
d'ovos queimados. Apesar de jantar tŃo intimo serviam, com a louša da
China, os famosos talheres dourados da baixella do tio Melchior. E duas
jarras de Saxe transbordavam de cravos brancos e amarellos, c˘res
heraldicas dos Ramires.
D. Maria, que nŃo encontrßra o querido primo desde os annos de Gracinha,
murmurou com um sorriso, uma grave cortezia, n'aquelle cerimonioso
silencio em que se desdobravam os guardanapos:
--Ainda lhe nŃo dei os parabens, primo Gonšalo...
Elle acudiu, mechendo nervosamente nos copos:
--Chut! prima, chut! Hoje aqui, jß estß decidido, nŃo se allude sequer a
Politica... Estß muito calor para Politica.
Ella suspirou de leve, como desfallecida: Ai, o calor... Que horrivel
calor! Desde que entrßra nos Cunhaes com aquelle vestido preto que źera
o seu pallio rico╗--ainda nŃo cessßra de invejar a frescura do vestido
branco de Gracinha...
--Que bem que lhe fica! Estß hoje linda!
Era um vestido liso de crepon branco, que aclarava, remošava a sua graša
quasi virginal. E nunca realmente tanto prendera, assim clara e fina,
com os verdes olhos refulgindo como esmeraldas lavadas, uma ondulašŃo
mais lustrosa nos pesados cabellos, um macio rubor transparente, todo um
fresco brilho de fl˘r regada, de fl˘r revivida, apesar do acanhamento
que lhe immobilisava os dedos ao erguer a colhÚr de prata dourada. E ao
lado, superiormente robusto e largo, com o peitilho arqueado como uma
couraša e cravejado de duas saphiras, uma rosa branca desabrochada na
lapella, AndrÚ Cavalleiro, que recusßra a sopa (oh, no verŃo nunca comia
sopa!) dominava a mesa, levemente commovido tambem, passando sobre o
reluzente bigode um lenšo tŃo perfumado que afogava o perfume dos
cravos. Mas foi elle que encadeou a animašŃo com risonhos queixumes
sobre o calor--o escandaloso calor d'Oliveira... Ah! que Purgatorio
abrasado--depois dos seus dois dias de Paraiso, na frescura deliciosa de
Cintra!
D. Maria Mendonša adošou os espertos olhos para o Snr. Governador
Civil.--E entŃo Cintra? Animada? Muitos ranchos ß tarde, em Setiaes?
Encontrßra a Condessa de Chellas--a prima Chellas?...
Sim, na Pena, na sua visita ß Rainha, Cavalleiro conversßra durante um
momento com a Snr.^a Condessa de Chellas...
--Ah! e a Rainha?...
--Oh, sempre encantadora...
A Snr.^a Condessa de Chellas, essa, um pouco magra. Mas tŃo amavel, tŃo
intelligente, tŃo verdadeiramente _grande dame_--nŃo Ú verdade? E, como
se inclinßra para Gracinha, com uma došura infinita no simples mover da
cabeša--ella, perturbada, mais vermelha, balbuciou que nŃo conhecia a
Condessa de Chellas...--D. Maria Mendonša accusou logo a inercia dos
primos Barr˘los, sempre encafurnados nos Cunhaes, sem nunca se
aventurarem a Lisboa no inverno, para conviver, para conhecer os
parentes...
--E a culpa Ú do primo JosÚ, que detesta Lisboa...
Oh nŃo! Barr˘lo nŃo detestava Lisboa! Se podesse acarretar para Lisboa
as suas commodidades, o seu quarto, a sua cocheira, a boa agua do pomar,
a rica varanda sobre o jardim--atÚ se regalava!
--Mas entalado n'aquelles quartinhos do Braganša... E depois a mß
comida, o barulho... A Gracinha em Lisboa nunca dorme... E a massada das
manhŃs?... NŃo ha nada que fazer em Lisboa, de manhŃ!
O Cavalleiro sorria para o Barr˘lo, como enlevado na sua graša e razŃo.
Depois confessou que elle, apesar de habitar tambem (mercŕ do Estado!)
um palacete confortavel, e gozar tambem uma agua excellente, a finissima
agua do Pošo de S. Domingos, lamentava que os deveres de Politica, a
disciplina de Partido o amarrassem a Oliveira. E toda a sua esperanša
era a queda do Ministerio, para se libertar, passar tres mezes divinos
em Italia...
Do outro lado de Gracinha, JoŃo Gouveia (sempre acanhado e mudo deante
de senhoras) exclamou, n'um impulso d'amisade, de convicšŃo:
--Pois, AndrÚsinho, vae perdendo a esperanša! O S. Fulgencio nŃo arreia!
Ainda cß te apanhamos uns tres ou quatro annos!
E insistiu, debrušado sobre Gracinha, n'um esforšo d'amabilidade que o
esbraseava:
--O S. Fulgencio nŃo arreia. Ainda cß temos o nosso AndrÚ mais tres ou
quatro annos.
AndrÚ protestava, com um requebro, as espessas pestanas quasi cerradas:
--Oh meu JoŃo! nŃo me queiras mal, nŃo me queiras mal!...
E teimava. Ah, com certeza! ainda que desertasse o seu partido (e que
importa em hoste poderosa uma lanša ferrugenta?) esses mezes d'Italia no
inverno jß os sonhßra, jß os preparava...--E a Snr.^a D. Graša nŃo
permittia que elle a servisse d'um pouco de vinho branco?
Barr˘lo estendeu o brašo, com effusŃo:
--Oh Cavalleiro! eu tenho empenho em que vocŕ prove esse vinho com
cuidado... ╔ da minha propriedade do Corvello... Fašo muito gosto
n'elle. Mas prove com attenšŃo!
S. Ex.^a provou com devošŃo, como se commungasse. E com uma cortezia
compenetrada para Barr˘lo que reluzia de gosto:
--Uma delicia! uma verdadeira delicia!
--Hein? NŃo Ú verdade? Eu, para mim, prefiro este vinho do Corvello a
todos os vinhos francezes, os mais finos... AtÚ alli o nosso amigo Padre
Sueiro, que Ú um Santo, o aprecia!
Silencioso, esbatido por traz d'uma das altas jarras de cravos, Padre
Sueiro corou, sorriu:
--Com muita agua, infelizmente, Snr. JosÚ Barr˘lo... O gosto pede, mas o
rheumatismo nŃo consente.
Pois JosÚ Mendonša, que nŃo temia rheumatismos, atacava sempre
bravamente aquelle bemdito Corvello...
--Que lhe parece a vocŕ, JoŃo Gouveia?
Oh! JoŃo Gouveia jß o conhecia, louvado Deus! E certamente nunca
encontrßra em Portugal, como vinho branco, nenhum comparavel pela
frescura, pelo aroma, pela seiva...
--E cß lhe vou atišando com fervor, Barr˘lo amigo! Esta bella garrafa de
crystal vae de vencida!
Barr˘lo exultava. O seu desgosto era que Gonšalo nunca honrasse źaquelle
nectar.╗--NŃo! Gonšalo nŃo tolerava vinhos brancos...
--E entŃo hoje estou com uma d'estas sŕdes que sˇ me satisfaz vinho
verde, assim um pouco espumante, e com gelo... Que este de Vidainhos
tambem Ú do Barr˘lo. Oh, eu nŃo desprezo os vinhos da familia... Este
Vidainhos sinceramente o considero sublime.
EntŃo Cavalleiro desejou provar esse sublime vinho verde da quinta de
Vidainhos, em Amarante. O escudeiro, a um aceno enthusiasmado do
Barr˘lo, apresentou a Sua Ex.^a um copo esguio, especial para aquelle
vinho que espumava. Mas o Cavalleiro, acariciando o fresco copo sem o
erguer, repisou a idÚa de ferias, de viagens, como accentuando o seu
canšasso e fastio d'Oliveira.--E sabia a Snr.^a D. Graša para onde elle
seguiria, depois da Italia, n'esse Inverno, se por caridade de Deus o
Ministerio cahisse?... Para a Asia Menor.
--E era uma viagem para que eu, com certesa, tentava o nosso Gonšalo...
TŃo facil, agora, com os caminhos de ferro!... De Veneza a
Constantinopla um mero passeio. Depois, de Constantinopla a Smyrna, um
dia, dous dias, n'um vapor excellente. E d'ahi n'uma b˘a caravana, por
Tripoli, pela antiga Sidonia, penetravamos em GalilÚa... GalilÚa! Hein
Gonšalo? Que belleza!
Padre Sueiro, suspendendo o garfo, lembrou timidamente--que em GalilÚa o
Snr. Gonšalo Ramires pisaria terra que outr'ora, por pouco, pertencera ß
sua Casa:
--Um dos antepassados de V. Ex.^a, Gutierres Ramires, companheiro de
Tancredo na primeira Cruzada, recuzou o ducado de GalilÚa e de
AlÚm-JordŃo...
--Fez pessimamente! gritou Gonšalo, rindo. Oh, esse av˘ Gutierres andou
pessimamente! Por que nŃo existia agora, n'este mundo, disparate mais
divertido do que eu Duque de GalilÚa! O Snr. Gonšalo Mendes Ramires,
Duque de GalilÚa e d'AlÚm-JordŃo!... Era simplesmente de rebentar!
Cavalleiro protestou, com sympathia:
--Ora essa! Por que?
--NŃo acredite! acudiu, com os olhos coruscantes, D. Maria Mendonša. O
primo Gonšalo, com todas estas grašas, no fundo, Ú muitissimo
aristocrata... Mas terrivelmente aristocrata!
O Fidalgo da Torre pousou o copo de Vidainhos, depois d'um trago
saboreado e fundo:
--Aristocrata... Estß claro que sou aristocrata. Sentiria com effeito
certo desgosto em ter nascido, como uma herva, d'outras hervas vagas.
Gˇsto de saber que nasci de meu pae Vicente, que nasceu de seu pae
DamiŃo, que nasceu de seu pae Ignacio, e assim sempre atÚ nŃo sei que
Rei Suevo...
--Recesvinto! informou respeitosamente Padre Sueiro.
--Pois atÚ esse Recesvinto. O peor Ú que o sangue de todos esses paes
nŃo differe realmente do sangue dos paes do Joaquim da Porta. E que
depois do Recesvinto, para traz, atÚ AdŃo, nŃo tenho mais paes!
E, emquanto todos riam, D. Maria Mendonša, debrušada para elle, por traz
do leque largamente aberto, murmurou:
--O Primo estß com esses deprezos... Pois eu sei d'uma senhora que tem a
maior admirašŃo pela casa de Ramires e pelo seu representante.
Gonšalo enchia de novo o copo, com amor, attento ß espuma:
--Bravo! Mas źconvÚm distinguir╗, como diz o Manoel Duarte. Por quem tem
ella a verdadeira admirašŃo, por mim ou pelo Suevo, pelo Recesvinto?
--Por ambos.
--Diabo!
Depois, pousando a garrafa, mais sÚrio:
--Quem Ú?
Oh! ella nŃo podia confessar. NŃo era ainda bastante velha para andar
com recadinhos de sentimento. Mas Gonšalo dispensava o nome--sˇ desejava
as qualidades... Nova? Bonita?
--Bonita? exclamou D. Maria. ╔ uma das mulheres mais formosas de
Portugal!
Espantado, Gonšalo lanšou o nome:
--A D. Anna Lucena!
--Por quŕ?
--Por que mulher assim tŃo formosa, e vivendo n'estes sitios, e tŃo
conhecida da prima que lhe faz confidencias, sˇ a D. Anna.
D. Maria, ageitando as duas rosas que lhe alegravam o corpete de sŕda
preta, sorria:
--Talvez seja, talvez seja...
--Pois estou immensamente lisongeado. Mas ainda distingo, como o Manoel
Duarte. Se, da parte d'ella, essa sympathia toda Ú para o bom fim, nŃo!
NŃo, santo Deus, nŃo!... Mas se Ú para o mau fim, entŃo, prima,
cumprirei honradamente o meu dever dentro das minhas foršas...
D. Maria escondeu a face no leque, escandalisada. Depois, espreitando,
com os agudos olhos a faiscar:
--Oh primo, mas o bom fim Ú que convinha, por que a cousa Ú a mesma e
sŃo duzentos contos a mais!
Gonšalo gritou d'admirašŃo:
--Oh! esta prima Maria! NŃo ha em toda a Europa ninguem mais esperto!
Todos curiosamente anciaram por saber a nova graša da Snr.^a D. Maria.
Mas Gonšalo deteve as curiosidades:
--NŃo se pˇde contar. ╔ casamento.
EntŃo JosÚ Mendonša recordou a novidade picante que desde a vespera
remexia Oliveira:
--Por casamento!... Que me dizem ao casamento da D. Rosa Alcoforado?
Barr˘lo, depois o Gouveia, atÚ Gracinha, todos o proclamaram źum
horror.╗ Aquella perfeita rapariga, de pelle tŃo c˘r de rosa, de cabello
tŃo c˘r d'ouro, amarrada ao Teixeira de Carredes, um patriarcha
carregado de netos... Que desastre!
Pois ao Cavalleiro o casamento nŃo parecia assim źdesastrado.╗ O
Teixeira de Carredes, alÚm de muito fino, de muito intelligente, era um
velho verdejante, quasi sem rugas--atÚ bonito com aquelle contraste do
bigode escuro e da grenha rišada e branca. E na Snr.^a D. Rosa, com
todas as rosas da sua pelle e todo o ouro dos seus cabellos, dominava
źum nŃo sei quŕ╗ de amollentado e de sorvado... Depois pouco esperta. E
pouco cuidadosa--sempre mal penteada, sempre mal pregada...
--Emfim, V. Ex.^{as} perdoem... Mas quem faz um casamento muito
desenxabido Ú o pobre Teixeira de Carredes.
D. Maria Mendonša considerava o Governador Civil com um espanto amavel:
--Pois se o Snr. Cavalleiro nŃo admira a Rosinha Alcoforado, nŃo sei
entŃo que rapariga admire dentro do seu Districto...
Elle, logo, com galante rasgo:
--Mas, alÚm de V. Ex.^{as}, nŃo admiro ninguem! Realmente eu governo, em
Portugal, o Districto mais daprovido de belleza...
Todos protestaram. E a Maria Marges? E a pequena Reriz, da Riosa? E a
Mellosinho Alboim, com aquelles olhos?... Mas o Cavalleiro nŃo
consentia, a todas demolia com um sarcasmo leve, ou pela pelle sem
frescura, ou pelo pisar desairoso, ou pelo provincianismo de gosto e
modos, sempre pela carencia das bellezas e grašas que ornavam
Gracinha--lanšando assim disfaršadamente, aos pÚs de Gracinha, um r˘lo
de senhoras vencidas e amarfanhadas. Ella percebera a subtil adulašŃo,
os seus olhos allumiaram com um fulgor mais enternecido o rubor que a
afogueava. Desejou repartir incenso tŃo accumulado--lembrou timidamente
outra belleza de que se orgulhava o Districto:
--A filha do Visconde de Rio-Manso, a Rosinha Rio-Manso... ╔ linda!
O Cavalleiro triumphou com facilidade:
--Mas tem doze annos, minha senhora! Nem Ú rosinha, Ú botŃosinho de
rosa!...
Quasi humildemente, Gracinha recordou a Luiza Moreira, filha d'um
lojista, muito admirada aos domingos na missa da SÚ e no Terreiro da
Louša:
--╔ uma bella rapariga... Sobretudo a figura...
Cavalleiro triumphou ainda, com requebrada seguranša:
--Sim, mas os dentes tortos, Snr.^a D. Graša! Os dentes acavallados! V.
Ex.^a nunca reparou... Oh! uma b˘ca muito desagradavel! E, alÚm dos
dentes, o irmŃo, o Evaristo, com aquella cara mais chata que a alma, e a
caspa, e a porcaria, e o jacobinismo... NŃo ha mulher bonita com irmŃo
tŃo feio!
Mendonša estendera o brašo, com outra curiosidade que occupava Oliveira:
--E por Evaristo!... Elle sempre funda o novo jornal republicano, o
_Rebate_?
O Snr. Governador Civil encolheu os hombros com uma ignorancia superior
e risonha. Mas JoŃo Gouveia, vermelho e luzidio depois da sua garrafa de
Corvello e da sua garrafa de Douro, affianšou que o _Rebate_ apparecia
em Novembro. AtÚ elle conhecia o patriota que esportulava a źmassa.╗ E a
campanha do _Rebate_ comešava com cinco artigos esmagadores sobre a
Tomada da Bastilha.
O espanto de Gonšalo era como o Republicanismo alastrßra em
Portugal--atÚ na velhota, na devota Oliveira...
--Quando eu andava em preparatorios existiam simplesmente dois
republicanos em Oliveira, o velho Salema, lente de Rhetorica, e eu.
Agora ha partido, ha comitÚ, ha dous jornaes... E ha mesmo o BarŃo das
Marges com a _Voz Publica_ na mŃo, debaixo da Arcada...
Mendonša nŃo receava a Republica, gracejava:
--Ainda vem longe, muito longe... Ainda nos dß tempo de comermos estes
bellos ovos queimados.
--Deliciosos, murmurou o Cavalleiro.
--Sim, concordou Gonšalo, ainda temos tempo para os ovos... Mas que
rebente uma revolušŃo em Hespanha, ou que morra o Reisinho na sua
menoridade, que naturalmente morre...
--Credo! Coitadinho! Pobre mŃe! murmurou Gracinha sensibilisada.
Immediatamente o Cavalleiro a tranquillisou. Porquŕ, morrer o Reisinho
d'Hespanha? Os republicanos espalhavam boatos sombrios sobre os males da
excellente creanša. Mas elle conhecia a realidade--assegurava ß Snr.^a
D. Graša que, felizmente para a Hespanha, ainda reinaria um Affonso XIII
e mesmo um Affonso XIV. Em quanto aos nossos republicanos, esses... Meu
Deus! mera questŃo de guarda municipal! Portugal, nas suas massas
profundas, permanecia monarchico, de raiz. Apenas ao de cima, na
burguezia e nas escolas, fluctuava uma escuma ligeira, e bastante suja,
que se limpava facilmente com um sabre...
--V. Ex.^a, Snr.^a D. Graša, que Ú uma dona de casa perfeita, conhece
esta operašŃo que se faz ß panella do caldo... Escumar a panella. ╔ com
uma colher. Aqui Ú com um sabre. Pois assim, com toda a simplicidade, se
clarifica Portugal. E foi isto que ainda ultimamente eu declarei a
El-rei.
Alteßra a cabeša--o seu peitilho resplandecia, mais largo, como couraša
bastante rija para defender toda a Monarchia. E, no compenetrado
silencio que se alargou, duas rolhas de Champagne estalaram, por traz do
biombo, na copa.
Apenas o escudeiro, apressado, enchŕra as tašas--o Fidalgo da Torre com
uma gravidade que o sorriso adošava:
--AndrÚ, ß tua saude. NŃo Ú ao Governador Civil, Ú ao amigo!
Todos os copos se ergueram n'um susuro acariciador. JoŃo Gouveia agitou
o seu, com especial effusŃo, gritando:--źAndrÚsinho, meu velho!╗ S.
Ex.^a apenas tocou de leve no calice de Gracinha. Padre Sueiro murmurou
as źgrašas.╗ E Barr˘lo, atirando o guardanapo:
--CafÚ aqui ou na sala?... Na sala estamos mais frescos.
Na sala grande, a sala dos velludos vermelhos, o lustre rebrilhava
solitariamente; pelas tres janellas abertas penetrava a serenidade da
noite quente, o recolhido silencio d'Oliveira; e em baixo, no Largo,
alguns sujeitos, mesmo duas senhoras de manta de lŃ branca pela cabeša,
pasmavam para aquella claridade de festa que jorrava dos Cunhaes. O
Cavalleiro e Gonšalo accenderam os charutos na varanda, respirando a
frescura escassa. E o Cavalleiro, com beatitude:
--Pois sempre te digo, Gonšalinho, que se janta sublimemente em casa de
teu cunhado!...
Gonšalo desejou que, no domingo, elle jantasse na Torre. Ainda restavam
umas garrafas de Madeira do tempo do av˘ DamiŃo--a que se daria, com
soccorro do Gouveia e do Titˇ, um assalto heroico.
O Cavalleiro prometteu, jß deliciado--tomando da pesada bandeja de
prata, que derreava o escudeiro, a sua chavena de cafÚ, sem assucar.
--E tu, com effeito, Gonšalo, agora nŃo deves arredar da Torre. O teu
papel Ú todo de presenša na localidade. O Fidalgo da Torre estß no meio
das suas terras, por onde vae ser eleito para as C˘rtes. ╔ o teu
papel...
O Barr˘lo com um riso enlevado, surdiu entre os dous amigos que enlašou
ternamente pela cinta:
--E nˇs cß ficamos, ambos a trabalhar, o Cavalleiro e eu!...
Mas D. Maria, do canapÚ onde se enterrßra, reclamou o primo Gonšalo
źpara negocios.╗ Junto d'uma console, JoŃo Gouveia e Padre Sueiro,
remexendo o seu cafÚ, concordavam na necessidade d'um Governo forte. E
Gracinha, com o primo Mendonša, revolvia as musicas sobre a tampa do
piano, procurando o _Fado dos Ramires_. Mendonša tocava com corredio
brilho, composera valsas, um hymno ao Coronel Trancoso, o heroe de
Machumba--e mesmo o primeiro acto d'uma opera, _A Pegureira_. E como nŃo
descortinavam o _Fado_ com as quadras do Videirinha--foi justamente uma
das suas valsas, a _Perola_, d'uma cadencia amorosa e canšada lembrando
a valsa do Fausto, que elle atacou, sem largar o charuto.
EntŃo AndrÚ Cavalleiro, que repenetrßra vagarosamente na sala, repuxou o
collete, afagou o bigode, e avanšando para Gracinha, com um modo meio
grave, meio folgazŃo:
--Se V. Ex.^a me quer dar a grande honra?...
Offerecia, abria os brašos. E Gracinha, toda escarlate, cedeu, levada
logo nos largos passos deslisados que o Cavalleiro lanšou sobre o
tapete. Barr˘lo e JoŃo Gouveia correram a afastar as poltronas,
clareando um espašo, onde a valsa se desenrolou com o suave sulco branco
do vestido de Gracinha. Pequenina e leve, toda ella se perdia, como se
fundia, na forša mascula do Cavalleiro, que a arrebatava em giros
lentos, com a face pendida, respirando os seus cabellos magnificos.
Da borda do canapÚ, com os finos olhos a fusilar, D. Maria Mendonša
pasmava:
--Mas que bem que valsa, que bem que valsa o Snr. Governador Civil!...
Ao lado Gonšalo torcia nervosamente o bigode, na surpreza d'aquella
familiaridade, assim renovada pelo Cavalleiro com tŃo serena confianša,
por Gracinha com tanto abandono... Elles torneavam, enlašados. Dos
labios do Cavalleiro escorregava um sorriso, um murmurio. Gracinha
arfava, os seus sapatos de verniz reluziam sob a saia que se enrolava
nas calšas do Cavalleiro. E Barr˘lo, em extasi, quando elles o rošavam,
atirava palmas carinhosas, bradava:
--Bravo! Bravo! Lindamente!... Bravissimo!
VII
Gonšalo recolhia para o almošo depois d'um passeio no pomar percorrendo
a _Gazeta do Porto_, quando avistou no banco de pedra, rente ß porta da
cosinha, onde a Rosa mudava o painšo na gaiola do seu canario, o Casco,
o JosÚ Casco dos Bravaes, que esperava, pensativo e abatido, com o
chapeu sobre os joelhos. Vivamente, para se esquivar, remergulhou no
jornal. Mas percebeu a esgalgada magreza do homem, que surdia da sombra
da latada, avanšava na claridade faiscante do pateo, hesitando, como
assustada... E, animado pela visinhanša da Rosa, parou, foršando um
sorriso--em quanto o Casco enrolava nas mŃos tremulas a aba dura do
chapeu, balbuciava:
--Se o Fidalgo me fizesse a esmola de uma palavra...
--Ah! Ú vossŕ, Casco! Homem, nŃo o conheci... E entŃo?
Dobrou o jornal, tranquillisado--gozando mesmo a submissŃo d'aquelle
valente que tanto o apavorßra, erguido e negro como um pinheiro, na
solidŃo do pinheiral. E o Casco, engasgado, repuchava, esticava o
pescošo de dentro dos grossos collarinhos bordados--atÚ que atirou toda
a alma n'uma supplica solušada, retendo as lagrimas que marejavam:
--Ai, meu Fidalgo, perd˘e por quem Ú! Perd˘e, que eu nem lhe sei pedir
perdŃo!...
Gonšalo atalhou o homem, com generosidade e došura. Elle bem o avisßra!
Nada se emenda, a gritar, com o pau alšado...
--E olhe, Casco! Quando vossŕ me sahiu ao pinhal eu levava um revˇlver
na algibeira... Trago sempre um revˇlver. Desde que uma noite em
Coimbra, no Choupal, dous bebados me assaltaram, ando sempre ß cautella
com o revˇlver... Pense vocŕ agora que desgraša se tiro o revˇlver, se
desfecho!... Que desgraša, hein?... Felizmente, n'um relance, pensei que
me perdia, que o matava, e fugi. Foi por isso que fugi, para nŃo
desfechar o revˇlver... Emfim tudo passou. E eu nŃo sou homem de
rancores, jß esqueci. Comtanto que vossŕ, agora socegado e no seu juizo,
esqueša tambem.
O Casco amassava as abas do chapeu, com a cabeša derrubada. E sem a
erguer, sem ousar, rouco dos solušos que o entalavam:
--Pois agora Ú que eu me lembro, meu Fidalgo! Agora Ú que me ralo por
aquella doidice! Agora! depois do que o Fidalgo fez pela mulher e pelo
pequeno!...
Gonšalo sorriu, encolheu os hombros:
--Que tolice, Casco!... Pois a sua mulher apparece ahi n'uma noite
d'agua... E o pequenito doente, coitadito, com febre... Como vae elle, o
Manelsinho?
O Casco murmurou do fundo da sua humildade:
--Louvado seja Deus, meu senhor, muito sŃosinho, muito rijinho.
--Ainda bem... Ponha o chapeu. Ponha o chapeu, homem! E adeus!... Vossŕ
nŃo tem que agradecer, Casco... E olhe! Traga cß um dia o pequeno. Eu
gostei do pequeno. ╔ espertinho.
Mas o Casco nŃo se arredava, pregado ßs lages. Por fim, n'um solušo que
rebentou:
--╔ que eu nŃo sei como hei-de dizer, meu Fidalgo... Lß o dia de cadeia,
acabou! Tenho genio, fiz a asneira, com o corpo a paguei. E pouco
paguei, grašas ao Fidalgo... Mas depois quando sahi, quando soube que a
mulher viera de noite ß Torre, e que o Fidalgo atÚ a embrulhßra n'uma
capa, e que nŃo deixßra sahir o pequeno...
Estacou, afogado pela emošŃo. E como Gonšalo, tambem commovido, lhe
batia risonhamente no hombro, źpara acabar, nŃo se fallar mais n'essas
bagatellas...╗--o Casco rompeu, n'uma grande voz dolorosa e quebrada:
--Mas Ú que o Fidalgo nŃo sabe o que Ú para mim aquelle pequeno!...
Desde que Deus m'o mandou tem sido uma paixŃo cß por dentro que atÚ
parece mentira!... Olhe que na noite que passei na cadeia da villa nŃo
dormi... E Deus me perd˘e, nŃo pensei na mulher, nem na pobre da velha,
nem na pouquita terra que amanho, tudo ao desamparo. Toda a noite se foi
a gemer:--źai o meu querido filhinho! ai o meu querido filhinho!...╗
Depois quando a mulher, logo pela estrada, me diz que o Fidalgo ficßra
com elle na Torre, e o deitßra na melhor cama, e mandßra recado ao
medico... E depois quando soube pelo snr. Bento que o Fidalgo de noite
subia a vŕr se elle estava bem coberto, e lhe entalava a roupa,
coitadinho...
E arrebatadamente, n'um choro solto, gritando:--źAi meu Fidalgo! meu
Fidalgo!...╗--o Casco agarrou as mŃos de Gonšalo, que beijava,
rebeijava, alagava de grossas lagrimas.
--EntŃo, Casco! Que tolice!... Deixe homem!
Pallido, Gonšalo saccudia aquella gratidŃo furiosa--atÚ que ambos se
encararam, o Fidalgo com as pestanas molhadas e tremulas, o lavrador dos
Bravaes solušando, n'uma confusŃo. E foi elle por fim que, recalcando um
derradeiro solušo, se recobrou, desafogou da idÚa que o trouxera, que de
certo fundamente o trabalhßra, e que agora lhe enrijava a face e o gesto
n'uma determinašŃo que nunca vergaria:
--Meu Fidalgo, eu nŃo sei fallar, nŃo sei dizer... Mas se d'hoje em
deante, seja para que f˘r, o Fidalgo necessitar da vida d'um homem, tem
aqui a minha!
Gonšalo estendeu a mŃo ao lavrador, muito simplesmente--como um Ramires
d'outr'ora recebendo a preitezia d'um vassallo:
--Obrigado, JosÚ Casco.
--Entendido, meu Fidalgo, e que Deus nosso Senhor o abenš˘e!
Gonšalo, perturbado, galgou pela escadinha da varanda--emquanto o Casco
atravessava o pßteo vagarosamente, com a cabeša bem erguida, como homem
que devŕra e que pagßra.
E em cima, na livraria, Gonšalo pensava com espanto:--źAhi estß como
n'este mundo sentimental se ganham dedicaš§es gratuitamente!...╗ Por que
emfim! quem nŃo impediria que uma criancinha com febre affrontasse de
noite uma estrada negra, sob a chuva e o vendaval? Quem a nŃo deitaria,
nŃo lhe adošaria um grog, nŃo lhe entalaria os cobertores para a
conservar bem abafada? E por esse grog e por essa cama--corre o pae,
tremendo e chorando, a offerecer a sua vida! Ah! como era facil ser
Rei--e ser Rei popular!
E esta certeza mais o animava a obedecer ßs recommendac§es do
Cavalleiro--a comešar immediatamente as suas visitas aos Influentes
eleitoraes, essas aduladoras visitas que assegurariam ß EleišŃo uma
unanimidade arrogante. Logo ao fim do almošo, mesmo sobre a toalha,
arredando os pratos, copiou a lista d'esses Magnates--por um rascunho
annotado que lhe fornecera o JoŃo Gouveia. Era o Dr. Alexandrino; o
velho Gramilde, de Ramilde; o Padre JosÚ Vicente, da Finta; outros
menores:--e o Gouveia marcßra com uma cruz, como o mais poderoso e mais
difficil, o Visconde de Rio-Manso, que dispunha da immensa freguezia de
Canta-Pedra. Gonšalo conhecia esses senhores, homens de propriedade e de
dinheiro (com todos outr'ora o papß andßra endividado)--mas nunca
encontrßra o Visconde de Rio-Manso, um velho brazileiro, dono da quinta
da _Varandinha_, onde vivia solitariamente com uma neta de onze annos,
essa linda Rosinha que chamavam źo botŃo de Rosa╗, a herdeira mais rica
de toda a Provincia. E logo n'essa tarde, em Villa-Clara, reclamou ao
JoŃo Gouveia uma carta d'apresentašŃo para o Rio-Manso:
O Administrador hesitou:
--Vossŕ nŃo precisa carta... Que diabo! Vossŕ Ú o Fidalgo da Torre!
Chega, entra, conversa... AlÚm d'isso na EleišŃo passada o Rio-Manso
ajudou os Regeneradores; de modo que estamos um pouco sŕccos. O
Rio-Manso Ú um casmurro... Mas com effeito, Gonšalinho, convem comešar
essa caša ß popularidade!
N'essa noite, na Assembleia, o Fidalgo, encetando a źcaša ß
popularidade╗, acceitou um convite do Commendador RomŃo Barros (do
massador, do burlesco Barros) para o brodio faustoso com que elle
celebrava, na sua quinta da _Roqueira_, a festa de S. RomŃo. E essa
semana inteira, depois outra, as gastou assim por Villa-Clara, amimando
eleitores--a ponto de comprar horrendas camisas de chita na loja do
Ramos, de encommendar um sacco de cafÚ na mercearia do Tello, de
offerecer o brašo no largo do Chafariz ß nojenta mulher do bebedissimo
Marques Rosendo, e de frequentar, de chapeu para a nuca, o bilhar da rua
das Pretas. JoŃo Gouveia nŃo approvava estes excessos--aconselhando
antes źboas visitas, com todo o _chic_, aos influentes sÚrios.╗ Mas
Gonšalo bocejava, adiava, na insuperavel preguiša de affrontar a
maledicencia rabujenta do velho Gramilde ou a solemnidade forense do Dr.
Alexandrino.
Agosto findava:--e por vezes, na livraria, Gonšalo, cošando
desconsoladamente a cabeša, considerava as brancas tiras d'almašo, o
Capitulo III da _Torre de D. Ramires_ encalhado... Mas quŕ! nŃo podia,
com aquelle calor, com o afan da EleišŃo, remergulhar nas eras
Affonsinas!
Quando refrescavam as tardes lentas montava, alongava o passeio pelas
freguezias, nŃo se descuidando das recommendaš§es do
Cavalleiro--enchendo sempre o bolso de rebušados d'avenca para atirar ßs
creanšas. Mas, n'uma carta ao querido AndrÚ, jß confessßra que źa sua
popularidade nŃo crescia, nŃo enfunava...╗--źNŃo! positivamente, velho
amigo, nŃo tenho o dom! Sei apenas palestrar familiarmente com os
homens, comprimentar pelo seu nome as velhas ßs soleiras das portas,
gracejar com a pequenada, e se encontro uma boeirinha de saiasita rota
dar cinco tost§es ß boeirinha para uma saiasita nova... Ora todas estas
cousas tŃo naturaes sempre as fiz naturalmente, desde rapaz, sem que me
conquistassem influencia sensivel... Necessito portanto que essa querida
Authoridade m'empurre com o seu brašo possante e destro...╗
Todavia jß uma tarde, encontrando junto da Torre o velho Cosme de
Nacejas, e depois, n'um domingo, crusando ßs _Ave-Marias_ na Bica-Santa
o AdriŃo Pinto do logar da Levada, ambos lavradores considerados e
remexedores d'eleiš§es--lhes pedira os votos, desprendidamente e rindo.
E quasi se assombrßra da promptidŃo, do fervor, com que ambos se
offereceram.--źPara o Fidalgo? Pois isso estß entendido! Ainda que se
votasse contra o Governo, que Ú pae!╗--E em Villa-Clara, com o Gouveia,
Gonšalo deduzia d'estas offertas tŃo acaloradas źa intelligencia
politica da gente do campo╗:
--Estß claro que nŃo Ú pelos meus lindos olhos! Mas sabem que eu sou
homem para fallar, para luctar pelos interesses da terra... O Sanches
Lucena nŃo passava d'um Conselheiro muito rico e muito mudo! Esta gente
quer deputado que grite, que lide, que imponha... Votam por mim por que
sou uma intelligencia.
E o Gouveia volvia, contemplando pensativamente o Fidalgo:
--Homem! quem sabe? Vossŕ nunca experimentou, Gonšalo Mendes Ramires.
Talvez seja realmente pelos seus lindos olhos!
* * * * *
N'um d'esses passeios, n'uma abrazada sexta-feira, com o sol ainda alto,
Gonšalo atravessava o logarejo da Velleda, no caminho de Canta-Pedra. Ao
fim dos casebres que se apertam ß orla da estrada alveja, muito caiada,
n'um terreiro defronte da Egreja, a taverna famosa "do Pintainho", onde
os caramanch§es do quintal e a nomeada do coelho guizado attrahem vasto
povo nos dias da feira da Velleda. N'essa manhŃ o Titˇ, depois d'uma
madrugada ßs perdizes, em Valverde, apparecera na Torre para almošar,
urrando, d'esfomeado. Era sexta-feira--a Rosa preparßra uma pescada com
tomates, depois um bacalhau assado, formidaveis. E Gonšalo, toda a tarde
torturado com sŕde, mais resequido pela poeira da estrada, parou
avidamente deante do portŃo da venda, gritou pelo Pintainho.
--Oh meu Fidalgo!...
--Oh Pintainho! depressa! Uma sangria! Uma grande sangria bem fresca,
que morro...
O Pintainho, velhote rolišo de cabello amarello, nŃo tardou com o copo
appetitoso e fundo onde boiava, na espumasinha do assucar, uma rodella
de limŃo. E Gonšalo saboreava a sangria com ineffavel delicia--quando da
janella terrea da venda partiu um assobio lento, fino e trinado, como os
dos arrieiros que animam as bestas a beber nos riachos. Gonšalo deteve o
copo, varado. ┴ janella assomßra um latagŃo airoso, de face clara e
suissas louras, que, com os punhos sobre o peitoril e a cabeša
levantada, n'um descarado modo de pimponice e desafio, o fitava
atrevidamente. E n'um lampejo o Fidalgo reconheceu aquelle cašador que
jß uma tarde, no logar de Nacejas, ao pÚ da Fabrica de vidros, o mirßra
com arrogancia, lhe raspßra a espingarda pela perna, e ainda depois,
parado sob a varanda d'uma rapariga de jaquÚ azul, lhe acenßra
chasqueando emquanto elle descia a ladeira... Era esse! Como se nŃo
percebesse o ultraje--Gonšalo bebeu apressadamente a sangria, atirou uma
placa ao pobre Pintainho enfiado, e picou a fina egoa. Mas entŃo da
janella rolou uma risadinha, cacarejada e trošante, que o colheu pelas
costas como o estalo d'uma vergasta. Gonšalo soltou a galope. E adiante,
sopeando a egoa no refugio d'uma azinhaga, pensava, ainda
tremulo:--źQuem serß o desavergonhado?... E que lhe fiz eu, Santo Deus?
que lhe fiz eu?...╗ Ao mesmo tempo todo o seu ser se desesperava contra
aquelle desgrašado _mŕdo_, encolhimento da carne, arrepio da pelle, que
sempre, ante um perigo, uma ameaša, um vulto surdindo d'uma sombra, o
estonteava, o impellia furiosamente a abalar, a escapar! Por que ß sua
alma, Deus louvado, nŃo faltava arrojo! Mas era o corpo, o traišoeiro
corpo, que n'um arrepio, n'um espanto, fugia, se safava, arrastando a
alma--emquanto dentro a alma bravejava!
Entrou na Torre, mortificado, invejando a afouteza dos seus mošos da
quinta, remoendo um rancor soturno contra aquelle bruto de suissas
louras, que certamente denunciaria ao Cavalleiro e enterraria n'uma
enxovia!--Mas, logo no corredor, o Bento lhe debandou os pensamentos,
apparecendo com uma carta źque trouxera um mošo da _Feitosa_...╗
--Da _Feitosa_?
--Sim senhor, da quinta do snr. Sanches Lucena, que Deus haja. Diz que
vinha de mandado das senhoras...
--Das senhoras!... Que senhoras?
Sem tarja de luto, a carta nŃo era da bella D. Anna... Mas era de D.
Maria Mendonša, que assignava--źprima muito amiga, Maria Severim.╗ N'um
relance a leu, colhido logo por esta surpreza nova, distrahido da venda
do Pintainho e da affronta:--źMeu querido Primo. Estou ha tres dias aqui
com a minha amiga Annica, e como passou o mez inteiro do nojo e ella jß
pˇde sahir (e atÚ precisa porque tem andado fraca) eu aproveito a
occasiŃo para percorrer estes arredores que dizem tŃo bonitos, e pouco
conhešo. Tencionamos no Domingo visitar Santa Maria de Craquŕde, onde
estŃo os tumulos dos antigos tios Ramires. Que impressŃo me vae
fazer!... Mas, ao que parece, alÚm dos tumulos do claustro, ha outros,
ainda mais antigos, que foram arrombados no tempo dos Francezes, e que
ficam n'um subterraneo, onde se nŃo pˇde entrar sem licenša e sem que
tragam a chave. Pešo pois, querido Primo, que dŕ as suas ordens para que
no Domingo possamos descer ao subterraneo, que todos affianšam muito
interessante, por que ainda lß restam ossos e armas. Se na Torre
houvesse uma senhora, eu mesma iria, para lhe fazer este pedido... Mas
nŃo se pˇde visitar um solteirŃo tŃo perigoso. Case depressa!...
D'Oliveira boas noticias. Creia-me sempre, etc.╗
Gonšalo encarou o Bento--que esperava, interessado com aquelle assombro
do Snr. Doutor:
--Tu sabes se em Santa Maria de Craquŕde ha outros tumulos, n'um
subterraneo?
O assombro entŃo saltou para o Bento:
--N'um subterraneo?... Tumulos?
--Sim, homem! AlÚm dos que estŃo no claustro parece que ha outros, mais
antigos, debaixo da terra... Eu nunca vi, nŃo me lembro. Tambem ha que
annos nŃo entro em Santa Maria de Craquŕde! Desde pequeno!... Tu nŃo
sabes?
O Bento encolheu os hombros.
--E a Rosa nŃo saberß?
O Bento abanou a cabeša, duvidando.
--Tambem vossŕs nunca sabem nada! Bem! AmanhŃ cŕdo corre a Santa Maria
de Craquŕde e pergunta na Egreja, ao sachristŃo, se existe esse
subterraneo. Se existir que o mostre no Domingo a umas senhoras, ß
snr.^a D. Anna Lucena, e ß snr.^a D. Maria Mendonša, minha prima
Maria... E que tenha tudo varrido, tudo decente!
Mas, repassando a carta, reparou n'um _Post-Scriptum_ em lettra mais
miudinha, ao canto da folha:--źNo Domingo, nŃo se esqueša, a visita serß
_entre as cinco e cinco e meia da tarde_!╗
Gonšalo pensou:--źSerß uma entrevista?╗ E na livraria, atirando para uma
cadeira o chapeu e o chicote, assentou que era uma entrevista, bem
clara, bem marcada! E talvez nem existisse esse subterraneo--e Maria
Mendonša, com a sua tortuosa esperteza, o inventasse, como natural
motivo de lhe escrever, de lhe annunciar que no Domingo, ßs cinco e
meia, a bella D. Anna e os seus duzentos contos o esperavam em Santa
Maria de Craquŕde. Mas entŃo a prima Maria nŃo gracejßra, em Oliveira?
Gostava d'elle, realmente, essa D. Anna?... E uma emošŃo, uma
curiosidade voluptuosa atravessaram Gonšalo ß idÚa de que tŃo formosa
mulher o desejava.--Ah! mas certamente o desejava para marido, por que
se o appetecesse para amante nŃo se soccorria dos servišos da D. Maria
Mendonša--nem a prima Maria, apesar de tŃo sabuja com as amigas ricas,
os prestaria assim descaradamente como uma alcoviteira de Comedia! E
caramba! casar com a D. Anna--nŃo!
E subitamente anciou por conhecer a vida da D. Anna! Aturßra ella tantos
annos, em severa fidelidade, o velho Sanches? Sim, talvez, na _Feitosa_,
na solidŃo dos grandes muros da _Feitosa_--por que nunca sobre ella
esvoašßra um rumor, em terriolas tŃo gulosas de rumores malignos. Mas em
Lisboa?... Esses źamigos estimabilissimos╗ de que se ufanava o pobre
Sanches, o D. JoŃo nŃo sei quŕ, o pomposo Arronches Manrique, o Philippe
Lourenšal com o seu cornetim?... Algum de certo a attacßra--talvez o D.
JoŃo, por dever tradicional do nome. E ella?... Quem o informaria sobre
a historia sentimental da D. Anna?
Depois, ao jantar, de repente pensou no Gouveia. Uma irmŃ do Gouveia,
casada em Lisboa com certo Cerqueira (arranjador de Magicas e empregado
na Misericordia) costumava mandar ao mano Administrador relatorios
intimos sobre todas as pessoas conhecidas d'Oliveira, de Villa-Clara,
que se demoravam em Lisboa--e que interessavam o mano ou por Politica,
ou por mexeriquice. E de certo, pela irmŃ Cerqueira, o querido Gouveia
conhecia miudamente os annaes da D. Anna, durante os seus invernos de
Lisboa, nas delicias da sua źroda fina╗.
N'essa noite, porÚm, o Administrador nŃo apparecera na Assembleia. E
Gonšalo, desconsolado, recolhia ß Torre--quando no Largo do Chafariz o
encontrou com o Videirinha, ambos sentados n'um banco, sob as olaias
escuras.
--Chegou lindamente! exclamou o Gouveia. Estavamos mesmo a marchar para
minha casa, tomar chß. Quer vossŕ, tambem?... Vossŕ costuma gostar das
minhas torradinhas.
O Fidalgo acceitou--apezar de canšado. E logo pela Calšadinha, enlašando
o brašo do Administrador, contou que recebera uma carta de Lisboa, d'um
amigo, com uma nova estupenda... O que?--O casamento da D. Anna Lucena.
O Gouveia parou, assombrado, atirando o c˘co para a nuca:
--Com quem?!
Gonšalo que inventßra a carta--inventou o noivo:
--Com um vago parente meu, ao que parece, um D. JoŃo Pedroso ou da
Pedrosa. Muitas vezes o Sanches Lucena me fallou n'elle... Conviviam
muito em Lisboa...
Gouveia bateu com a ponta da bengala nas pedras:
--NŃo pˇde ser!... Que disparate! A D. Anna nŃo ajustava casamento sete
semanas depois de lhe morrer o marido... Olhe que o Lucena morreu no
meado de Julho, homem! Ainda nem teve tempo de se acostumar ß sepultura!
--Sim, com effeito! murmurou Gonšalo.
E sorria, sob uma doce baforada de vaidade--pensando que, sete semanas
depois de viuva, ella, sem resistir, calcando decencia e luto, lhe
offerecia a elle uma entrevista nas ruinas de Craquŕde.
A mentira de resto, apesar de disparatada, aproveitßra--porque, depois
de subirem ß saleta verde do Administrador, o espanto recomešou.
Videirinha esfregava as mŃos, divertido:
--Oh snr. Dr., olhe que tinha graša!... Se a snr.^a D. Anna, depois
d'apanhar os duzentos contos do velhote, logo passadas semanas, zßs, se
engancha com um rapazote novo...
NŃo, nŃo!... Gonšalo agora, reparando, tambem considerava despropositada
a noticia do casamento, assim com o pobre Sanches ainda m˘rno...
--Naturalmente entre ella e esse D. JoŃo havia namorico, olhadella...
Por isso imaginaram. Com effeito, alguem me contou, ha tempos, que o tal
D. JoŃo se atirava valentemente, como cumpre a um D. JoŃo, e que ella...
--Mentira! atalhou o Administrador, debrušado sobre a chaminÚ do
candieiro para accender o cigarro. Mentira! Sei perfeitamente, e por
excellente canal... Em fim, sei por minha irmŃ! Nunca, em Lisboa, a D.
Anna deu azo a que se rosnasse. Muito sÚria, muitissimo sÚria. Estß
claro, nŃo faltou por lß maganŃo que lhe arrastasse a aza languida...
Talvez esse D. JoŃo, ou outro amigo do marido, segundo a boa lei
natural. Mas ella, nada! Nem ˘lho de lado! Esposa romana, meu amigo, e
dos bons tempos romanos!
Gonšalo, enterrado no camapÚ, torcia lentamente o bigode, regalado,
recolhendo as revelaš§es. E o Gouveia, no meio da sala, com um gesto
convencido e superior:
--Nem admira! Estas mulheres muito formosas sŃo insensiveis. Bellos
marmores, mas frios marmores... NŃo, Gonšalinho, lß para o sentimento, e
para a alma, e mesmo para o resto, venham as mulheres pequeninas,
magrinhas, escurinhas! Essas sim!... Mas os grandes mulher§es brancos,
do genero Venus, sˇ para vista, sˇ para museo.
Videirinha arriscou uma duvida:
--Uma senhora tŃo bonita como a snr.^a D. Anna, e com aquelle sangue,
assim casada com um velhote...
--Ha mulheres que gostam de velhotes por que ellas mesmas teem
sentimentos velhotes!--declarou o Gouveia, de dedo erguido, com immensa
auctoridade e immensa philosophia.
Mas a curiosidade de Gonšalo nŃo se contentava. E na _Feitosa_? Nunca se
rosnßra d'alguma aventura escondida? Parece que com o Dr. Julio...
De novo o Fidalgo inventava. De novo Gouveia, repelliu a źmentira╗:
--Nem na _Feitosa_, nem em Oliveira, nem em Lisboa... De resto, Ú o que
lhe digo, Gonšalo Mendes. Mulher de marmore!
Depois, saudando, em submissa admirašŃo:
--Mas, como marmore... Vossŕs, meninos, nŃo imaginam a belleza d'aquella
mulher decotada!
Gonšalo pasmou:
--E onde a viu vossŕ decotada?
--Onde a vi decotada? Em Lisboa, n'um baile do Pašo... AtÚ foi
justamente o Lucena que me arranjou o convite para o Pašo. Lß me
espanejei, de calšŃo... Uma semsaboria. E mesmo uma vergonha, toda
aquella turba acavallada por cima dos buffetes, aos berros, a agarrar
furiosamente pedašos de per˙...
--Mas entŃo, a D. Anna?
--Pois a D. Anna uma belleza! Vossŕs nŃo imaginam!... Santo nome de
Deus! que hombros! que brašos! que peito! E a brancura, a perfeišŃo...
De endoidecer! Ao principio, como havia muita gente, e ella estava para
um canto, acanhadota, nŃo fez sensašŃo. Mas depois lß a descobriram. E
eram correrias, magotes embasbacados... E źquem serß?╗ E źque encanto!╗
Todo o mundo perdidinho, atÚ o Rei!
E um momento os tres homens emmudeceram na impressŃo do formoso corpo
evocado, que entre elles surgia, quasi despido, inundando com o
explendor da sua brancura a modesta sala mal alumiada. Por fim
Videirinha acercou a cadeira, em confidencia, para fornecer tambem a sua
informašŃo:
--Pois, por mim, o que posso affirmar Ú que a snr.^a D. Anna Ú uma
mulher muito aceada, muito lavada...
E como os outros s'espantavam, rindo, de uma certeza tŃo
intima--Videirinha contou que todas as semanas apparecia um mošo da
_Feitosa_, na botica do Pires, a comprar tres e quatro garrafas de agua
de Colonia portugueza, da receita do Pires.
--AtÚ o Pires dizia sempre, a esfregar as mŃos, que na Feitosa regavam
as terras com agua de Colonia. Depois Ú que soubemos pela creada... A
snr.^a D. Anna toma todos os dias um grande banho, que nŃo Ú sˇ para
lavar, mas para prazer. Fica uma hora dentro da tina. AtÚ lŕ o jornal
dentro da tina. E em cada banho, zßs, meia garrafa d'agua de Colonia...
Jß Ú luxo!
EntŃo Gonšalo sentiu como um aborrecimento de todas aquellas revelaš§es
do Administrador, do ajudante da Pharmacia, sobre os decotes e as
lavagens da linda mulher que o esperava entre os tumulos dos Ramires
seculares. Saccudiu o jornal com que se abanava, exclamou:
--Bem! E passando a cantiga mais sÚria... Oh Gouveia, vossŕ que tem
sabido do Dr. Julio? O homem trabalha na eleišŃo?
A creada entrßra com a bandeja do chß. E em torno da mesa, trincando as
torradas famosas, conversaram sobre a EleišŃo, sobre os informes dos
Regedores, sobre a reserva do Rio-Manso--e sobre o Dr. Julio, que
Videirinha encontrßra nos Bravaes pedinchando votos pelas portas,
acompanhado por um m˘šo com a machina photographica ßs costas.
Depois do chß Gonšalo, canšado e jß provido źde revelaš§es╗, accendeu o
charuto para recolher ß Torre.
--Vossŕ nŃo acompanha, Videirinha?
--Hoje, Snr. Dr., nŃo posso. Parto de madrugada para Oliveira, na
diligencia.
--Que diabo vae vossŕ fazer a Oliveira?
--Por causa d'uns sapatos de praia e d'um fato de banho lß da minha
patr˘a, da D. Josepha Pires... Tenho de os trocar nos Emilios, levar as
medidas.
Gonšalo ergueu os brašos, desolado:
--Ora vejam este paiz! Um grande artista, como o Videirinha, a carregar
para Oliveira com os sapatos de banho da patr˘a Pires!... Oh Gouveia!
quando eu f˘r deputado precisamos arranjar um bom logar para o
Videirinha, no Governo Civil. Um logar facil e com vagares, para elle
nŃo esquecer o violŃo!
Videirinha cˇrou de g˘sto e de esperanša--correndo a despendurar do
cabide o chapÚo do Fidalgo.
Pela estrada da Torre, os pensamentos de Gonšalo esvoašaram logo, com
irresistida tentašŃo, para D. Anna--para os seus decotes, para os
languidos banhos em que se esquecia lendo o jornal. Por fim, que
diabo!... Essa D. Anna assim tŃo honesta, tŃo perfumada, tŃo
explendidamente bella, sˇ apresentava, mesmo como esposa, um feio
_senŃo_--o papß carniceiro. E a voz tambem--a voz que tanto o arripißra
na Bica-Santa... Mas o Mendonša assegurava que aquelle timbre rolante e
gordo, na intimidade, se abatia, liso e quasi doce... Depois, mezes de
convivencia habituam ßs vozes mais desagradaveis--e elle mesmo, agora,
nem percebia quanto o Manoel Duarte era fanhoso! NŃo! mancha teimosa,
realmente, sˇ o pae carniceiro. Mas n'esta Humanidade nascida toda d'um
sˇ homem, quem, entre os seus milhares d'avˇs atÚ AdŃo, nŃo tem algum
av˘ carniceiro? Elle, bom fidalgo, d'uma casa de Reis d'onde Dynastias
irradiavam, certamente, escarafunchando o Passado, toparia com o Ramires
carniceiro. E que o carniceiro avultasse logo na primeira gerašŃo, n'um
talho ainda afreguezado, ou que apenas s'esfumasse, atravez d'espessos
seculos, entre os trigesimos avˇs--lß estava, com a faca, e o cepo, e as
postas de carne, e as nodoas de sangue no brašo suado!...
E este pensamento nŃo o abandonou atÚ ß Torre--nem ainda depois, ß
janella do quarto, acabando o charuto, escutando o cantar dos ralos. Jß
mesmo se deitßra, e as pestanas lhe adormeciam, e ainda sentia que os
seus passos impacientes se embrenhavam para traz, para o escuro passado
da sua Casa, por entre a emmaranhada Historia, procurando o
carniceiro... Era jß para alÚm dos confins do Imperio Visigodo, onde
reinava com um globo d'ouro na mŃo o seu barbudo av˘ Recesvinto.
Esfalfado, arquejando, transpozera as cidades cultas, povoadas de homens
cultos--penetrßra nas florestas que o mastodonte ainda sulcava. Entre a
humida espessura jß crusßra vagos Ramires, que carregavam, grunhindo,
rezes mortas, molhos de lenha. Outros surdiam de tocas fumarentas,
arreganhando agudos dentes esverdeados para sorrir ao neto que passava.
Depois por tristes ermos, sob tristes silencios, chegßra a uma lag˘a
ennevoada. E ß beira da agoa limosa, entre os canaviaes, um homem
monstruoso, pelludo como uma fÚra, agachado no lodo, partia a rijos
golpes, com um machado de pedra, postas de carne humana. Era um Ramires.
No ceu cinzento voava o Ašor negro. E logo, d'entre a neblina da lag˘a,
elle acenava para Santa Maria de Craquŕde, para a formosa e perfumada D.
Anna, bradando por cima dos Imperios e dos Tempos:--źAchei o meu av˘
carniceiro!╗
* * * * *
No Domingo, Gonšalo acordou com uma źesperta ideia!╗ NŃo correria a
Santa Maria de Craquŕde com uma pontualidade sofrega, ßs cinco horas (as
cinco horas marcadas no _Post-Scriptum_ da prima Maria)--mostrando o seu
alvorošo em encontrar a tŃo bella e tŃo rica D. Anna Lucena! Mas ßs seis
horas, quando findasse a romaria das senhoras aos tumulos, appareceria
elle indolentemente, como se, recolhendo d'um passeio pelas frescas
cercanias, se recordasse, parasse nas ruinas para conversar com a prima
Maria.
Logo ßs quatro horas porÚm se comešou a vestir com tantos esmeros, que o
Bento, canšado das gravatas que o Snr. Dr. experimentava e arremessava
amarfanhadas para o divan, nŃo se conteve:
--Ponha a de sedinha branca, Snr. Dr.! Ponha a branca, que lhe fica
melhor! E refresca mais, com este calor.
Na escolha d'um ramo para o casaco ainda requintou, juntando as c˘res
heraldicas dos Ramires, um cravo amarello com um cravo branco. Ao
portŃo, apenas montßra na egoa, temeu que as senhoras (nŃo o encontrando
no Claustro) encurtassem a visita, estugou o trote pelo atalho da
Portella. Depois adiante, ao desembocar na antiga estrada real, soltou
n'um galope impaciente que o branqueou de poeira.
Sˇ retomou um passo indifferente, ao acercar da linha do Caminho de
Ferro, onde um carro de lenha e dois homens esperavam deante da
cancella, que se fechßra para a lenta passagem d'um trem carregado de
pipas. Um d'esses homens, d'alforge aos hombros, era o Mendigo--o
vistoso Mendigo que passeava por aquellas aldeias a rendosa magestade
das suas barbašas de Deus fluvial. Erguendo gravemente o chapÚo de
vastas abas, desejou ao Fidalgo a companhia de Nosso Senhor.
--EntŃo hoje a ganhar a rica vida por Craquŕde?...
--Cß me arrasto ßs vezes para a passagem do comboio d'Oliveira, meu
Fidalgo. Os passageiros gostam de me vŕr de pÚ no talude, correm sempre
ßs janellas...
Gonšalo, rindo, recordou que o encontro d'aquelle anciŃo precedia sempre
um encontro seu com a bella D. Anna.--źQuem sabe? pensou. ╔ talvez o
Destino! Os antigos pintavam assim o Destino, com longas barbas e longas
guedelhas, e o alforge ßs costas contendo as sortes humanas...╗--E com
effeito ao cabo do pinheiral silencioso, que estiradas resteas de sol
docemente douravam--avistou a caleche da _Feitosa_, parada sob uma
carvalha, com o cocheiro fardado de negro dormitando na almofada. A
estrada real de Oliveira costeia ahi o antigo adro do mosteiro de
Craquŕde, queimado pelo fogo do cÚo, n'aquella irada tempestade que
chamam _de S. SebastiŃo_, e que aterrou Portugal em 1616. Uma herva
agora alfombra o chŃo, crescida e verde, entre os poderosos troncos dos
castanheiros velhissimos. A Egrejinha nova alveja, bem caiada, ao fundo
da ramaria: e, ligada a ella por um muro esbrechado que densa hera
veste, tomando todo o lado nascente do Terreiro--sobe, enche ainda
magnificamente o cÚo lustroso, a fachada da Egreja do vetusto Mosteiro,
suavemente amarellecida e brunida pelos tempos, com o seu immenso portal
sem portas, a rosacea desmantelada, e esvasiados os nichos
d'enterramento onde outr'ora se estirašavam as imagens dos fundadores,
Froylas Ramires e sua mulher Estevaninha, condessa d'Orgaz, por alcunha
a _Queixa-perra_. Duas casas terreas povoam o lado fronteiro do
adro--uma limpa, com as hombreiras das janellas pintadas d'azul
estridente, a outra deserta, quasi sem telhado, afogada na verdura d'um
quinteiro bravo onde gira-soes resplandecem. Um pensativo silencio
envolvia o arvoredo, as altivas ruinas. E nem o quebrava, antes
serenamente o emballava, o susurro d'uma fonte, que a estiagem
adelgašßra em fio lento, e mal enchia o seu tanque de pedra, toldado
pela pallida e rala folhagem d'um chorŃo muito alto.
O trintanario da _Feitosa_, ao enxergar o Fidalgo, saltou risonhamente
da borda do tanque onde picava tabaco, para segurar a egoa. E Gonšalo,
que desde pequeno nŃo penetrava nas ruinas de Craquŕde, seguia por um
carreirinho cortado na relva, attentamente, encantado com aquella
romantica solidŃo de lenda e verso, quando, sob o arco do portal,
appareceram as duas senhoras voltando do velho Claustro. D. Maria
Mendonša, com a sua sacudida vivacidade, agitou logo o guarda-sol de
xadrezinho, semelhante ao vestido, cujas mangas, tufando desmedidamente
nos hombros, lhe vincavam mais a elegancia esgalgada. E ao lado, na
claridade, D. Anna era uma silenciosa e esvelta fˇrma negra, de lŃ negra
e d'escumilha negra, onde apenas transparecia, suavisada sob o vÚo
negro, a brancura explendida da sua face sensual e sÚria.
Gonšalo correra, erguendo o chapÚo de palha, balbuciando o seu źprazer
por aquelle encontro...╗ Mas jß D. Maria o reprehendia, sem lhe
consentir a fabula do źencontro╗:
--O primo nŃo Ú nada amavel, nada amavel...
--Oh prima!...
--Pois sabia que vinhamos, pela minha carta! E nem estß ß hora aprazada,
para fazer as honras, como devia...
Elle, rindo, com o seu desembarašo airoso, negou esse dever! Aquella
casa nŃo era sua, mas do Bom Deus! Ao Bom Deus competia źfazer as
honras╗--acolher tŃo doces romeiras com algum milagre amavel...
--E entŃo, gostaram? V. Ex.^a, Snr.^a D. Anna, gostou das ruinas?...
Muito interessantes, nŃo Ú verdade?
AtravÚs do vÚo, com uma lentidŃo que a espessa renda negra tornava mais
grave, ella murmurou:
--Eu jß conhecia... Vim cß uma tarde, com o pobre Sanches que Deus haja.
--Ah...
┴quella evocašŃo do pobre morto, Gonšalo sumira todo o sorriso, com
polida tristeza. Mas D. Maria Mendonša acudio, atirando um dos seus
magros gestos, como para arredar a sombra importuna:
--Ai! nŃo imagina o que gostei, primo! ╔ d'appetite todo o claustro...
Logo aquella espada enferrujada, chumbada por cima do tumulo... NŃo ha
nada que impressione como estas cousas antigas... Oh primo, e pensar que
estŃo alli antepassados nossos!
O sorriso de Gonšalo de novo lampejou, alegre e acolhedor, como sempre
que D. Maria se empurrava com desesperada gula para dentro da Casa de
Ramires. E gracejou, affavelmente. Oh, antepassados... Simples punhados
de cinsa vŃ!--Pois nŃo era verdade, Snr.^a D. Anna?... Realmente! quem
conceberia que a prima Maria, tŃo viva, tŃo sociavel, tŃo engrašada,
descendesse d'uma poeira tristonha guardada dentro d'uma pia de pedra?
NŃo! nŃo se podia ligar tanto _ser_ a tanto _nŃo-ser_...--E como D. Anna
sorria, n'uma vaga concordancia, encostando as duas mŃos fortes e muito
apertadas na pellica negra ao alto cabo d'aljofar da sombrinha, elle
atalhou com interesse:
--V. Ex.^a estß talvez canšada, Snr.^a D. Anna?
--NŃo, nŃo estou canšada... Ainda vamos mesmo entrar na capella, um
bocadinho... Eu nunca me canšo.
E pareceu a Gonšalo que a voz da formosa creatura nŃo rolava do papo,
tŃo grossa e gorda--mas que se afinßra, adošada e velada pelo luto
d'escomilha e lŃ, como esses grossos e rolantes rumores que a noite e o
arvoredo adelgašam. Mas D. Maria confessou o seu immenso canšasso! Nada
a esfalfava como visitar curiosidades... E alÚm d'isso a emošŃo, a ideia
de heroes tŃo antigos!
--Se nos sentassemos n'aquelle banco, hein? ╔ muito cedo para
recolhermos, nŃo Ú verdade, Annica? E estß tŃo agradavel n'este socego,
n'esta frescura...
Era um banco de pedra, rente ao muro esbrechado que a hera afogava. Em
torno a relva crescia, mais silvestre e florida com os derradeiros
malmequeres e bot§es d'ouro que o sol d'Agosto poupßra. Um aromasinho
fino, d'algum jasmineiro emmaranhado na hera, errava, adocicava a serena
tarde. E na rama d'um alamo, defronte do portŃo da Capella, duas vezes
um melro cantßra. Gonšalo sacudiu todo o banco cuidadosamente, com o
lenšo. E sentado na ponta, junto de D. Maria, louvou tambem a frescura,
o recolhimento d'aquelle cantinho de Craquŕde... E elle que nunca se
aproveitßra de refugio tŃo santo, e quasi seu, nem mesmo para um almošo
bucolico! Pois agora certamente voltaria fumar um charuto, revolver
ideias de paz sob a paz das carvalheiras, na visinhanša dos vovˇs
mortos... Depois, com uma curiosidade:
--╔ verdade, prima! E o subterraneo?
Oh! nŃo existia subterraneo!... Sim, existia--mas entulhado, sem
sepulturas, sem antiguidades. E o sachristŃo logo lhes affianšßra que
źnŃo valia a pena sujarem as saias...╗
--╔ verdade, oh Annica, dÚste alguma cousa ao sachristŃo?
--Oh filha, dei cinco tost§es... NŃo sei se foi bastante.
Gonšalo assegurou que se pagßra sumptuosamente ao sachristŃo. E, se
prevesse tamanha generosidade da Snr.^a D. Anna, agarrava elle um mˇlho
de chaves, atÚ enfiava uma opa preta, para mostrar--e para embolsar...
--Pois Ú o que devia ter feito! exclamou D. Maria, com um corisco nos
espertos olhos. E decerto se lhe davam os cinco tost§es! Porque sempre
serÝa mais instructivo que o homemsinho, que mascava, nŃo sabia nada!...
Semelhante morcŃo! E eu com tanta curiosidade por aquelle tumulo aberto,
com a tampa rachada... O m˘no sˇ soube resmungar que źeram historias
muito antigas lß do Fidalgo da Torre...╗
Gonšalo ria:
--Pois essa historia por acaso sei eu, prima Maria! Sei agora pelo _Fado
dos Ramires_, o fado do Videirinha...
D. Maria Mendonša levantou as compridas mŃos aos cÚos, revoltada com
aquella indifferenša pelas tradiš§es heroicas da Casa. Conhecer sˇmente
os seus Annaes desde que elles andavam repicados n'um fado!... O primo
Gonšalo nŃo se envergonhava?
--Mas por quŕ, prima, porquŕ? O fado do Videirinha estß fundado em
documentos authenticos que o Padre Sueiro estudou. Todo o recheio
historico foi fornecido pelo Padre Sueiro. O Videirinha sˇ poz as rimas.
AlÚm d'isso antigamente, prima, a Historia era perpetuada em verso e
cantada ao som da lyra... Em fim quer saber esse caso do tumulo aberto,
segundo as quadras do Videirinha? Eu sempre conto! Mas sˇ para a Snr.^a
D. Anna, que nŃo soffre d'esses escrupulos...
--NŃo! acudiu D. Maria. Se o Videirinha tem essa auctoridade historica
entŃo conte tambem para mim, que sou da Casa!
Gonšalo, por gracejo, tossio, passou o lenšo pelos beišos:
--Pois eis o caso! N'esse tumulo habitava, naturalmente morto, um dos
meus avˇs... NŃo me lembro o nome, Gutierres ou Lopo. Creio que
Gutierres... Emfim, lß jazia quando foi da batalha das Navas de
Tolosa... A prima Maria conhece a batalha das Navas, os cinco reis
mouros, etc... Como o tal Gutierres soube da batalha nŃo contam os
versos do Videirinha. Mas, apenas lß dentro lhe cheirou a carnificina,
arromba o tumulo, sahe por este pateo como um desesperado, desenterra o
seu cavallo que f˘ra enterrado no adro onde agora crescem estes
carvalhos, monta n'elle todo armado, e, Cavalleiro morto sobre cavallo
morto, larga a galope atravÚs da Hespanha, chega ßs Navas, arranca a
espada, e destroša os mouros... Que lhe parece, Snr.^a D. Anna?
Dedicßra a historia a D. Anna, procurando nos seus bellos olhos a
attenšŃo e o interesse. E ella, que a furto, atravÚs do dec˘ro
melancolico a que se esforšava, adošßra o sorriso, attrahida e levada,
murmurou apenas:--źTem graša!╗--D. Maria, porÚm, quasi esvoašou sobre o
banco de pedra, n'um extasis:--źLindo! Lindo! Que poesia!... Oh! uma
lenda de todo o appetite!╗--E, para que Gonšalo desenrolasse ainda a
graša do seu dizer, outras maravilhas da sua Chronica:
--Conte, primo, conte... E voltou para Craquŕde esse tio Ramires?
--Quem, prima, o Gutierres?... Ou fosse elle tolo! Apenas se apanhou
livre da massada da sepultura nŃo appareceu mais em Santa Maria de
Craquŕde. O tumulo vasio, como estß, e elle por Hespanha n'uma pandega
heroica!... Imagine! um defunto que por milagre se safa do seu jazigo,
d'aquella postura eterna, tŃo apertada, tŃo esticada!...
Subitamente emmudeceu, lembrando o Sanches Lucena, tambem esticado no
seu caixote de chumbo, sob o seu vistoso jazigo d'Oliveira...--D. Anna
baixßra a face, mais sumida no vÚo, esfuracando a herva com a ponta da
sombrinha. E a esperta D. Maria, para desfazer a sombra impertinente que
de novo os rošßra, rompeu n'outra curiosidade, que ainda se encadeava na
nobreza dos Ramires:
--╔ verdade! Sempre me esquece de lhe perguntar. O primo ainda tem
muitos parentes em Franša... Talvez tambem nŃo saiba?
Sim! Gonšalo, casualmente, conhecia essa historia dos seus parentes de
Franša--apezar de que o Videirinha os nŃo cantßra no Fado!
--EntŃo conte! Mas que seja historia alegre!
Oh, nŃo era prodigiosamente divertida! Um av˘ Ramires, Garcia Ramires,
acompanhßra nas suas famosas jornadas o Infante D. Pedro, o filho
d'El-Rei D. JoŃo I... A Prima Maria sabia--o Infante D. Pedro, o que
correu as Sete Partidas do mundo... Pois o Infante D. Pedro e os seus
fidalgos, de volta da Palestina, pousaram um anno inteiro na Flandres,
com o Duque de Borgonha. AtÚ se celebraram entŃo festas maravilhosas,
com um banquete que durou sete dias, e que anda nos compendios da
Historia de Franša. Onde ha danšas ha amores. A av˘ Ramires sobejava
imaginašŃo e arrojo... F˘ra elle que deante de Jerusalem, no Valle de
Josaphat, lembrßra que se erguesse um _signal_ para que o Infante e os
seus companheiros de romagem se reconhecessem no grande Dia de Juizo.
Depois, naturalmente, bello mocetŃo, de barba negra e cerrada ß
Portugueza... Emfim casßra com uma irmŃ do Duque de ClŔves, uma tremenda
Senhora, sobrinha do Duque de Borgonha e Brabante. Mais tarde, atravÚs
d'essas ligaš§es, uma avˇ Ramires, jß viuva, casou tambem em Franša com
o conde de Tancarville. Esses Tancarvilles, Gran-Mestres de Franša,
possuiam o mais formidavel castello da Europa, e...
D. Maria bateu as palmas, rindo:
--Bravo! lindamente! Sim, senhor!... EntŃo o primo que se gaba de nŃo
saber nada de fidalguias... Olhe como conhece pelo miudo a historia
d'esses grandes casamentos! Hein, Annica?... ╔ uma Chronica viva!
Gonšalo vergou os hombros, confessou que se occupßra de toda essa
heraldica historia por um motivo bem rasteiro--por miseria!...
--Por miseria?
--Sim, prima Maria, por pen˙ria de moeda, de cobres...
--Conte! conte! Olhe, a Annica estß anciosa...
--Quer saber, Snr.^a D. Anna?... Pois foi em Coimbra, no meu segundo
anno de Coimbra. Os companheiros e eu chegamos a nŃo juntar entre todos
um vintem. Nem para cigarros! Nem para o sagrado decilitro de carrascŃo
e as tres azeitonas do dever... Um d'elles entŃo, rapaz muito engrašado,
de Melgašo, surdiu com a idÚa estupenda de que eu escrevesse aos meus
parentes de Franša, a esses ClŔves, a esses Tancarvilles, senhores de
certo immensamente ricos, e sollicitasse, com desembarašo, um
emprestimosinho de trezentos francos.
D. Anna nŃo conteve um riso, sinceramente divertido:
--Ai! tem muita graša!
--Mas nŃo teve resultado, minha senhora... Jß nŃo existem ClŔves, nem
Tancarvilles! Todas essas grandes familias feudaes findaram, se fundiram
n'outras casas, atÚ na Casa de Franša. E o meu padre Sueiro, apezar de
todo o seu saber genealogico, nunca conseguiu descobrir quem as
representava com bastante affinidade para me emprestar, a mim parente
pobre de Portugal, esses trezentos francos.
Aquella penuria de Gonšalo, de tamanho fidalgo, quasi enternecera D.
Anna:
--Ora estarem assim sem vintem! Quem soubesse... Mas tem graša! Essas
historias de Coimbra teem sempre muita graša. O D. JoŃo de Pedrosa, em
Lisboa, tambem contava muitas...
D. Maria Mendonša, porÚm, atravÚs d'essa facecia d'estudantes,
descortinßra outra prova inesperada da grandeza dos Ramires. E
immediatamente a estendeu deante de D. Anna com habilidade:
--Ora vejam!... Todas essas grandes casas de Franša, tŃo ricas, tŃo
poderosas, acabaram, desappareceram. E cß no nosso Portugalsinho ainda
dura a casa de Ramires!
Gonšalo acudiu:
--Acaba agora, prima!... NŃo olhe para mim assim espantada. Acaba
agora... Pois se eu nŃo caso!
EntŃo D. Maria recuou o magro peito--como se esse casamento do primo
dependesse de doces influencias, que convinha se trocassem bem
chegadamente, sem Marias Mendonšas de permeio no estreito banco com
grandes mangas bufantes tolhendo as correntes de effluvio. E sorria,
quasi languidamente:
--Ora nŃo casa... Mas por quŕ, primo, por quŕ?
--Por que nŃo tenho geito, prima. O casamento Ú uma arte muito delicada
que necessita vocašŃo, genio especial. As Fadas nŃo me concederam esse
genio. E se me dedicasse a semelhante obra, ai de mim! com certeza a
estragava.
D. Anna, como se outra idÚa a occupasse, puxßra lentamente do cinto o
relogio preso por uma fita de cabello. E D. Maria insistia, recusava os
motivos do Fidalgo:
--SŃo tolices. O primo que gosta tanto de creanšas...
--Gosto, gosto muito de creancas, atÚ de creancinhas de mama. As
creanšas sŃo os unicos seres divinos que a nossa pobre humanidade
conhece. Os outros anjos, os d'azas, nunca apparecem. Os santos, depois
de santos, ficam na Bemaventuranša a preguišar, ninguem mais os enxerga.
E, para concebermos uma ideia das cousas do cÚo, sˇ temos realmente as
creancinhas... Sim, com effeito, prima, gosto muito de creanšas. Mas
tambem gosto de fl˘res, e nŃo sou jardineiro, nem tenho geito para a
jardinagem.
E D. Maria com uma faisca no olhar promettedor:
--Socegue, que ainda vem a aprender!
Depois, para D. Anna que se esquecera na contemplašŃo do relogio:
--Achas que vŃo sendo horas? EntŃo, se queres, entramos na Capella... Oh
primo, veja se estß aberta.
Gonšalo correu, empurrou a porta da Capella. Depois acompanhou as duas
senhoras pela pequenina nave soalhada, entre delgados pilares recobertos
de uma cal aspera e crua--que recamava tambem as paredes lisas, apenas
guarnecidas, na sua rigida nudez, por lithographias de Santos dentro de
caixilhos de pinho. Deante do altar as senhoras ajoelharam--a prima
Maria enterrando a face nas mŃos juntas como n'um vaso de Piedade.
Gonšalo dobrou o joelho de leve, engrolou uma Ave-Maria.
Depois voltou para o adro, accendeu um cigarro. E, pisando lentamente a
relva, considerava quanto a viuvez melhorßra D. Anna. Sob o negrume do
luto, como n'uma penumbra que esfuma a grosseira deselegancia das
cousas, todos os seus defeitos se fundiam--os defeitos que tanto o
horripilavam na tarde da Bica Santa, o rolar gordo da voz, o peito
empinado, a ostentašŃo de burgueza ricassa pinguemente repimpada na
vida. AtÚ jß nem dizia--źo cavalheiro!╗ E alli, no adro melancolico de
Craquŕde, certamente parecia interessante e desejavel.
As senhoras desciam os dois degraus da Capella. Um melro esvoašou na
ramagem dos alamos. E Gonšalo encontrou o lampejo dos olhos serios de D.
Anna que o procuravam.
--Pešo perdŃo de nŃo lhes ter offerecido agua benta ß sahida, mas a
concha estß secca...
--Jesus, primo, que Egreja tŃo feia!
D. Anna arriscou, com timidez:
--Depois das ruinas e dos tumulos, atÚ parece pouco religiosa.
A observašŃo impressionou Gonšalo, como muito fina. E junto d'ella,
demorando os passos com agrado, sentia, esparzido pelos seus movimentos,
pelo rošar do vestido, um aroma tambem fino, que nŃo era o da horrenda
agua de Colonia da botica do Pires. Em silencio, sob a ramagem das
carvalhas, caminharam para a caleche, onde o cocheiro se aprumßra, bem
estilado, tirando o chapeu. Gonšalo notou que elle rapßra o bigode. E a
parelha reluzia, atrelada com esmero.
--E entŃo, prima Maria, ainda se demora pelos nossos sitios?
--Sim, primo, mais uns quinze dias... A Annica Ú tŃo amavel, quiz que eu
trouxesse os pequenos. O que elles se tŕm divertido na quinta, nŃo
imagina!
D. Anna murmurou, sempre sÚria:
--SŃo muito engrašados, fazem muita companhia... Eu tambem gosto muito
de creanšas.
--Ai, a Annica adora creanšas! accudiu D. Maria com fervor. O que ella
atura os pequenos! AtÚ joga com elles o mafarrico.
Perto da caleche, Gonšalo pensou que outra volta pelo adro, mais lenta,
com a D. Anna e o seu fino aroma, seria doce, n'aquelle socego da tarde
que findava, tingida de tŃo lindas c˘res de rosa sobre os pinheiraes
escurecidos. Mas jß o trintanario se acercava segurando a sua egoa. E D.
Maria, depois de admirar e acariciar a egoa, chamou o primo
discretamente--para saber a distancia da _Feitosa_ a Treixedo, a outra
quinta historica dos Ramires.
--A Treixedo, prima?... Cinco legoas fartas, com maus caminhos.
E immediatamente se arrependeu, antevendo um passeio, um novo encontro:
--Mas na estrada ultimamente andaram obras. E Ú muito bonito sitio, n'um
alto, com um resto de muralhas... Treixedo era um castello enorme... Na
quinta ha uma lag˘a entre arvoredo antigo... Oh! sitio delicioso para um
pic-nic!
D. Maria hesitou:
--╔ um pouco longe, veremos, talvez.
E como D. Anna esperava em silencio--Gonšalo abriu a portinhola, tomou
ao trintanario as rÚdeas da egoa. D. Maria Mendonša, no seu
contentamento por tŃo proveitosa tarde, sacudiu ardentemente a mŃo do
primo jurando źque ia apaixonada por Craquŕde!╗ D. Anna mal rošou os
dedos de Gonšalo, acanhada e cˇrando.
Sˇzinho, com a rÚdea da egoa enfiada no brašo, Gonšalo sorria. Na
verdade, n'essa tarde, D. Anna nŃo lhe desagradßra. Outros modos, outra
singeleza grave, outra došura na sua possante belleza de Venus rural...
E aquella observašŃo sobre a Capella, źpouco religiosa╗ depois das
ruinas seculares do claustro, era uma observašŃo fina. Quem sabe? Talvez
sob carne tŃo sensual se escondesse uma natureza delicada. Talvez a
influencia d'outro homem, que nŃo o estupidissimo Sanches, desenvolvesse
na filha explendida do carniceiro qualidades de muito encanto... Oh,
evidentemente, a observašŃo sobre os tumulos e a sua religiosidade
emanando da Lenda e da Historia--era fina.
E entŃo tambem o tomou a curiosidade de visitar esse claustro onde nŃo
entrßra desde pequeno--quando ainda a Torre conservava as suas
carruagens montadas e a romantica Miss Rhodes escolhia sempre o passeio
de Craquŕde para as tardes pensativas d'outomno. Puxou a egoa, transpoz
o portal, atravessou o espašo descoberto que f˘ra a nave--atulhado de
cališa, de cacos, de pedras despegadas da abobada e afogadas nas hervas
bravas. E pela brecha d'um muro a que ainda se amparava um pedašo
d'altar--penetrou na silenciosa crasta Affonsina. Sˇ d'ella restam duas
arcadas em angulo, atarracadas sobre rudes pilares, lageadas de
poderosas lages poidas que n'essa manhŃ o sachristŃo cuidadosamente
varrera. E contra o muro, onde rijas nervuras desenham outros arcos,
avultam os sete immensos tumulos dos antiquissimos Ramires, denegridos,
lisos, sem um lavor, como toscas arcas de granito, alguns pesadamente
encravados no lagedo, outros pousando sobre bolas que os seculos
lascaram. Gonšalo seguia um carreiro de tijolo, rente aos arcos,
recordando quando elle outr'ora e Gracinha pulavam ruidosamente por
sobre essas campas, em quanto no pateo do claustro, entre as pilastras
tombadas e a verdura das ruinas, a boa Miss Rhodes agachada procurava
florinhas silvestres. Na abobada, sobre o mais vasto tumulo, lß
negrejava chumbada a espada, a famosa espada, com a sua corrente de
ferro pendendo do punho, a folha roida pela ferrugem das longas idades.
Sobre outro lß ardia a lampada, a estranha lampada mourisca, que nŃo se
apagßra desde a tarde remota em que algum monge, com uma tocha de
sahimento, silenciosamente a accendera... Quando se accendera ella, a
eterna lampada? Que Ramires jazeriam n'esses cofres de granito, a que o
tempo raspßra as inscripš§es e as datas, para que n'ellas toda a
Historia se sumisse, e mais escuramente se volvessem em leve pˇ sem nome
aquelles homens de orgulho e de forša?... Depois na ponta do claustro
era o tumulo aberto, e ao lado, derrubada em dous pedašos, a tampa que o
esqueleto de Lopo Ramires arrombßra para correr ßs Navas de Tolosa e
bater os cinco Reis mouros. Gonšalo espreitou para dentro, curiosamente.
A um canto da funda arca alvejava um montŃo d'ossos, limpos e bem
arrumados! Esquecera o velho Lopo, na sua pressa heroica, esses poucos
ossos, jß despegados do seu esqueleto?... O crepusculo cerrßra, e com
elle uma melancolica sombra que se adensava sob as abobadas da crasta,
cobria de tristeza morta aquella jazida de mortos. EntŃo Gonšalo sentiu
a desolada solidŃo que o envolvia, o separava da vida, alli desgarrado,
e sem soccorro entre a poeira e a alma errante dos seus avˇs temerosos!
E de repente estremeceu, no arripiado mŕdo de que outra tampa estalasse
com fragor e atravez da fenda surdissem lividos dedos sem carne! Repuxou
desesperadamente a egoa pelo muro desmantelado, nas ruinas da nave pulou
para o selim, e varou n'um trote o portal, galgou o adro com ancia--sˇ
socegou ao avistar, ao fim do pinhal, a cancella do Caminho de Ferro
aberta, e uma velha que a passava tangendo o seu burro carregado
d'herva.
VIII
Ao fim da semana Gonšalo, que desde a visita a Santa Maria de Craquŕde
arrastava o remorso incommodo da sua preguiša, do tŃo longo abandono da
Novella--recebeu de manhŃ, ao sahir do banho, uma carta do Castanheiro.
Era curta:--e declarava ao amigo Gonšalo que, se em meado de Outubro nŃo
chegassem a Lisboa tres Capitulos do original, elle, com pezar seu e da
Arte, publicaria no primeiro numero dos Annaes, em vez da _Torre de D.
Ramires_, um drama do Nuno Carreira n'um acto, intitulado _Em Casa do
Temerario_... źApezar de drama e de phantasia (accrescentava) convem ß
indole erudita dos Annaes por que este _Temerario_ Ú Carlos o Temerario,
e a acšŃo toda, fortemente tecida, se passa no Castello de Peronne, onde
se encontram nada menos que Luiz XI de Franša, e o nosso pobre Affonso
V, e Pero da Covilhan que o acompanhava, e outros figur§es de rija
estatura historica. Imagine!... Estß claro, o _chic_ supremo seria
_Tructezindo Mendes Ramires_ contado pelo nosso Gonšalo Mendes Ramires!
Mas, pelo que vejo, esse _chic_ supremo estß impedido por uma indolencia
suprema. _Sunt Lacrymae Revistarum_!╗
Gonšalo atirou a carta, gritou pelo Bento:
--Leva para a livraria chß verde, forte, com torradas. Hoje sˇ almošo
tarde, ßs duas... Talvez nem almoce!
E, enfiando o roupŃo de trabalho, decidiu amarrar ß banca, como um
captivo ao remo, atÚ que rematasse esse difficil Capitulo III, onde
resaltava o barbaro e sublime rasgo do av˘ Tructezindo. NŃo, que diabo!
nŃo lhe convinha perder a apparišŃo da Novella em tŃo proveitoso
momento, nas vesperas da sua chegada a Lisboa, quando para a influencia
Politica e para o prestigio social necessitava d'esse brilho que,
segundo o velho Vigny, źuma penna de ašo accrescenta a um elmo dourado
de Fidalgo...╗ Felizmente, n'essa luminosa manhŃ em que as agoas da
horta fartamente cantavam, elle sentia tambem a veia borbulhando,
contente em se soltar e correr. Depois da visita ß crasta de Craquŕde a
sua imaginašŃo concebia menos ennevoadamente os seus avˇs Affonsinos:--e
como que os palpava emfim no seu viver e pensar desde que contemplßra os
grandes tumulos onde se desfaziam as suas grandes ossadas.
Na Livraria retomou com appetite, depois de lhes sacudir a poeira, as
tiras da Novella sobre que emperrßra, n'aquelle atarantado lance de
susto e alarme--quando o Villico, o velho Ordonho, reconhecia o pendŃo
do Bastardo surgindo ß borda da Ribeira do Coice entre o coriscar de
lanšas empinadas, passando a antiga ponte de madeira, e, um momento
sumido na verdura dos alamos, de novo avanšando, alto e tendido, atÚ ao
rude Cruzeiro de pedra de Gonšalo Ramires o _Cortador_... O gordo
Ordonho entŃo, atirando o brado de--źPrestes, prestes! que Ú gente de
BayŃo!╗--descambava pelo escalŃo da muralha como um fardo que rola.
No emtanto Tructezindo Ramires, no empenho d'aprestar a sua mesnada e
abalar sobre Montemˇr, regera jß com o Adail a ordem da arrancada,
mandando que as buzinas soassem mal o sol batesse na margella do Pošo
grande. E agora, na sala alta da Alcašova, conversava com o seu primo de
Riba-Cavado e costumado camarada d'armas, D. Garcia Viegas--ambos
sentados nos poiaes de pedra d'uma funda janella, onde uma bilha d'agoa
com o seu pucaro refrescava entre vasos de manjaricŃo. D. Garcia Viegas
era um velho esgalgado e agil, d'escuro carŃo rapado, com uns miudos
olhos coruscantes--que merecŕra a alcunha de _Sabedor_ pela viveza e
succulencia do seu dizer, as suas infinitas manhas de guerra, e a prenda
de fallar latim mais doutamente que um Clerigo da Curia. Convocado por
Tructezindo, como os outros parentes de solar, para engrossar a mesnada
dos Ramires em servišo das infantas, corrŕra logo a Santa Ireneia
fielmente com o seu pequeno poder de dez lanšas--comešando por saquear
no caminho a herdade de Palha-CŃ, dos de Severosa, que andavam com
pendŃo alto na Hoste Real contra as Donas opprimidas. TŃo rijamente se
apressßra que, desde a madrugada, apenas comŕra sobre a sella, em
Palha-CŃ, duas rodelas dos chourišos roubados. E com a sŕde da afogueada
correria, ainda na emošŃo de tŃo amarga nova, a derrota de Lourenšo
Ramires seu afilhado, novamente enchia d'agoa o pucaro de barro--quando
pela porta da sala de armas, que tres cabešas de javali dominavam,
rompeu o velho Ordonho esbaforido:
--Snr. Tructezindo! Snr. Tructezindo Ramires! o Bastardo de BayŃo passou
a Ribeira, vem sobre nˇs com grande trošo de lanšas!
O velho Rico-Homem saltou do poial. E arremessando a mŃo cabelluda,
cerrada com sanha, como se jß pela gorja empolgasse o Bastardo:
--Pelo Sangue de Christo! em boa hora vem que nos poupa caminho! Hein,
Garcia Viegas? A cavallo e sobre elle...?
Mas, rente aos tropegos calcanhares de Ordonho, correra um Coudel de
Besteiros, que gritou dos humbraes, saccudindo o capello de couro:
--Senhor! Senhor! A gente de BayŃo parou ao Cruzeiro! E um cavalleiro
mošo, com um ramo verde, estß deante das barbacans, como trazendo
mensagem...
Tructesindo bateu o sapato de ferro sobre as lages, indignado com tal
embaixada mandada por tal villŃo...--Mas Garcia Viegas, que d'um sorvo
enxugßra o pucaro, recordou serenamente e lealmente os preceitos:
--Tende, tende, primo e amigo! Que, por uso e lei d'aquem e d'alÚm
serras, sempre mensageiro com ramo se deve escutar...
--Seja pois! bradou Tructesindo. Ide vˇs fˇra ßs barreiras com duas
lanšas, Ordonho, e sabei do recado!
O Villico rebolou pela denegrida escada de caracol atÚ ao patim da
Alcašova. Dous accostados, de lanša ao hombro, recolhendo d'alguma
rolda, conversavam com o armeiro, que sarapintßra de amarello e
escarlate cabos d'ascumas novas e as enfileirava contra o muro para
seccarem.
--Por ordem do Senhor! gritou Ordonho. Lanša direita, e commigo ßs
barbacans, a receber mensagem!...
Ladeado pelos dous homens que se aprumaram, atravessou as barreiras; e
pelo postigo da barbacan, que uma quadrilha de besteiros guardava, sahiu
ao terreiro da Honra, largueza de terra calcada, sem relva ou arvore,
onde se erguiam ainda as traves carcomidas d'uma antiga forca, e se
amontoavam agora, para os concertos da Alcašova, ripas de madeira, e
grossas cantarias lavradas. Depois, sem arredar do humbral, empinando o
ventre entre os dous accostados, bradou ao mošo Cavalleiro, que esperava
sob o rijo sol, sacudindo os moscardos com o seu ramo d'amoreira:
--Dizei de que gente sois! e a que vindes! e que credencia trazeis!...
E como arqueßra logo a mŃo inquieta sobre a orelha--o Cavalleiro,
serenamente, entalando o ramo entre o coxote e o aršŃo, arqueou tambem
os dous guantes relusentes d'escamas na abertura do casco, bradou:
--Cavalleiro do solar de BayŃo!... Credencia nŃo trago que nŃo trago
embaixada... Mas o Snr. D. Lopo ficou alÚm ao Cruzeiro, e deseja que o
nobre senhor da Honra, o Snr. Tructezindo Ramires, o escute do eirado da
barbacan...
O Villico saudou--recolheu pela poterna abobadada da torre albarran,
murmurando para os dous accostados:
--O Bastardo vem a tratar o resgate do Snr. Lourenšo Ramires...
Ambos rosnaram:
--Feio feito.
Mas, quando Ordonho offegante se apressava para a Alcašova, encontrou no
pateo Tructezindo Ramires--que, na irada impaciencia d'aquellas delongas
do Bastardo, descera, todo armado. Sobre o comprido brial de lŃ
verde-negra, que recobria a vestidura de malha, as suas barbas
rebrilhavam, mais brancas, atadas n'um grosso nˇ como a cauda d'um
corcel. Do cinturŃo tauxeado de prata pendia a um lado o punhal recurvo,
a bozina de marfim--ao outro uma espada g˘da, de folha larga, com alto
punho dourado onde scintillava uma pedra rara trazida outr'ora da
Palestina por Gutierres Ramires, o _d'Ultramar_. Um sergente conduzia
sobre uma almofada de couro os seus guantes, o seu capello redondo, de
vizeira gradada, como usßra El-Rei D. Sancho: outro carregava o immenso
broquel, da fˇrma d'um corašŃo, revestido de couro escarlate, com o Aš˘r
negro rudemente pintado, esgalhando as garras furiosas. E o Alferes,
Affonso Gomes, seguia com o guiŃo enrolado na funda de lona.
Com o velho Rico-Homem descŕra D. Garcia Viegas, e os outros parentes do
Solar--o decrepito Ramiro Ramires, um veterano da tomada de Santarem,
torcido pelos rheumatismos como a raiz de um roble, e arrimando os
passos tremulos, nŃo a um bastŃo, mas a um chusso; o formoso Leonel, o
mais mošo dos Samoras de Cendufe, o que matßra os dois ursos nos brejos
de Cacham˙z e que tŃo bem trovava; Mendo de Briteiros, o das barbas
vermelhas, grande queimador de bruxas, lŕdo arranjador de folgares e
danšas; e o agigantado Senhor dos Pašos de Avellim, todo coberto, como
um peixe fabuloso, de escamas que reluziam. Como o sol se acercava da
margella do Pošo grande, marcando a hora da arrancada sobre
Monte-mˇr--jß, dos fundos alpendres que escondiam os campos do tavolado,
os cavallarišos puxavam os ginetes de guerra, com as suas altas sellas
pregueadas de prata, as ancas e os peitos resguardados por coberturas de
couro franjado que rojavam nas lagens. Por todo o Castello se espalhßra
que o Bastardo, depois da lide fatal aos Ramires, correra de
Canta-Pedra, ameašava a Honra:--e debrušados dos passadišos que ligavam
a muralha aos contrafortes da Alcašova, ou mettidos por entre os
engenhos d'arremesso que atulhavam as corredoiras, os mošos da ucharia,
os servos das hortas, os vill§es acolhidos para dentro das barbacans,
espreitavam o Senhor de Santa Ireneia e aquelles Cavalleiros fortes, com
anciedade, tremendo do assalto dos de BayŃo e d'essas horrendas bolas de
ferro, cheias de fogo, que agora as mesnadas ChristŃs arrojavam tŃo
destramente como as hordas Sarracenas.--No emtanto com a sua gorra
esmagada contra o peito, Ordonho, arfando, apresentava a Tructesindo o
recado do Bastardo:
--╔ cavalleiro mošo, nŃo traz credencia... O Snr. Bastardo espera ao
Cruzeiro... E pede que o attendaes da quadrella das barbacans...
--Que se acerque pois! gritou o velho. E com quantos queira dos vill§es
que o seguem!
Mas Garcia Viegas, o _Sabedor_, sempre avisado, com a sua esperta
mansidŃo:
--Tende, primo e amigo, tende! NŃo subaes vˇs ß tranqueira antes que eu
me assegure se BayŃo nos vem com arteirice ou falsura.
E entregando a sua pesada lanša de faia a um donzel, enfiou pela escada
soturna da Torre albarran. Em cima no eirado, sussurrando um _chuta!
chuta!_ ß fila de besteiros que guarnecia as ameias, attenta e com a
bÚsta encurvada--penetrou no miradouro, espiou pela setteira. O arauto
de BayŃo galopßra para o Cruzeiro, que uma selva movediša de lanšas
rodeava coriscando. E curto recado lanšou--porque logo, no seu fouveiro
acobertado por uma rŕde de malha acairellada d'ouro, Lopo de BayŃo
despegou do denso trošo de cavalleiros, com a viseira erguida, sem lanša
ou ascuma de monte, e ociosas sobre o aršŃo da sella mourisca as mŃos
onde se enrodilhavam as bridas de couro escarlate. Depois, a um toque
arrastado de buzina, avanšou para as barbacans da Honra, vagarosamente,
como se acompanhasse um sahimento. NŃo movera o seu pendŃo amarello e
negro. Apenas seis infanš§es o escoltavam, tambem sem lanša ou broquel,
com sobrevestes de panno r˘xo sobre os saios de malha. Atraz quatro
alentados besteiros carregavam aos hombros umas andas, toscamente
armadas com troncos de arvores, onde um homem jazia estirado, como
morto, coberto, contra o calor e os moscardos, por leves folhagens de
acacia. E um monge seguia n'uma mula branca, segurando misturadamente
com as rÚdeas um crucifixo de ferro, sobre que pendia a orla do seu
capuz e uma ponta de barba negra.
Da setteira, mesmo sem descortinar por entre a camada de ramagens a face
do homem estendido nas andas, o _Sabedor_ adivinhou Lourenšo Ramires, o
doce afilhado que tanto amßra, que tŃo bem ensinßra a teršar lanšas e a
treinar falc§es. E cerrando os punhos, gritando surdamente--źBem
prestos! bÚsteiros, bem prestos!╗--desceu a escura escadaria, tŃo
arremessado pela colera e pela magoa que o seu elmo cavamente bateu
contra o arco da porta, onde o esperava Tructesindo com os Cavalleiros
parentes.
--Senhor primo! bradou. Vosso filho Lourenšo estß deante das barreiras
da Honra deitado sobre umas andas!
Com um rosnar d'espanto, um atropelo dos sapatos de ferro sobre as lages
sonoras, todos seguiram pela poterna da albarran o Rico Homem--atÚ ao
escadŃo de madeira que se empurrava contra a quadrella das barbacans. E,
quando o enorme velho surdio no eirado, um silencio pesou, tŃo ancioso,
que se sentia para alÚm do vergel o chiar triste e lento da nora e o
latir dos mastins.
No terreiro, em frente ß cancella gateada, o Bastardo esperava, immovel
sobre o seu ginete, com a formosa face bem levantada, a face de
_Claro-sol_, onde as barbas anelladas, cahindo nas solhas do arnez,
rebrilhavam como ouro novo. Vergando o capello d'ouropel, saudou
Tructesindo com gravidade e preito. Depois alšou a mŃo, que descalšßra
do guante. E n'um considerado e sereno fallar:
--Senhor Tructesindo Ramires, n'estas andas vos trago vosso filho
Lourenšo, que em lide leal, no valle de Canta-Pedra, colhi prisioneiro e
me pertence pelo foro dos Ricos-Homens d'Hespanha. E de Canta-Pedra
caminhei com elle para vos pedir que entre nˇs findem estes homizios e
estas feias brigas que malbaratam sangue de bons ChristŃos... Senhor
Tructesindo Ramires, como vˇs venho de Reis. De D. Affonso de Portugal
recebi a pranchada de Cavalleiro. Toda a nobre raša de BayŃo se honra em
mim... Consenti em me dar a mŃo de vossa filha D. Violante, que eu quero
e que me quer, e mandae erguer a levadiša para que Lourenšo ferido entre
no seu solar e eu vos beije a mŃo de pae.
Das andas, que estremeceram sobre os hombros dos besteiros, um
desesperado brado partio:
--NŃo, meu pae!
E hirto na borda do eirado, sem descrusar os brašos, o velho Tructesindo
retomou o brado--que por todo o terreiro da Honra rolou, mais arrogante
e mais cavo:
--Meu filho, antes de mim, te respondeu, villŃo!
Como se uma pontoada de lanša lhe topasse o peito, o Bastardo vacillou
na alta sella: e, colhido pelo repuxŃo das rÚdeas, o seu fouveiro recuou
alteando a testeira dourada. Mas, a um novo arremesso, repulou contra a
cancella. E Lopo de BayŃo erguido sobre os estribos, gritava com ancia,
com furor:
--Snr. Tructesindo Ramires, nŃo me tenteis!...
--Arreda, villŃo e filho de vill˘a, arreda!--clamou soberbamente o
velho, sem desprender os brašos de sobre o levantado peito, na sua rija
immobilidade e teima, como se todo o corpo e alma fossem de rijo ferro.
EntŃo o Bastardo, arrojando o guante contra o muro da barbacan, rugio,
chammejante e rouco:
--Pois pelo sangue de Christo e pela alma de todos os meus te juro, que
se me nŃo dßs n'este instante essa mulher que eu quero e que me quer,
sem filho ficas, que por minhas mŃos, deante de ti e nem que todo o CÚo
accuda, lhe acabo o resto da vida!
Jß na mŃo lhe lampejava um punhal. Mas n'um impeto de sublime orgulho,
um impeto sobrehumano, em que cresceu como outra escura torre entre as
torres da Honra, Tructesindo arrancßra a espada:
--Com esta, covarde! com esta! Para que seja puro, nŃo vil como o teu, o
ferro que atravessar o corašŃo de meu filho!
Furiosamente, com as duas possantes mŃos, arremessou a espada, que
rodopiou silvando e faiscando, se cravou no duro chŃo, onde tremia,
ainda faiscava, como se uma colera heroica tambem a animasse. E no mesmo
relance, com um urro, um salto do ginete, o Bastardo, debrušado do
aršŃo, enterrßra o punhal na garganta de Lourenšo--em golpe tŃo cravado
que o esguicho do sangue lhe salpicou a clara face, as barbas d'ouro.
Depois foi uma bruta abalada. Os quatro besteiros sacudiram para o chŃo
as andas, o corpo morto enrodilhado nos ramos--e atiraram pelo terreiro,
como lebres em clareira, atraz do monge que se agachava agarrado ßs
crinas da mula. N'uma curta desfilada o Bastardo, os seis cavalleiros,
gritando o alarme, mergulharam no arraial que estacßra ao Cruzeiro. Um
tumulto remoinhou em torno ao devoto pilar. E em rodilhado tropel a
mesnada desenfreou para a Ribeira, varou a velha ponte, logo ennublada
em pˇ e sumida para alÚm do arvoredo, n'um fugidio coriscar de
capellinas e de lanšas apinhadas.
Uma alta grita, no emtanto, atroßra as muralhas de Santa Ireneia!
Virotes, flechas, balas de fundas assobiavam, despedidas no mesmo
furioso repente, sobre o bando de BayŃo:--mas apenas um dos besteiros
que carregßra as andas tombou, estrebuchando, com uma flecha na ilharga.
Pela cancella das barreiras jß Cavalleiros e donzeis d'armas se
empurravam desesperadamente para recolher o corpo de Lourenšo Ramires. E
Garcia Viegas, os outros parentes, galgaram ao eirado da barbacan,
d'onde Tructesindo se nŃo arredßra, rigido e mudo, fitando as andas e
seu filho estatelado com ellas sobre o terreiro da sua Honra. Quando, ao
rumor, elle pesadamente se voltou--todos emmudeceram ante a serenidade
da sua face, mais branca que as brancas barbas, d'uma morta brancura de
lapide, com os olhos resequidos e c˘r de braza, a latejar, a refulgir,
como os dous buracos d'um forno. Com a mesma sinistra serenidade, tocou
no hombro do velho Ramiro, que tremia arrimado ao seu chusso. E n'uma
vagarosa e vasta voz:
--Amigo! cuida tu do corpo de meu filho, que a alma ainda hoje, por
Deus! lh'a vou eu socegar!...
Afastou aquelles senhores emmudecidos d'assombro e d'emošŃo--e baixou
pela gasta escada de madeira, que rangia sob o peso do enorme Rico-Homem
carregado de ira e d˘r.
N'esse momento, entre besteiros e servišaes que se atropellavam--o corpo
de Lourenšo Ramires transpunha o portello das barbacans, segurado pelo
formoso Leonel e por Mendo de Briteiros, ambos affogueados de lagrimas e
rouquejando ameašas furiosas contra a raša de BayŃo. Atraz o tropego
Ordonho gemia, abrašado ß espada de Tructesindo, que apanhßra no chŃo do
Terreiro e que beijava como para a consolar. ┴ borda do fosso uma
aveleira espalhava a sombra leve n'um bronco taboŃo pregado sobre
toros--d'onde, aos domingos, com o adanel dos besteiros, Lourenšo
dirigia os jogos de bÚsta e frecha, distribuindo fartamente as
recompensas de bolos de mel e de vinho em picheis. Sobre essas taboas o
estiraram--recuando todos depois, em quanto aterradamente se benziam. Um
cavalleiro de Briteiros, temendo por aquella alma desamparada e sem
confissŃo, correra ß capella da Alcašova procurar Frei Muncio. Outros,
rodeando toda a muralha atÚ ao Baluarte-Velho, gritavam, com
desesperados acenos, para o torreŃo escalavrado, onde, como um m˘cho,
habitava o Physico. Mas o certeiro punhal do Bastardo acabßra o denodado
Lourenšo, flor e regra de cavalleiros por toda a terra de Riba-Cavado...
E que lastimoso e desfeito--com suja terra na face, a garganta empastada
de sangue negro, as malhas do saio rotas sobre os hombros e embebidas
nas carnes retalhadas, e nua, sem grŕva, toda inchada e r˘xa, a perna
ferida em Canta-Pedra, onde mais sangue e lama se empastavam!
Tructesindo descia, lento e rigido. E as seccas brazas dos seus olhos
mais se incendiam, em quanto, atravez do dorido silencio, se acercava do
corpo de seu filho. Deante do banco ajoelhou, agarrou a arrefecida mŃo
que pendia; e, junto ß face manchada de sangue e terra, segredou, de
alma para alma, n'um abafado murmurio, que nŃo era de despedida mas
d'alguma suprema promessa, e que findou n'um beijo demorado sobre a
testa, onde uma restea de sol rebrilhou, dardejada d'entre as folhas da
aveleira. Depois erguido n'um arrebate, atirando o brašo como para
n'elle recolher toda a forša da sua raša, gritou:
--E agora, senhores, a cavallo, e vinganša brava!
Jß pelos pßteos, em torno da Alcašova, corria um precipitado fragor
d'armas. Aos asperos commandos dos almocadens as filas de besteiros,
d'archeiros, de fundibularios, rolavam dos adarves dos muros para cerrar
as quadrilhas. Rapidamente, os cavallarišos da carga amarravam sobre o
dorso das mulas os caixotes do almazem, os alforges da trebalha. Pelas
portas baixas da cosinha, pe§es e sergentes, antes de largar, bebiam ß
pressa uma conca de cerveja. E no campo das barreiras os cavalleiros,
chapeados de ferro, carregadamente se išavam, com a ajuda dos donzeis,
para as altas sellas dos ginetes--logo ladeados pelos seus infanš§es e
acostados, que aprumavam a lanša sobre o coxote assobiando aos lebreus.
Emfim o Alferes, Affonso Gomes, saccou da funda e desfraldou o pendŃo
n'um embalanšo largo em que as azas do Ašor negrejaram, abertas, como
soltando o v˘o enfurecido. O grito agudo do Adail resoßra por toda a
cerca--_ala! ala!_ De cima de um marco de pedra, junto ao postigo do
barbacan, Frei Muncio estendia as magras mŃos ainda tremulas, abenšoava
a hoste. EntŃo Tructesindo, sobre o seu murzello, recebeu do velho
Ordonho a espada, de que tŃo terrivelmente se apartßra. E estendendo a
reluzente folha para as torres da sua Honra como para um altar, bradou:
--Muros de Santa Ireneia, nŃo vos torne eu a vŕr, se em tres dias, de
sol a sol, ainda restar sangue maldito nas veias do traidor de BayŃo!
E, escancaradas as barreiras, a cavalgada tropeou em torno ao pendŃo
solto,--em quanto, na torre d'Almenara, sob o parado explendor da sÚsta
d'Agosto, o sino grande comešava a tanger a finados.
* * * * *
Quando Gonšalo ß tarde, enterrado na poltrona ß varanda, releu este
Capitulo de sangue e furor sobre que se esfalfßra durante a semana,
pensou źque o lance impressionaria.╗
Sentiu entŃo o appetite de recolher sem demora os louvores merecidos--e
de mostrar a Gracinha e ao Padre Sueiro os tres Capitulos completos
antes de remetter o manuscripto para os *Annaes*. E mesmo lhe
convinha--porque a erudišŃo archeologica do Padre Sueiro forneceria
talvez algum trašo novo, bem Affonsino, que mais avivasse aquella
resurreišŃo da Honra de Santa-Ireneia e dos seus senhores formidaveis.
Immediatamente resolveu partir de manhŃ para Oliveira com o seu
trabalho--que, depois de esmiušado pelo Padre Sueiro, confiaria ao
procurador de D. Arminda Viegas para elle o copiar n'aquella sua formosa
lettra, tŃo celebrada em todo o Districto, e apenas egualada (nas
maiusculas) pela do EscrivŃo da Camara Ecclesiastica.
Sacudia jß da poeira uma antiga pasta de marroquim para transportar a
Obra amada--quando o Bento empurrou a porta, ajoujado com uma cesta de
vime que uma toalha de rendas cobria.
--Um presente.
--Um presente... De quem?
--Da _Feitosa_, das senhoras.
--Bravo!
--E com uma carta, que vem pregada na toalha.
Com que curiosidade Gonšalo despedašou o sobrescripto! Mas, apezar de
lacrado com um pomposo sello d'Armas, apenas continha linhas a lapis
n'um bilhete de visita da prima Maria Mendonša:--źHontem ao jantar
contei quanto o primo Gonšalo gosta de pŕcegos sobretudo aboborados em
vinho, e a Annica toma por isso a liberdade de lhe mandar esse cestinho
de pŕcegos da _Feitosa_, que como sabe sŃo fallados em todo o
Portugal... Mil saudades.╗--Gonšalo imaginou logo no fundo da cesta,
debaixo dos pŕcegos, docemente escondida, uma cartinha da D. Anna!
--Bem! SŃo pŕcegos... Deixa ahi sobre uma cadeira...
--Era melhor que os levasse jß para a copa, Snr. Dr., para os arrumar na
prateleira...
--Deixa sobre a cadeira!
Apenas o Bento cerrßra a porta, estendeu no chŃo a toalha, entornou
cuidadosamente por cima os pŕcegos formosos que perfumavam a livraria.
No fundo da cesta encontrou apenas folhas de parra. Levemente
desconsolado, cheirou um pŕcego. Depois considerou que os pŕcegos,
arranjados por ella, com parra que ella apanhßra na latada, sob toalha
que ella escolhera no armario, formavam na sua mudez cheirosa um
recadinho sentimental. Ainda agachado na esteira, comeu o pŕcego:--e
recollocou os outros na cesta para os levar a Gracinha.
Mas, ao outro dia, ßs duas horas, jß com a parelha do Torto engatada ß
caleche, jß com as luvas calšadas para a jornada d'Oliveira, recebeu uma
inesperada visita--a visita do Snr. Visconde de Rio-Manso. Descalšando
as luvas o Fidalgo pensava:--źO Rio-Manso! Que me quererß esse
casmurro?╗--Na sala, pousado ß beira do canapÚ de velludo verde e
esfregando os joelhos, o Visconde contou que de volta de Villa Clara e
deante do portŃo da Torre vencera o seu teimoso acanhamento para
apresentar os seus respeitos ao Snr. Gonšalo Ramires. E nŃo sˇ para esse
gostoso dever--mas tambem (como soubera que S. Ex.^a se propunha
Deputado pelo Circulo) para lhe offerecer na freguezia de Canta-Pedra o
seu prestimo e os seus votos...
Gonšalo, risonho e pasmado, saudava, torcia embarašadamente o bigode. E
o Visconde de Rio-Manso nŃo estranhava aquelle pasmo por que de certo o
Snr. Gonšalo Ramires o conhecŕra sempre como ferrenho Regenerador... Mas
entŃo! Elle pertencia ß gerašŃo, agora bem rareada, que antepunha aos
deveres da Politica os deveres da gratidŃo:--e alÚm da sympathia que lhe
merecia o Snr. Gonšalo Ramires (pelo que constava em todo o Districto do
seu talento, da sua affabilidade, da sua caridade) tambem conservava
para com S. Ex.^a uma divida de gratidŃo, ainda aberta, nŃo por
indifferenša, mas por timidez...
--V. Ex.^a nŃo adivinha, Snr. Gonšalo Mendes Ramires?... NŃo se lembra?
--NŃo, realmente, Snr. Visconde, nŃo me...
Pois uma tarde o Snr. Gonšalo Mendes Ramires passava a cavallo pela
quinta da _Varandinha_, quando a sua neta, brincando no terrašo (aquelle
terrašo gradeado d'onde se curva uma magnolia), deixou escapar uma pÚla
para a estrada. O Snr. Gonšalo Mendes Ramires, rindo, apeou
immediatamente, apanhou a pÚla, e, para a restituir ß menina debrušada
da grade, abeirou a egoa do muro depois de montar--e com que ligeiresa e
garbo!...
--V. Ex.^a nŃo se lembrava?
--Sim, sim, agora...
Pois no ladrilho do terrašo, rente da grade, pousava um jarro cheio de
cravos. O Snr. Gonšalo Mendes, depois de gracejar com a menina (que,
louvado Deus, nŃo era acanhada!) pediu um cravo, que ella escolheu--e
que lhe deu, toda sÚria, como uma senhora. E elle, que observßra da
janella do seu quarto, pensava:--źOra ahi estß! Este Fidalgo da Torre,
um tŃo grande Fidalgo, que amavel!╗--Oh S. Ex.^a nŃo tinha que rir e
corar... A gentileza f˘ra grande--e a elle, av˘, parecŕra immensa! Mas
nŃo ficßra sˇmente na pÚla apanhada...
--O Snr. Gonšalo Mendes Ramires nŃo se recorda?...
--Sim, Snr. Visconde, com effeito, agora...
Pois, logo no outro dia, o Snr. Gonšalo Mendes Ramires mandßra da Torre
um precioso cesto de rosas, com o seu bilhete, e n'uma linha este
gracejo:--źEm agradecimento d'um cravo, rosas ß Snr.^a D. Rosa.╗
Gonšalo quasi pulou na cadeira, divertido:
--Sim, sim, Snr. Visconde, perfeitamente!.. Agora me recordo!
Pois desde essa tarde elle sempre almejßra por uma opportunidade de
mostrar ao Snr. Gonšalo Mendes Ramires o seu reconhecimento, a sua
sympathia. Mas que! era timido, vivia muito retirado... N'essa manhŃ
porÚm, em Villa Clara, soubera pelo Gouveia que S. Ex.^a se apresentava
deputado pelo Circulo. Apezar de ser eleišŃo tŃo segura, jß pela
influencia do Snr. Ramires, jß pela influencia do Governo, logo
pensßra--źBem, ahi estß a occasiŃo!╗ E, agora offerecia a S. Ex.^a, na
freguezia de Canta-Pedra, o seu prestimo e os seus votos.
Gonšalo murmurou, enternecido:
--Realmente, Snr. Visconde, nada me podia sensibilisar mais do que uma
offerta tŃo espontanea, tŃo...
--Sou eu que me sensibiliso por V. Ex.^a acceitar. E agora nŃo fallemos
mais n'esse meu pobre prestimo e n'esses meus pobres votos... Pois V.
Ex.^a tem aqui uma veneravel vivenda.
E como o Visconde alludia ao desejo, jß n'elle antigo, de admirar de
perto a famosa torre, mais velha que Portugal--ambos desceram ao pomar.
O Visconde, com o guarda-sol ao hombro, pasmou em silencio para a torre;
reconheceu (apezar de liberal) o prestigio que resulta d'uma tŃo alta
linhagem como a dos Ramires; e gabou sinceramente o laranjal. Depois,
sabendo que o Pereira da Riosa arrendßra a quinta, invejou ao Snr.
Ramires tŃo cuidadoso e honrado rendeiro...--Deante do portŃo, o
_char-Ó-bancs_ do Visconde esperava, atrelado de duas mulas lustrosas e
nedias. Gonšalo admirou as mulas. E, abrindo a portinhola, supplicou ao
Snr. Visconde que beijasse por elle a mŃosinha da Snr.^a D. Rosa.
Commovido, o Visconde confessou uma ousadia, uma esperanša--e era que S.
Ex.^a um dia, ß sua escolha, parasse em Canta-Pedra, jantasse na quinta,
para conhecer mais intimamente a menina da pÚla e do cravo...
--Mas com immensa honra!... E desde jß me proponho a ensinar ß Snr.^a D.
Rosa, se ella o nŃo sabe, o jogo da pÚla ß antiga portugueza.
O Snr. Visconde saudou, banhado de gosto e riso, com a mŃo sobre o
corašŃo.
Gonšalo, trepando as escadas, murmurava:--źOh senhores, que sympathico
homem! E que generoso homem, que paga rosas com votos! Ora vejam como ßs
vezes, por uma pequenina attenšŃo, se ganha um amigo! Com certeza, para
a semana vou a Canta-Pedra jantar!... Homem encantador!╗
E foi n'um ditoso estado d'alma que accommodou na caleche a pasta de
marroquim com o manuscripto, o cesto sentimental dos pŕcegos da D.
Anna--e accendeu um charuto, e saltou ß almofada, e tomou as redeas para
lanšar, n'um trote alegre atÚ Oliveira, a parelha branca do Russo.
No largo d'El-Rey, antes d'apear, perguntou logo ao Joaquim da Porta
noticias dos senhores. Os senhores todos muito bem, grašas a Deus... O
Snr. JosÚ Barr˘lo partira de manhŃ a cavallo para a quinta do Snr. BarŃo
das Marges, sˇ recolhia ß noite...
--E o Snr. Padre Sueiro?
--O Snr. Padre Sueiro, creio que estß para casa da Snr.^a D. Arminda...
--E a Snr.^a D. Graša?
--A Snr.^a D. Graša desceu ha um bocadinho grande para o Mirante, de
chapeu... Naturalmente ia ß Egreja das Monicas.
--Bem. Leva esse cesto de pŕcegos e dize ao Joaquim da Copa que o ponha
na mesa, assim mesmo no cesto, com as folhas... E que me subam ao quarto
agoa quente.
O relogio de parede, na sala de espera, gemia preguišosamente as cinco
horas. O palacete repousava n'um claro silencio. E depois da poeira e
dos solavancos da estrada, pareceu mais doce a Gonšalo a frescura do seu
quarto com as quatro janellas abertas sobre o jardim regado e sobre a
cerca das Monicas. Cuidadosamente, guardou logo n'uma gaveta da commoda
a pasta preciosa de marroquim. Uma creada de olhos repolhudos entrßra
com o jarrŃo d'agua quente:--e o Fidalgo, como sempre, chasqueou a moša
sobre os lindos sargentos de Cavallaria, cujo quartel tentador dominava
o lavadouro da quinta, e retinha as raparigas da casa ensaboando todo o
dia com paixŃo. Depois ainda se demorou, mudando o fato empoeirado,
assobiando vagamente, encostado ß varanda sobre a callada rua das
Tecedeiras. O sino das Monicas lanšou um lindo repique... E Gonšalo,
enfastiado da sua solidŃo, decidiu descer pelo terrašo do jardim, e
surprehender Gracinha nas suas devoš§es, na Egrejinha.
Em baixo, no corredor, crusou o Joaquim da Copa:
--EntŃo o Snr. Barr˘lo hoje nŃo janta?
--O Snr. Barr˘lo foi jantar com o Snr. BarŃo das Marges, na quinta...
SŃo os annos da menina. Naturalmente sˇ recolhe ß noite.
Gonšalo, no jardim, ainda tardou por entre os alegretes, compondo para o
casaco um ramo de fl˘res ligeiras. Depois rodeou a estufa, sorrindo da
porta com que o Barr˘lo a enriquecera, uma porta envidrašada, arqueada
em ferradura, com um monogramma de c˘res rutilantes: e metteu pela rua
que conduzia ao repuxo, coberta de silencio e penumbra pela rama
enlašada dos seus altos loureiros. Adiante, circumdado de bancos de
pedra, d'arvores de aroma e fl˘r, cantava dormentemente o fino repuxo
n'um tanque redondo, de borda larga, onde s'espašavam grossos vasos de
louša branca com o brazŃo ramalhudo dos Sßs. Certamente na vÚspera ou de
manhŃ se lavßra o tanque, por que na agoa muito transparente, sobre as
lages muito claras, nadavam com redobrada vivacidade, em lampejos
rosados, os peixes que Gonšalo assustou mergulhando e agitando a
bengala. E d'aquella borda do tanque jß elle avistava ao fundo de outra
rua, debruada de dhalias abertas, o Mirante--uma construcšŃo do seculo
XVIII, simulando um Templosinho grego, c˘r de rosa desbotada, com um
gordo Cupido sobre a cupula, e janellinhas de rocalha entre o meio
relevo das columnas canelladas por onde trepavam jasmineiros.
Gonšalo arrancou, como costumava, folhas d'um ramo de lucia-lima, para
esmagar e perfumar as mŃos: e continuou para o Mirante, vagarosamente,
por entre as dhalias apinhadas. Na allea, novamente ensaibrada, os
sapatos finos de verniz que calšßra pousavam sem rumor no saibro molle.
E assim, n'um silencio de sombra indolente, se acercou do Mirante--e
d'uma das janellinhas que, mal cerrada, conservava corrida por dentro a
persiana de taboinhas verdes. Rente d'essa janella era a escada de
pedra, que, do elevado e comprido terrašo sobre que se estendia o
jardim, communicava com a encovada rua das Tecedeiras, quasi em frente ß
Capella das Monicas. E Gonšalo, sem pressa, descia--quando, atravez da
persiana rala, sentiu dentro do Mirante um susurro, um cochichar
perturbado. Sorrindo, pensou que alguma das creadas da casa se refugißra
n'esse Templosinho de Amor com um dos sargentos terriveis de
Cavallaria... Mas, nŃo! impossivel! Pois se, momentos antes, Gracinha
rošßra aquella janella e pisßra aquella escada, no seu caminho para as
Monicas! E entŃo outra idÚa o varou como uma espada--e tŃo dolorosa que
recuou com terror da beira do Mirante d'onde ella perversamente o
assaltßra. Jß porÚm uma desesperada curiosidade a agarrßra, o
empurrava--e collou a face ß persiana com a cautella d'um espiŃo. O
Mirante recahira em silencio--Gonšalo temia que o trahissem as pancadas
do seu corašŃo... Santo Deus! De novo o murmurio recomešßra, mais
apressado, mais turbado. Alguem supplicava, balbuciava:--źNŃo, nŃo, que
loucura!╗--Alguem urgia, impaciente e ardente:--źSim, meu amor! sim, meu
amor!╗ E a ambos os reconheceu--tŃo claramente como se a persiana se
erguesse e por ella entrasse toda a vasta claridade do jardim. Era
Gracinha! Era o Cavalleiro!
Colhido por uma immensa vergonha, no atarantado pavor de que o
surprehendessem junto do Mirante e da torpeza escondida--enfiou pela rua
das dhalias, encolhido, com os sapatos leves no saibro molle, costeou o
repuxo por sob a ramaria dos arbustos, remergulhou na escuridŃo dos
loureiros, deslisou surrateiramente por traz da estufa--penetrou no
socego do Palacete. Mas o murmurio do Mirante ainda o envolvia, mais
desfallecido, mais rendido--źNŃo, nŃo, que loucura!... Sim, sim, meu
amor!...╗
Abalou atravez das salas desertas como uma sombra acossada; escorregou
abafadamente pela escadaria de pedra, varou o portŃo n'uma carreira,
espreitando, com medo do Joaquim da Porta. No Largo parou, deante da
grade do relogio do sol. Mas o susuro do Mirante errava por todo o Largo
como um vento enroscado, raspando as lages, batendo as barbas dos Santos
sobre o portal da Egreja de S. Matheus, redemoinhando nos telhados
musgosos da Cordoaria...--źNŃo, nŃo, que loucura! Sim, sim! meu amor!╗
EntŃo Gonšalo sentiu a anciedade desesperada d'escapar para longe, para
immensamente longe do Largo, do Palacete, da cidade, de toda aquella
vergonha que o trespassava. Mas uma carruagem?... Pensou na alquilaria
do Maciel, a mais retirada, para alÚm das ultimas casas, na estrada do
Seminario. E cosido com os muros baixos d'essas ruas pobres, correu,
mandou engatar uma caleche fechada.
Emquanto esperava ß porta, n'um banco, passou pela estrada uma lenta
carroša com moveis, panellas de cosinha, um grande colxŃo onde se
alastrava uma nodoa. Bruscamente Gonšalo recordou o divan que guarnecia
o Mirante. Era enorme, de mogno, todo coberto de riscadinho, com mollas
lassas que rangiam. E de repente o murmurio recomešou, cresceu, rolando
com fragor de trovŃo por sobre os casebres visinhos, por sobre a cerca
do Seminario, por sobre Oliveira espantada:--źNŃo, nŃo, que loucura!
Sim, sim, meu amor!╗
Com um salto, Gonšalo gritou para dentro, para a cavallariša escura:
--EntŃo, que inferno! nŃo acaba, essa carroagem?
--Jß a largar, meu Fidalgo.
No relogio da Piedade sete horas batiam--quando elle se atirou para a
caleche, e fechou as _stores_ pŕrras, e se enterrou no fundo, bem
sumido, esmagado, com a sensašŃo que o Mundo tremera, e as mais fortes
almas se abatiam, e a sua Torre, velha como o Reino, rachava, mostrando
dentro um montŃo ignorado de lixo e de saias sujas.
IX
┴ porta da cosinha, saccudindo um sobrescripto jß amarrotado, Gonšalo
ralhava com a Rosa cosinheira:
--Oh Rosa! pois tanto lhe recommendei que nŃo escrevesse ß mana
Graša?... Que teimosa! EntŃo nŃo arranjavamos a pequena, sem essas
lamurias para Oliveira? Grašas a Deus, a Torre Ú larga bastante para
mais uma creancinha!
╔ que morrera a Crispola--a desgrašada viuva, visinha da Torre, que com
um rancho miudo de dous pequenos, tres raparigas, definhava no catre
desde a Paschoa. E agora Gonšalo, que mantivera o casebre em fartura,
andava accommodando as pobres creanšas--jß por cuidado d'elle muito
aceadamente vestidas de luto. A rapariga mais velha (tambem Crispola),
sempre encafuada na cosinha da Torre, passava regularmente a źajudanta
da Rosa╗, com soldada. Um dos rapazes, de doze annos, espigado e
esperto, tambem Gonšalo o empregava na Torre como andarilho, para os
recados, com fardeta de bot§es amarellos. O outro, molle e ranhoso, mas
com o geito e o amor de carpinteirar, jß Gonšalo, sob o patrocinio da
tia Louredo, o collocßra em Lisboa, na Officina de S. JosÚ. D'uma das
outras raparigas se encarregava a mŃe de Manoel Duarte, amoravel senhora
que habitava uma quinta formosa junto a Treixedo, e adorava Gonšalo de
quem se considerava ź_vassalla_╗. Mas para a mais novinha e a mais
fraquinha nŃo se arranjava amparo solido. A Rosa lembrßra entŃo--źque
certamente a Snr.^a D. Maria da Graša recolheria a creaturinha...╗
Gonšalo rosnßra com seccura:--źOh! por uma c˘dea mais de pŃo nŃo se
necessita encommodar a _cidade d'Oliveira_!╗ Rosa, porÚm, enlevada na
obra, desejando para pequerrucha tŃo franzina e loira o agasalho d'uma
senhora, escrevera a Gracinha, pela esmerada lettra do Bento, uma
verbosa carta com o pedido, e toda a historia lamentosa da Crispola, e
louvores devotos ß caridade do Snr. Doutor. E era a resposta de
Gracinha, demorada mas enternecida, com a recommendašŃo źde lhe mandarem
logo a pobre creanša╗--que impacientava o Fidalgo.
Por que, desde a tarde abominavel do Mirante, estranhamente se apoderßra
d'elle uma repugnancia quasi pudica em communicar com os Cunhaes! Era
como se esse Mirante e a torpeza abrigada dentro das suas paredes c˘r de
rosa empestassem o jardim, o palacete, o Largo d'El-Rei, toda a cidade
d'Oliveira, e elle agora, por aceio moral, recuasse ante essa regiŃo
empestada onde o seu corašŃo e o seu orgulho suffocavam... Logo depois
da sua fuga recebera do bom Barr˘lo uma carta espantada:--źQue tŕlha foi
essa? Porque nŃo esperaste? Eu, quando voltei ß noite da quinta do
Marges, atÚ fiquei com cuidado. E nŃo imaginas como a Gracinha anda
nervosa! Soubemos da partida, por acaso, por um cocheiro do Maciel. Jß
hoje comemos os pŕcegos, mas nŃo comprehendemos!...╗--Gonšalo respondeu
seccamente n'um bilhete:--źNegocios╗. Depois recordou que deixßra na
gaveta do seu quarto o manuscripto da Novella: e mandou um mošo da
quinta, de madrugada, com um recado quasi secreto ao Padre Sueiro, źpara
que entregasse a pasta ao portador, bem embrulhada, sem contar aos
senhores...╗ Entre a Torre e os Cunhaes sˇ desejava separašŃo e
silencio.
E nos encerrados dias que passou na Torre (sem se arriscar a
Villa-Clara, no terror de que a vergonha do seu nome jß andasse rosnada
pelo estanco do Sim§es ou pelo armazem do Ramos) nŃo cessou de vibrar
n'uma colera espalhada que a todos varava... Colera contra a irmŃ que,
calcando pudor, altivez de raša, receio dos escarneos d'Oliveira, tŃo
facil e estouvadamente como se calcam as fl˘res desbotadas d'um tapete,
correra ao Mirante, ao macho da bigodeira, apenas elle lhe acenßra com o
lenšo almiscarado! Colera contra o Barr˘lo, o bochechudo bac˘co, que
empregava os seus bac˘cos dias celebrando o Cavalleiro, arrastando o
Cavalleiro para o Largo d'El-Rei, escolhendo na adega os vinhos mais
finos para que o Cavalleiro aquecesse o sangue, ageitando as almofadas
de todos os camapÚs para que o Cavalleiro saboreasse estiradamente o seu
charuto e a graša presente de Gracinha! Emfim colera contra si, que,
pela baixa cubiša de uma cadeira em S. Bento, abatera a unica muralha
segura entre a irmŃ e o homem da marrafa lusente--que era a sua
inimizade, aquella escarpada inimizade, sempre, desde Coimbra, tŃo
rijamente reforšada e recaiada!... Ah! todos tres horrendamente
culpados!
Depois uma tarde, enfastiado da solidŃo, ousou um passeio por
Villa-Clara. E reconheceu que na Assembleia, no estanco do Sim§es, na
loja do Ramos, os amores de Gracinha eram certamente tŃo ignorados como
se passassem nas profundidades da Tartaria. Immediatamente a sua alma
doce, agora socegada, se abandonou ß došura de tecer desculpas subtis
para todos os culpados d'aquella queda triste... Gracinha, coitada, sem
filhos, com tŃo mollengo e ensosso marido, alheia a todos os interesses
da intelligencia, indolente mesmo para uma costura ou bordado--cedŕra,
que mulher nŃo cederia? ß credula e primitiva paixŃo que lhe brotßra na
alma, n'ella se enraizßra, lhe dÚra as suas unicas alegrias do mundo e
(influencia ainda mais poderosa!) lhe arrancßra as suas unicas lagrimas!
O Barr˘lo, coitado, era o Bac˘co--e como o źpilriteiro╗ da cantiga,
incapaz de mais nobres fructos, sˇ produzia os źpilritos╗ da sua
Bacoquice. E elle, coitado d'elle, pobre, ignorado, irresistivelmente se
rendera ß fatal Lei d'Accrescentamento, que o levßra, como a todos leva
na ancia de fama e fortuna, a furar precipitadamente pela porta casual
que se abre, sem reparar na estrumeira que atravanca os humbraes... Ah
realmente todos bem pouco culpados deante de Deus que nos creou tŃo
variaveis, tŃo frageis, tŃo dependentes de foršas por nˇs ainda menos
governadas do que o Vento ou do que o Sol!
NŃo, irremissivelmente culpado,--sˇ o outro, o malandro da grenha
ondeada! Esse, em toda a sua conducta com Gracinha, desde estudante,
mostrßra sempre um egoismo atrevido, sˇ punivel como puniam os antigos
Ramires, com a morte depois dos tormentos, e a carcassa posta aos
corvos. Em quanto lhe agradou, na ociosidade dos longos estios, um
namoro bocolico sob os arvoredos da Torre--namorßra. Quando considerou
que uma mulher e filhos lhe atravancariam a vida ligeira--trahira. Logo
que a antiga bem amada pertenceu a outro homem--recomešßra o cerco
languido para colher, sem os encargos da paternidade, as emoš§es do
sentimento. E apenas esse marido lhe entreabre a sua porta--nŃo se
demora, fende brutamente sobre a preza! Ah como o av˘ Tructesindo
trataria villŃo de tal villania! Certamente o assava n'uma rugidora
fogueira deante das barbacans--ou, nas masmoras da Alcašova, lhe entupia
as guellas falsas com bom chumbo derretido...
Pois elle, neto de Tructesindo, nem sequer podia, quando encontrasse o
Cavalleiro nas ruas d'Oliveira, carregar o chapeu sobre a testa e
passar! A menor diminuišŃo n'essa intimidade tŃo desastradamente
reatada--seria como a revelašŃo da torpeza ainda abafada nas paredes do
Mirante! Toda Oliveira cochicharia, riria.--źOlha o Fidalgo da Torre!
Mette o Cavalleiro nos Cunhaes com a irmŃ, e logo, passadas semanas,
rompe de novo com o Cavalleiro! Houve escandalo, e gordo!╗--Que delicia
para as Lousadas! NŃo, ao contrario! agora devia ostentar pelo
Cavalleiro uma fraternidade tŃo larga e tŃo ruidosa--que, pela sua
largueza e o seu ruido, inteiramente tapasse e abafasse o sujo enredo
que por traz latejava. Fingimento torturante--e imposto pela honra do
nome! O sujo enredo bem guardado entre os mais densos arvoredos do
jardim, na mais cerrada penumbra do Mirante!--e por fˇra, ao sol, nas
prašas d'Oliveira elle sempre com o brašo carinhosamente enlašado no
brašo do Cavalleiro!
Os dias rolavam--e no espirito de Gonšalo nŃo se estabelecia serenidade.
E sobretudo o amargurava sentir que era foršado a essa intimidade
vistosa com o Cavalleiro--tanto pelo cuidado do seu nome, como pela
conveniencia da sua EleišŃo. Toda a sua altivez por vezes se
revoltava:--źQue me importa a EleišŃo! Que valor tem uma encardida
cadeira em S. Bento?...╗ Mas logo a secca Realidade o emmudecia. A
EleišŃo era a unica fenda por onde elle lograria escapar do seu buraco
rural; e, se rompesse com o Cavalleiro, esse villŃo, vezeiro a
villanias, immediatamente, com o appoio da horda intrigante de Lisboa,
improvisaria outro Candidato por Villa-Clara... Desgrašadamente elle era
um d'esses seres vergados que _dependem_. E a triste dependencia d'onde
provinha? Da pobreza--d'essa escassa renda de duas quintas, abastanša
para um simples, mas pobreza para elle, com a sua educašŃo, os seus
gostos, os seus deveres de fidalguia, o seu espirito de sociabilidade.
E estes pensamentos lenta e capciosamente o empurraram a outro
pensamento--ß D. Anna Lucena, aos seus duzentos contos... AtÚ que uma
manhŃ encarou corajosamente uma possibilidade perturbadora:--casar com a
D. Anna!--Por que nŃo? Ella claramente lhe mostrßra inclinašŃo, quasi
consentimento... Por que nŃo casaria com a D. Anna?
Sim! o pae carniceiro, o irmŃo assassino... Mas tambem elle, entre
tantos avˇs atÚ aos Suevos ferozes, descortinaria algum av˘ carniceiro;
e a occupašŃo dos Ramires, atravez dos seculos heroicos, consistira
realmente em assassinar. De resto o carniceiro e o assassino, ambos
mortos, sombras remotas, pertenciam a uma Lenda que se apagava. D. Anna,
pelo casamento, subira da Populaša para a Burguesia. Elle nŃo a
encontrava no talho do pae, nem no velhacouto do irmŃo--mas na quinta da
_Feitosa_, jß Rica-Dona, com procurador, com capellŃo, com lacaios, como
uma antiga Ramires. Ah! sinceramente, toda a hesitašŃo era pueril--desde
que esses duzentos contos, de dinheiro muito limpo, de bom dinheiro
rural, os trazia com o seu corpo, mulher tŃo formosa e sÚria. Com esse
puro ouro, e o seu nome, e o seu talento, nŃo necessitaria para dominar
na Politica a refalsada mŃo do Cavalleiro... E depois que vida nobre e
completa! A sua velha Torre restituida ao esplendor sobrio d'outras
eras; uma lavoura de luxo no historico torrŃo de Treixedo; as viagens
fecundas ßs terras que educam!... E a mulher que fornecia estes regalos
nŃo lhes amargava o goso, como em tantos casamentos ricos, com a sua
fealdade, os seus agudos ossos, ou a sua pelle relentada... NŃo! Depois
do brilho social do dia nŃo o esperava na alcova um mostrengo--mas
Venus.
E assim, lentamente trabalhado por estas tentaš§es, mandou uma tarde um
bilhete ß prima Maria, ß _Feitosa_, pedindo--źpara se encontrarem, sˇs,
n'algum passeio dos arredores, por que desejava ter com ella uma
_conversasinha_ sÚria e intima...╗ Mas tres immensos dias se
arrastaram--e nŃo appareceu a almejada carta da _Feitosa_. Gonšalo
concluiu que a prima Maria, tŃo esperta, farejando a natureza da
_conversasinha_ e sem uma certeza para o alegrar, retardava, se
recusava. Atravessou entŃo uma desolada semana, remoendo a melancolia
d'uma vida que sentia ˘ca e toda feita d'incertezas. O orgulho, um pudor
complicado, nŃo lhe consentiam voltar a Oliveira, ao quarto d'onde
implacavelmente avistaria, por sobre o arvoredo, a cupula do Mirante com
o seu gordo Cupido:--e quasi o arrepiava a idÚa de beijar a irmŃ na face
que o outro babujßra! Sobre a EleišŃo descera um silencio de abobada--e
outra repugnancia, mais acerba, lhe vedava escrever ao Cavalleiro. JoŃo
Gouveia gozava as suas fÚrias na Costa, de sapatos brancos, apanhando
conchinhas na praia. E Villa-Clara nŃo se tolerava n'esse meado ardente
de Septembro--com o Titˇ no Alemtejo onde o levßra uma doenša do velho
Morgado de Cidadelhe, o Manoel Duarte na quinta da mŃe dirigindo as
vindimas, e a Assembleia deserta e adormecida sob o innumeravel susurro
das moscas...
* * * * *
Para se occupar e atulhar as horas, mais que por dever ou gosto d'Arte,
retomou a sua Novella. Mas sem fervor, sem veia agil. Agora era a
sanhuda arrancada de Tructesindo e dos seus cavalleiros, correndo sobre
o Bastardo de BayŃo. Lance difficultoso--reclamando fragor, um
rebrilhante colorido Medieval. E elle tŃo molle e tŃo apagado!...
Felizmente, no seu Poemeto, o Tio Duarte recheßra esse violento trecho
de bem apinceladas paisagens, d'interessantes rasgos de guerra.
Logo na Ribeira do Coice, Tructesindo encontrava cortada a machado a
decrepita ponte, cujos rotos barrotes e tabo§es carcomidos entulhavam no
fundo a corrente escassa. Na sua fuga o Bastardo acautelladamente a
desmantelßra para deter a cavalgada vingadora. EntŃo a pesada hoste de
Santa Ireneia avanšou pela esguia ourela, ladeando os renques de choupos
em demanda do vau do Espigal... Mas que tardanša! Quando as derradeiras
mulas de carga choutaram na terra d'alÚm-ribeira jß a tarde se adošava,
e nas pošas d'agua, entre as poldras, o brilho esmorecia, umas ainda
d'ouro pallido, outras apenas rosadas. Immediatamente Dom Garcia Viegas,
o _Sabedor_, aconselhou que a mesnada se dividisse:--a peonagem e a
carga avanšando para Montemor, esgueirada e callada, para esquivar
recontros; os senhores de lanša e os besteiros de cavallo arrancando em
dura carreira para colher o Bastardo. Todos louvaram o ardil do
_Sabedor_: e a cavalgada, aligeirada das filas tardas de archeiros e
fundibularios, largou, soltas as rÚdeas, atravez de terras ermas, depois
por entre barrocaes, atÚ aos _Tres-Caminhos_, desolada chan onde se
ergue solitariamente aquelle carvalho velhissimo que outr'ora, antes
d'exorcisado por S. Froalengo, abrigava no sabbado mais negro de
Janeiro, ao clarŃo d'archotes enxofrados, a Grande Ronda de todas as
bruchas de Portugal. Junto do carvalho Tructesindo sopeou a arrancada:
e, alšado nos estribos, farejava as tres sendas que se trifurcam e se
encovam entre asperos, lobregos cerros de bravio e de tojo. Passßra ahi
o Bastardo malvado?... Ah! por certo passßra e toda a sua
maldade--porque no respaldo d'uma fraga, junto a tres cabras magras
retoušando o matto, jazia, com os brašos abertos, um pobre pastorinho
morto, varado por uma frecha! Para que o triste cabreiro nŃo soprasse
novas da gente de BayŃo--uma bruta setta lhe atravessßra o peito
escarnado de fome, mal coberto de trapos. Mas por qual das sendas se
embrenhßra o malvado? Na terra solta, raspada pelo vento suŃo que rolava
d'entre-montes, nŃo appareciam pegadas revoltas de tropel fugindo. E, em
tal solidŃo, nem choša ou palhoša d'onde villŃo ou velha alapada
espreitassem a levada do bando... EntŃo, ao mando do Alferes Affonso
Gomes, tres almogavres despediram pelos tres caminhos ß descoberta--em
quanto os Cavalleiros, sem desmontar, desafivelavam os morri§es para
limpar nas faces barbudas o suor que os alagava, ou abeiravam os ginetes
d'um sumido fio d'agua que ß orla da chan se arrastava entre ralo
canišal. Tructesindo nŃo se arredou de sob a ramada do carvalho de S.
Froalengo, immovel sobre o murzello immovel, todo cerrado no ferro da
sua negra armadura, as mŃos juntas sobre a sella e o elmo pesadamente
inclinado como em magua e orašŃo. E ao lado, com as colleiras errissadas
de prÚgos, as sangrentas linguas penduradas, arquejavam, estirados, os
seus dous mastins.
Jß no emtanto a espera se alongava, inquieta, enfadonha--quando o
almogavre que mettera pela senda de Nascente reappareceu n'um rolo de
poeira, atirando logo o alarde de longe, com a ascuma alta. A hora
escassa de carreira avistßra num cabešo uma hoste acampada, em arraial
seguro, rodeado d'estaca e valla!...
--Que pendŃo?
--As treze arruellas.
--Deus louvado! gritou Tructesindo, que estremeceu como acordando. ╔ D.
Pedro de Castro, _o CastellŃo_, que entrou com os Leonezes e vem pelas
senhoras Infantas!
Por esse caminho pois nŃo se atrevera o Bastardo!... Mas jß pela senda
de Poente recolhia outro almogavre contando que entre-cerros, n'um
pinhal, topßra um bando de bufarinheiros genovezes, retardados desde
alva, por que um d'elles esmorecera com mal de febres. E
entŃo?...--EntŃo, pela borda do pinheiral apenas passßra em todo o dia
(no jurar dos genovezes) uma companhia de tru§es voltando da feira de
Grajelos. Sˇ restava pois o trilho do meio, pedregoso e esbarrancado
como o leito enxuto d'uma torrente. E por elle, a um brado de
Tructesindo, tropeou a cavalgada. Mas jß o crepusculo tristissimo
descia--e sempre o caminho se estirava, agreste, soturno, infindavel,
entre os cerros de urze e rocha, sem uma cabana, um muro, uma sebe,
rasto de rez ou homem. Ao longe, mais ao longe, emfim, enchergaram a
campina arida, coberta de solidŃo e penumbra, dilatada na sua mudez atÚ
a um ceu remoto, onde jß se apagava uma derradeira tira de poente c˘r de
cobre e c˘r de sangue. EntŃo Tructesindo deteve a abalada, rente
d'espinheiros que se torciam nas lufadas mais rijas do suŃo:
--Por Deus, senhores, que corremos em pressa vŃ e sem esperanša!... Que
pensaes, Garcia Viegas?
Todo o bando se apinhßra: e uma fumarada subia dos ginetes arquejantes
sob as coberturas de malha. O _Sabedor_ estendeu o brašo:
--Senhores! O Bastardo, antes de nˇs, galgou d'escapada essa campina
alÚm, e metteu a Valle-Murtinho para pernoitar na Honra de Agredel, que
Ú bem afortalezada e parenta de BayŃo...
--E nˇs, pois, D. Garcia?
--Nˇs, senhores e amigos, sˇ nos resta tambem pernoitar. Voltemos aos
_Tres-Caminhos_. E de lß, em boa avenša, ao arraial do Snr. D. Pedro de
Castro, a pedir agasalho... A par de tamanho senhor encontraremos mais
fartamente que nos nossos alforges o que todos, christŃos e brutos,
vamos necessitando, cevada, um naco de vianda, e de vinhos tres golpes
rijos...
Todos bradaram com alvorošo:--źBem trašado! bem trašado!...╗--E de novo,
pelo barranco pedregoso, a cavalgada trotou pezadamente para os
_Tres-Caminhos_--onde jß dous corvos se encarnišavam sobre o corpo do
pastorinho morto.
Em breve, ao cabo do caminho do Nascente, no cabešo alto, alvejaram as
tendas do arraial, ao clarŃo das fogueiras que por todo elle fumegavam.
O Adail de Santa Ireneia arrancou da bosina tres sons lentos annunciando
Filho-d'Algo. Logo de dentro da estacada outras businas soaram, claras e
acolhedoras. EntŃo o Adail galopou atÚ ao vallado, a annunciar ßs
atalaias postadas nas barreiras, entre luzentes fogos d'almenara, a
mesnada amiga dos Ramires. Tructesindo parßra no corrego escuro, que o
pinheiral cerrado mais escurecia movendo e gemendo no vento. Dous
cavalleiros, de sobreveste negra e capuz, logo correram pelo pendor do
outeiro--bradando que o Snr. D. Pedro de Castro esperava o nobre senhor
de Santa Ireneia e muito se prazia para todo seu regalo e servišo!
Silenciosamente Tructesindo desmontou; e com D. Garcia Viegas, e Leonel
de ăamora e Mendo de Briteiros e outros parentes de solar, todos sem
lanša ou broquel, descalšados os guantes, galgaram o cabešo atÚ ß
estacada, cujas cancellas se escancararam, mostrando na claridade
incerta dos fogareus sombrios magotes de pe§es--onde, por entre os
bassinetes de ferro, surdiam toucas amarellas de mancebas e gorros
enguisalhados de jograes. Apenas o velho assomou aos barrotes dous
infanš§es, sacudindo a espada, bradaram:
--Honra! honra! aos Ricos-Homens de Portugal!
As trompas misturavam o clangor rispido aos rufos lassos dos tambores. E
por entre a turba, que calladamente recußra em alas lentas, avanšou,
precedido por quatro cavalleiros que erguiam archotes accesos, o velho
D. Pedro de Castro, _o CastellŃo_, o homem das longas guerras e dos
vastos senhorios. Um corselete d'anta com lavores de prata cinjia o seu
peito jß curvado, como consumido por tamanhas fadigas de pelejar e
tamanhas cubišas de reinar. Sem elmo, sem armas, appoiava a mŃo
cabelluda de rijas veias a um bastŃo de marfim. E os olhos encovados
faiscavam, com affavel curiosidade, na requeimada magreza da face, de
nariz mais recurvo que o bico d'um falcŃo, repuxada a um lado por um
fundo gilvaz que se sumia na barba crespa, aguda e quasi branca.
Deante do senhor de Santa Ireneia alargou vagarosamente os brašos. E com
um grave riso que mais lhe recurvou, sobre a barba espetada, o nariz de
rapina:
--Viva Deus! Grande Ú a noite que vos traz, primo e amigo! Que nŃo a
esperava eu de tanta honra, nem sequer de tanto gosto!...
* * * * *
Ao rematar este duro Capitulo, depois de tres manhŃs de trabalho,
Gonšalo arrojou a penna com um suspiro de cansašo. Ah! jß lhe entrava a
fartura d'essa interminavel Novella, desenrolada como um novello
solto--sem que elle lhe podesse encurtar os fios, tŃo cerradamente os
emmaranhßra no seu denso Poema o Tio Duarte que elle seguia gemendo! E
depois nem o consolava a certeza de construir obra forte. Esses
Tructesindos, esses Bastardos, esses Castros, esses _Sabedores_, eram
realmente var§es Affonsinos, de solida substancia historica?... Talvez
apenas oucos titeres, mal engonšados em erradas armaduras, povoando
inveridicos arraiaes e castellos, sem um gesto ou dizer que datassem das
velhas edades!
E ao outro dia nŃo reuniu em todo o seu ser coragem para retomar aquella
sofrega correria dos de Santa Ireneia sobre o bando escapadišo de BayŃo.
De resto jß remettera tres Capitulos da Novella--jß calmßra as ancias do
Castanheiro. Mas a ociosidade mais lhe pesou n'essa semana, arrastada
pelos canapÚs ou por entre os buxos do jardim, fumando e tristemente
sentindo que a Vida lhe fugia em fumo. Para o enervar accrescia um
aborrecimento de dinheiro--uma lettra de seiscentos mil rÚis, do
derradeiro anno de Coimbra, sempre reformada, sempre avolumada, e que
agora o emprestador, um certo Leite, d'Oliveira, reclamava com dureza. O
seu alfaiate de Lisboa tambem o importunava com uma conta pavorosa,
atulhando duas laudas. Mas sobretudo o desolava a solidŃo da Torre.
Todos os alegres amigos dispersos pela beira-mar ou nas quintas. A
EleišŃo encalhada como uma barca no lodo. A irmŃ de certo com o _outro_
no Mirante. AtÚ a prima Maria desattendendo ingratamente o seu timido
pedido d'uma źconversasinha.╗ E elle no seu quente casarŃo, sem energia,
immobilisado n'uma inercia crescente, como se cordas o travassem, cada
dia mais apertadas--e d'homem se volvesse em fardo.
Uma tarde no seu quarto, vagaroso e sombrio, sem mesmo parolar com o
Bento, acabava de se vestir para montar a cavallo, espairecer n'um
galope pelos caminhos de Valverde--quando o pequeno da Crispola (jß
estabelecido na Torre como pagem, de fardeta de bot§es amarellos) bateu
esbaforidamente ß porta.--Era uma senhora que parßra ao portŃo, dentro
d'uma carruagem, pedia ao Fidalgo para descer...
--NŃo disse o nome?
--NŃo, senhor. ╔ uma senhora magra, puxada a dous cavallos, com redes...
A prima Maria! Com que alvorošo correu, agarrando no cabide do corredor
um velho chapeu de palha! E em baixo foi como se contemplasse a Deusa da
Fortuna na sua roda ligeira.
--Oh prima Maria, que surpreza!... Que felicidade!
Debrušada da portinhola da carruagem (a caleche azul da _Feitosa_), D.
Maria Mendonša, com um chapeu novo enramalhetado de lilazes, desculpou
atrapalhadamente e rindo o seu silencio. Recebera a carta do primo muito
atrasada... Sempre o fatal carteiro, tropego e bebedo... Depois uns dias
muito atarefados em Oliveira com a Annica, que preparava para o inverno
a casa da rua das Vellas.
--E finalmente, como devia uma visita em Villa-Clara ß pobre Venancia
Rios, que tem estado doente, achei mais simples e mais completo parar na
Torre... E entŃo?
Gonšalo sorria, embarašado:
--EntŃo, nada de grave, mas... ╔ que desejava conversar comsigo... Por
que nŃo entra?
Abrira a portinhola. Ella preferia passear na estrada. E ambos
s'encaminharam para o velho banco de pedra que os alamos abrigavam em
frente ao portŃo da Torre. Gonšalo sacudiu com o lenšo a ponta do banco.
--Pois, prima Maria, eu desejava conversar... Mas Ú difficil, tŃo
difficil!... Talvez o melhor seja atacar a questŃo brutalmente.
--Ataque.
--EntŃo lß vae!... A prima acha que eu perco o meu tempo se me dedicar ß
sua amiga D. Anna?
Pousada de leve ß borda do banco, enrolando attentamente a seda preta do
guardasolinho, Maria Mendonša tardou, murmurou:
--NŃo, acho que o primo nŃo perde o seu tempo...
--Ah! acha?
Ella considerava Gonšalo, gozando a sua perturbašŃo e anciedade.
--Jesus, prima!... Diga alguma cousa mais!
--Mas que quer que lhe diga mais? Jß lhe declarei em Oliveira. Ainda sou
muito nova para andar com recadinhos de sentimento. Mas acho que a
Annica Ú bonita, Ú rica, Ú viuva...
Gonšalo arrancou do banco, erguendo os brašos, em desolašŃo. E, como D.
Maria tambem se erguera, ambos seguiram pela tira de relva que orla os
alamos. Elle quasi gemia, desconsolado:
--Ora bonita, viuva, rica... Para conhecer esses grandes segredos nŃo a
incommodava eu, prima!... Que diabo! seja boa rapariga, seja franca! A
prima sabe, de certo jß ambas conversaram... Seja franca. Ella tem por
mim alguma sympathia?
D. Maria parou, murmurou, riscando com a ponta do guardasolinho o trilho
amarellado da relva:
--Pois estß claro que tem...
--Bravo! EntŃo, se d'aqui a um tempo, passados estes primeiros mezes de
luto, eu me declarasse, me...
Ella dardejou a Gonšalo os espertos olhos:
--Santo Deus, como o primo por ahi vae, a galope... EntŃo Ú uma paixŃo?
Gonšalo tirou o seu velho chapeu de palha, passou lentamente os dedos
pelos cabellos. E n'um immenso e triste desabafo:
--Olhe, prima! ╔ sobretudo a necessidade de me accommodar na vida! Pois
nŃo lhe parece?
--Tanto me parece que lhe indiquei o bom poizo... E agora adeus, passa
das cinco horas. NŃo me quero demorar por causa dos creados.
Gonšalo protestou, supplicou:
--Mais um bocadinho!... ╔ tŃo cedo! Sˇ outra cousa, com franqueza. Ella
Ú boa rapariga?
D. Maria voltßra, ao cabo do renque d'alamos, recolhendo ß caleche:
--Uma pontinha de genio, para animar a existencia. Mas muito boa
rapariga... E uma dona de casa admiravel! O primo nŃo imagina como anda
a _Feitosa_. A ordem, o acceio, a regularidade, a disciplina... Ella
olha por tudo, atÚ pela adega, atÚ pela cocheira!
Gonšalo esfregou radiantemente as mŃos:
--Pois se d'aqui a um anno se realisar o grande acontecimento hei de
gritar por toda a parte que foi a prima Maria que salvou a casa de
Ramires!
--Por isso eu trabalho, para servir o brazŃo e o nome! exclamou ella,
saltando ligeiramente para a caleche, como se fugisse, arremessada
aquella clara confissŃo.
O trintanario trepßra ß almofada. E em quanto os cavallos folgados
largavam, aos corcovos, D. Maria ainda gritou:
--Sabe quem encontrei em Villa Clara? O Titˇ!
--O Titˇ?...
--Chegou do Alemtejo, vem jantar comsigo. Eu nŃo o trouxe na carruagem
por decencia, para o nŃo comprometter...
E a caleche rolou--entre os risos e os doces acenos com que ambos se
afagavam, n'aquella nova concordancia mais calorosa d'uma conspirašŃo
sentimental.
Gonšalo largou logo alegremente para Villa-Clara, ao encontro do Titˇ. E
jß o alvorošava a idÚa de colher do Titˇ, intimo da _Feitosa_,
informaš§es sobre a D. Anna, o seu genio, os seus modos. A prima Maria,
por amor dos Ramires (sobretudo, coitada, para proveito dos Mendonšas!),
idealisava a noiva. Mas o Titˇ, o homem mais veridico do Reino, amando a
Verdade com a antiga devošŃo de Epaminondas, apresentaria D. Anna sem um
enfeite nem um desenfeite. E o Titˇ... Ah! sob o seu vozeirŃo troante, a
sua indolencia bovina, o Titˇ possuia um espirito muito attento, muito
penetrante.
Logo ß Portella os dous amigos s'encontraram. E, apesar de separašŃo tŃo
curta, o abrašo foi estrondoso.
--Oh s˘ GonšalŃo!...
--Oh Titˇsinho querido! tens feito cß uma falta enorme!... E teu irmŃo?
O mano melhor, mas arrasado. Muito cartapacio e muito fŕmea para velho
de sessenta annos. E elle lß o avisßra:--źMano JoŃo, mano JoŃo! olhe que
assim sempre agarrado aos papeis velhos e ßs cachopas novas, o mano
rebenta!╗
--E por cß? Essa eleišŃo?
--A eleišŃo agora para outubro, nos comešos d'outubro... De resto,
semsaboria universal. Gouveia na Costa, Manoel Duarte na vindima... Eu
seccadote, murchote, sem veia, atÚ sem appetite.
--Olha que eu venho jantar e convidei o Videirinha.
--Bem sei, jß me disse a prima Maria, que parou um bocado na Torre...
Ella estß na _Feitosa_ com a D. Anna.
Durante um momento repisou sobre a intimidade da prima Maria na
_Feitosa_, com a tentašŃo de desabafar, logo alli na estrada, sobre o
inesperado romance que desabrochßra. Mas nŃo ousou! Era um angustiado
acanhamento, como a vergonha de cubišar assim todos os restos do pobre
Lucena--o Circulo e a viuva.
EntŃo, conversando do Alemtejo e do mano JoŃo (que contßra muitas
antigualhas massadoras sobre a genealogia dos Ramires), desceram da
Portella ß Torre, com tenšŃo de estirar o passeio atÚ aos Bravaes. Mas,
na Torre, Gonšalo desejou avisar a Rosa dos dous convivas inesperados,
senhores de tŃo poderoso garfo. Entraram pela porta do pomar onde um fio
lento d'agoa s'atardava nos regueiros. Aos brados galhofeiros do Fidalgo
a Rosa accudio, limpando as mŃos ao avental. O que! dous convidados!
Mesmo quatro, e mais valentes, que grašas a Deus nosso Senhor o
jantarinho sobrava! Ainda de tarde comprßra a uma mulher da Costa um
cesto de sardinhas, graudas e gordas que regalavam!... O Titˇ reclamou
logo uma fritada tremenda de sardinha e ovos. E os dois amigos
atravessavam o pateo--quando Gonšalo reparou no Bento, escarranchado no
banco da latada, deante d'uma tigella, e areando com enthusiasmo um
castŃo de prata lavrada, que emergia de dentro d'uma toalha enrolada
como d'uma bainha.
--Que castŃo Ú esse, Bento? assim embrulhado?
O Bento lentamente saccou da toalha torcida um chicote, escuro e
comprido, com tres arestas afiadas como as d'um florete.
--Nem o Snr. Dr. sabia! Estava no sotŃo. Agora de tarde andava lß a
escarafunchar por causa d'uma ninhada de gatos, e detraz d'um bahu dou
com umas esporas de prateleira e com este arr˘cho...
Gonšalo estudou o macisso castŃo de prata, sacudio a fina vara que
zinia:
--Explendido chicote... Oh Titˇ, hein?... Afiado como um cutello. E
antigo, muito antigo, com as minhas armas... De que diabo Ú feito?
baleia?
--De cavallo-marinho... Uma arma terrivel. Mata um homem... O mano JoŃo
tem um, mas com castŃo de metal... Mata um homem!
--Bem, rematou Gonšalo. Limpa e p§e no meu quarto, Bento! Passa a ser o
meu chicote de guerra!
┴ porta do pomar ainda encontraram o Pereira da Riosa, de quinzena de
cutim deitada aos hombros. Em breve, no dia de S. Miguel, o Pereira
tomava emfim a lavra da Torre. E Gonšalo gracejou, mostrando ao Titˇ o
lavrador famoso. Eis o homem! eis o grande homem que se preparava a
tornar a Torre uma fallada maravilha de ceßra, vinha e horta! O Pereira
cošava a barba rala:
--E tambem a enterrar bom dinheiro! Emfim um gosto sempre valeu mais que
um vintem! E o Fidalgo, como patrŃo, merece terra em que os olhos se
esquešam de regalados!...
--Oh, Snr. Pereira! rebombou o Titˇ. EntŃo nŃo se esqueša de cuidar dos
mel§es. ╔ uma vergonha! Nunca na Torre se comeu um bom melŃo!
--Pois para o anno, assim Deus nos conserve, jß V. Ex.^a comerß na Torre
um bom melŃo!
Gonšalo abrašou ainda o esperto lavrador--e apressou para a estrada,
decidido a desenrolar toda a confidencia ao Titˇ, na solidŃo favoravel
do arvoredo dos Bravaes. Mas, apenas recomešaram a caminhada, o mesmo
enleio o travou--quasi temendo agora as informaš§es do Titˇ, homem tŃo
sevÚro, de Moral tŃo escarpada. E todo o demorado giro pelos Bravaes o
findaram sem que Gonšalo desafogasse. O crepusculo descera, molle e
quente, quando recolheram--conversando sobre a pesca do savel no
Guadiana.
Defronte do portŃo da Torre Videirinha esperava, dedilhando o violŃo na
penumbra dos alamos. Como a noite se conservava abafada, sem uma aragem,
jantaram na varanda, com dous candieiros accesos. Logo ao desdobrar o
guardanapo o Titˇ, vermelho e espraiado sobre a cadeira, declarou źque
grašas ao Senhor da Saude, a sede era boa!╗ Elle e Gonšalo praticaram as
usadas fašanhas de garfo e de copo. Quando o Bento servio o cafÚ uma
immensa e lustrosa lua nova surgia, ao fundo da quinta escura, por traz
dos outeiros de Valverde. Gonšalo, enterrado n'uma cadeira de vime,
accendeu o charuto com beatitude. Todos os tedios e incertezas d'essas
semanas se despegavam da sua alma como cinza apagada, brevemente
varrida. E foi sentindo menos a došura da noite, que um sabor melhor ß
vida desanuviada, que exclamou:
--Pois, senhores, agora, estß uma delicia!...
Videirinha, depois d'um curto cigarro, retomßra o violŃo. Atravez da
quinta, pedašos de muros caiados, algum trilho de rua mais descoberto, a
agua do Tanque-Grande, rebrilhavam ao luar que resvalava dos cerros; e a
quietašŃo do arvoredo, da claridade, da noite, penetravam n'alma com
adormecedora caricia. Titˇ e Gonšalo saboreavam o famoso cognac de
Moscatel, preciosa antigualha da Torre, silenciosamente enlevados no
Videirinha--que recußra para o fundo da varanda, se envolvera em sombra.
Nunca o bom cantador ferira as cordas com inspirašŃo mais enternecida.
AtÚ os campos, o ceu inclinado, a lua cheia sobre as collinas, escutavam
os queixumes do _fado_ da Ariosa. E no escuro, sob a varanda, o pigarro
da Rosa, os passos abafados dos creados, algum sumido riso de rapariga,
o bater das orelhas d'um perdigueiro--eram como a presenša d'um povo
suavemente attrahido pelo descante formoso.
Assim a noite se alongou, a lua subio com solitario fulgor. Titˇ, pesado
do brodio, adormecŕra. E como sempre, para findar, Videirinha atacou
ardentemente o _Fado dos Ramires_:
Quem te verß sem que estremeša,
Torre de Santa Ireneia,
Assim tŃo negra e callada
Por noites de lua cheia...
E lanšou entŃo uma quadra nova, que trabalhßra n'essa semana com amor
sobre uma erudita nota do bom Padre Sueiro. Era a gloria magnifica de
Paio Ramires, Mestre do Templo--a quem o Papa Innocencio, e a Rainha
Branca de Castella, e todos os Principes da Christandade supplicam que
se arme, e corra em dura pressa, e liberte S. Luiz Rei de Franša,
captivo nas terras de Egypto...
Que sˇ em Paio Ramires
P§e agora o mundo a esperanša...
Que junte os seus Cavalleiros
E que salve o Rei de Franša!
E por este av˘ e tal fašanha atÚ Gonšalo se interessou--acompanhando o
canto, n'um tremulo esganišado, de brašo erguido:
Ai, que junte os seus cavalleiros
E que salve o Rei de Franša!...
Ao rolar mais forte do c˘ro Titˇ descerrou as palpebras, arrancou do
canapÚ o corpansil immenso--e declarou que marchava para Villa Clara:
--Estou derreado! Sempre em jornada e sem dormir, desde hontem ßs quatro
da manhŃ que larguei de Cidadelhe... Caramba, dava agora, como aquelle
rei grego, um crusado por um burro!
EntŃo Gonšalo, animado pelo cognac, tambem se ergueu com uma resolušŃo
quasi alegre:
--Oh Titˇ, antes de sahires anda cß dentro que quero fallar comtigo a
respeito d'um caso!
Agarrßra um dos candieiros, penetrou na sala de jantar onde errava o
cheiro de magnolias morrendo n'um vaso. E ahi, sem preparašŃo, com os
olhos bem decididos, bem cravados no Titˇ--que o seguira arrastadamente,
ainda se espreguišava:
--Oh Titˇ, ouve lß e sŕ franco. Tu ias muito ß _Feitosa_... Que te
parece aquella D. Anna?
Titˇ, que despertßra como ao rebentar d'um morteiro, considerou Gonšalo
com assombro:
--Ora essa! Mas a que proposito?...
Gonšalo atalhou, na pressa de colher rapidamente uma certeza:
--Olha! Eu para ti nŃo tenho segredos. N'estas ultimas semanas houveram
ahi umas conversas, uns encontros... Emfim, para resumir, se d'aqui a
tempos eu pensasse em casar com a D. Anna, creio que ella, por seu lado,
nŃo recusava. Tu ias ß _Feitosa_. Tu sabes... Que tal rapariga Ú ella?
Titˇ crusßra os brašos violentamente:
--Pois tu vaes casar com a D. Anna?
--Homem, nŃo vou casar. NŃo sigo esta noite para a Egreja. Por ora quero
sˇ informaš§es... E de quem as posso ter, mais francas e mais seguras,
do que de ti, que Ús meu amigo e que a conheces?
Titˇ nŃo descrusßra os brašos--levantando para o Fidalgo da Torre a face
honesta e sevÚra:
--Pois tu pensas em casar com a D. Anna, tu, Gonšalo Mendes Ramires?...
Gonšalo atirou um gesto de impaciencia e fartura:
--Oh! se me vens com a fidalguia e com o Paio Ramires...
O Titˇ quasi berrou, na sua indignašŃo:
--Qual fidalguia! ╔ que um homem de bem, como tu, nŃo pensa em casar com
uma creatura como ella!... Fidalguia?... Sim! Mas fidalguia d'alma e de
corašŃo!
Gonšalo emmudeceu, trespassado. Depois, com uma serenidade a que se
foršßra, argumentou, deduzio:
--Bem! tu entŃo sabes outras cousas... Eu por mim sei que ella Ú bonita
e rica: sei tambem que Ú sÚria, por que nunca sobre ella se rosnou nem
aqui nem em Lisboa: sŃo qualidades para se casar com uma mulher... Tu
agora affianšas que se nŃo pode casar com ella. Portanto sabes outras
cousas... Dize.
Foi entŃo o Titˇ que emmudeceu, immovel deante do Fidalgo como se o lašo
d'uma corda o colhesse e o travasse. Por fim, soprando, com um esforšo
enorme:
--Tu nŃo me chamaste para eu dep˘r como testemunha... Em principio, sem
explicaš§es, perguntas se podes casar com essa mulher. E eu, sem
explicaš§es, em principio, declaro que nŃo... Que diabo queres mais?
Gonšalo exclamou, revoltado:
--Que quero? Pelo amor de Deus, Titˇ!... Supp§e tu que estou doidamente
apaixonado pela D. Anna, ou que tenho um interesse immenso em casar com
ella... Que nŃo estou, nem tenho: mas supp§e! N'esse caso nŃo se desvia
um amigo d'um acto em que elle estß tŃo fundamente empenhado, sem lhe
apresentar uma razŃo, uma prova...
Assim apertado Titˇ baixou a cabeša, que cošou com desespero. Depois
acobardadamente, para escapar, adiou a contenda:
--Olha, Gonšalo, eu estou muito estafado. Tu nŃo vaes a esta hora para a
Egreja: e ella menos, que o outro marido ainda nŃo arrefeceu na cova.
EntŃo ßmanhŃ conversamos.
Atirou duas passadas enormes, empurrou a porta da varanda, berrando pelo
Videirinha:
--SŃo que horas, Videira! Toca a abalar, que nŃo dormi desde Cidadelhe.
Videirinha, que preparava com esmero um grog frio, esvasiou
atabalhoadamente o copo, recolheu o violŃo precioso. E Gonšalo nŃo os
deteve, esfregando silenciosamente as mŃos, amuado com aquella recusa do
Titˇ tŃo desamiga e teimosa. Como sombras atravessaram uma sala onde
dormia, esquecida desde os Ramires do seculo XVIII, uma espineta de
charŃo. No patamar da escada que conduzia ß portinha verde, Gonšalo,
para os allumiar, erguera um castišal. Titˇ accendeu um cigarro ß vela.
A sua mŃo cabelluda tremia.
--EntŃo, entendido... Apparešo ßmanhŃ, Gonšalo.
--Quando quizeres, Titˇ.
E no secco assentimento do Fidalgo transparecia tanto despeito--que Titˇ
hesitou nos estreitos degraus que atulhava. Por fim desceu pesadamente.
Videirinha, jß na estrada, considerava o ceu, a luminosa serenidade:
--Que linda noite, snr. Doutor!
--Linda, Videirinha... E obrigado. Vossŕ hoje tocou divinamente!
Gonšalo entrßra na sala dos retratos, pousßra apenas o castišal--quando,
por baixo da varanda aberta, o vozeirŃo do Titˇ retumbou:
--Oh Gonšalo, desce cß abaixo.
O Fidalgo rolou pelos degraus com soffreguidŃo. Para alÚm dos alamos, no
luar da estrada, Videirinha afinava o violŃo. E apenas a face do Fidalgo
surdio na claridade da porta o Titˇ, que esperava com o chapÚo para a
nuca, desabafou:
--Oh Gonšalo, tu ficaste amuado... ╔ tolice! E entre nˇs nŃo quero
sombras. EntŃo lß vae! Tu nŃo podes casar com essa mulher por que ella
teve um amante. NŃo sei se antes ou depois d'esse teve outro. NŃo ha
creatura mais manhosa, nem mais disfaršada. NŃo me venhas agora com
perguntas. Mas fica certo que ella teve um amante. Sou eu que t'o
affirmo: e tu sabes que eu nunca minto!
Bruscamente metteu ß estrada, com os possantes hombros vergados. Gonšalo
nŃo se movera de sobre os degraus de pedra, deante dos mudos alamos,
como elle immoveis. Uma palavra passßra, irreparavel, no macio silencio
da noite e da lua--e eis o alto sonho que elle construira sobre a D.
Anna e a sua belleza e os seus duzentos contos despenhado no lodo!
Lentamente subio, repenetrou na sala. Por cima da chamma alta da vela,
n'um painel fusco, uma face acordßra, uma secca, amarellada face, de
altivos bigodes negros, que se inclinava, attenta como reparando. E
longe, Videirinha espalhava pelos campos adormecidos os ingenuos versos
celebrando a gloria tamanha da Casa illustre:
Que sˇ em Paio Ramires
P§e agora o mundo esperanša...
Que junte os seus cavalleiros
E que salve o Rei de Franša!...
X
AtÚ noite alta Gonšalo, passeando pelo quarto, remoeu a amarga certeza
de que sempre, atravez de toda a sua vida (quasi desde o collegio de S.
Fiel!), nŃo cessßra de padecer humilhaš§es. E todas lhe resultavam de
intentos muito simples, tŃo seguros para qualquer homem como o v˘o para
qualquer ave--sˇ para elle constantemente rematados por d˘r, vergonha ou
perda! ┴ entrada da vida escolhe com enthusiasmo um confidente, um
irmŃo, que traz para a quieta intimidade da Torre--e logo esse homem se
apodÚra ligeiramente do corašŃo de Gracinha e ultrajosamente a abandona!
Depois concebe o desejo tŃo corrente de penetrar na Vida Politica--e
logo o Acaso o fˇrša a que se renda e se acolha ß influencia d'esse
mesmo homem, agora Auctoridade poderosa, por elle durante todos esses
annos de despeito tŃo detestada e chasqueada! Depois abre ao amigo,
agora restabelecido na sua convivencia, a porta dos Cunhaes, confiado na
seriedade, no rigido orgulho da irmŃ--e logo a irmŃ s'abandona ao antigo
enganador, sem lucta, na primeira tarde em que se encontra com elle na
sombra favoravel d'um caramanchŃo! Agora pensa em casar com uma mulher
que lhe offerecia com uma grande belleza uma grande fortuna--e
immediatamente um companheiro de Villa-Clara passa e segreda:--źA mulher
que escolheste, Gonšalinho, Ú uma marafona cheia d'amantes!╗ De certo
essa mulher nŃo a amava com um amor nobre e forte! Mas decidira
accommodar nos formosos brašos d'ella, muito confortavelmente, a sua
sorte insegura--e eis que logo desaba, com esmagadora pontualidade, a
humilhašŃo costumada. Realmente o Destino malhava sobre elle com rancor
desmedido!
--E por quŕ? murmurava Gonšalo, despindo melancolicamente o casaco. Em
vida tŃo curta, tanta decepšŃo... Porquŕ? Pobre de mim!
Cahio no vasto leito como n'uma sepultura--enterrou a face no
travesseiro com um suspiro, um enternecido suspiro de piedade por
aquella sua sorte tŃo contrariada, tŃo sem soccorro. E recordava o
presumpšoso verso do Videirinha, ainda n'essa noite proclamado ao
violŃo:
Velha casa de Ramires
Honra e flor de Portugal!
Como a flor murchßra! Que mesquinha honra! E que contraste o do
derradeiro Gonšalo, encolhido no seu buraco de Santa Ireneia, com esses
grandes avˇs Ramires cantados pelo Videirinha--todos elles, se Historia
e Lenda nŃo mentiam, de vidas tŃo triumphaes e sonoras! NŃo! nem sequer
d'elles herdßra a qualidade por todos herdada atravez dos tempos--a
valentia facil. Seu pae ainda fora o bom Ramires destemido--que na
fallada desordem da romaria da Riosa avanšava com um guardasol contra
tres clavinas engatilhadas. Mas elle... Alli, no segredo do quarto
apagado, bem o podia livremente gemer--elle nascera com a _falha_, a
falha de peor desdouro, essa irremediavel fraqueza da carne que,
irremediavelmente, deante de um perigo, uma ameaša, uma sombra, o
foršava a recuar, a fugir... A fugir d'um Casco. A fugir d'um malandro
de suissas louras que, n'uma estrada e depois n'uma venda o insulta sem
motivo, para meramente ostentar pimponice e arreganho. Ah vergonhosa
carne, tŃo espantadiša!
E a Alma... N'essa calada treva do quarto bem o podia reconhecer tambem,
gemendo. A mesma fraqueza lhe tolhia a Alma! Era essa fraqueza que o
abandonava a qualquer influencia, logo por ella levado como folha secca
por qualquer sopro. Por que a prima Maria uma tarde adoša os espertos
olhos e lhe aconselha por traz do leque que se interesse pela D.
Anna--logo elle, fumegando d'esperanša, ergue sobre o dinheiro e a
belleza de D. Anna uma presumpšosa torre de ventura e luxo. E a EleišŃo?
essa desgrašada EleišŃo? Quem o empurrßra para a EleišŃo, e para a
reconciliašŃo indecente com o Cavalleiro, e para os desgostos d'ahi
manados? O Gouveia, sˇ com leves argucias, murmuradas por cima do
cache-nez desde a loja do Ramos atÚ ß esquina do Correio! Mas que! mesmo
dentro da sua Torre era governado pelo Bento, que superiormente lhe
impunha gostos, dietas, passeios, e opini§es e gravatas!--Homem de tal
natureza, por mais bem dotado na Intelligencia, Ú massa inerte a que o
Mundo constantemente imprime fˇrmas varias e contrarias. O JoŃo Gouveia
fizera d'elle um candidato servil. O Manuel Duarte poderia fazer d'elle
um beberrŃo immundo. O Bento facilmente o levaria a atar ao pescošo, em
vez d'uma gravata de seda, uma colleira de couro! Que miseria! E todavia
o Homem sˇ vale pela Vontade--sˇ no exercicio da Vontade reside o goso
da Vida. Por que se a Vontade bem exercida encontra em torno
submissŃo--entŃo Ú a delicia do dominio sereno: se encontra em torno
resistencia--entŃo Ú a delicia maior da lucta interessante. Sˇ nŃo sahe
goso forte e viril da inercia que se deixa arrastar mudamente, n'um
silencio e macieza de cera... Mas elle, elle, descendendo de tantos
var§es famosos pelo Querer--nŃo conservaria, escondida algures no seu
Ser, dormente e quente como uma braza sob cinza, uma parcella d'essa
energia hereditaria?... Talvez! nunca porÚm n'esse pŕco e encafuado
viver de Santa Ireneia a fagulha despertaria, resaltaria em chamma
intensa e util. NŃo! pobre d'elle! Mesmo nos movimentos da Alma onde
todo o homem realisa a liberdade pura--elle soffreria sempre a oppressŃo
da Sorte inimiga!
Com outro suspiro mais se enterrou, s'escondeu sob a roupa. NŃo
adormecia, a noite findava--jß o relogio de charŃo, no corredor, batera
cavamente as quatro horas. E entŃo, atravez das palpebras cerradas, no
confuso canšasso de tantas tristezas revolvidas, Gonšalo percebeu,
atravez da treva do quarto, destacando pallidamente da treva, faces
lentas que passavam...
Eram faces muito antigas, com desusadas barbas ancestraes, com
cicatrizes de ferozes ferros, umas ainda flammejando como no fragor de
uma batalha, outras sorrindo magestosamente como na pompa d'uma
gala--todas dilatadas pelo uso soberbo de mandar e vencer. E Gonšalo,
espreitando por sobre a borda do lenšol, reconhecia n'essas faces as
veridicas feiš§es de velhos Ramires, ou jß assim comtempladas em
denegridos retratos, ou por elle assim concebidas, como concebera as de
Tructesindo, em concordancia com a rijeza e explendor dos seus feitos.
Vagarosas, mais vivas, ellas cresciam d'entre a sombra que latejava
espessa e como povoada. E agora os corpos emergiam tambem, robustissimos
corpos cobertos de saios de malha ferrugenta, apertados por arnezes
d'ašo lampejante, embušados em fuscos mantos de revoltas prÚgas,
cingidos por faustosos gib§es de brocado onde scintillavam as pedrarias
de collares e cintos;--e armados todos, com as armas todas da Historia,
desde e clava g˘da de raiz de roble errissada de puas, atÚ ao espadim de
sarau enlašarotado de seda e ouro.
Sem temor, erguido sobre o travesseiro, Gonšalo nŃo duvidava da
realidade maravilhosa! Sim! eram os seus avˇs Ramires, os seus
formidaveis avˇs historicos, que, das suas tumbas dispersas corriam, se
juntavam na velha casa de Santa Ireneia nove vezes secular--e formavam
em torno do seu leito, do leito em que elle nascera, como a Assembleia
magestosa da sua raša resurgida. E atÚ mesmo reconhecia alguns dos mais
esforšados, que agora, com o repassar constante do Poemeto do tio Duarte
e o Videirinha gemendo fielmente o seu źfado╗, lhe andavam sempre na
imaginašŃo...
Aquelle alÚm, com o brial branco a que a cruz vermelha enchia o
peitoral, era certamente Gutierres Ramires o _d'Ultramar_, como quando
corria da sua tenda para a escalada de Jerusalem. No outro, tŃo velho e
formoso, que estendia o brašo, elle adivinhava Egas Ramires, negando
acolhida no seu puro solar a El-Rei D. Fernando e ß adultera Leonor!
Esse, de crespa barba ruiva, que cantava sacudindo o pendŃo real de
Castella, quem, senŃo Diogo Ramires, _o Trovador_, ainda na alegria da
radiosa manhŃ d'Aljubarrota? Deante da incerta claridade do espelho
tremiam as f˘fas plumas escarlates do morriŃo de Paio Ramires, que
s'armava para salvar S. Luiz Rei de Franša. Levemente balanšado, como
pelas ondas humildes d'um mar vencido, Ruy Ramires sorria ßs naus
inglezas que ante a pr˘a da sua Capitanea submissamente amainavam por
Portugal. E, encostado ao poste do leito, Paulo Ramires, pagem do GuiŃo
d'El-Rey nos campos fataes de Alcacer, sem elmo, rota a couraša,
inclinava para elle a sua face de donzel, com a došura grave d'um avˇ
enternecido...
EntŃo, por aquella ternura attenta do mais poetico dos Ramires, Gonšalo
sentio que a sua Ascendencia toda o amava--e da escuridŃo das tumbas
dispersas accudira para o velar e soccorrer na sua fraqueza. Com um
longo gemido, arrojando a roupa, desafogou, dolorosamente contou aos
seus avˇs resurgidos a arrenegada Sorte que o combatia e que sobre a sua
vida, sem descanšo, amontoava tristeza, vergonha e perda! E eis que
subitamente um ferro faiscou na treva, com um abafado brado:--źNeto,
doce neto, toma a minha lanša nunca partida!...╗ E logo o punho d'uma
clara espada lhe rošou o peito, com outra grave voz que o
animava:--źNeto, doce neto, toma espada pura que lidou em Ourique!...╗ E
depois uma acha de coriscante gume bateu no travesseiro, offertada com
altiva certeza:--źQue nŃo derribarß essa acha, que derribou as portas
d'Arzilla?...╗
Como sombras levadas n'um vento transcendente todos os avˇs formidaveis
perpassavam--e arrebatadamente lhe estendiam as suas armas, rijas e
provadas armas, todas, atravez de toda a Historia, ennobrecidas nas
arrancadas contra a Moirama, nos trabalhados cercos de Castellos e
Villas, nas batalhas formosas com o Castelhano soberbo... Era, em torno
do leito, um heroico reluzir e retinir de ferros. E todos soberbamente
gritavam:--źOh neto, toma as nossas armas e vence a Sorte inimiga!...╗
Mas Gonšalo, espalhando os olhos tristes pelas sombras ondeantes,
volveu:--źOh Avˇs, de que me servem as vossas armas--se me falta a vossa
alma?...╗
Acordou, muito cedo, com a enredada lembranša d'um pesadello em que
fallßra a mortos:--e, sem a preguiša, que sempre o amollecia nos
colch§es, enfiou um roupŃo, escancarou as vidrašas. Que formosa manhŃ!
uma manhŃ dos fins de Septembro, macia, lustrosa e fina; nem uma nuvem
lhe desmanchava o vasto, o immaculado azul; e o sol jß pousava nos
arvoredos, nos outeiros distantes, com uma došura outomnal. Mas, apesar
de lhe respirar allentamente o brilho e a pureza, Gonšalo permaneceu
toldado de sombras, das sombras da vÚspera, retardadas no seu espirito
opprimido, como nevoas em valle muito fundo. E foi ainda com um suspiro,
arrastando tristonhamente as chinellas, que puxou o cordŃo da campainha.
O Bento nŃo tardou com a infusa da agoa quente para a barba. E
acostumado ao alegre acordar do Fidalgo tanto estranhou aquelle
silencioso e enrugado mover pelo quarto, que desejou saber se o Snr.
Doutor passßra mal a noite...
--Pessimamente!
Bento declarou logo, com vivacidade e reprovašŃo--que certamente fizera
mal ao Snr. Doutor tanto cognac de moscatel. Cognac muito adocicado,
muito excitante... Bom para o Snr. D. Antonio, homemzarrŃo pesado. Mas o
Snr. Doutor, assim nervoso, nunca devia tocar n'aquelle cognac. Ou
entŃo, meio calice escasso.
Gonšalo ergueu a cabeša, na surpreza de encontrar logo ao comešo do seu
dia e tŃo flagrante, aquelle dominio que todos sobre elle se
arrogavam--e de que tanto se lastimava, atravez de toda a amarga noite!
Eis ahi o Bento mandando--marcando a sua rašŃo de cognac! E justamente o
Bento insistia:
--O Snr. Doutor bebeu mais de tres calices. Assim nŃo convÚm... Eu
tambem tive culpa em nŃo tirar a garrafa...
EntŃo, perante despotismo tŃo declarado, o Fidalgo da Torre teve uma
brusca revolta:
--Homem, nŃo dŕs tantas leis. Bebo o cognac que preciso e que quero!
Ao mesmo tempo, com a ponta dos dedos, experimentava a agua na infusa:
--Esta agua estß morna! exclamou logo. Jß me tenho fartado de dizer!
Para a barba, preciso sempre agua a ferver.
O Bento, gravemente, mergulhou tambem o dedo na agua:
--Pois esta agua estß quasi a ferver... Nem para a barba se necessita
agua mais quente.
Gonšalo encarou o Bento com furor. O que! mais objecš§es, mais leis!
--Pois vß immediatamente buscar outra agua! Quando eu pešo agua quente,
pretendo que venha em cachŃo. Irra! tanta sentenša!... Eu nŃo quero
moral, quero obediencia!
O Bento considerou Gonšalo atravez d'um espanto que lhe inchßra a face.
Depois, lentamente, com magoada dignidade, empurrou a porta, levando a
infusa. E jß Gonšalo se arrependia da sua violencia. Coitado, nŃo era
culpa do Bento se a vida lhe andava a elle tŃo estragada e sacudida!
Depois, em casa tŃo antiga, nŃo destoava a tradišŃo dos antigos aios. E
o Bento com perfeito rigor lhes reproduzia a rabugice e a lealdade! Mas
ascendencia, e livre fallar bem lhe cabiam--bem os merecia por tŃo
longa, tŃo provada dedicašŃo...
O Bento, ainda vermelho e inchado, voltava com a infusa fumegante. E
Gonšalo logo docemente, para o adošar:
--Dia muito bonito, hein, Bento?
O velho rosnou, ainda amuado:
--Muito bonito.
Gonšalo ensaboava a face, rapidamente, na impaciencia de reatar com o
Bento, de lhe restabelecer a supremacia amoravel. E por fim mais doce,
quasi humilde:
--Pois se achas o dia assim bonito, dou um passeio a cavallo antes
d'almošo. Que te parece? Talvez me faša bem aos nervos... Com effeito,
aquelle cognac nŃo me convÚm... EntŃo, Bento, faze o favor, grita ahi ao
Joaquim que me tenha a egoa prompta immediatamente. Com certeza me
acalma, uma galopada... E no banho agora a agua bem esperta, bem quente.
Tambem me acalma a agua quente. Por isso necessito sempre agua bem
quente, a ferver. Mas tu, com essas tuas velhas idÚas... Pois todos os
medicos o declaram. Para a saude agua quente, bem quente, a sessenta
graus!
E depois do rapido banho, em quanto se vestia, abriu mais familiarmente
ao velho aio a intimidade das suas tristezas:
--Ah! Bento, Bento, o que eu verdadeiramente precisava para me calmar,
nŃo era um passeio, era uma jornada... Trago a alma muito carregada,
homem! Depois estou farto d'esta eterna Villa-Clara, da eterna Oliveira.
Muito mexerico, muita deslealdade. Precisava terra grande, distracšŃo
grande.
O Bento, jß reconciliado, enternecido, lembrou que o Snr. Doutor
brevemente, em Lisboa, encontraria uma linda distracšŃo, nas C˘rtes.
--Eu sei lß se vou ßs C˘rtes, homem! NŃo sei nada, tudo falha... Qual
Lisboa!... O que eu necessito Ú uma viagem immensa, ß Hungria, ß Russia,
a terras onde haja aventuras.
O Bento sorriu superiormente d'aquella imaginašŃo. E apresentando ao
Fidalgo o jaquetŃo de velvetina cinzenta:
--Com effeito, na Russia parece que nŃo faltam aventuras. Anda tudo a
chicote, diz o _Seculo_... Mas aventuras, Snr. Doutor, atÚ a gente as
encontra na estrada... Olhe! o paesinho de V. Ex.^a, que Deus haja, foi
lß em baixo deante do portŃo que teve a bulha com o Dr. Avelino da
Riosa, e que lhe atirou a chicotada, e que levou com o punhal no
brašo...
Gonšalo calšava as luvas d'anta, mirando o espelho:
--Pobre papß, coitado, tambem teve pouca sorte... E por chicote, ˇ
Bento, dß cß aquelle chicote de cavallo marinho que tu hontem areaste.
Parece que Ú uma boa arma.
* * * * *
Ao sahir o portŃo, o Fidalgo da Torre metteu a egoa, sem destino, n'um
passo indolente, pela estrada costumada dos Bravaes. Mas no Casal Novo,
onde dous pequenos jogavam ß bola debaixo das carvalheiras, pensou em
visitar o Visconde de Rio-Manso. Certamente lhe concertaria os nervos a
companhia de tŃo sereno e generoso velho. E, se elle o convidasse a
almošar, gastaria os seus cuidados visitando essa fallada quinta da
_Varandinha_ e cortejando źo botŃo de Rosa╗.
Gonšalo recordava apenas confusamente que o terrašo da _Varandinha_
dominava uma estrada plantada de choupos, algures, entre o logar da
Cerda e a espalhada aldŕa de Canta-Pedra, E tomou o caminho velho que
desce das carvalheiras do Casal Novo, e penetra no valle, entre o cabešo
d'Avellan e as ruinas do Mosteiro de Ribadaes, no solo historico onde
Lopo de BayŃo derrotßra a mesnada de Lourenšo Ramires... Ora enterrada
entre vallados, ora entre toscos muros de pedra solta, a vereda seguia
sem belleza, e cansativa: mas as madresilvas nas sebes, por entre as
amoras maduras, rescendiam: o fresco silencio recebia mais frescura e
graša dos fremitos d'aza que o rošavam; e tanto era o radiante azul nos
ceus serenos que um pouco do seu rebrilho e serenidade s'instillava
n'alma. Gonšalo, mais desannuviado, nŃo se apressava: na Egreja dos
Bravaes, quando elle passßra ao Casal Novo, batiam apenas as nove horas:
e depois de costear um lameiro d'herva magra parou a accender
pachorrentamente um charuto, rente da velha ponte de pedra que galga o
riacho das Donas. Quasi secca pela estiagem, a agoa escura mal corria,
sob as folhas largas dos nenufares, por entre os juncaes que a
atulhavam. Adiante, ß orla d'um hervašal, no abrigo d'uma moita
d'alamos, relusiam as pedras d'um lavadouro. Na outra margem, dentro
d'um velho bote encalhado, um rapazito, uma rapariguinha conversavam
profundamente, com dous molhos d'alfazema esquecidos nos regašos.
Gonšalo sorriu do idyllio--depois teve uma surpreza descobrindo, no
cunhal da ponte, rudemente entalhado, o seu BrazŃo-d'Armas, um Ašor
enorme, que alargava as garras ferozes. Talvez aquellas terras outr'ora
pertencessem ß Casa:--ou algum dos seus avˇs beneficos construira a
ponte, sobre torrente entŃo mais funda, para seguranša dos homens e dos
gados. Quem sabe se o av˘ Tructesindo, em memoria piedosa de Lourenšo
Ramires, vencido e captivo nas margens d'aquella Ribeira!
O caminho, para alÚm da ponte, alteava entre campos ceifados. As mŕdas
lourejavam, pesadas e cheias, por aquelle anno de fartura. Ao longe, dos
telhados baixos d'um logarejo, vagarosos fumos subiam, logo desfeitos no
radiante ceu. E lentamente, como aquelles fumos distantes, Gonšalo
sentia que todas as suas melancolias lhe escapavam da alma, se perdiam
tambem no azul lustroso... Uma revoada de perdizes ergueu o v˘o d'entre
o restolho. Gonšalo galopou sobre ellas, gritando, sacudindo o seu forte
chicote de cavallo-marinho, que zenia como uma fina lamina.
Em breve o caminho torceu, costeando um souto de sobreiros, depois
cavado entre silvados com largos pedregulhos aflorando na poeira;--e ao
fundo o sol faiscava sobre a cal fresca d'uma parede. Era uma casa
terrea, com porta baixa entre duas janellas envidrašadas, remendos novos
no telhado e um quinteiro que uma escura e immensa figueira assombreava.
N'uma esquina pegava um muro baixo de pedra solta, continuado por uma
sebe, onde adiante uma velha cancella abria para a sombra d'uma ramada.
Defronte, no vasto terreiro que se alargava, jaziam cantarias, uma pilha
de traves; passava uma estrada, lisa e cuidada, que pareceu a Gonšalo a
de Ramilde. Para alÚm, atÚ a um distante pinheiral, desciam chŃs e
lameiros.
Sentado n'um banco, junto da porta, com uma espingarda encostada ao
muro, um rapaz grosso, de barrete de lŃ verde, acariciava pensativamente
o focinho d'um perdigueiro. Gonšalo parou:
--Tem a bondade... Sabe por acaso qual Ú o bom caminho para a quinta do
Snr. Visconde de Rio-Manso, a _Varandinha_?
O rapasote ergueu a face morena, de bušo leve, remechendo vagamente no
carapušo.
--Para a quinta do Rio-Manso... Siga pela estrada atÚ ß pedreira, depois
ß esquerda a seguir, sempre rente da varzea...
Mas n'esse instante assomava ß porta um latagŃo de suissas louras em
mangas de camisa, a cinta enfaixada em seda. E Gonšalo, com um
sobresalto, reconheceu logo o cašador que o injurißra na estrada de
Nacejas, o assobißra na venda do Pintainho. O homem relanceou
superiormente o Fidalgo. Depois, com a mŃo encostada ß humbreira,
chasqueou o rapasote:
--Oh Manoel, que estßs tu ahi a ensinar o caminho, homem! Este caminho
por aqui nŃo Ú para asnos!
Gonšalo sentiu a pallidez que o cobriu--e todo o sangue no corašŃo, n'um
tumulto confuso, que era de medo e de raiva. Um novo ultrage, do mesmo
homem, sem provocašŃo! Apertou os joelhos no sellim para galopar. E a
tremer, n'um esforšo que o engasgava:
--Vossŕ Ú muito atrevido! ╔ jß pela terceira vez! Eu nŃo sou homem para
levantar desordens n'uma estrada... Mas fique certo que o conhešo, e que
nŃo escapa sem lišŃo.
Immediatamente, o outro agarrou a um cajado curto e saltou ß estrada,
affrontando a egoa, com as suissas erguidas, um riso de immenso desafio:
--EntŃo cß estou! Venha agora a lišŃo... E para diante Ú que Vossŕ jß
nŃo passa, seu Ramires de merd...
Uma nevoa turvou os olhos esgaseados do Fidalgo. E de repente, n'um
inconsciente arranque, como levado por uma furiosa rajada de orgulho e
forša, que se desencadeava do fundo do seu ser, gritou, atirou a fina
egoa n'um galŃo terrivel! E nem comprehendeu! O cajado sarilhßra! A egoa
empinava, n'uma cabešada furiosa! E Gonšalo entreviu a mŃo do homem,
escura, immensa, que empolgava a camba do freio.
EntŃo, erguido nos estribos, por sobre a immensa mŃo, despediu uma
vergastada do chicote silvante de cavallo-marinho, colhendo o latagŃo na
face, de lado, n'um golpe tŃo vivo da aresta aguda que a orelha pendeu,
despegada, n'um borbutar de sangue. Com um berro o homem recuou,
cambaleando. Gonšalo galgou sobre elle, n'outro arremesso, com outra
fulgurante chicotada, que o apanhou pela b˘ca, lhe rasgou a b˘ca,
decerto lhe espedašou dentes, o atirou, urrando, para o chŃo. As patas
da egoa machucavam as grossas coxas estendidas,--e, debrušado, Gonšalo
ainda vergastou, cortou desesperadamente face, pescošo, atÚ que o corpo
jazeu molle e como morto, com jorros de sangue escuro ensopando a
camisa.
Um tiro atroou o terreiro! E Gonšalo, com um salto no selim, avistou o
rapasote moreno ainda com a espingarda erguida, a fumegar, mas jß
hesitando aterrado.
--Ah, cŃo!
Lanšou a egoa, com o chicote alto:--o rapaz, espavorido, corria
lentamente atravÚs do terreiro, para saltar o vallado, escapar para as
varzeas ceifadas!
--Ah cŃo, ah cŃo! berrava Gonšalo. Estonteado, o rapaz tropešßra n'uma
viga solta. Mas jß se endireitava, largava, quando o Fidalgo o alcanšou
com uma cutilada do chicote no pescošo, logo alagado de sangue.
Estendendo as mŃos incertas, ainda cambaleou, abateu, estalou contra a
aresta d'um pilar, a cabeša mais sangue jorrou. EntŃo Gonšalo, a
arquejar, deteve a egoa. Ambos os homens jaziam immoveis! Santo Deus!
Mortos? D'ambos corria o sangue sobre a terra secca. O Fidalgo da Torre
sentia uma alegria brutal. Mas um grito espantado soou do lado do
quinteiro.
--Ai que mataram o meu rapaz!
Era um velho que corria da cancella, n'uma carreira agachada, rente com
a sebe, para a porta da casa. TŃo certeiramente o Fidalgo arremessou a
egoa, para o deter--que o velho esbarrou contra o peitoril que arfava
coberto de suor e d'espuma. E ante o inquieto animal escarvando, e
Gonšalo alšado nos estribos, com a face chammejante, o chicote a
descer--o velho, n'um terror, desabou sobre os joelhos, gritou
anciadamente:
--Ai, nŃo me faša mal, meu Fidalgo, por alma de seu pae Ramires.
Gonšalo ainda o manteve assim um momento, supplicante, a tremer, sob o
justiceiro faiscar dos seus olhos:--e gosava soberbamente aquellas
callosas mŃos que se erguiam para a sua misericordia, invocavam o nome
de Ramires, de novo temido, repossuido do seu prestigio heroico. Depois,
recuando a egoa:
--Esse malandro do rapazola desfechou a cašadeira!... Vossŕ tambem nŃo
tem boa cara! Que ia vossŕ correndo para casa? Buscar outra espingarda?
O velho alargou desesperadamente os brašos, offerecia o peito, em
testemunho da sua verdade:
--Oh meu Fidalgo, nŃo tenho em casa nem um cajado!... Assim Deus me
ajude e me salve o rapaz!
Mas Gonšalo desconfiava. Quando descesse agora pela estrada de Ramilde,
bem poderia o velho correr ao casebre, agarrar outra cašadeira,
desfechar traišoeiramente. E entŃo com a presteza d'espirito que a lucta
afißra concebeu contra qualquer emboscada, um ardil seguro. E atÚ n'um
relance sorrio recordando źtrašas de guerra╗, de D. Garcia Viegas, o
_Sabedor_.
--Marche lß deante de mim, sempre a direito, pela estrada!
O velho tardou, sem se erguer, aterrado. E batia com as grossas mŃos nas
coxas, n'uma ancia que o engasgava:
--Oh meu Fidalgo, oh meu fidalgo! mas deixar assim o rapaz sem
acordo?...
--O rapaz estß sˇ atordoado, jß se mecheu... E o outro malandro
tambem... Marche vossŕ!
E ao irresistivel mando de Gonšalo, o velho, depois de sacudir
demoradamente as joalheiras, comešou a avanšar pela estrada, vergado
deante da egoa, como um captivo, com os longos brašos a bambolear,
rosnando, n'um rouco assombro:--Ai como ellas se armam! Ai Santo nome de
Deus, que desgraša! A espašos estacava, esgaseando para Gonšalo um olhar
torvo onde negrejava medo e odio... Mas logo o commando forte o
empurrava: źMarche!...╗ E marchava. Adiante, onde se erguia um cruseiro
em memoria do Abbade Paguim, assassinado, Gonšalo reconheceu um largo
atalho para a estrada dos Bravaes que chamavam o _Caminho da Moleira_. E
para ahi enfiou o velho, que no pavor d'aquella asinhaga solitaria,
pensando que Gonšalo o afastava de caminhos trilhados para o matar
commodamente, rompeu a gemer. źAi que isto Ú o fim da minha vida! Ai
Nossa Senhora, que Ú o fim da minha vida!╗ E nŃo cessou de gemer,
emmaranhando os passos tropegos, atÚ que desembocaram na estrada alta
entre taludes escarpados, revestidos de giesta brava. EntŃo de repente,
com outro terror, o homem bruscamente revirou, atirando as mŃos ao
barrete:
--Oh meu senhor, o Fidalgo nŃo me leva preso?...
--Marche! Corra! Que agora a egoa trota!
A egoa trotou--o velho correu, desengonšado, arquejando como um folle de
forja. Uma milha galgada, Gonšalo parou, farto do captivo, da lenta
marcha. De resto antes que o homem agora corresse a casa, e agarrasse
uma arma, e virasse para o alcanšar, se desforrar--entraria elle, n'um
galope solto, o portŃo da Torre! EntŃo bradou, com o sobr'olho duro:
--Alto! Agora pode voltar para traz... Mas, antes: Como se chama aquelle
seu logar?
--A Grainha, meu fidalgo.
--E vossŕ como se chama, e o rapaz?
O velho com a boca aberta, esperou, hesitou:
--Eu sou JoŃo, o meu rapaz Manoel... Manoel Domingues, meu Fidalgo.
--Vossŕ naturalmente mente. E o outro malandro, de suissas louras?
D'um folego, o velho gritou:
--Esse Ú o Ernesto de Nacejas, o valentŃo de Nacejas, que chamam o
_Caša-abrašos_, e que tanto me desencaminhou o rapaz...
--Bem! Pois diga lß a esses dous marotos que me atacaram a pau e a tiro,
que nŃo ficam quites sˇmente com a sova, e que agora tŕm de se entender
com a Justiša... Ella lß irß! Largue!
Do meio da estrada, Gonšalo ainda vigiou o velho que abalßra, foršando
as passadas derreadas, limpando o suor que lhe pingava. Depois, pela
conhecida estrada, galopou para a Torre.
E ia levado, galopando n'uma alegria tŃo fumegante, que o lanšava em
sonho e devaneio. Era como a sensašŃo sublime de galopar pelas alturas,
n'um corcel de lenda, crescido magnificamente, rošando as nuvens
lustrosas... E por baixo, nas cidades, os homens reconheciam n'elle um
verdadeiro Ramires, dos antigos na Historia, dos que derrubavam torres,
dos que mudavam a configurašŃo dos Reinos,--e erguiam esse maravilhado
murmurio que Ú o sulco dos fortes passando! Com razŃo! com razŃo! Que
ainda de manhŃ, ao sahir da Torre, nŃo ousaria marchar para um rapazola
decidido que brandisse um varapau... E depois, de repente, na solidŃo
d'aquella casa terrea, quando o bruto das suissas louras lhe atira a
suja injuria--eis um _nŃo sei quŕ_ que se desprende dentro do seu ser, e
transborda, e lhe enche cada veia de sangue ardido e lhe enrija cada
nervo de forša destra, e lhe espalha na pelle o desprezo e a d˘r, e lhe
repassa fundamente a alma de fortaleza indomavel... E agora alli
voltava, como um varŃo novo, soberbamente virilisado, liberto emfim da
sombra que tŃo dolorosamente assombreßra a sua vida, a sombra molle e
torpe do seu mŕdo! Por que sentia que, agora se todos os valent§es de
Nacejas o affrontassem n'um rijo erguer de cajados--esse _nŃo sei quŕ_,
lß dentro, no seu ser, de novo se soltaria, e o arremessaria, com cada
veia inchada, cada nervo retesado, para o delicioso fragor da briga!
Emfim era _um homem_! Quando em Villa Clara o Manuel Duarte, o Titˇ com
o peito alto, contassem fašanhas, jß elle nŃo enrolaria encolhidamente o
cigarro--encolhido, mudo nŃo sˇmente pela ausencia desconsoladora das
valentias, mas sobretudo pela humilhante recordašŃo das fraquezas. E
galopava, galopava apertando furiosamente o cabo do chicote, como para
investidas mais bellas. Para alÚm dos Bravaes, mais galopou, ao avistar
a Torre. E singularmente lhe pareceu, de repente, que a sua Torre, agora
_mais sua_, e que uma affinidade nova fundada em gloria e forša, o
tornava mais senhor da sua Torre!
* * * * *
Como para acolher Gonšalo mais dignamente, o portŃo grande, sempre
cerrado, offerecia uma entrada triumphal com os dous pesados batentes
escancarados. Elle atirou a egoa para o meio do pateo, bradando:
--Oh Joaquim! Oh Manoel! Eh lß! um de vossŕs!
O Joaquim surdiu da cavallariša, de mangas arregašadas, com uma esponja
na mŃo.
--Oh Joaquim, depressa! Apparelha o Rocilho, corre a um sitio na estrada
de Ramilde, a que chamam a Grainha... Tive agora lß uma grande desordem!
Creio que dei cabo de dous homens... Ficaram n'uma poša de sangue! NŃo
digas que vaes da Torre, que te podem atacar! Mas sabe o que succedeu,
se estŃo mortos... Depressa, depressa!
O Joaquim, estonteado, remergulhou na cavallariša escura. E de cima
d'uma das varandas do corredor, partiram exclamaš§es assombradas:
--Oh Gonšalo, o que foi?! santo Deus! o que foi?!
Era o Barr˘lo. Sem desmontar, sem surpresa ante a apparišŃo do Barr˘lo,
Gonšalo atirou logo para a varanda a historia da bulha, tumultuosamente.
Um malandro que o insultßra... Depois outro, que desfechou a
cašadeira... E ambos derribados sob as patas da egoa, n'uma poša de
sangue...
O Barr˘lo despegou da varanda--e n'outro relance, investia pelo pateo,
com os curtos brašos a boiar, enfiado. Mas entŃo? mas entŃo?... E
Gonšalo, desmontando, tremulo agora do canšasso e da emošŃo, esmiušou
mais lances... Na estrada de Ramilde! Um valentŃo que o injuriou! A esse
rasgßra a b˘ca, decepßra a orelha... Depois o outro, um rapasola,
desfecha uma carabina... Elle corre, tŃo vivamente o colhe com uma
cutilada que o estira, para cima d'uma pedra, como morto...
--Uma cutilada?
--Com este chicote, Barr˘lo! Arma terrivel!... Bem dizia o Titˇ!...
Estou perdido se nŃo levo este chicote.
Esgaseado, Barr˘lo remirava o chicote. Sim, com effeito ainda manchado
de sangue.--EntŃo Gonšalo attentou no chicote, no sangue... Sangue de
gente! sangue fresco, que elle arrancßra!... E por entre o seu orgulho,
uma piedade passou que o empallideceu:
--Que desgraša, vejam que desgraša!
Esquadrinhou vivamente o fato, as botas, no horror de nodoas de sangue,
que o salpicassem. Sim, santo Deus! sangue na polaina!... E
immediatamente anciou por se despir, se lavar,--galgou a escada, com o
Barr˘lo que enxugava o suor, balbuciava:--źOra uma d'essas! E de
repente! Assim na estrada!...╗ Mas no corredor, subindo n'uma carreira
da cosinha, appareceu Gracinha, pallida, com a Rosa atraz, que enterrava
os dedos entre o lenšo e o cabello n'um pavor mudo.
--Que foi, Gonšalo? Jesus, que foi?!
EntŃo, encontrando Gracinha junto d'elle, na Torre, n'esse momento
magnifico do seu orgulho, depois de tŃo rijo perigo vencido, Gonšalo
esqueceu o AndrÚ, o Mirante, as sombrias humilhaš§es, e no abrašo em que
a colheu, nos fortes beijos que atirou ß face querida, todo o seu amuo
se fundio em ternura. Com ella ainda chegada ao corašŃo, suspirou de
leve, como uma creanša canšada. Depois apertando as duas pobres mŃos
tremulas, com um lento, enternecido sorriso, em quanto os olhos se lhe
humedeciam de confusa emošŃo, de confusa alegria:
--Pois foi o diabo, filha! Uma desordem horrivel, eu que sou tŃo pacato!
imagina tu...
E pelo corredor recomešou para Gracinha, que arfava, e para a Rosa,
estarrecida, a historia do encontro, e o sujo ultrage, o tiro que
falhßra e os malandros lacerados a chicote, e o velho marchando como um
captivo, a gemer pela estrada de Ramilde. Apertando o peito, n'um
desmaio, Gracinha murmurou:
--Ai, Gonšalo! E se um dos homens estivesse morto!
O Barr˘lo, mais vermelho que uma pionia, berrou logo que taes malandros
mereciam ricamente a morte! E mesmo feridos, ainda necessitavam castigo
tremendo d'Africa! O Gouveia! era necessario mandar a Villa-Clara,
avisar o Gouveia!... Mas largas passadas ßvidas abalaram o soalho--e foi
o Bento, que se ergueu deante de Gonšalo, bracejando n'uma ancia:
--EntŃo, Snr. Doutor?... Diz que uma grande desordem!...
E ß porta do escriptorio, onde todos pararam, novamente attentos, a
historia recomešou, especialmente para o Bento, que a bebia, n'um lento
riso de gosto, crescendo, inchando, com os olhinhos humidos a reluzir,
como se tambem triumphasse. Por fim, triumphou, com estrondo:
--Foi o chicote, Snr. Doutor! O que serviu ao Snr. Doutor, foi o chicote
que eu lhe dei!
Era verdade. E Gonšalo, commovido, abrašou o velho aio, que n'uma
excitašŃo, gritava para a Rosa, para Gracinha, para o Barr˘lo:
--O Snr. Doutor deu cabo d'elles!... Aquelle chicote mata um homem!...
Os malvados estŃo mortos!... E foi o chicote! Foi o chicote que eu dei
ao Snr. Doutor!
Mas Gonšalo reclamava agua quente para se lavar da poeira, do suor, do
sangue... E o Bento correu, berrando ainda pelo corredor! depois pelas
escadas da cosinha--źque f˘ra o chicote! o chicote, que elle dÚra ao
Snr. Doutor!╗ Gonšalo entrßra no quarto, acompanhado pelo Barr˘lo. E
pousou o chapeu sobre o marmore da commoda, com um immenso _ah_
consolado! Era o consolo immenso de se encontrar, depois de tŃo violenta
manhŃ, entre as doces cousas costumadas, pisando o seu velho tapete
azul, rošando o leito de pau preto em que nascera, respirando pelas
vidrašas abertas, onde as ramagens familiares das faias s'empurravam na
aragem para o saudar. Com que gosto se acercou do espelho de columnas
douradas, se mirou e se remirou, como a um Gonšalo novo e tŃo melhorado,
que nos hombros reconhecia mais largueza, e atÚ no bigode um arquear
mais crespo.
E foi ao arredar do espelho, topando com o Barr˘lo, que subitamente
despertou n'uma curiosidade immensa:
--Mas, oh Barr˘lo, como Ú que vos encontro esta manhŃ na Torre?
ResolušŃo da vespera, ao chß. Gonšalo nŃo apparecia, nŃo escrevia...
Gracinha a matutar, inquieta. Elle tambem espantado d'aquelle sumišo
depois do cesto dos pŕcegos. De modo que ao chß, pensando tambem que a
parelha necessitava uma trotada, lembrßra a Gracinha:--źVamos nˇs amanhŃ
ß Torre? no phaeton?╗
--AlÚm disso precisava fallar comtigo, Gonšalo... Tenho andado
aborrecido.
O Fidalgo juntou duas almofadas no divan, onde se enterrou:
--Como aborrecido?... Aborrecido por que?...
Barr˘lo, com as mŃos nos bolsos da rabona de flanella, que lhe cingia as
ancas gordas, considerou as fl˘res do tapete, melancolicamente:
--╔ uma grande secca! A gente nŃo pˇde confiar em ninguem... Nem ter
familiaridades!...
N'um lampejo Gonšalo imaginou o Cavalleiro e Gracinha mostrando
estouvadamente nos Cunhaes, como outr'ora entre os arvoredos da Torre, o
sentimento que os dominava. E presentiu um desabafo, alguma queixa
triste do pobre Barr˘lo, amargurado por suspeitas, talvez por
intimidades que espreitßra. Mas a emošŃo suprema da sua batalha, sumira
para uma sombra inferior os cuidados que, ainda na vespera, o opprimiam:
todas as difficuldades da vida lhe appareciam agora, de repente,
n'aquelle frescor da sua coragem nova, tŃo faceis d'abater como os
desafios dos valent§es; e nŃo se assustou com as confidencias do
cunhado, bem seguro d'imp˘r ßquella alma submissa de bac˘co a confianša
e a quietašŃo. AtÚ sorriu, com indolencia:
--EntŃo, Barrolinho? Succedeu alguma peripecia?
--Recebi uma carta.
--Ah!
Gravemente Barr˘lo desabotoou o jaquetŃo, puxou do bolso interior uma
larga carteira, de couro verde e lustroso, com monogramma d'ouro. E foi
a carteira que elle mostrou a Gonšalo, com satisfašŃo.
--Bonita, hein? Presente do AndrÚ, coitado... Creio que atÚ a mandou vir
de Paris. O monogramma tem muito chic.
Gonšalo esperava, espantado. Emfim o bom Barr˘lo tirou da carteira uma
carta--jß amarrotada, depois alisada. Era, n'um papel pautado, uma
lettra miudinha que o Fidalgo apenas relanceou, declarando logo com
seguranša:
--╔ das Louzadas.
E leu, vagarosamente, serenamente, com o cotovello enterrado na
almofada: źEx.^{mo} Snr. JosÚ Barr˘lo.--V. Ex.^a apesar de todos os seus
amigos o alcunharem de _ZÚ bac˘co_, mostrou agora muita espertesa,
chamando de novo para a sua intimidade e de sua digna esposa o gentil
AndrÚ Cavalleiro, nosso Governador Civil. Com effeito a esposa de V.
Ex.^a, a linda Gracinha, que n'estes ultimos tempos andava tŃo murcha e
atÚ desbotada (o que a todos nos inquietava) immediatamente reflorio, e
ganhou c˘res, desde que possue a valiosa companhia da primeira
auctoridade do districto. Portou-se pois V. Ex.^a como marido zeloso, e
desejoso da felicidade e boa saude de sua interessante esposa. Nem
parece rasgo d'aquelle que toda a Oliveira considera como o seu mais
illustre pateta! Os nossos sinceros parabens!╗
Gonšalo guardou muito socegadamente na algibeira aquella carta que, dias
antes, o lanšaria em infinita amargura e furia:
--╔ das Louzadas... E tu dÚste importancia a semelhante babuseira?
O Barr˘lo repontou, com as bochechas abrazadas:
--Se te parece! Sempre embirrei com bilhetinhos anonymos... E depois
essa insolencia a respeito dos amigos me chamarem BACďCO... Grande
infamia, hein? Tu acreditas?... Eu nŃo acredito! mas lanša sizania entre
mim e os rapazes... Nem voltei ao Club... Bac˘co! Porquŕ? Por que eu sou
simples, sempre franco, disposto a arranchar... NŃo! se os rapazes no
Club me chamam bac˘co pelas costas, caramba, mostram ingratidŃo! Mas eu
nŃo acredito! Rebolou pelo quarto, desconsoladamente, as mŃos cruzadas
sobre as gordas nadegas. Depois, estacando deante do divan, d'onde
Gonšalo o considerava, com piedade:
--Em quanto ao resto da carta Ú tŃo estupido, tŃo atrapalhado que ao
principio nem comprehendi. Agora percebo... Querem dizer que a Gracinha
e o Cavalleiro teem namoro... ╔ o que me parece que querem dizer! Ora vŕ
tu que disparate! AtÚ a intimidade do Cavalleiro Ú mentira. O pobre
rapaz, desde que lß jantou, sˇ appareceu tres ou quatro vezes, ß noite,
para a manilha, com o Mendonša... E agora abalou para Lisboa.
EntŃo o Fidalgo pulou, de surpresa.
--O quŕ! o Cavalleiro foi para Lisboa?
--Pois partiu ha tres dias!
--Com demora?
--Com demora, com grande demora... Sˇ volta no meado d'outubro para a
EleišŃo.
--Ah!
Mas o Bento rompeu pelo quarto, com o jarro d'agua quente, duas toalhas
de rendas, ainda n'uma excitašŃo que o azafamava. Deante do espelho,
lentamente Barr˘lo reabotoava o jaquetŃo:
--Bem, atÚ logo, Gonšalinho. Eu desšo ß cavallariša, visitar a parelha.
NŃo imaginas! desde Oliveira, sem descanso, uma trotada explendida. E
nem um pello suado! Tu guardas a carta?
--Guardo, para estudar a lettra.
Apenas Barr˘lo cerrßra a porta--o Fidalgo recomešou com o Bento a
deliciosa historia da briga, revivendo as surprezas e os rasgos,
simulando os arremessos da egoa, arrebatando o chicote para representar
as cutiladas silvantes, que arrancavam febra e sangue... E de repente,
em ceroulas:
--Oh Bento, traze o meu chapeu... Estou desconfiado que a bala rošou
pelo chapeu.
Ambos remiraram, esquadrinharam o chapeu. O Bento, no seu encarecimento
da fašanha, achava a copa amolgada--atÚ chamuscada.
--A bala passou de raspŃo, Snr. Doutor!
O Fidalgo negou, com a modestia grave d'um forte:
--NŃo! Nem de raspŃo!... Quando o malandro desfechou jß o brašo lhe
tremia... Devemos agradecer a Deus, Bento. Mas eu realmente nŃo corri
grande perigo!
Depois de vestido, Gonšalo, passeando no quarto, releu a carta. Sim,
certamente das Lousadas. Mas agora essa maledicencia, soprada com tŃo
sordida maldade sobre as pobres bochechas do Barr˘lo, nŃo causava
damno--antes servia, quasi beneficamente, como a braza d'um ferro, para
sarar um damno. O pobre Barr˘lo apenas se impressionßra com a revelašŃo
da sua bacoquice, essa ingrata alcunha posta pelos rapazes amigos, em
galhofas ingratas do Club e debaixo dos Arcos. A outra insinuašŃo
terrivel, Gracinha reverdecendo ao calor amoroso do Cavalleiro, essa mal
a comprehendera, escassamente a attendera n'um desdem distrahido e
candido. Mas a carta que assim silvava por sobre o bom Barr˘lo como
flecha errada--acertava em Gracinha, feriria Gracinha no seu orgulho, no
seu impressional pudor, mostrando ß pobre tonta como o seu nome e mesmo
o seu corašŃo, jß arrastavam enxovalhadamente, pela rasteira mexeriquice
das Lousadas!... Certesa tŃo humilhadora nŃo apagaria um sentimento--que
se nŃo apagava com humilhaš§es mais intimas, tanto mais dolorosas. Mas
estimularia a sua reserva e o seu desconfiado recato:--e agora que AndrÚ
se afastßra para Lisboa, operaria n'ella, surdamente, solitariamente,
sem que a presenša tentadora lhe desmanchasse a influencia socegadora e
salutar. Assim o torpe papel aproveitava a Gracinha como um aviso
temeroso pregado na parede. E rancorosamente preparada pelas duas femeas
para desencadear nos Cunhaes escandalo e d˘r--talvez restabelecesse, na
ameašada casa, quietašŃo e gravidade.--Gonšalo esfregou as mŃos
pensando--que em tŃo ditosa manhŃ talvez atÚ esse mal redundasse em bem!
--Oh Bento, onde estß a Snr.^a D. Graša?
--A menina subiu agora ha pouco para o seu quarto, Snr. Doutor.
Era o seu quarto de solteira, claro e fresco sobre o pomar, onde ainda
se conservava o seu leito de linda madeira embutida, um toucador
illustre que pertencera ß Rainha D. Maria Francisca de Saboya, e o
sophß, as cadeiras de casimira clara em que Gracinha bordßra, n'um
arrastado labor d'annos, o Ašor negro dos Ramires. E sempre que voltava
ß Torre Gracinha gostava de reviver no seu quarto, as horas de solteira,
remexendo as gavetas, folheando velhos romances inglezes na estantesinha
envidrašada, ou simplesmente da varanda contemplando a querida quinta
estendida atÚ aos outeiros de Valverde, a verde quinta, tŃo misturada ß
sua vida que cada arvore lhe susurrava, cada recanto de verdura era como
um recanto do seu pensamento.
Gonšalo subiu--bateu ß porta cerrada com o antigo aviso:--źLicenša para
o mano!╗ Ella correu da varanda, onde regava nos seus antigos vasos
vidrados plantas sempre renovadas e cuidadas pela Rosa com carinho. E
desabafando logo do pensamento que a enchia:
--Oh Gonšalo! mas que felicidade nˇs virmos ß Torre, justamente hoje,
que te succedeu cousa tamanha!
--╔ verdade, Gracinha, grande sorte! E nŃo me admirei nada de te vŕr...
Era como se ainda vivesses na Torre e te encontrasse no corredor... Quem
estranhei foi o Barr˘lo! E no primeiro momento depois de desmontar,
pensava assim, vagamente: źmas que diabo faz aqui o Barr˘lo? como diabo
se acha aqui o Barr˘lo?...╗ Curioso, hein? Foi talvez que, depois da
desordem, me senti remošado, com um sangue novo, e me julguei no tempo
em que desejavamos uma guerra em Portugal, e nˇs cercados na Torre, sob
o nosso pendŃo, o _nosso teršo_ atirando bombardas aos hespanhoes...
Ella ria, lembrada dessas imaginaš§es heroicas. E com o vestido entalado
entre os joelhos recomešou a lenta rega dos seus vasos--em quanto
Gonšalo, encostado ß varanda, considerando a Torre, retomado pela ideia
d'uma concordancia mais intima, que desde essa manhŃ se estabelecera
entre elle e aquelle heroico resto da Honra de Santa Ireneia, como se a
sua forša, tanto tempo quebrada, se soldasse emfim firmemente ß forša
secular da sua raša.
--Oh Gonšalo! tu deves estar muito canšado! Depois d'essa verdadeira
batalha...
--NŃo, canšado nŃo... Mas com fome. Com fome, e com uma sŕde explendida!
Ella pousou logo o regador, sacudindo as mŃos alegremente:
--Pois o almošo nŃo tarda!... Jß andei a trabalhar na cosinha, com a
Rosa, n'uma pescada ß hespanhola... ╔ uma receita nova do BarŃo das
Marges.
--EntŃo insonsa, como elle.
--NŃo! atÚ picante: foi o Snr. Vigario Geral que lh'a ensinou.
E como, deante do toucador da Rainha Maria Francisca, ella arranjava ß
pressa os ganchos do cabello, para aproveitar a solidŃo favoravel,
apressou com um esforšo, a confidencia que o commovia:
--E em Oliveira? Lß por Oliveira!
--Em Oliveira, nada... Muito calor!
Gonšalo, movendo os dedos lentos pela moldura do espelho, fino
entrelašamento de ašucenas e louros, murmurou:
--Eu sei apenas das Lousadas, das tuas amigas Lousadas. Continuam em
plena actividade...
Gracinha negou candidamente:
--As Lousadas? NŃo! Nem teem apparecido.
--Mas teem tecido!
E como os verdes olhos de Gracinha se alargaram, sem comprehender,
Gonšalo arrancou vivamente da algibeira a carta que guardßra, que agora
lhe pesava, como uma chapa de ferro:
--Olha, Gracinha! Mais vale desabafarmos! Ahi tens o que ellas ha dias
escreveram a teu marido...
N'um relance, Gracinha devorou as linhas terriveis. E com ondas de
sangue nas faces, apertando as mŃos n'uma afflicšŃo, um desespero, em
que o papel amarfanhou:
--Oh Gonšalo! pois...
Gonšalo accudio:
--NŃo! o Barr˘lo nŃo se importou! AtÚ se rio! E eu tambem, quando elle
me entregou esse papelucho... E a prova que ambos o consideramos uma
mexeriquice insensata, Ú que eu t'o mostro tŃo francamente.
Ella esmagava a carta nas mŃos juntas e tremulas, pallida agora e
emmudecida pelo espanto, retendo grandes lagrimas que rebrilhavam. E
Gonšalo commovido, com gravidade, com ternura:
--Mas tu, Gracinha, sabes o que sŃo terras pequenas. Sobre tudo
Oliveira! Precisas muito cuidado, muita reserva... Ai de mim! De mim vem
a culpa. Reatei relaš§es que nunca se deviam reatar... Bem me tenho
arrependido! E acredita! por causa d'essa situašŃo tŃo falsa e tŃo
perigosa, que eu creei, levianamente, por ambišŃo tola, passei aqui na
Torre dias amargurados... AtÚ nem m'atrevia voltar a Oliveira. Hoje, nŃo
sei porquŕ, depois d'esta aventura, parece que tudo se esbateu,
s'afundou para uma grande sombra... Emfim jß nŃo me arde tŃo em braza no
corašŃo... Por isso desabafo assim, serenamente.
Ella desatou n'um solto, doloroso choro em que a sua fraca alma se
desfazia. Com redobrada ternura Gonšalo abrašou os pobres hombros
vergados que os solušos espedašavam. E foi com ella toda refugiada no
seu peito, que ainda a aconselhou, docemente:
--Gracinha, o passado morreu, e todos precisamos, para honra de todos,
que continue morto. Pelo menos que por fˇra, em cada gesto teu, pareša
bem morto! Sou eu que t'o pešo, pelo nosso nome!...
D'entre os brašos do irmŃo, ella gemeu com infinita humildade:
--Mas elle atÚ foi embora!... Nem quiz estar mais em Oliveira!
Gonšalo acariciou a acabrunhada cabeša que de novo se escondera contra o
seu peito, contra elle se apertava, como procurando a fresca
misericordiosa que dentro sentia brotar:
--Bem sei. E isso me mostra que tens sido forte... Mas precisas muita
reserva, muita vigilancia, Gracinha!... E agora socega. NŃo fallemos
mais, nunca mais, n'este incidente... Por que foi apenas um _incidente_.
E que eu provoquei, ai de mim, por leviandade, por illusŃo. Passou, estß
esquecido! Socega, descanša. E quando desceres traze os olhos bem
seccos.
Lentamente a desprendera dos brašos, onde ella se arraigava como ao
abrigo mais certo e ß consolašŃo mais desejada. E sahia, engasgado pela
emošŃo, recalcando tambem as lagrimas... Um gemido timido, supplicante,
ainda o reteve.
--Gonšalo! mas tu pensas...
Elle voltou, de novo a abrašou, a beijou na testa lentamente:
--Eu penso que tu, agora bem avisada, bem aconselhada, vaes mostrar
muita dignidade, muita firmeza.
Rapidamente abalou, cerrou a porta. E na escada estreita, escassamente
allumiada por uma claraboia baša, limpava as palpebras, quando esbarrou
com o Barr˘lo, que procurava Gracinha, para apressar o almošo.
--A Gracinha jß desce! atabalhoou o Fidalgo. Estß a lavar as mŃos! Jß
desce!... Mas antes do almošo vamos ß cavallariša. Devemos uma visita ß
egoa, a essa querida egoa que me salvou!
--╔ verdade, caramba! concordou logo Barr˘lo revirando nos degraus, com
enthusiasmo. Precisamos visitar a egoa... Grande, briosa, hein! Mas
aposto que ficou mais suada que as minhas... Imagina! uma trotada
d'aquellas, desde Oliveira, e nem um pello molhado! Grandes egoas!
Tambem, o que eu as ˇlho, o que as trato!
Na cavallariša, ambos affagaram a egoa. Barr˘lo lembrou que se
mimoseasse com uma rašŃo larga de cenoura. Depois--para que Gracinha,
com vagar se calmasse,--o Fidalgo arrastou o Barr˘lo ao pomar e ß
horta...
--Tu nŃo vens ß Torre ha perto de seis mezes, Barrolinho! Precisas vŕr,
admirar progressos. Anda agora por aqui a mŃo forte do Pereira da
Riosa...
--Imagino! grande homem, o Pereira! Mas eu tenho uma fome, Gonšalinho!
--Tambem eu!
Uma hora batia quando entraram na varanda onde a mesa esperava, florida
e em festa--e Gracinha, ß beira do divan, percorria pensativamente a
velha _Gazeta do Porto_. Apesar de muito banhados, os seus bellos olhos
conservavam um ardor: e para o justificar, e o seu modo abatido, logo se
lastimou, cˇrando, d'uma enxaqueca. Eram as emoš§es, o perigo de
Gonšalo...
--Tambem eu tenho d˘r de cabeša! declarou o Barr˘lo, rondando a mesa.
Mas a minha vem da fome... Oh filhos, Ú que estou desde as sete da manhŃ
com uma chavena de cafÚ e um ovo quente!
Gonšalo repicou a campainha. Mas quem rompeu pela porta envidrašada,
esbaforido, escancarando a bocca n'um riso immenso, foi o Joaquim, o
mošo da cavallariša que voltava da Grainha.
Gonšalo atirou os brašos, soffrego:
--EntŃo?! entŃo?!
--Pois lß estive, meu Fidalgo! exclamou o Joaquim com o peito a estalar
d'importancia. E vae por lß um povoleu, todos jß sabem! Uma rapariga dos
Bravaes espreitou tudo, de dentro do quinteiro... Depois correu,
badalou... Mas o velho, o tal Domingues que mora na casa, e o filho,
abalaram ambos. E o rapaz, ao que dizem, pouco ferido. Se cahio, sem
sentidos, foi com o susto. O Ernesto de Nacejas, esse sim, santo nome de
Deus, apanhou. Lß o levaram em brašos para casa d'um compadre alli ao
pÚ, na Arribada. Parece que fica sem orelha, e que fica sem bocca!...
Pois por todos aquelles sitios era o ai-jesus das mošas!... E logo lß o
carregam para o Hospital de Villa Clara, que na casa do Compadre nŃo
pode sarar. Um povoleu, e todos dŃo a rasŃo ao Fidalgo. O tal Domingues
era malandro. E o Ernesto, esse ninguem o podia enxergar! Mas todos lhe
tinham medo... O Fidalgo fez uma limpeza!
Gonšalo resplandecia. Ah! Ainda bem! que nŃo passßra damno mais forte,
que belleza perdida do D. Juan de Nacejas!
--E entŃo o povo por lß, a fallar, a olhar para o sitio?
--Pois o povo nŃo se arreda! E a mostrar o sangue, no chŃo, e as pedras
por onde se atirou a egoa do Fidalgo... E agora atÚ contam que foi uma
espera, e que desfecharam tres tiros ao Fidalgo, e que depois adiante no
pinhal ainda saltaram tres homens mascarados que o Fidalgo
escangalhou...
--Eis a lenda que se forma! declarou Gonšalo.
O Bento apparecera com uma larga travessa fumegante. O Fidalgo affagou
risonhamente o hombro do Joaquim. E em baixo a Rosa que abrisse, para o
almošo da familia, duas garrafas de vinho do Porto, velho. Depois com a
mŃo nas costas da cadeira murmurou gravemente:--Pensemos um momento em
Deus, que me tirou hoje d'um grande perigo!
Barr˘lo pendeu a cabeša, reverente. Gracinha, atravez d'um leve suspiro,
pensou uma leve orašŃo. E desdobravam os guardanapos; Gonšalo acclamava
a travessa de pescada ß hespanhola--quando o pequeno da Crispola
empurrou ainda a porta envidrašada źcom um telegramma, que viera da
Villa!╗ Uma inquietašŃo deteve os garfos. A manhŃ correra com tantas
agitaš§es e espantos! Mas jß um sorriso de gosto, de triumpho, se
espalhßra na fina face de Gonšalo:
--NŃo Ú nada... ╔ do Castanheiro, por causa dos capitulos do Romance que
eu lhe mandei... Coitado! Bom rapaz!
E, recostado na cadeira, recitou vagarosamente o telegramma, que os seus
olhos affagavam:--źCapitulos romance recebidos. Leitura feita amigos.
Enthusiasmo! Verdadeira obra prima! Abrašo!...╗
Barr˘lo, com a bocca cheia, bateu as palmas. E Gonšalo, sem reparar na
travessa da pescada que Bento lhe apresentava, mas enchendo o copo de
vinho verde, com uma vaga tremura, um sorriso ditoso que nŃo se
dissipava:
--Emfim, boa manhŃ... Grande manhŃ!
Gonšalo, apesar das insistencias de Gracinha e do Barr˘lo, nŃo os
acompanhou para Oliveira--no desejo de acabar, durante essa semana, o
derradeiro Capitulo da Novella, e depois cerrar o preguišoso giro de
visitas aos influentes Eleitoraes do Circulo. Assim rematava a Obra
d'Arte e a obra de Politica,--e cumpria, Deus louvado, a tarefa d'esse
verŃo fecundo!
Logo n'essa noite retomou o manuscripto da Novella--e na margem larga
lanšou a data, uma nota:--ź_Hoje, na freguesia da Grainha, tive uma
briga terrivel com dous homens que me assaltaram a pau e tiro, e que
castiguei severamente..._╗ Depois, com facilidade atacou o lance de
tanto sabor medieval, em que Tructesindo Ramires, correndo no rasto do
Bastardo, penetrava, ao espalhado e fumarento clarŃo dos archotes, no
arraial de D. Pedro de Castro.
Com grave amisade acolhia o velho homem de guerra aquelle seu primo de
Portugal, que lhe trouxera a sua forte mesnada, de Santa Ireneia, quando
os Castros combateram um grande poder de Mouros em Enxarez de Sandornin.
Depois, na vasta tenda, reluzente d'armas, tapizada de pelles de leŃo e
d'urso, Tructesindo contava, ainda a arfar de d˘r represa, a morte de
seu filho Lourenšo, ferido na lide de Canta-Pedra, acabado ß punhalada
pelo Bastardo de BayŃo, deante das muralhas de Santa Ireneia, com o sol
no ceu alto a olhar a traišŃo! Indignado, o velho Castro esmurrašou a
mesa, onde um rosario d'ouro se misturava a grossas pešas de xadrez;
jurou pela vida de Christo, que, em sessenta annos d'armas e surpresas
nunca soubera de feito mais vil! E agarrando a mŃo do senhor de Santa
Ireneia, ardentemente lhe offereceu, para a empreza da santa vinganša, a
sua hoste inteira--tresentas e trinta lanšas, vasta e rija peonagem.
--Por Santa Maria! Formosa arrancada! bradou Mendo de Briteiros com as
vermelhas barbas a flammejar de gosto.
Mas D. Garcia Viegas, o _Sabedor_, entendia que para colherem o Bastardo
vivo, como convinha a uma vinganša vagarosa e bem gosada, mais utilmente
serviria uma calada e curta fila de cavalleiros, com alguns homens de
pÚ...
--Porquŕ, D. Garcia?
--Porque o Bastardo, depois de se aligeirar, junto da Ribeira, da
pionada e carriagem correra, com a mira em Coimbra, para se acolher ß
forša da Hoste Real. N'essa noite, com o seu esfalfado bando de lanšas,
pernoitßra certamente no solar de Landim. E com o luzir da alva, para
encurtar, certamente retomava a galopada pelo velho caminho de MiradŃes,
que trepa e foge atravez das lombas do Caramulo. Ora elle, Garcia
Viegas, conhecia para deante do _Pošo da Esquecida_, certo passo, onde
poucos cavalleiros, e alguns bÚsteiros, bem postados por entre o bravio,
apanhariam Lopo de BayŃo como lobo em fojo...
Tructesindo, incerto e pensativo, mettia os dedos lentos pelos fios da
barba. O velho Castro duvidava, preferindo que se pozessse batalha ao
Bastardo em campo bem liso onde se avantajassem tantas lanšas jß
aprestadas, que depois correriam em alegre levada a assolar as terras de
BayŃo. EntŃo Garcia Viegas rogou aos seus primos d'Hespanha e de
Portugal que sahissem ao terreiro, deante da tenda, com fartura de
tochas para bem se allumiarem. E ahi, no meio dos cavalleiros curiosos,
ß claridade dos lumes inclinados, D. Garcia vergou o joelho, riscou
sobre a terra, com a ponta d'uma adaga, o roteiro da _sua cašada_ para
lhe comprovar a belleza... D'alÚm castello Landim, largaria com a alva o
Bastardo. Por aqui, quando a lua nascesse, abalariam elles, com vinte
cavalleiros dos Ramires e dos Castros, para que lidadores d'ambas as
mesnadas gosassem a lide. AlÚm, se postariam, alapados no mattagal,
besteiros e pe§es de frecha. Por traz, d'este lado, para entaipar o
Bastardo, o senhor D. Pedro de Castro, se com tŃo gostosa ajuda elle
honrasse o Senhor de Santa Ireneia. Adiante, acolß, para colher pela
gorja o villŃo, o Snr. D. Tructesindo que era o pae e Deus mandava fosse
o vingador. E alli, na estreitura o derrubariam e o sangrariam como um
porco--e como o sangue era vil, a um tiro de bÚsta encontrariam agua
farta para lavar as mŃos, a agoa do _pÚgo das Bichas_!...
--Famosa traša! murmurou Tructesindo convencido.
E D. Pedro de Castro bradou atirando um faiscante olhar aos Cavalleiros
d'Hespanha:
--Vida de Christo, que se meu tio-av˘ Gutierres tivera por Coudel aqui o
snr. D. Garcia, nŃo lhe escapavam os de Lara quando levaram o Rei
Menino, na grande carreira, para Santo Estevam de Gurivaz!... Entendido
pois, primo e amigo! E a cavallo, para a monteria, mal reponte a lua!
E recolheram as tendas--que jß nas fogueiras lourejavam os cabritos da
ceia, e os uch§es acarretavam, d'entre os carros da sarga, os pesados
odres de vinho de Tordesillas.
Com a ceia no arraial (grave e sem ruido, por que um luto velava o
corašŃo dos hospedes) Gonšalo terminou, n'essa noute, o seu capitulo IV,
lanšando ß margem outra nota:--źMeia noite... Dia cheio. Batalhei,
trabalhei.--╗. Depois no seu quarto, em quanto se despia, trašou todo o
alvoroto da briga curta em que o Bastardo como lobo em fojo quedaria
captivo, ß mercŕ vingadora dos de Santa Ireneia... Mas de manhŃ, antes
d'almošo, ao abancar com gosto para o trabalho--recebeu dous
telegrammas, que o desviaram deliciosamente da correria contra o
Bastardo de BayŃo.
Eram dois telegrammas d'Oliveira, um do BarŃo das Marges, outro do
capitŃo Mendonša--ambos com parabens ao Fidalgo źpor assim escapar de
tŃo terrivel espera, destrošando os valent§es de Nacejas.╗ O BarŃo das
Marges accrescentava:--ź_Bravissimo! ╔ d'heroe!_╗
Gonšalo, enternecido, mostrou os telegrammas ao Bento. A nova da sua
fašanha, pois, jß se espalhßra, impressionßra Oliveira,
--Foi o Snr. JosÚ Barr˘lo que contou! acudiu o Bento. E o Snr. Dr. verß!
o Snr. Dr. verß... AtÚ no Porto se vŃo assombrar!
Ao bater meio dia, rompeu pelo corredor, com estrondo, o immenso Titˇ,
acompanhado pelo JoŃo Gouveia que chegßra na vespera ß tarde da Costa,
soubera da aventura na Assembleia, corria ß Torre, como amigo para o
abrašo, antes de comparecer, como Auctoridade, para o auto. EntŃo
Gonšalo, ainda nos brašos do Gouveia, pediu generosamente, źque se nŃo
procedesse contra os bandidos...╗ O Administrador recusou, decidido e
secco, proclamando o principio da Ordem, e necessidade d'um escarmento
rijo, para que Portugal nŃo recuasse aos tempos barbaros do JoŃo BrandŃo
de Mid§es. Elle e Titˇ almošaram na torre:--e Titˇ, ß sobremesa, lembrou
galhofeiramente a conveniencia d'um brinde, e bramou elle o brinde,
comparando Gonšalo ao elefante, źsempre bom, que tanto aguenta, e de
repente, zßs, esmaga o mundo!╗
Depois JoŃo Gouveia accendendo um grande charuto reclamou a
representašŃo veridica da desordem, com os pulos, os gritos, para elle
se compenetrar como auctoridade. EntŃo atravez da varanda, reviveu a
historia heroica, simulando com o chicote sobre o divan (que terminou
por esgašar) os golpes que arremessßra imitando os tombos meio
desmaiados do valentŃo de Nacejas, quando jß o sangue o alagava. O
Administrador e o Titˇ visitaram na cavallariša a egoa historica; e no
pateo, Gonšalo ainda lhes mostrou as duas polainas de couro seccando ao
sol, lavadas do sangue que as salpicßra.
Deante do portŃo JoŃo Gouveia bateu gravemente no hombro do Fidalgo:
--Gonšalo, vossŕ deve apparecer esta noite na Assembleia...
Appareceu--e foi acolhido como o vencedor d'uma batalha illustre. No
bilhar, por proposta do velho Ribas, flammejou um grande punche---e o
Commendador Barros, afogueado, teimava que no domingo se celebrasse em
S. Francisco um Te-Deum de grašas, de que elle costearia as despezas,
com orgulho, caramba! ┴ sahida, acompanhado pelo Titˇ, pelo Gouveia,
pelo Manoel Duarte, por outros socios, encontraram o Videirinha--que nŃo
pertencia ß Assembleia, mas rondava, esperando o Fidalgo para lhe lanšar
duas trovas do _Fado_, improvisadas n'essa tarde, em que o exaltava
acima dos outros Ramires, da Historia e da Lenda!
O rancho quedou no chafariz. O violŃo gemeu, com amor. E o cantar do
Videirinha, elevado da alma, varou a muda ramagem das olaias:
Os Ramires d'outras eras
Venciam com grandes lanšas,
Este vence com um chicote,
Vŕde que estranhas mudanšas!
╔ que os Ramires famosos,
Da passada gerašŃo,
Tinham a forša nas armas
E este a tem no corašŃo!
A tŃo requebrado conceito--os amigos romperam em vivas a Gonšalo, ß Casa
de Ramires. E o Fidalgo recolhendo ß Torre, commovido, pensava:
--╔ curioso! Esta gente toda parece gostar de mim!...
Mas que emošŃo quando, de manhŃ cedo, o Bento o acordou com um
telegramma de Lisboa! Era do Cavalleiro--que źsoubera pelos jornaes
attentado, lhe mandava enthusiastico abrašo pela felicidade e pela
valentia!╗ Gonšalo berrou, sentado na cama:
--Caramba! entŃo os jornaes em Lisboa jß fallam, Bento! o caso anda
celebrado!
Certamente celebrado!--por que durante o delicioso dia, o mošo do
Telegrapho, esbaforido sobre a perna manca, nŃo cessou d'empurrar o
portŃo da Torre, com outros telegrammas, todos de Lisboa, da Condessa de
Chellas; de Duarte Lourenšal; dos Marquezes de Cˇja _felicitando_; da
tia Louredo com źparabens ao destemido sobrinho╗; da marqueza
d'Esposende źesperando que o caro primo tivesse agradecido a Deus!╗... E
o ultimo do Castanheiro, com exclamaš§es:--_Magnifico! Digno de
Tructesindo!_--Gonšalo, pela livraria, erguia os brašos, estonteado:
--Santo nome de Deus! mas que terŃo dito os jornaes?
E, por entre os Telegrammas, accudiam os cavalheiros dos arredores, os
influentes,--o Dr. Alexandrino, aterrado, antevendo um regresso ao
Cabralismo; o velho Pacheco Valladares de Sß, que nŃo se espantßra do
seu nobre primo, por que sangue de Ramires, como sangue de Sßs, sempre
ferve; o padre Vicente da Finta, que com os seus parabens, offereceu um
cestinho de cachos do seu famoso moscatel tinto; e por fim o Visconde de
Rio-Manso, que agarrado a Gonšalo, solušou, no enternecimento quasi
ufano de que a briga assim rompesse, na estrada, quando źo querido
amigo, o amigo da sua Rosa╗ se encaminhava para a _Varandinha_. Gonšalo,
afogueado, banhado de riso, abrašava, recontava pacientemente a fašanha,
acompanhava atÚ ao portŃo aquelles cavalheiros, que ao montar as egoas,
ao entrar nas caleches, sorriam para a velha Torre, escura e rigida, na
doce claridade da tarde de Setembro, como saudando, depois do heroe, o
secular fundamento do seu heroismo.
E o Fidalgo, galgando as escadas para a livraria, de novo murmurava,
estonteado:
--Que terŃo dito os jornaes de Lisboa?
Nem dormiu, na anciedade de os devorar. Quando o Bento, em alvorošo,
rompeu pelo quarto com o correio--Gonšalo saltou, arrojou o lenšol, como
se abafasse. E logo no _Seculo_, soffregamente percorrido, encontrou o
telegramma d'Oliveira, contando o assalto! os tiros disparados! a
immensa coragem do Fidalgo da Torre, que com um simples chicote... O
Bento quasi arrebatou o _Seculo_ das mŃos tremulas do Fidalgo, para
correr ß cosinha, bramar ß Rosa a noticia gloriosa!
De tarde, Gonšalo correu a Villa-Clara, ß Assembleia, para devorar os
outros jornaes de Lisboa, os do Porto. Todos contavam, todos celebravam!
A _Gazeta do Porto_, attribuindo o attentado a Politica, ultrajava
furiosamente o Governo. O _Liberal Portuense_, porÚm, relacionava źcom
certas vinganšas dos republicanos d'Oliveira, o pavoroso attentado que
quasi causßra a morte d'um dos maiores fidalgos de Portugal e d'Hespanha
e d'um dos mais pujantes talentos da nova gerašŃo!╗ Os jornaes de
Lisboa, glorificavam sobre tudo źa coragem explendida do Snr. Gonšalo
Ramires.╗ E o mais ardente era a _ManhŃ_, n'um verboso artigo (de certo
escripto pelo Castanheiro), recordando as heroicas tradiš§es da Casa
illustre, esbošando as bellezas do Castello de Santa Ireneia e
terminando por affirmar que źagora, se esperava com redobrada anciedade
a apparišŃo da novella de Gonšalo Ramires, fundada sobre um feito de seu
av˘ Tructesindo no seculo XII, e promettida para o primeiro numero dos
*Annaes de Litteratura e de Historia*, a nova Revista do nosso querido
amigo Lucio Castanheiro, esse benemerito restaurador da Consciencia
heroica de Portugal!╗--As mŃos de Gonšalo, ao desdobrar os jornaes,
tremiam. E o JoŃo Gouveia, tambem soffrego, devorando tambem os artigos,
por sobre o hombro do Fidalgo, murmurava, impressionado:
--Vossŕ, Gonšalinho, vae ter uma votašŃo tremenda!
Depois n'essa noute, recolhendo ß Torre, Gonšalo encontrou uma carta que
o perturbou. Era de Maria de Mendonša, n'um papel perfumado, com o mesmo
perfume que tŃo docemente espalhava D. Anna, pelo adro de Santa Maria de
Craquŕde:--źSˇ esta manhŃ soubemos o grande perigo que passou, e ficamos
_ambas_ muito commovidas. Mas ao mesmo tempo eu (e nŃo sˇ eu) muito
vaidosa da magnifica coragem do primo. ╔ d'um verdadeiro Ramires! Eu nŃo
vou ahi abrašal-o (com risco de me comprometter e _fazer invejas_) por
que um dos meus pequenos, o Neco, anda muito constipado. Felizmente nŃo
Ú cousa de cuidado... Mas aqui todos, atÚ os pequenos, anciamos por vŕr
o heroe, e nŃo creio que houvesse nada d'extraordinario, nem _d'um lado_
nem _d'outro_, em que o primo por aqui apparecesse alÚm d'amanhŃ (quinta
feira) pelas tres horas. Davamos um passeio na quinta, e atÚ se
merendava, ß boa e velha moda dos nossos avˇs. Estß dito? Muitos
comprimentos, _muitos_, da Annica, e o primo creia-me, etc.╗--Gonšalo
sorriu, pensativamente, considerando a carta, recebendo o aroma. Nunca a
prima Maria lhe empurrßra, tŃo claramente, a D. Anna para os brašos... E
como D. Anna se deixava empurrar, prompta, e d'olhos cerrados... Ah, se
fosse somente para a alcova! Mas ai! era tambem para a Egreja. E de novo
sentia aquelle vozeirŃo do Titˇ, nos degraus da portinha verde com a lua
cheia por cima dos olmos negros: źEssa creatura teve um amante, e tu
sabes que eu nunca minto?╗
EntŃo tomou lentamente a penna, respondeu a D. Maria Mendonša:--źQuerida
prima--Fiquei muito enternecido com o seu cuidado, e os seus
enthusiasmos. NŃo exaggeremos! Eu nŃo fiz mais que correr a chicote uns
valent§es que me assaltaram a tiro. ╔ fašanha facil para quem tenha,
como eu, um chicote excellente. Emquanto ß visita ß _Feitosa_, que me
seria tŃo agradavel, nŃo a posso realisar com fundo pezar meu, nem na
quinta-feira, nem mesmo por todo este mez... Ando occupadissimo com o
meu livro, a minha EleišŃo, a minha mudanša para Lisboa. A era dos
cuidados sÚrios soou severamente para mim,--cerrando a doce era dos
passeios e dos sonhos. Pešo que apresente ß Snr.^a D. Anna os meus
profundos respeitos. E com muitas amisades para si, e bons desejos pelo
restabelecimento d'esse querido Neco, espero me creia sempre seu
dedicado e grato primo, etc.╗
Fechou vagarosamente a carta. E batendo o seu sinete d'armas sobre o
lacre verde, pensava:
--Assim aquelle maroto do Titˇ me rouba dusentos contos!...
* * * * *
Durante toda essa macia semana dos fins de Setembro, Gonšalo trabalhou
no Capitulo final da sua Novella.
Era emfim a madrugada vingadora em que os Cavalleiros de Santa Ireneia,
reforšados pelas mais nobres lanšas da mesnada dos Castros,
surprehendiam, no bravio desfiladeiro marcado por Garcia Viegas, o
_Sabedor_, o bando de BayŃo, na sua ašodada corrida sobre Coimbra...
Briga curta e falsa, sem destro e brioso teršar d'armas, mais semelhante
a montaria contra um lobo do que a arremettida contra um Filho-de-Algo.
E assim a desejßra Tructesindo, com ruidosa approvašŃo de D. Pedro de
Castro, por que nŃo se cuidava de combater um inimigo, mas de colher um
matador.
Antes do luzir d'alva, o Bastardo abalßra do castello de Landim, em dura
pressa e com tŃo descuidada seguranša, que nem almogavar nem coudel lhe
atalayavam os trilhos. As cotovias cantavam quando elle, em aspero
trote, penetrou por essa brecha, entalada entre escarpas de penedia e
urze, que chamam a _Racha do Moiro_, desde que Mafoma a fendeu para que
escapassem as adagas christans de El-Rei Fernando, o _Magno_, o Alcaide
moiro de Coimbra e a monja que elle arrebatßra ß garupa. E apenas pela
esguia greta enfißra a derradeira lanša da fila--eis que da outra
embocadura do valle surde o cerrado trošo dos cavalleiros de Santa
Ireneia, que Tructesindo guia, com a viseira erguida, sem broquel,
sacudindo apenas uma ascuma de monte como se folgadamente andasse em
cašada. Da selva arredada que os encobria, rompem por traz as lanšas dos
Castros, ristadas e cerrando a brecha mais densamente que as puas d'uma
levadiša. Do recosto dos cerros rˇla, como reprŕsa solta, uma rude e
escura peonagem! Colhido, perdido, o Bastardo terrivel! Ainda arranca
furiosamente a espada, que redomoinhando o cor˘a de coriscos. Ainda com
um fero grito arremette contra Tructesindo... Mas bruscamente, d'entre
um escuro magote de fundeiros baleares, parte ondeando uma corda de
canave, que o laša pela gargalheira, o arranca n'um brusco sacŃo da sela
mourisca, o derriba, sobre pedregulhos em que a sua larga espada se
entala e se parte rente ao punho dourado. E emquanto os cavalleiros de
BayŃo aguentam assombradamente o denso cerco de lanšas, que os
envolvera--um r˘lo de pe§es, em dura grita, como mastins sobre um cerdo,
arrastam o Bastardo para a lomba do outeiro, onde lhe arrancam broquel e
adaga, lhe despedašam o brial de lŃ r˘xa, lhe quebram os fechos do elmo,
para lhe cuspirem na face, nas barbas c˘r de ouro, tŃo bellas e de tanto
orgulho!
Depois a mesma bruta matula o iša, amarrado, para sobre o dorso d'uma
possante mula de carga, o estende entre dous esguios caixotes de
virot§es, como rez apanhada ao recolher da montaria. E servos da
carriagem ficam guardando o Cavalleiro soberbo, o _Claro-Sol_ que
allumiava a casa de BayŃo, agora entaipado entre dois caixotes de pau,
com cordas nos pÚs, e cordas nas mŃos, e n'ellas espetado um triste ramo
de cardo--emblema da sua traišŃo.
No emtanto os seus quinze Cavalleiros juncavam o chŃo, esmagados sob o
furioso cerco de lanšas que os investira--uns hirtos, como adormecidos,
dentro das negras armaduras, outros torcidos, desfeitos, com as carnes
retalhadas, pendendo horrendamente entre malhas rotas dos lorigaes. Os
escudeiros, colhidos, empurrados a pontoada de chušo para a boca d'uma
barroca, sem resgate ou mercŕ, como alcateia immunda de roubadores de
gado, acabaram, decepados a macheta pelos barbudos estafeiros leonezes.
Todo o valle cheirava a sangue como um pateo de magarefes. Para
reconhecer os companheiros do Bastardo, uma turma de cavalleiros
desafivelava os gorjaes, as viseiras, arrancando furtivamente as
medalhas de prata, os bentos, saquinhos de reliquias, que todos traziam
como bem-tementes. N'uma face, de fina barba negra, que uma espuma
sangrenta manchava, Mendo de Briteiros reconheceu seu primo Sueiro de
Lugilde com quem, pela fogueira de S. JoŃo, folgßra tŃo docemente e
bailßra no castello de Unhello,--e vergado sobre a alta sella rezou,
pela pobre alma sem confissŃo, uma devota Ave-Maria. Fuscas, tristonhas
nuvens, abafavam a manhŃ d'Agosto. E afastados ß entrada do valle, sob a
ramagem d'um velho azinheiro, Tructesindo, D. Pedro de Castro, e Garcia
Viegas, o _Sabedor_, decidiam que morte lenta, e bem dorida e viltosa,
se daria ao Bastardo, villŃo de tŃo negra vilta.
Contando assim a sombria emboscada com o gemente esforšo de quem empurra
um arado por terra pedreira--gastßra Gonšalo essa doce semana de
Setembro. E no sabbado, cedo, na livraria, com os cabellos ainda
molhados do banho de chuva, esfregava as mŃos deante da banca--porque
certamente com duas horas de attento trabalho, findaria antes d'almošo a
sua Novella, a sua Obra! E todavia esse final, quasi o repellia, com o
seu sujo horror. O tio Duarte no seu Poemeto apenas o esbošßra, com
esquiva indecisŃo, como nobre Lyrico que ante uma visŃo de bruta
ferocidade solta um lamento, resguarda a Lyra, e desvia para sendas mais
doces. E, ao tomar a penna, Gonšalo tambem, realmente lamentava que seu
av˘ Tructesindo nŃo matasse outr'ora o Bastardo, no fragor da briga, com
uma d'essas cutiladas maravilhosas, e tŃo doces de celebrar, que racham
o cavalleiro e depois racham o ginete, e para sempre retinem na
Historia.
Mas nŃo! Sob a folhagem do azinheiro, os tres cavalleiros combinavam com
lentidŃo uma vinganša terrifica. Tructesindo desejßra logo recolher a
Santa Ireneia, alšar uma forca deante das barbacans, no chŃo em que seu
filho rolßra morto, e n'ella enforcar, depois de bem ašoitado, como
villŃo, o villŃo que o matßra. O velho D. Pedro de Castro, porÚm,
aconselhava despacho mais curto, e tambem gostoso. Para que rodear por
Santa-Ireneia, desbaratar esse dia d'Agosto na arrancada que os levava a
Montemˇr, a soccorro das Infantas de Portugal? Que se estendesse o
Bastardo amarrado sobre uma trave, aos pÚs de D. Tructesindo, como porco
pelo Natal, e que um cavallarišo lhe chamuscasse as barbas, e depois
outro, com facalhŃo de ucharia, o sangrasse no pescošo,
pachorrentamente.
--Que vos parece, Snr. D. Garcia?
O _Sabedor_ desafivelßra o casco de ferro, limpava nas rugas o suor e a
poeira da lide:
--Senhores e amigos! Temos melhor, e perto tambem, sem delongas de
cavalgada, logo adiante destes cerros, no _Pego das Bichas_... E nem
torcemos caminho, que de lß, por Tordezello e Santa Maria da Varge,
endireitamos a Montemˇr, tŃo direitos como v˘a o corvo... Confiae em
mim, Tructesindo! Confiae em mim, que eu arranjarei ao Bastardo tal
morte e tŃo vil, que d'outra egual se nŃo possa contar desde que
Portugal foi condado.
--Mais vil que forca, para cavalleiro, meu velho Garcia?
--Lß vereis, senhores e amigos, lß vereis!
--Seja! Mandae dar ßs bozinas.
Ao commando d'Affonso Gomes, o Alferes, as bozinas soaram. Um trošo de
besteiros e de estafeiros Leoneses rodearam a mula que carregava o
Bastardo amarrado e entalado entre dois caixotes. E acaudilhada por D.
Garcia, a curta hoste metteu para o _Pego das Bichas_, em desbando, com
os senhores de lanša espalhados, como em marcha de folganša e paz, (?) e
todos n'uma rija fallada recordando, entre gabos e risos, as proezas da
lide.
A duas leguas de Tordezello e do seu castello formoso, se escondia entre
os cerros o _Pego das Bichas_. Era um lugar de eterno silencio e de
eterna tristeza. Em esmerados versos lhe marcßra o tio Duarte a desolada
asperidŃo:
Nem trillo d'ave em balanšado ramo!
Nem fresca fl˘r junto de fresco arroio!
Sˇ rocha, mattagal, ribas soturnas,
E em meio o _Pego_, tenebroso e morto!...
E quando os primeiros cavalleiros, galgada a lomba d'um cerro, o
avistaram, na melancholia da manhŃ nevoenta, emmudeceram da larga
fallada, repucharam os freios, assustados ante tŃo aspero ermo, tŃo
propicio a Bruxas, a Avantesmas e a Almas penadas. Deante do escalavrado
barranco, por onde os ginetes escorregavam, ondulava uma ribanceira,
aberta com charcos lamacentos, quasi chupados pela estiagem, luzindo
pardamente, por entre grossos pedregulhos e o tojo rasteiro. Ao fundo, a
meio tiro de bÚsta, negrejava o _Pego_, lagoa estreita, lisa, sem uma
ruga n'agua, duramente negra, com manchas mais negras, como lamina
d'estanho onde alastrasse a ferrugem do tempo e do abandono. Em torno
subiam os cerros, erišados de matto bravio e alto, sulcados por trilhos
de saibro vermelho como por fios de sangue que escoresse, e rasgados no
alto por penedias lustrosas, mais brancas que ossadas. TŃo pesado era o
silencio, tŃo pesada a soledade, que o velho D. Pedro de Castro, homem
de tanta jornada, se espantou:
--Feia paragem! E voto a Christo, a Santa Maria, que nunca antes de nˇs,
n'ella entrou homem remido pelo baptismo.
--Pois, Snr. D. Pedro de Castro! accudiu o _Sabedor_, jß por aqui se
moveu muita lanša, e luzida, e ainda em tempos do Conde D. Sueiro, e de
vosso rei D. Fernando, se erguia n'aquella beira d'agua, uma castellania
famosa! Vŕde alÚm!--E mostrava na ponta do pego, fronteira ao barranco,
dous rijos pilares de pedra, que emergiam da agua negra, e que chuva e
vento polira como marmores finos. Um passadišo de traves, sobre estacas
limosas e meio apodrecidas, atava a margem ao mais grosso dos pilares. E
a meio d'esse rude esteio pendia uma argola de ferro.
No emtanto jß o tropel da peonagem se espalhßra pela ribanceira. D.
Garcia Viegas desmontou, bradando por Pero Ermigues, o Coudel dos
bÚsteiros de Santa Ireneia. E, ao lado do ginete de Tructesindo, risonho
e gozando a surpreza, ordenou ao Coudel que seis dos seus rijos homens
descessem o Bastardo da mula, o estirassem no chŃo, o despissem, todo
n˙, como sua mŃe barregŃ o soltßra ß negra vida...
Tructesindo encarou o _Sabedor_, franzindo as sobrancelhas hirsutas:
--Por Deus, D. Garcia! que me ides simplesmente afogar o villŃo, e sujar
essa agua innocente!...
E alguns Cavalleiros, em redor, murmuraram tambem contra morte tŃo
quieta e sem malicia. Mas os miudos olhos de D. Garcia giravam,
lampejavam de triumpho e gosto:
--Socegae, socegae! Velho estou certamente, mas ainda o senhor Deus me
consente algumas trašas. NŃo! Nem enforcado, nem degolado, nem
afogado... Mas chupado, senhores! Chupado em vida, e de vagar, pelas
grandes sanguesugas que enchem toda essa agua negra!
D. Pedro de Castro, maravilhado, bateu o guante nas solhas do coxote:
--Vida de Christo! Que ter n'uma hoste o Snr. D. Garcia, Ú ter
juntamente, para marchas e conselho, enrolados n'um sˇ, Annibal e
Aristoteles!
Um rumor d'admirašŃo correu pela hoste:
--Boa traša, boa traša!
E Tructesindo, radiante, bradava:
--Andar, andar, bÚsteiros! E vˇs, senhores, recuae para a lomba do
cerro, como para palanque, que vae ser grande a vista! Jß seis bÚsteiros
descarregavam da mula o Bastardo amarrado. Outros cercavam, com mˇlhos
de cordas. E, como magarefes para esfolar uma rez, toda a rude turma se
abateu sobre o malfadado, arrancando por cordas que desatavam a
cervilheira, o saio, as grevas, os sapat§es de ferro, depois a grossa
roupa de linho encardido. Agarrado pelos compridos cabellos, filado
pelos pÚs, onde se cravavam agudas unhas no furor de o manter, com os
brašos esmagados sob outros grossos brašos retŕsos, o possante Bastardo
ainda se estorcia, urrando, cuspindo contra as faces confusas da
matulagem um cuspo avermelhado, que espumava!
Mas, por entre o escuro tropel que o cobria, o seu corpo, todo despido,
branquejava, atado com cordas mais grossas. Lentamente o seu furioso
urrar esmorecia, arquejado e rouquenho. E um apˇs outro se erguiam os
bÚsteiros, esfalfados, bufando, limpando o suor do esforšo.
No emtanto os Cavalleiros d'Hespanha, de Santa Ireneia, desmontavam
cravando o couto das lanšas entre o tojo e as pedras. Todos os recostos
dos outeiros se cubriam da mesnada espalhada, como palanques em tarde de
justa. Sobre uma rocha mais lisa, que dous magros espinheiros toldavam
de folha rala, um pagem estendera pelles d'ovelha para o Snr. D. Pedro
de Castro, para o senhor de Santa Ireneia. Mas sˇ o velho _CastellŃo_ se
accommodou, para uma repousada delonga, desafivelando o seu corselete de
ferro tauxeado d'ouro.
Tructesindo permanecera erguido, mudo, com os guantes apoiados ao punho
da sua alta espada, os olhos fundos ßvidamente cravados na tenebrosa
lag˘a que, com morte tŃo fera e tŃo suja, vingaria seu filho... E pela
borda do _Pego_, pe§es, e alguns cavalleiros d'Hespanha, remexiam com
virot§es, com os coutos das ascumas, a agua lodosa, na curiosidade das
negras bichas escondidas, que o povoavam.
Subitamente a um brado de D. Garcia, que rondava, toda a chusma de pe§es
amontoada em torno ao Bastardo se arredou:--e o forte corpo appareceu,
n˙ e branco, sobre a terra negra, com um denso pello ruivo nos peitos, a
sua virilidade afogada n'outra matta de pello ruivo, e todo ligado por
cordas de canave que o inteirišavam. N'aquella rigidez de fardo, nem as
costellas arfavam--apenas os olhos refulgiam, ensanguentados,
horrendamente esbugalhados pelo espanto e pelo furor. Alguns cavalleiros
correram a mirar a aviltada nudez do homem famoso de BayŃo. O senhor dos
Pašos d'Argelim mofou, com estrondo:
--Bem o sabia, por Deus! Corpo de manceba, sem costura de ferida!...
Leonel de ăamora raspou o sapato de ferro pelo hombro do malfadado:
--Vŕde este _Claro-Sol_, tŃo claro, que se apaga agora, em agua tŃo
negra!
O Bastardo cerrava duramente as palpebras,--d'onde duas grossas lagrimas
escaparam, lentamente rolaram... Mas um agudo pregŃo resoou pela
ribanceira:
--Justiša! Justiša!
Era o Adail de Santa Ireneia, que marchava, sacudia uma lanša, atroava
os cerros:
--Justiša! justiša que manda fazer o Senhor de Treixedo e de Santa
Ireneia, n'um perro matador!... Justiša n'um perro, filho de perra, que
matou vilmente, e assim morra vilmente por ella!...
Trez vezes pregoou por deante da hoste apinhada nos cerros. Depois
quedou, saudou humildemente Tructesindo Ramires, o velho Castro,--como a
julgadores no seu Estrado de julgamento.
--Aviae, aviae! bradava o Senhor de Santa Ireneia.
Immediatamente, a um commando do _Sabedor_, seis bÚsteiros, com as
pernas embrulhadas em mantas da carga, ergueram o corpo do Bastardo como
se ergue um morto enrolado no seu lenšol, e com elle entraram na agua,
atÚ ao mais alto pilar de granito. Outros, arrastando molhos de cordas,
correram pelo limoso passadišo de traves. Com um alarido d'_aguenta!
endireita! alša!_ n'um desesperado esforšo o robusto corpo branco foi
mergulhado n'agua atÚ ßs virilhas, arrimado ao mais alto pilar, depois
n'elle atado com um longo calabre que, passando pela argola de ferro, o
suspendia, sem escorregar, tŃo seguro e collado como um r˘lo de vela que
se amarra ao mastro. Rapidamente os bÚsteiros fugiram d'agoa,
desentrapando logo as pernas, que palpavam, raspavam no horror das
bichas sugadoras. Os outros recolheram pelo passadišo, n'uma fila que se
empurrava. No Pego ficava Lopo de BayŃo bem arranjado para a vistosa
morte lenta, com a agoa que jß o afogava atÚ ßs pernas, com cordas que o
enroscavam atÚ ao pescošo como a um escravo no poste; e uma espessa
mecha dos cabellos louros lašada na argola de ferro, repuxando a face
clara, para que todos n'ella gozassem largamente a humilhada agonia do
_Claro-Sol_.
EntŃo o attento da hoste, esperando espalhada pelos recostos dos cerros,
mais entristeceu o enevoado silencio do ermo. A agoa jazia sem um
arrepio, com as suas manchas, negras como uma lamina d'estanho
enferrujado. Entre as cristas das rochas, archeiros postados pelo
_Sabedor_, atalaiavam, para alÚm, os descampados. Um alto v˘o de gralha
atrevessou grasnando. Depois um bafo lento agitou as flamulas das lanšas
cravadas no tojo denso.
Para despertar, aviar a lentidŃo das bichas, alguns pe§es atiravam
pedras ß agoa lodosa. Jß alguns cavalleiros hespanhoes rosnavam
impacientes com a delonga, n'aquella cova abafada. Outros, descendo
agachados a borda da lag˘a, para mostrar que falladas bichas nunca
acudiriam, mergulhavam lentamente, n'agoa negra, as mŃos descalšadas,
que depois sacudiam, rindo, e mofando o _Sabedor_... Mas de repente um
estremešŃo sacudiu o corpo do Bastardo; os seus rijos musculos, no
furioso esforšo de se desprenderem, inchavam entre as cordas, como
cobras que se arqueiam; dos beišos arreganhados romperam, em rugidos, em
grunhidos, ultrages e ameašas contra Tructesindo covarde, e contra toda
a raša de Ramires, que elle emprasava, dentro do anno, para as labaredas
do Inferno! Indignado, um Cavalleiro de Santa Ireneia agarrou uma bÚsta
de garrunche, a que retesou a corda.
Mas D. Garcia deteve o arremesso:
--Por Deus, amigo! NŃo roubeis ßs sanguesugas nem uma pinga d'aquelle
sangue fresco!... Vŕde como veem! vŕde como veem!
Na agoa espessa, em torno ßs coxas mergulhadas do Bastardo, um fremito
corria, grossas bolhas empolavam,--e d'ellas, mollemente, uma bicha
surdio, depois outra e outra, lusidias e negras, que ondulavam, se
collavam ß branca pelle do ventre, d'onde pendiam, chupando, logo
engrossadas, mais lustrosas com o lento sangue que jß escorria. O
Bastardo emmudecera--e os seus dentes batiam estridentemente. Enojados,
atÚ rudes pe§es desviaram a face cuspindo para as urzes. Outros, porÚm,
chasqueavam, assuavam as bichas, gritando--_a elle, donzellas! a elle!_
E o gentil ăamora de Cendufe, clamava rindo contra tŃo ensossa morte!
Por Deus! Uma apostura de bichas, como a enfermo d'almorreimas. Nem era
sentenša de Rico-Homem--mas receita d'herbanista moiro!
--Pois que mais quereis, meu Leonel? acudio alegremente o _Sabedor_,
resplandecendo. Morte Ú esta para se contar em livros! E nŃo tereis este
inverno serŃo ß lareira, por todos os solares de Minho a Douro, em que
nŃo volte a historia d'este Pego, e d'este feito! Olhae nosso primo
Tructesindo Ramires! Formosos tratos presenceou de certo em tŃo longo
lidar d'armas!... E como goza! tŃo attento! tŃo maravilhado!
Na encosta do outeiro, junto do seu balsŃo, que o Alferes cravßra entre
duas pedras, e como elle tŃo quŕdo, o velho Ramires nŃo despregava os
olhos do corpo do Bastardo, com deleite bravio, n'um fulgor sombrio.
Nunca elle esperßra vinganša tŃo magnifica! O homem que atßra seu filho
com cordas, o arrastßra n'umas andas, o retalhßra a punhal deante das
barbacans da sua Honra--agora, vilmente n˙, amarrado tambem como cerdo,
pendurado d'um pilar, emergido n'uma agoa suja, e chupado por
sanguesugas, deante de duas mesnadas, das melhores d'Hespanha, que
miravam, que mofavam! Aquelle sangue, o sangue da raša detestada, nŃo o
bebia a terra revolta n'uma tarde de batalha, escorrendo de ferida
honrada, atravez de rija armadura--mas, gota a gota, escuramente e
mollemente se sumia, sorvido por nojentas bichas, que surdiam famintas
do lodo e no lodo recahiam fartas, para sobre o lodo bolsar o orgulhoso
sangue que as enfartßra. N'um charco, onde elle o mergulhßra, viscosas
bichas bebiam socegadamente o cavalleiro de BayŃo! Onde houvera homizio
de solares fundado em desforra mais d˘ce?
E a fera alma do velho acompanhava, com inexoravel goso, as sanguesugas
subindo, espalhadamente alastrando por aquelle corpo bem amarrado, como
seguro rebanho pela encosta da collina onde pasta. O ventre jß
desapparecia sob uma camada viscosa e negra, que latejava, relusia na
humidade morna do sangue. Uma fila sugava a cinta, encovada pela ancia,
d'onde sangue se esfiava, n'uma franja lenta. O denso pello ruivo do
peito, como a espessura d'uma selva, detivera muitas, que ondulavam, com
um rasto de lodo. Um montŃo ennovelado sangrava um brašo. As mais
fartas, jß inchadas, mais relusentes, despegavam, tombavam mollemente:
mas logo outras, famintas, se aferravam. Das chagas abandonadas o sangue
escorria delgado, represo nas cordas, d'onde pingava como uma chuva
rala. Na escura agoa boiavam gordas postemas de sangue esperdišado. E
assim sorvido, ressumando sangue, o malfadado ainda rugia, atravez
ultrages immundos, ameašas de mortes, de incendios, contra a raša dos
Ramires! Depois, com um arquejar em que as cordas quasi estalavam, a
bocca horrendamente escancarada e avida, rompia aos roucos urros,
implorando _agoa, agoa!_ No seu furor as unhas, que uma volta de amarras
lhe collßra contra as fortes c˘xas, esfarrapavam a carne, cravavam-se na
fenda esfarrapada, ensopadas de sangue.
E o furioso tumulto esmorecia n'um longo gemer canšado--atÚ que parecia
adormecido nos grossos nˇs das cordas, as barbas relusindo sob o suor
que as alagßra como sob um grosso orvalho, e entre ellas a espantada
lividez d'um sorriso delirado.
No emtanto jß na hoste derramada pelos cerros, como por um palanque, se
embotßra a curiosidade bravia d'aquelle supplicio novo. E se acercava a
hora da rašŃo de meridiana. O Adail de Santa Ireneia, depois o Almocadem
Hespanhol, mandaram soar os anafins. EntŃo todo o ßspero ermo se animou
com uma faina d'arraial. O almazem das duas mesnadas parßra por detraz
dos morros, n'uma curta almargem d'herva, onde um regato claro se
arrastava nos seixos, por entre as raizes de amieiros chor§es. N'uma
pressa esfaimada, saltando sobre as pedras, os pe§es corriam para a fila
dos machos de carga, recebiam dos uch§es e estafeiros a fatia de carne,
a grossa metade d'um pŃo escuro: e, espalhados pela sombra do arvoredo,
comiam com silenciosa lentidŃo, bebendo da agoa do regato pelas concas
de pau. Depois preguišavam, estirados na relva,--ou trepavam em bando
pela outra encosta dos morros, atravÚs do matto, na esperanša
d'atravessar com um virote alguma caša erradia. Na ribanceira, deante da
lag˘a, os cavalleiros, sentados sobre grossas mantas, comiam tambem, em
roda dos alforges abertos, cortando com os punhaes nacos de gordura nas
grossas viandas de porco, empinando, em longos tragos, as bojudas
cabašas de vinho.
Convidado por D. Pedro de Castro, o velho _Sabedor_ descanšava,
partilhando d'uma larga escudella de barro, cheia de _bolo papal_, d'um
bolo de mel e fl˘r de farinha, onde ambos enterravam lentamente os
dedos, que depois limpavam ao forro dos morri§es. Sˇ o velho Tructesindo
nŃo comia, nŃo repousava, hirto e mudo deante do seu pendŃo, entre os
seus dous mastins, n'aquelle fero dever de acompanhar, sem que lhe
escapasse um arrepio, um gemido, um fio de sangue, a agonia do Bastardo.
Debalde o _CastellŃo_, estendendo para elle um pichel de prata, gabava o
seu vinho de Tordesillas, fresco como nenhum d'Aquilat ou de Provins,
para a sede de tŃo rija arrancada. O velho Rico-Homem nem attendera:--e
D. Pedro de Castro, depois de atirar dous pŃes aos al§es fieis,
recomešou discorrendo com Garcia Viegas sobre aquelle teimoso amor do
Bastardo por Violante Ramires que arrastßra a tantos homizios e furores.
--Ditosos nˇs, Snr. D. Garcia! Nˇs a quem a edade e o quebranto e a
fartura jß arredam d'essas tentaš§es... Que a mulher, como m'ensinava
certo Physico quando eu andava com os moiros, Ú vento que consola e
cheira bem, mas tudo enrodilha e esbandalha. Vŕde como os meus por ellas
penaram! Sˇ meu pae, com aquella desvairanša de zelos, em que matou a
cutello minha d˘ce madre Estevaninha. E ella tŃo santa, e filha do
Imperador! A tudo, tudo leva, a tonta ardencia! AtÚ a morrer, como este,
sugado por bichas, deante d'uma hoste que merenda e mofa. E por Deus,
quanto tarda em morrer, Snr. D. Garcia!
--Morrendo estß, Snr. D. Pedro de Castro. E jß com o demo ao lado para o
levar!
O Bastardo morria. Entre os nˇs das cordas ensanguentadas todo elle era
uma ascorosa aventesma escarlate e negra com as viscosas pastas de
bichas que o cobriam, latejando com os lentos fios de sangue que de cada
ferida escorriam, mais copiosos que os regos d'humidade por um muro
denegrido.
O desesperado arquejar cessßra, e a ancia contra as cordas, e todo o
furor. Molle e inerte como um fardo, apenas a espašos esbogalhava
horrendamente os olhos vagarosos, que revolvia em torno com enevoado
pavor. Depois a face abatia, livida e flaccida, com o beišo pendurado,
escancarando a bocca em cova negra, d'onde se escoava uma baba
ensanguentada. E das palpebras novamente cerradas, entumecidas, um muco
gotejava, tambem como de lagrimas engrossadas com sangue.
A peonagem, no emtanto, voltando da rašŃo, reatulhava a ribanceira,
pasmava, com rudes chufas para o corpo pavoroso que as bichas ainda
sugavam. Jß os pagens recolhiam manteis e alforges. D. Pedro de Castro
descera do cabešo com o _Sabedor_ atÚ ß borda da agoa lodosa, onde quasi
mergulhava os sapatos de ferro, para contemplar, mais de cerca, o
agonisante de tŃo rara agonia! E alguns senhores, estafados com a
delonga, afivelando os gibanetes, murmuravam:--źEstß morto! Estß
acabado!╗
EntŃo Garcia Viegas gritou ao Coudel dos BÚsteiros:
--Ermigues, ide vŕr se ainda resta alento n'aquella postema.
O Coudel correu pelo passadišo de traves, e arrepiado de nojo palpou a
livida carne, acercou da bocca, toda aberta, a lamina clara da adaga que
desembainhßra.
--Morto! morto!--gritou.
Estava morto. Dentro das cordas que o arroxeavam o corpo escorregava,
engilhado, chupado, esvasiado. O sangue jß nŃo manava, havia coalhado em
postas escuras, onde algumas bichas teimavam latejando, relusindo. E
outras ainda subiam, tardias. Duas, enormes, remexiam na orelha. Outra
tapava um olho. O _Claro-Sol_ nŃo era mais que uma immundice que se
decompunha. Sˇ a madeixa dos cabellos louros, repuxada, presa na argola,
relusia com um lampejo de chamma, como rastro deixado pela ardente alma
que fugira.
Com a adaga ainda desembainhada, e que sacudia, o Coudel avanšou para o
Senhor de Santa Ireneia, bradou:
--Justiša estß feita, que mandastes fazer no perro matador que morreu!
EntŃo o velho Rico-Homem atirando o brašo, o cabelludo punho, com
possante ameaša, bradou, n'um rouco brado que rolou por penhascos e
cerros:
--Morto estß! E assim morra de morte infame quem traidoramente me
affronte a mim e aos da minha raša!
Depois, cortando rigidamente pela encosta do cerro, atravez do matto, e
com um largo aceno ao Alferes do PendŃo:
--Affonso Gomes, mandae dar as bozinas. E a cavallo, se vos praz, Snr.
D. Pedro de Castro, primo e amigo, que leal e bom me fostes!...
O _CastellŃo_ ondeou risonhamente o guante:
--Por Santa Maria, primo e amigo! que gosto e honra os recebi de vˇs. A
cavallo pois se vos praz! Que nos promette aqui o Snr. D. Garcia vŕrmos
ainda, com sol muito alto, os muros de Monte-mˇr.
Jß a peonagem cerrava as quadrilhas, os donzeis d'armas puxavam para a
ribanceira os ginetes folgados que a vasta agua escura assustava. E, com
os dous bals§es tendidos, o Ašor negro, as Treze Arruellas, a fila da
cavalgada atirou o trote pelo barranco empinado, d'onde as pedras soltas
rolavam. No alto, alguns cavalleiros ainda se torciam nas sellas para
silenciosamente remirarem o homem de BayŃo, que lß ficava, amarrado ao
pilar, na solidŃo do Pego, a apodrecer. Mas quando a ala dos bÚsteiros e
fundibularios de Santa Ireneia desfilou, uma rija grita rompeu, com
chufas, sujas injurias ao źperro matador╗. A meio da escarpa, um
bÚsteiro, virando, retezou furiosamente a bÚsta. A comprida garruncha
apenas varou a agua. Outra logo zinio, e uma bala de funda, e uma setta
barbada,--que se espetou na ilharga do Bastardo, sobre um negro novello
de bichas. O Coudel berrou: źcerra! anda!╗ A rÚcua das azemolas de carga
avanšava, sob o estralar dos lategos: os mošos da carriagem apanhavam
grossos pedregulhos, apedrejavam o morto. Depois os servos carreteiros
marcharam, nos seus curtos saios de couro cr˙, balanšando um chušo
curto:--e o capataz apanhou simplesmente esterco das bestas, que chapou
na face do Bastardo sobre as finas barbas d'ouro.
XI
Quando Gonšalo, estafado e jß todo o ardor bruxuleando, retocou este
derradeiro trašo da affronta--a sineta no corredor repicava para o
almošo. Emfim! Deus louvado! eis finda essa eterna _Torre de Ramires_!
Quatro mezes, quatro penosos mezes desde Junho, trabalhßra na sombria
resurreišŃo dos seus avˇs barbaros. Com uma grossa e carregada lettra,
trašou no fundo da tira *Finis*. E datou, com a hora, que era do
meio-dia e quatorze minutos.
Mas agora, abandonada a banca onde tanto labutßra, nŃo sentia o
contentamento esperado. AtÚ esse supplicio do Bastardo lhe deixßra uma
aversŃo por aquelle remoto mundo Affonsino, tŃo bestial, tŃo deshumano!
Se ao menos o consolasse a certeza de que reconstituira, com luminosa
verdade, o ser moral d'esses avˇs bravios... Mas que! bem receava que
sob desconcertadas armaduras, de pouca exactidŃo archeologica, apenas
s'esfumassem incertas almas de nenhuma realidade historica!... AtÚ
duvidava que sanguesugas recobrissem, trepando d'um charco, o corpo d'um
homem, e o sugassem das c˘xas ßs barbas, em quanto uma hoste mastiga a
rašŃo!... Emfim, o Castanheiro louvßra os primeiros Capitulos. A
MultidŃo ama, nas Novellas, os grandes furores, o sangue pingando: e em
breve os *Annaes* espalhariam, por todo o Portugal, a fama d'aquella
Casa illustre, que armßra mesnadas, arrasßra castellos, saqueßra
comarcas por orgulho de pendŃo, e affrontßra arrogantemente os Reis na
curia e nos campos de lide. O seu verŃo, pois, f˘ra fecundo. E para o
coroar, eis agora a EleišŃo, que o libertava das melancolias do seu
buraco rural...
Para nŃo retardar as visitas ainda devidas aos Influentes, e tambem para
espairecer, logo depois d'almoco montou a cavallo--apezar do calor, que
desde a vespera, e n'aquelle meado d'outubro, esmagava a aldeia com o
refulgente peso d'uma canicula d'Agosto. Na volta da estrada, dos
Bravaes um homem gordo, de calša branca enxovalhada, que s'apressava,
bufando, sob o seu guarda-sol de panninho vermelho, deteve o Fidalgo com
uma cortezia immensa. Era o Godinho, amanuense da AdministrašŃo. Levava
um officio urgente ao Regedor dos Bravaes, e agora corria ß Torre de
mandado do Snr. Administrador...
Gonšalo recuou a egoa para a sombra d'uma carvalha:
--EntŃo que temos, amigo Godinho?
O Snr. Administrador annunciava a S. Ex.^a que o maroto do Ernesto, o
valentŃo de Nacejas, em tratamento no Hospital d'Oliveira, melhorßra
consideravelmente. Jß lhe repegßra a orelha, a bocca soldava... E, como
se procedeu ß querella, o patife passava da enfermaria para a cadeia...
Gonšalo protestou logo, com uma palmada no selim:
--NŃo senhor! Faša o obsequio de dizer ao Snr. JoŃo Gouveia que nŃo
quero que se prenda o homem! Foi atrevido, apanhou uma dˇse tremenda,
estamos quites.
--Mas Snr. Gonšalo Mendes...
--Pelo amor de Deus, amigo Godinho! NŃo quero, e nŃo quero... Explique
bem ao Snr. JoŃo Gouveia... Detesto vinganšas. NŃo estŃo nos meus
habitos, nem nos habitos da minha familia. Nunca houve um Ramires que se
vingasse... Quero dizer, sim, houve, mas... Emfim explique bem ao Snr.
JoŃo Gouveia. De resto eu logo o encontro, na Assembleia... Bem basta ao
homem ficar desfeiado. NŃo consinto que o apoquentem mais!... Detesto
ferocidades.
--Mas...
--Esta Ú a minha decisŃo, Godinho.
--Lß darei o recado de V. Ex.^a
--Obrigado. E adeus!... Que calor, hein!
--De rachar, Snr. Gonšalo Mendes, de rachar!
Gonšalo seguiu, revoltado pela ideia de que o pobre valentŃo de Nacejas,
ainda moÝdo, com a orelha mal soldada, baixasse ß sordida enxovia de
Villa-Clara, para dormir sobre uma taboa. Pensou mesmo em galopar para
Villa-Clara, reter o zelo legal do JoŃo Gouveia. Mas perto, adeante do
lavadoiro, era a casa d'um Influente, o JoŃo Firmino, carpinteiro e seu
compadre. E para lß trotou, apeando ao portal do quinteiro. O compadre
Firmino largßra cedo para a Arribada, onde trabalhava nas obras do lagar
do Snr. Esteves. E foi a comadre Firmina que correu da cosinha, obesa e
lusidia, com dous pequenos dependurados das saias e mais sujos que
esfreg§es. O Fidalgo beijou ternamente as duas faces ramelosas:
--E que rico cheiro a pŃo fresco, oh comadre! Foi a fornada, hein? Pois
entŃo grande abrašo ao Firmino. E que se nŃo esqueša! A EleišŃo vem para
o outro Domingo. Lß conto com o voto d'elle. E olhe que nŃo Ú pelo voto,
Ú pela amisade.
A comadre arreganhava os dentes magnificos n'um regalado e gordo
riso:--źAi o Fidalgo podia ficar seguro! Que o Firmino jß jurßra, atÚ ao
Snr. Regedor, que para o Fidalgo era todo o sitio a votar, e quem nŃo
fosse a amor ia a pau.╗ O Fidalgo apertou a mŃo da comadre--que do
degrau do quinteiro, com os dous pequenos enrodilhados nas saias, e o
gordo riso mais embevecido, seguiu a poeira da egoa como o sulco d'um
Rei benefico.
E depois nas outras visitas, ao Cerejeira, ao Ventura da Chiche,
encontrou o mesmo fervor, os mesmos sorrisos luzindo de gosto. źO que!
para o Fidalgo! Isso tudo! E nem que fosse contra o Governo!╗--Na tasca
do Manoel da Adega, um rancho de trabalhadores bebia, jß ruidoso, com as
jaquetas atiradas para cima dos bancos: o Fidalgo bebeu com elles,
galhofando, gosando sinceramente a pinga verde e o barulho. O mais
velho, um avejŃo escuro, sem dentes, e a face mais engilhada que uma
ameixa secca, esmurrou com euthusiasmo o balcŃo:--źIsto, rapazes, Ú
fidalgo que, quando um pobre de Christo escalavra a perna, lhe empresta
a egoa, e vae elle ao lado mais d'uma legua a pÚ, como foi com o S˘lha!
Rapazes! isto Ú Fidalgo para a gente ter gosto!╗ As _saudes_ atroaram a
venda. E quando Gonšalo montou, todos o cercavam como vassallos
ardentes, que a um aceno correriam a votar,--ou a matar!
Em casa do Thomaz Pedra, a avˇ Anna Pedra, uma velha entrevada, muito
velha e tremula, rompeu a choramigar por o seu Thomaz andar para o
Olival quando o Fidalgo o visitava. źQue aquillo era como visita de
santo!╗
--Ora essa, tia Pedra! Peccador, grande peccador!
Dobrada na cadeirinha baixa, com as farripas brancas descendo do lenšo,
pela face toda chupada de gelhas e pelluda, a tia Anna bateu no joelho
agudo:
--NŃo senhor! nŃo senhor! que quem mostrou aquella caridade pelo filho
do Casco, merece estar em altar!
O Fidalgo ria, beijocava pequenadas encardidas, apertava mŃos asperas e
rugosas como raizes, accendia o cigarro ß braza das lareiras,
conversando, com intimidade, das molestias e dos derrišos. Depois, no
calor e pˇ da estrada, pensava:--ź╔ curioso! parece haver amisade,
n'esta gente!╗
┴s quatro horas, derreado, decidiu cessar o giro, recolher ß Torre pela
estrada mais fresca da _Bica Santa_. E passßra o logarejo do Cerdal,
quando na volta aguda do Caminho, rente ao souto de azinheiros, quasi
esbarrou com o Dr. Julio, tambem a cavallo, tambem no seu giro, de
quinzena d'alpaca, alagado em suor, debaixo d'um guarda-sol de sŕda
verde. Ambos detiveram as egoas, se saudaram amavelmente.
--Muito gosto em o vŕr, Snr. Dr. Julio...
--Egualmente, com muita honra, Snr. Gonšalo Ramires...
--EntŃo tambem na tarefa?...
O Dr. Julio encolheu os hombros:
--Que quer V. Ex.^a? Se me metteram n'esta! E sabe V. Ex.^a como isto
acaba?... Acaba em eu mesmo, no outro Domingo, votar em V. Ex.^a.
O Fidalgo riu. Ambos se debrušaram, para se apertarem as mŃos com
alegria, com estima.
--Que calor este, Snr. Dr. Julio!
--Horroroso, Snr. Gonšalo Ramires... E que massada!
Assim o Fidalgo empregou essa semana nas visitas aos Eleitores--źos
grandes e os miudos.╗ E dois dias antes da EleišŃo, n'uma sexta-feira ß
tarde, com um tempo jß macio e fresco, partiu para Oliveira--onde
chegßra, na vespera, o AndrÚ Cavalleiro, depois da sua tŃo longa, tŃo
fallada demora em Lisboa.
Nos Cunhaes, apenas saltßra da caleche, logo se enfureceu ao saber, pelo
bom JoŃo da Porta--źque as Snr.^{as} Louzadas estavam em cima, de
visita, com a Snr.^a D. Graša...╗
--Ha muito?
--Jß lß estŃo pegadas ha meia hora boa, meu senhor.
Gonšalo enfiou surrateiramente para o seu quarto, pensando:--źQue
desavergonhadas! Chegou o AndrÚ, veem logo cocar!╗ E jß se lavßra,
mudßra o fato cinzento,--quando o Barr˘lo appareceu, esbaforido,
desusadamente radiante, de sobrecasaca, de chapeu alto, com as bochechas
accesas, alvorošadamente radiantes:
--Eh, seu Barr˘lo, que janota!
--Parece bruxedo! gritou o Barr˘lo, depois d'um abrašo, que repetiu, com
desacostumado fervor. Estava agora mesmo para te mandar um telegramma,
que viesses...
--Para quŕ?
O Barr˘lo gaguejou, com um riso reprimido que o illuminava, o inchava:
--Para quŕ? P'ra nada... Quero dizer, para a EleišŃo! Pois a EleišŃo Ú
alÚm d'ßmanhŃ, menino! O Cavalleiro chegou hontem. Agora volto eu do
Governo Civil. Estive no Pašo com o Snr. Bispo, depois passei pelo
Governo Civil... Optimo, o AndrÚ! Aparou o bigode, parece mais mošo. E
traz novidades... Traz grandes novidades!
E o Barr˘lo esfregava as mŃos, n'um tŃo faiscante alvorošo, com tanto
riso escapando dos olhos e da face relusente, que o Fidalgo o encarou
curioso, impressionado:
--Ouve lß, Barrolinho! Tu tens alguma cousa boa para me annunciar?
Barr˘lo recuou, negou com estrondo, como quem bruscamente fecha uma
porta. Elle? NŃo! NŃo sabia nada! Sˇ a EleišŃo! Na Murtosa votašŃo
tremenda...
--Ah! pensei, murmurou Gonšalo. E a Gracinha?
--A Gracinha tambem nŃo!
--Tambem nŃo quŕ, homem? Como estß? Simplesmente como estß?
--Ah! estß com as Louzadas. Ha mais de meia hora, aquellas bebedas!...
Naturalmente por causa do Bazar do Asylo Novo... Esta massada dos
Bazares... E ouve lß, Gonšalinho! Tu ficas atÚ Domingo?
--NŃo, volto ßmanhŃ para a Torre.
--Oh!...
--Pois dia d'EleicŃo, homem! devo estar em casa, no meu centro, no meio
das minhas freguezias...
--╔ pena, murmurou o Barr˘lo. Logo se sabia juntamente com a EleišŃo...
Eu dava um jantar tremendo...
--Logo se sabia, o quŕ?
O Barr˘lo emmudeceu, com outro riso nas bochechas, que eram duas brazas
gloriosas. Depois novamente gaguejou, gingando:
--Logo se sabia... Nada! O resultado, o apuramento. E grande brodio,
grande foguetorio. Eu, na Murtosa, abro pipa de vinho.
EntŃo Gonšalo risonhamente prendeu o Barr˘lo pelos hombros:
--Dize lß, Barrolinho. Dize lß. Tu tens uma cousa boa para contar ao teu
cunhado.
O outro escapou, protestando com alarido: Que teima, que tolice. Elle
nŃo sabia nada. O AndrÚ nŃo lhe contßra nada!
--Bem, concluiu o Fidalgo, certo de um amavel mysterio, que pairava.
EntŃo descemos. E se essas carrašas das Louzadas ainda estiverem lß
pegadas, manda dizer pelo escudeiro ß sala, bem alto, ß Gracinha, que
cheguei, que lhe desejo fallar immediatamente no meu quarto: com esses
monstros nŃo ha consideraš§es.
O Barr˘lo balbuciou, hesitando:
--O Snr. Bispo gosta d'ellas... Muito amavel commigo, ainda ha pouco, o
Snr. Bispo.
Mas, logo nas escadas, sentiram o piano, Gracinha cantarolando. Jß se
libertßra das Louzadas. Era uma antiga canšŃo patriotica da Vendeia, que
outr'ora na Torre, ella e Gonšalo entoavam com emošŃo, quando os
inflammava o amor fidalgo e romantico dos Bourbons e dos Stuarts:
Monsieur de Charette a dit Ó ceux d'Ancenes
"Mes Amis!...
Monsieur de Charette a dit...
Gonšalo franziu vagarosamente o reposteiro da sala, rematando a
estrophe, com o brašo erguido como uma bandeira:
"Mes amis!
Le Roy va rammener les Fleurs de Lys!"
Gracinha saltou do mocho, n'uma surpresa.
--NŃo te esperavamos! imaginei que passavas a EleišŃo na Torre... E por
lß?
--Na Torre, tudo bem, com a ajuda de Deus... Mas eu com trabalho
immenso. Acabei o meu romance; depois visitas aos Eleitores.
Barr˘lo, que nŃo socegava pela sala, rompeu para elles, com o mesmo riso
suffocado:
--Queres tu saber, Gracinha? Tem estado este homem, desde que chegou,
n'uma curiosidade, a ferver. Imagina que eu tenho uma boa nova, uma
grande nova para lhe contar... Eu nŃo sei nada, a nŃo ser a EleišŃo!
Pois nŃo Ú verdade, Gracinha?
Gonšalo, muito serio, prendeu o queixo da irmŃ:
--Sabes tu, dize lß.
Ella sorriu, cˇrada... NŃo, nŃo sabia nada, sˇ a EleišŃo.
--Dize lß!
--NŃo sei... SŃo tolices do JosÚ.
Mas entŃo, ante aquelle sorriso fraco, rendido, que confessava--o
Barr˘lo nŃo se conteve, desafogou como um morteiro estoira.--Pois bem!
sim! com effeito!--Grande novidade! Mas o AndrÚ, que a trouxera de
Lisboa, fresquinha a saltar, queria elle, sˇ elle, causar a surpresa a
Gonšalo...
--De modo que eu nŃo posso! Jurei ao AndrÚ. A Gracinha sabe, que eu jß
lhe contei hontem... Mas tambem nŃo pˇde, tambem jurou. Sˇ o AndrÚ. Elle
vem logo tomar chß, e rebenta a bomba... Que Ú uma bomba! e gra˙da!
Gonšalo, roÝdo de curiosidade, murmurou simplesmente, encolhendo os
hombros:
--Bem, jß sei, Ú uma heranša! Tens quinze tost§es d'alvišaras, Barr˘lo.
Mas durante o jantar e depois na sala tomando cafÚ, emquanto Gracinha
recomešßra as velhas canš§es patrioticas, agora as jacobitas, em louvor
dos Stuarts--Gonšalo anciou pela apparišŃo do Cavalleiro. Nem receava
que a esse encontro se misturasse amargura, despeito suffocado. Todo o
seu furor contra o Cavalleiro, acceso na dolorosa tarde do Mirante,
revolvido na Torre durante torturados dias, logo se dissipßra lentamente
depois da sua tocante conversa com a irmŃ, na manhŃ historica da briga
da Grainha. Gracinha entŃo, com grandes lagrimas de pureza e de verdade,
jurßra reserva, retrahimento. Gonšalo, abandonando Oliveira, mostrava
tambem uma resistencia louvavel contra o sentimento ou a vaidade que o
transvißra. Demais elle nŃo podia romper novamente com o Cavalleiro,
andando ainda nos mexericos e espantos d'Oliveira aquella reconciliašŃo
ruidosa que chamßra o Cavalleiro ß intimidade dos Cunhaes. E por fim de
que valiam furores ou magoas? Nenhum rugir ou gemer seu annullariam o
mal que se consummßra no Mirante--se porventura se consummßra. E assim
toda a cˇlera contra o AndrÚ se dissipßra n'aquella sua leve e doce
alma, onde os sentimentos, sobretudo os mais escuros, os mais
carregados, sempre facilmente se desfaziam como nuvens em ceu de
estio...
Mas quando, perto das nove horas, o Cavalleiro penetrou na sala,
vagaroso e magnifico, com o bigode encurtado mas mais retorcido, uma
gravata vermelha entufando estridentemente no largo peito que entufava,
Gonšalo sentiu uma renovada aversŃo por toda aquella petulancia recheada
de falsidade--e apenas poude bater mollemente, desenxabidamente, nas
costas do velho amigo, que o apertava n'um abrašo d'apparatosa ternura.
E em quanto AndrÚ, torcendo as luvas claras, languidamente enterrado na
poltrona que o Barr˘lo lhe achegou com carinho, contava de Lisboa e de
Cascaes, tŃo alegre, e partidas de _bridge_ e da Parada e
d'El-Rei--Gonšalo revivia a tarde do Mirante, o seu pobre corašŃo a
bater contra a persiana mal fechada, a bruta supplica murmurada atravez
d'aquelles bigodes atrevidos, e emmudecera, como empedernido,
esmigalhando nervosamente entre os dentes o charuto apagado. Mas
Gracinha conservava uma serenidade attenta, sem nenhum dos seus
chammejantes rubores, dos seus desgrašados enleios de modo e gesto,
apenas levemente secca, d'uma seccura preparada e posta. Depois AndrÚ
alludira muito desprendidamente ao seu regresso a Lisboa, depois da
EleišŃo, źporque o tio Reis Gomes, o JosÚ Ernesto, esses crueis amigos,
lhe andavam atirando para os hombros todo o trabalho da Nova Reforma
Administrativa.╗
Entre elle e Gracinha, separados por um curto tapete, parecia cavada uma
funda legua de fosso, onde rolßra, se afundßra todo aquelle romance do
verŃo, sem que na face d'ambos restasse um afogueado vestigio do seu
ardor. E Gonšalo, insensivelmente contente pela apparencia, terminou por
abandonar a cadeira onde se impedernira, accendeu o charuto na vela do
piano, perguntou pelos amigos de Lisboa. Todos (segundo o Cavalleiro)
anciavam pela chegada de Gonšalo.
--Lß encontrei tambem o Castanheiro... Enthusiasmado com o teu Romance.
Parece que nem no Herculano, nem no Rebello existe nada tŃo forte, como
reconstrucšŃo historica. O Castanheiro prefere mesmo o teu realismo
epico ao do Flaubert, na _Salammb˘_. Emfim, enthusiasmado! E nˇs, estß
claro, ardendo por que appareša a sublime obra.
O Fidalgo cˇrou profundamente, murmurando--źQue tolice!╗ Depois rošou
pela poltrona em que se enterrava o AndrÚ, afagou suavemente o largo
hombro do AndrÚ:
--Pois, tens feito cß muita falta, meu velho! Ha dias passei em Corinde,
tive saudades...
EntŃo o Barr˘lo, que nŃo socegava, vermelho, a estoirar rebolando pela
sala, espiando ora o Cavalleiro, ora o Gonšalo, com um riso mudo e
avido, nŃo se conteve mais, gritou:
--Bem, basta de prologos... Vamos lß agora ß grande surpresa, AndrÚ! Eu
tenho estado toda a tarde a rebentar... Mas emfim, jurei e calei! Agora
nŃo posso... Vamos lß. E tu, Gonšalinho, vae preparando os quinze
tost§es.
Gonšalo, com a curiosidade de novo refervendo, apenas sorria,
desprendidamente:
--Com effeito! Parece que tens uma bella novidade.
O Cavalleiro alargou lentamente os brašos, sempre enterrado na vasta
poltrona, sem pressa:
--Oh! Ú a cousa mais simples, mais natural... A Snr.^a D. Graša jß sabe,
nŃo Ú verdade?... NŃo ha motivo para surpresa... TŃo legitima, tŃo
natural!
Gonšalo exclamou, jß impaciente:
--Mas emfim, venha lß, dize.
O Cavalleiro insistia, indolente. Todo o espanto era que sˇ agora se
pensasse em a realisar, cousa tŃo devida, tŃo adequada. Pois nŃo lhe
parecia ß Snr.^a D. Graša?
Gonšalo, n'uma braza, berrou:
--Mas quŕ? que diabo?
O Cavalleiro, que se despegßra vagarosamente da poltrona, puxou os
punhos, e deante de Gonšalo, no silencio attento, alteando o peito,
grave, quasi official, comešou:
--Meu tio Reis Gomes, e o JosÚ Ernesto, tiveram uma ideia muito natural,
que communicaram a El-Rei, e que El-Rei approvou... Que approvou mesmo
ao ponto de a appetecer, de se assenhorear d'ella, de desejar que fosse
sˇ sua. E hoje Ú sˇ d'El-Rei. El-Rei pois pensou, como nˇs pensamos, que
um dos primeiros fidalgos de Portugal, decerto mesmo o primeiro, devia
ter um titulo que consagrasse bem a antiguidade illustre da Casa, e
consagrasse tambem o merito superior de quem hoje a representa... Por
isso, meu querido Gonšalo, jß te posso annunciar, e quasi em nome
d'El-Rei, que vaes ser Marquez de Treixedo.
--Bravo! bravo! bramou o Barr˘lo, com palmas delirantes. Saltem para cß
os quinze tost§es, Snr. Marquez de Treixedo!
Uma onda de sangue cobria a fina face de Gonšalo. N'um relance sentiu
que o Titulo era um dom do Cavalleiro, nŃo ao chefe da casa de Ramires,
mas ao irmŃo complacente de Gracinha Ramires... E sobre tudo sentia a
incoherencia de que, ao chefe d'uma Casa dez vezes secular, mŃe de
Dynastias, edificadora do Reino, com mais de trinta dos seus var§es
mortos sob a armadura, se atirasse agora um ouco titulo, atravez do
_Diario do Governo_, como a um tendeiro enriquecido que subsidiou
eleiš§es. Todavia saudou o Cavalleiro, que esperava a effusŃo, os
abrašos.--Oh! Marquez de Treixedo! certamente muito elegante, muito
amavel... Depois, esfregando as mŃos, com um sorriso de graša e
d'espanto... Mas, meu caro AndrÚ, com que auctoridade me faz El-Rei
Marquez de Treixedo?
O Cavalleiro levantou vivamente a cabeša n'uma offendida surpresa:
--Com que auctoridade? Simplesmente com a auctoridade que tem sobre nˇs
todos, como Rei de Portugal que ainda Ú, Deus louvado!
E Gonšalo, muito simplesmente, sem fumaša ou pompa, com o mesmo sorriso
de suave gracejo:
--PerdŃo, AndrÚsinho. Ainda nŃo havia Reis de Portugal, nem sequer
Portugal, e jß meus avˇs Ramires tinham solar em Treixedo! Eu approvo os
grandes dons entre os grandes fidalgos; mas cumpre aos mais antigos
comešarem. El-Rei tem uma quinta ao pÚ de Beja, creio eu, o _RoncŃo_.
Pois dize tu a El-Rei, que eu tenho immenso gosto em o fazer, a elle,
Marquez do RoncŃo.
O Barr˘lo embasbacßra, sem comprehender, com as bochechas descahidas e
murchas. Da beira do canapÚ, Gracinha, toda cˇrada, faiscava de gosto,
por aquelle lindo orgulho que tŃo bem condizia com o seu, mais lhe
fundia a alma com a alma do irmŃo amado. E AndrÚ Cavalleiro, furioso,
mas vergando os hombros com ironica submissŃo, apenas murmurou:--źBem,
perfeitamente!... Cada um se entende a seu modo...╗
O escudeiro entrava com a bandeja do chß.
* * * * *
E no Domingo foi a EleišŃo.
Ainda com uma desconfianša, uma reserva supersticiosa, o Fidalgo desejou
atravessar esse dia muito solitariamente, quasi escondido, e no sabbado,
em quanto todos os amigos de Villa-Clara, mesmo os d'Oliveira, o
consideravam estabelecido nos Cunhaes, e em communicašŃo azafamada com o
Governo Civil, montou a cavallo ao escurecer, e trotou surrateiramente
para Santa Ireneia.
Mas o Barr˘lo (ainda abalado com źaquelle despauterio do Gonšalo, que
era uma offensa para o Cavalleiro! atÚ para El-Rei!╗) ficßra com a
missŃo de telegraphar para a Torre as noticias successivas das
assembleias, ß maneira que ellas acudissem ao Governo Civil. E, com
ruidoso zelo, logo depois da missa, estabeleceu entre os Cunhaes e o
velho Convento de S. Domingos um servišo de creados formigando sem
repouso. Gracinha, na sala de jantar, ajudada por Padre Sueiro, copiava
com amor, n'uma lettra muito redonda, os telegrammas mandados pelo
Cavalleiro, que ajuntava a lapis alguma nota amavel--ź_Tudo
optimamente!_╗--_Victoria cresce._--_Parabens a V. Ex.^{as}._
Pela estrada de Villa-Clara ß Torre, incessantemente, o mošo do
Telegrapho se esbaforia sobre a perna manca. O Bento rompia pela
livraria, berrando: źoutro telegramma, Snr. Doutor╗. Gonšalo, nervoso,
com um immenso bule de chß sobre a banca, a bandeja jß alastrada de
cigarros meio fumados, lia o telegramma ao Bento. O Bento, com _vivas_
pelo corredor, corria a bramar o telegramma ß Rosa.
E assim, quando cerca das oito horas, o Fidalgo consentiu em jantar--jß
conhecia o seu triumpho explendido. E o que o impressionava, relendo os
telegrammas, era o enthusiasmo carinhoso d'aquelles influentes, povos
que elle mal rogava, e que convertiam o acto da EleišŃo quasi n'um acto
d'Amor. Toda a freguezia dos Bravaes marchßra para a Egreja, cerrada
como uma hoste, com o JosÚ Casco na frente erguendo uma enorme bandeira,
entre dous tambores que estouravam. O Visconde de Rio-Manso entrßra no
adro da Egreja de Ramilde na sua victoria, com a neta toda vestida de
branco, seguido por uma vistosa fila de _char-Ó-bancs_, onde se
apinhavam eleitores sob toldos de verdura. Na Finta todos os casaes se
esvasiavam, as mulheres carregadas d'ouro, os rapazes de fl˘r na orelha,
correndo ß EleišŃo do Fidalgo entre o repenicar das violas, como ß
romaria d'um Santo. E deante da taberna do Pintainho, em face ß Egreja,
a gente da Velleda, da Riosa, do Cercal, erguera um arco de buxo, com
distico vermelho, sobre panninho:--źViva o nosso Ramires, fl˘r dos
homens!╗
Depois, em quanto jantava, um mošo da quinta voltou de Villa-Clara,
alvorošado, contando o delirio, as philarmonicas pelas ruas, a
Assembleia toda embandeirada, e na casa da Camara, sobre a porta, um
transparente com o retrato de Gonšalo, que uma multidŃo acclamava.
Gonšalo apressou o cafÚ. Por timidez, receoso dos vivorios, nŃo ousava
correr a Villa-Clara--a espreitar. Mas accendeu o charuto, passou ß
varanda, para respirar a doce noite de festa, que andava tŃo cheia de
clar§es e rumores em seu louvor. E ao abrir a porta envidrašada quasi
recuou, com outro espanto. A Torre illuminßra! Das suas fundas frestas,
atravez das negras rexas de ferro, sahia um clarŃo; e muito alta, sobre
as velhas ameias, refulgia uma serena cor˘a de lumes! Era uma surpresa,
preparada, com delicioso mysterio, pelo Bento, pela Rosa, pelos mošos da
quinta,--que agora, todos, no escuro, por baixo da varanda, contemplavam
a sua obra, allumiando o ceu sereno. Gonšalo percebeu os passos
abafados, o pigarro da Rosa. Gritou alegremente da borda da varanda:
--Oh, Bento! Oh, Rosa!... Estß ahi alguem?
Um risinho esfusiou. A jaqueta branca do Bento surdio da sombra.
--O Snr. Doutor queria alguma cousa?
--NŃo, homem! Queria agradecer... Foram vocŕs, hein? Estß linda a
illuminacŃo! Mas linda. Obrigado, Bento. Obrigado, Rosa! Obrigado,
rapazes! De longe deve fazer um effeito soberbo.
Mas o Bento ainda se nŃo contentava com aquellas lamparinas frouxas. A
Torre, para sobresahir, necessitava chammas fortes de gaz. O Snr. Doutor
nem imaginava a altura, depois em cima, a immensidŃo do eirado.
EntŃo, de repente, Gonšalo sentiu um desejo de subir a esse immenso
eirado da Torre. NŃo entrßra na Torre desde estudante--e sempre ella lhe
desagradßra por dentro, tŃo escura, de tŃo duro granito, com a sua
nudez, silencio e frialdade de jazigo, e logo no pavimento terreo os
negros alšap§es chapeados de ferro que levavam ßs masmorras. Mas agora
as luzes nas frestas aqueciam, reviviam aquella derradeira ossada, Honra
de Ordonho Mendes. E de entre as suas ameias, mais alto que da varanda,
lhe parecia interessante respirar aquella rumorosa sympathia esparsa,
que em torno, pelas freguezias rolava, subindo para elle, atravez da
noite, como um incenso. Enfiou um paletot, desceu ß cosinha. O Bento, o
Joaquim da horta, divertidos, agarraram grandes lanternas. E com elles
atravessou o pomar, penetrou pela atarracada poterna, de funda
hombreira, comešou a trepar a esguia escadaria de pedra, que tanta sola
de ferro polira e poira.
Jß desde seculos se perdera a memoria do logar que occupava aquella
torre nas complicadas fortificaš§es da Honra e Senhorio de Santa
Ireneia. NŃo era de certo (segundo padre Sueiro) a nobre torre albarran,
nem a de Alcašova, onde se guardava o thesouro, o cartorio, os sacos tŃo
preciosos das especiarias do Oriente--e talvez, obscura e sem nome,
apenas defendesse algum angulo de muralha, para os lados em que o
Castello enfrontava com as terras semeadas e os olmedos da Ribeira. Mas,
sobrevivente ßs outras mais altivas, comprehendida nas construcš§es do
Pašo formoso que se erguera d'entre o sombrio Castello Affonsino, e que
dominava Santa Ireneia durante a dynastia d'Aviz, ligada ainda por
claras arcarias d'um terrašo ao Palacio de gosto italiano, em que
Vicente Ramires converteu o Pašo manuelino depois da sua campanha de
Castella: isolada no pomar, mas sobranceando o casarŃo que lentamente se
edificßra depois do incendio do Palacio em tempo d'El-Rei D. JosÚ, e a
derradeira certamente onde retiniram armas e circularam os homens do
Teršo dos Ramires--ella ligava as edades e como que mantinha, nas suas
pedras eternas, a unidade da longa linhagem. Por isso o povo lhe chamßra
vagamente a źTorre de D. Ramires╗. E Gonšalo, ainda sob a impressŃo dos
avˇs e dos tempos que resuscitßra na sua Novella, admirou com um
respeito novo a sua vastidŃo, a sua forša, os seus empinados escal§es,
os seus muros tŃo espessos, que as frestas esguias na espessura se
alongavam como corredores, escassamente allumiadas pelas tigelinhas
d'azeite, com que o Bento as despertßra. Em cada um dos trez sobrados
parou, penetrando curiosamente, quasi com uma intimidade, nas salas n˙as
e sonoras, de vasto lagedo, de tenebrosa abobada, com os assentos de
pedra, estranho buraco ao meio, redondo como o d'um pošo e ainda pelas
paredes riscadas de sulcos de fumos, os anneis dos tocheiros. Depois em
cima, no immenso eirado que a fieira de lamparinas, cingindo as ameias,
enchia de claridade, Gonšalo, erguendo a gola do paletot na aragem mais
fina, teve a dilatada sensašŃo de dominar toda a Provincia, e de possuir
sobre ella uma supremacia paternal, sˇ pela soberana altura e velhice da
sua torre, mais que a Provincia e que o Reino. Lentamente caminhou em
roda das ameias, atÚ ao miradouro, a que um candieiro de petroleo, sobre
uma cadeira de palhinha posta em frente ß fresta, estragava o entono
feudal. No cÚo macio, mas levemente enevoado, raras estrellas luziam,
sem brilho. Por baixo a quinta, toda a largueza dos campos, a espessura
dos arvoredos se fundiam em escuridŃo. Mas na sombra e silencio, por
vezes alÚm, para o lado dos Bravaes, lampejavam foguetes remotos. Um
clarŃo amarellado e fumarento, caminhando mais longe, entestando para a
Finta, era de certo um rancho com archotes festivos. Na alta Egreja da
Velleda tremeluzia uma illuminašŃo vaga, rala. Outras luzes, incertas
atravÚs do arvoredo, riscavam o velho arco do Mosteiro, em Santa Maria
de Craquŕde. Da terra escura subia, por vezes, um errante som de
tambores. E lumes, fachos, abafados rufos, eram dez freguezias
celebrando amoravelmente o Fidalgo da Torre, que lhes recebia o amor e o
preito no eirado da sua torre, envolto em silencio e sombra.
O Bento descera, com o Joaquim, para reforšar as lamparinas nas frestas
dos muros, onde ellas esmoreciam na espessura. E Gonšalo sˇsinho,
acabando o charuto, recomešou a rolda, lento, em torno ßs ameias,
perdido n'um pensamento que jß o agitßra estranhamente, atravez
d'aquelle sobresaltado Domingo... Era pois popular! Por todas essas
aldeias, estendidas ß sombra longa da Torre, o Fidalgo da Torre era pois
popular! E esta certeza nŃo o penetrava d'alegria, nem de
orgulho,--antes o enchia agora, n'aquella serenidade da noite, de
confusŃo, d'arrependimento! Ah! se adivinhasse--se elle adivinhasse!...
Como caminharia, com a cabeša bem levantada, com os brašos bem
estendidos, sˇsinho, em confianša risonha para todas essas sympathias
que o esperavam, tŃo certas, tŃo dadas. Mas nŃo! Sempre se julgßra
cercado da indifferenša d'aquellas aldeias, onde elle, apesar do
antiquissimo nome, era o costumado mošo, que volta de Coimbra e vive
silenciosamente da sua renda, passeando na sua egoa. A essas
indifferenšas tŃo naturaes nunca elle imaginßra arrancar o punhado de
votos, o punhado de papelinhos que necessitava para entrar na Politica,
onde elle conquistaria pela destreza o que os velhos Ramires recebiam
por heranša--fortuna e poder. Por isso se agarrßra tŃo avidamente ß mŃo
do Cavalleiro, ß mŃo do Snr. Governador Civil--para que S. Ex.^a, o bom
amigo, o mostrasse, o impozesse como o homem necessario, o querido do
Governo, o melhor entre os bons, a quem as freguezias deviam offerecer
n'um Domingo o punhado de votos.
E na impaciencia d'esse favor abafßra a memoria de amargos aggravos;
deante d'Oliveira pasmada abrašßra o homem detestado desde annos, que
andava chasqueando e demolindo, por prašas e jornaes: facilitßra a
resurreišŃo de sentimentos que para sempre deviam jazer enterrados; e
envolvera o ser que mais amava, a sua pobre e fraca irmŃsinha, em
confusŃo e miseria moral... Torpezas e damnos--e para quŕ? Para
surripiar um punhado de votos que dez freguezias lhe trariam correndo,
gratuitamente, effusivamente, entre _vivas_ e foguetes, se elle acenasse
e lh'os pedissse...
Ah! eis ahi... F˘ra a desconfianša, essa encolhida desconfianša de si
mesmo,--que desde o collegio, atravez da vida, lhe estragßra a vida. Era
a mesma desgrašada desconfianša, que ainda semanas antes, deante de uma
sombra, um pau erguido, uma risada n'uma taberna, o foršava a abalar, a
fugir, arripiado e praguejando contra a sua fraqueza. Por fim, um dia,
n'uma volta d'estrada, avanša, ergue o chicote--e descobre a sua forša!
E agora, penetra por entre o povo, agarrado timidamente ß mŃo poderosa,
por se imaginar impopular--e descobre a sua popularidade immensa. Que
vida enganada, e tanto a sujßra--por nŃo saber!
O Bento nŃo apparecia, ainda azafamado em illuminar condignamente as
rexas da Torre. Gonšalo atirou a ponta do charuto, e com as mŃos nas
algibeiras do paletot, parou junto do miradouro, olhou vagamente para as
estrellas. A nevoa adelgašßra quasi sumida,--lumes mais vivos palpitavam
no ceu mais profundo. De lumes e ceus descia essa sensašŃo de
infinidade, d'eternidade, que penetra, como uma surpresa, nas almas
desacostumadas da sua contemplašŃo. Na alma de Gonšalo passou, muito
fugidiamente, o espanto d'essas eternas immensidades sob que se agita,
tŃo vaidosa da sua agitašŃo, a rasteira, a sombria poeira humana. Longe,
algum derradeiro foguete ainda lampejava, logo apagado na escuridŃo
serena. As luzinhas sobre a capella de Velleda, sobre o arco de Santa
Maria de Craquŕde, esmoreciam, jß ralas. Todo o remoto rumor de
musicatas se perdera, na mudez mais funda dos campos adormecidos. O dia
de triumpho findava, breve como os luminares e os foguetes.--E Gonšalo,
parado, rente do miradouro, considerava agora o valor d'esse triumpho
por que tanto almejßra, porque tanto sabujßra. Deputado! Deputado por
Villa-Clara, como o Sanches Lucena. E ante esse resultado, tŃo miudo,
tŃo trivial,--todo o seu esforšo tŃo desesperado, tŃo sem escrupulos,
lhe parecia ainda menos immoral que risivel. Deputado! Para quŕ? Para
almošar no Braganša, galgar de tipoia a ladeira de S. Bento, e dentro do
sujo convento escrevinhar na carteira do Estado alguma carta ao seu
alfaiate, bocejar com a inanidade ambiente dos homens e das ideias, e
distrahidamente acompanhar, em silencio ou balando, o rebanho do S.
Fulgencio, por ter desertado o rebanho identico do Braz Victorino. Sim,
talvez um dia, com rasteiras intrigas e sabujices a um chefe e ß senhora
do chefe, e promessas e risos atravez de Redacš§es, e algum Discurso
esbrazeadamente berrado--lograsse ser Ministro. E entŃo? Seria ainda a
tipoia pela calšada de S. Bento, com o correio atraz na pileca branca, e
a farda mal-feita, nas tardes d'assignatura, e os recurvados sorrisos
d'amanuenses pelos escuros corredores da Secretaria, e a lama escorrendo
sobre elle de cada gazeta d'opposišŃo... Ah! que pŕca, desinteressante
vida, em comparašŃo d'outras cheias e soberbas vidas, que tŃo
magnificamente palpitavam sob o tremeluzir d'essas mesmas estrellas! Em
quanto elle se encolhia no seu paletot, deputado por Villa-Clara, e no
triumpho d'essa miseria--Pensadores completavam a explicašŃo do
Universo; Artistas realisavam obras de belleza eterna; Reformadores
aperfeišoavam a harmonia social; Santos melhoravam santamente as almas;
Physiologistas diminuiam o velho soffrer humano; Inventores alargavam a
riqueza das rašas; Aventureiros magnificos arrancavam mundos de sua
esterilidade e mudez... Ah! esses eram os verdadeiramente homens, os que
viviam deliciosas plenitudes de vida, modelando com as suas mŃos
incanšadas fˇrmas sempre mais bellas ou mais justas da humanidade. Quem
f˘ra como elles, que sŃo os sobre-humanos! E tal acšŃo tŃo suprema
requeria o Genio, o dom que, como a antiga chamma, desce de Deus sobre
um eleito? NŃo! Apenas o claro entendimento das realidades humanas--e
depois o forte querer.
E o Fidalgo da Torre, immovel no eirado da Torre, entre o ceu todo
estrellado, e a terra toda escura, longamente revolveu pensamentos de
Vida superior--atÚ que enlevado, e como se a energia da longa raša, que
pela Torre passßra, refluisse ao seu corašŃo, imaginou a sua propria
encaminhada emfim para uma acšŃo vasta e fecunda, em que soberbamente
gozasse o goso de verdadeiro viver, e em torno de si creasse vida, e
accrescentasse um lustre novo ao velho lustre de seu nome, e riquezas
puras o dourassem e a sua terra inteira o bem-louvasse por que elle
inteiro e n'um esforšo pleno bem servira a sua terra...
O Bento surdiu da portinha baixa do eirado, com a lanterna:
--O Snr. Doutor ainda se demora?
--NŃo. A festa acabou, Bento.
* * * * *
Nos comešos de Dezembro, com o primeiro numero dos *Annaes*, appareceu a
_Torre de D. Ramires_. E todos os jornaes, mesmo os da opposišŃo,
louvaram źesse estudo magistral (como affirmou a _Tarde_) que, revelando
um erudito e um artista, continuava, com uma arte mais moderna e
colorida, a obra de Herculano e de Rebello, a reconstituišŃo moral e
social do velho Portugal heroico.╗ Depois das festas de Natal, que elle
passou alegremente nos Cunhaes, ajudando Gracinha a cosinhar bolos de
bacalhau por uma receita sublime do padre JosÚ Vicente, da Finta, os
amigos d'Oliveira, os rapazes do Club e da Arcada offereceram ao
Deputado por Villa-Clara, na sala da Camara, adornada de buxos e
bandeiras, um banquete, a que assistia o Cavalleiro, de gran-cruz, e em
que o BarŃo das Marges (que presidia) saudou źo prestigioso mošo que,
talvez em breve, nas cadeiras do Poder levantasse do marasmo este brioso
paiz, com a pujanša, a valentia, que sŃo proprias da sua raša
nobilissima!╗
* * * * *
No meado de Janeiro, por uma agreste noite de chuva, Gonšalo partiu para
Lisboa; e atravez do inverno, em Lisboa, andou sempre nos
_Carnet-Mondain_ e _High-Life_ dos jornaes, nas noticias de jantares, do
_raouts_, de tiros aos pombos, de Cašadas d'El-Rei, tŃo notado nos
movimentos mais simples da sua elegancia, que os Barr˘los assignaram o
_Diario Illustrado_ para saber quando elle passeava na Avenida. Em
Villa-Clara, na Assembleia, o JosÚ Gouveia jß encolhia os hombros,
rosnando:--źDesandou em janota!╗--Mas nos fins d'Abril uma noticia de
repente alvorošou Villa-Clara, espantou na quieta Oliveira os rapazes do
Club e da Arcada, perturbou tŃo inesperadamente Gracinha, entŃo em
Amarante com o Barr˘lo, que n'essa noite ambos abalaram para Lisboa--e
na Torre atirou a Rosa para um banco de pedra da cosinha, lavada em
lagrimas, sem comprehender, gemendo:
--Ai o meu rico menino, o meu rico menino, que o nŃo torno mais a vŕr!
Gonšalo Mendes Ramires, silenciosamente, quasi mysteriosamente,
arranjßra a concessŃo d'um vasto praso de Macheque, na Zambezia,
hypothecßra a sua quinta historica de Treixedo, e embarcava em comešos
de Junho no paquete _Portugal_, com o Bento, para a Africa.
XII
Quatro annos passaram ligeiros e leves sobre a velha Torre, como v˘os
d'ave.
N'uma doce tarde dos fins de Septembro, Gracinha, que chegßra na vespera
de Oliveira acompanhada pelo bom Padre Sueiro, descansava na varanda da
sala de jantar, estendida sobre o canapÚ de palhinha, ainda com um
grande avental branco, tapando o vestido atÚ ao pescošo, um velho
avental do Bento. Todo o dia, d'avental, atravez do casarŃo, ajudada
pela Rosa e pela filha da Crispola, s'esfalfßra, arrumando e limpando,
com tanto gosto e fervor no trabalho, que ella mesma sacudira o pˇ a
todos os livros da livraria, o seu socegado pˇ de quatro annos. O
Barr˘lo tambem se occupßra, dando sentenšas nas obras da cavallariša,
que a valente egoa da briga da Grainha em breve partilharia com uma egoa
ingleza, de meio sangue, comprada em Londres. Tambem Padre Sueiro
remexera, pelo Archivo, zelosamente, com um espanejador. E atÚ o Pereira
da Riosa, o bom rendeiro, apressava desde madrugada dois mošos na final
limpeza da horta, agora muito cuidada, jß com meloal, jß com morangal, e
duas novas ruas, ambas bordadas de roseiras e recobertas de latada que a
parra densa jß recobria.
Com efeito a Torre, entre a alvorošada alegria de todos, enfeitava a sua
velhice--por que no Domingo, depois dos seus quatro annos d'Africa,
Gonšalo regressava ß Torre.
E Gracinha, estendida no canapÚ com o seu velho avental branco, sorrindo
pensativamente para a quinta silenciosa, para o ceu todo cˇrado sobre
Valverde, recordava esses quatro annos, desde a manhŃ em que abrašßra
Gonšalo, suffocada e a tremer, no beliche do _Portugal_... Quatro annos!
Assim passados, e nada mudßra no mundo, no seu curto mundo d'entre os
Cunhaes e a Torre, e a vida rolßra, e tŃo sem historia como rola um rio
lento n'uma solidŃo:--Gonšalo na Africa, na vaga Africa, mandando raras
cartas, mas alegres, e com um enthusiasmo de fundador de Imperio; ella
nos Cunhaes, e o seu Barr˘lo, n'um tŃo quieto e costumado viver, que
eram quasi d'agitašŃo os jantares em que reuniam os Mendonšas, os
Marges, o coronel do 7, outros amigos, e ß noite na sala se abriam duas
mezas de panno verde para o voltarete e para o boston.
E n'este manso correr de vida se desfizera mansamente, quasi
insensivelmente, a sombria tormenta do seu corašŃo. Nem ella agora
comprehendia como um sentimento, que atravez das suas anciedades ella
justificava, quasi secretamente santificava por o saber _unico_, e o
desejar _eterno_, assim se sumira, insensivelmente, sem dilaceraš§es,
deixßra apenas um leve arrependimento, alguma esfumada saudade, tambem
estranheza e confusŃo, restos de tanto que ardera, formando uma cinza
fina... A successŃo das cousas rolßra, como o vento ßs lufadas n'um
campo, e ella rolßra, levada com a inercia d'uma folha secca.
Logo depois do derradeiro Natal passado com Gonšalo, AndrÚ, que ainda os
acompanhßra ß Missa do Gallo e consoßra nos Cunhaes, voltou para Lisboa,
para essa źReforma╗, de que se lastimava... No silencio que entre ambos
entŃo se alargou, corria jß uma frialdade d'abandono... E quando AndrÚ
recolheu a Oliveira, ao seu Governo Civil, partia ella para Amarante,
onde a santa mŃe do Barr˘lo adoecera, com uma vagarosa doenša d'anemia e
velhice, que em Maio a levou para o Senhor.
Em Junho f˘ra o commovido embarque de Gonšalo para a Africa,--e no
tombadilho do paquete, entre o barulho e as bagagens, um encontro com
AndrÚ, que chegara d'Oliveira, dias antes, e contou muito alegremente do
casamento da Mariquinhas Marges. Todo esse verŃo, como o Barr˘lo
decidira fazer obras consideraveis no velho palacete do Largo d'El-Rei,
o passaram na quinta da _Murtosa_, que ella escolhera por causa da linda
matta, dos altos muros de convento. A essa solidŃo attribuiu logo o
Barr˘lo a sua melancolia, a sua magreza, aquelle cansado scismar a que
se abandonava, pelos bancos musgosos da matta, com um romance esquecido
no regašo. Para que ella se distrahisse, se fortificasse com banhos do
mar, alugou em Setembro, na Costa, o vistoso chalet do commendador
Barros. Ella nŃo tomou banhos, nem apparecia na praia, ß fresca hora das
barracas, entre as senhoras sentadas em cadeirinhas baixas:--e sˇ ß
tarde passeava pelo comprido areal rente ß vaga, acompanhada por dous
enormes galgos que lhe dera Manoel Duarte. Uma manhŃ, ao almošo, ao
abrir as _Novidades_, Barr˘lo pulou, com um berro, um espanto. Era a
queda inesperada do Ministerio do S. Fulgencio! AndrÚ Cavalleiro
apresentava logo a sua demissŃo pelo telegrapho. E ainda pelas
_Novidades_ souberam na Costa que S. Ex.^a partira para uma źlonga e
pittoresca viagem╗, a viagem a Constantinopla, ß Asia Menor, que elle
annuncißra ao jantar nos Cunhaes. Ella abrira um Atlas: com o dedo lento
caminhou desde Oliveira atÚ ß Syria, por sobre fronteiras e montes: jß
AndrÚ lhe parecia desvanecido, n'esses horisontes mais luminosos; fechou
o Atlas, pensando simplesmente źcomo a gente muda!╗
Em Novembro voltaram a Oliveira, n'um sabbado de chuva, e ella na
carruagem sentia toda a melancolia e a frialdade do ceu penetrar no seu
corašŃo. Mas no Domingo acordou com um lindo sol nas vidrašas. Para a
missa das onze na SÚ, ella estreou um chapÚo novo; depois, no caminho
para casa da tia Arminda, levantou os olhos para o casarŃo do Governo
Civil: agora habitava lß outro Governador Civil, o Snr. Santos
Maldonado, um mošo louro que tocava piano.
Na outra primavera o Barr˘lo, agora escravisado pela paixŃo d'obras,
imaginou demolir o Mirante para construir outra estufa, mais vasta, com
um repuxo entre palmeiras, que formaria źum jardim d'inverno catita.╗
Os trabalhadores comešaram por esvasiar o Mirante da velha mobilia que o
guarnecia desde o tempo do tio Melchior: o immenso divan jazeu dois dias
no jardim, encalhado contra uma sebe de buxo, e o Barr˘lo, impaciente,
com aquelle desusado traste, de molas quebradas, nem o consentiu nas
arrecadaš§es do sotŃo, mandou que o queimassem com outras cadeiras
partidas, n'uma fogueira de festa, na noute dos annos de Gracinha. E
ella andou em torno da fogueira. O estofo poÝdo flammejou, depois o
mogno pesado mais lentamente, com um leve fumo, atÚ que uma braza ficou
latejando, e a braza escureceu em cinza.
Logo n'essa semana as Lousadas, mais agudas, mais escuras, invadiram uma
tarde os Cunhaes--e apenas espetadas no sophß, logo lhe contaram, com um
riso feroz nos olhinhos furantes, do grande escandalo, o Cavalleiro! em
Lisboa! sem rebušo! com a mulher do Conde de S. RomŃo! um fazendeiro de
Cabo Verde!
N'essa noite, ella escreveu a Gonšalo uma carta muito longa que
comešava:--źPor cß estamos todos bem, e n'este rame-ram costumado...╗ E
com effeito a vida recomešßra, no seu rame-ram, simples, contÝnua, e sem
historia, como corre um rio claro n'uma solidŃo.
┴ porta envidrašada da varanda o filho da Crispola espreitou--o filho da
Crispola, que ficßra sempre na Torre, como źandarilho╗, mas crescera
muito para fˇra da sua antiga jaqueta de bot§es amarellos, usava agora
jaquet§es velhos do Snr. Doutor, e jß repuxava o bušo:
--╔ que estß lß em baixo o Snr. Antonio Villalobos, com o Snr. Gouveia e
outro senhor, o Videirinha, e perguntam se podem fallar ß senhora...
--O Snr. Villalobos! Sim! que subam, que entrem para aqui, para a
varanda!
Ao atravessar a sala, onde dous esteireiros d'Oliveira pregavam uma
esteira nova, o vozeirŃo do Titˇ jß ribombava, notando os źpreparativos
da festa...╗ E quando entrou na varanda a sua face mais barbuda, mais
requeimada, rebrilhava com a alegria d'encontrar emfim a Torre
despertando d'aquella modorra, em que tudo dentro parecia tristemente
apagado, atÚ o lume das cašarolas:
--Pešo desculpa da invasŃo, prima Graša. Mas passamos, de volta d'um
passeio dos Bravaes, soubemos que a prima viera com o Barr˘lo...
--Oh! gosto immenso, primo Antonio. Eu Ú que pešo desculpa d'esta
figura, assim despenteada, de grande avental... Mas todo o dia em
arranjos, a preparar a casa... E o Snr. Gouveia, como tem passado? NŃo o
vejo desde a Paschoa.
O administrador, que nŃo mudßra n'esses quatro annos, escuro, secco,
como feito de madeira, sempre esticado na sobrecasaca preta, apenas com
o bigode mais amarellado do cigarro, agradeceu ß Snr.^a D. Graša... E
passßra menos mal, desde a Paschoa. A nŃo ser a desavergonhada da
garganta...
--E entŃo o nosso grande homem? quando chega? quando chega?
--No Domingo. Estamos todos em alvorošo... EntŃo nŃo se senta, Snr.
Videira? Olhe, puxe aquella cadeira de vime. A varanda por ora nŃo estß
arranjada.
Videirinha, logo depois da EleišŃo, recebera de Gonšalo o logar
promettido, facil e com vagares, para nŃo esquecer o violŃo. Era
amanuense na AdministrašŃo do Concelho de Villa-Clara. Mas convivia
ainda na intimidade do seu chefe, que o utilisava para todos os
servišos, mesmo de enfermeiro, e o mandava sempre com uma auctoridade
secca, mesmo ceando ambos no Gago.
Timidamente arrastou a cadeira de vime, que collocou, com respeito,
atraz da cadeira do seu Chefe. E depois de tirar as luvas pretas, que
agora sempre trazia para realšar a sua posišŃo, lembrou que o comboio
chegava ao apeadeiro de Craquŕde ßs dez e quarenta, nŃo trazendo atrazo.
Mas talvez o Snr. Doutor apeasse em Corinde, por causa das bagagens...
--Duvido, murmurou Gracinha. Em todo o caso o JosÚ estß com tenšŃo de
partir de madrugada, para o encontrar na bifurcašŃo, em Lamello.
--Nˇs nŃo! acudiu o Titˇ, que se sentßra familiarmente no rebordo da
varanda. Cß o nosso rancho vae simplesmente a Craquŕde. Jß Ú terra da
familia, e sitio mais socegado para o vivorio... Mas entŃo esse homem
nŃo se demorou em Lisboa, prima Graša?
--Desde Domingo, primo Antonio. Chegou no Domingo, de Paris, pelo
Sud-Express. E teve uma chegada brilhante... Oh! muito brilhante! Hontem
recebi eu uma carta da Maria Mendonša, uma grande carta em que conta...
--O que? A prima Maria Mendonša estß em Lisboa?
--Sim, desde os fins d'Agosto, n'uma visita a D. Anna Lucena...
Vivamente, JoŃo Gouveia puxou a cadeira, n'uma curiosidade que de certo
o remoera:
--╔ verdade, Snr.^a D. Graša!--EntŃo parece que a D. Anna Lucena comprou
uma casa em Lisboa. anda em arranjos de mobilia?... V. Ex.^a ouviu,
Snr.^a D. Graša?
NŃo, Gracinha nŃo sabia. Mas era natural, agora que tanto se demorava em
Lisboa, pouco se aproveitava da _Feitosa_, tŃo linda quinta...
--EntŃo casa! exclamou o Gouveia, com immensa convicšŃo. Se anda em
arranjos de mobilia, entŃo casa. ╔ natural, quer posišŃo. Depois, jß lß
vŃo quatro annos de viuvez, e...
Gracinha sorriu. Mas o Titˇ, que cošava lentamente a barba, voltou ß
carta da prima Maria Mendonša, contando a chegada.
--Sim! acudiu Gracinha, conta, esteve na EstašŃo, no Rocio. Parece que o
Gonšalo optimo, mais forte... Olhe, primo Antonio, leia a carta. Leia
alto! NŃo tem segredos. ╔ toda sobre o Gonšalo...
Tirßra do bolso um pesado enveloppe, com sinete d'armas no lacre. Mas a
prima Maria escrevia sempre depressa, n'uma lettra atabalhoada, com as
linhas crusadas. Talvez o primo Antonio nŃo comprehendesse...--E com
effeito, deante das quatro folhas de papel errišadas de negras linhas,
parecendo uma sebe espinhosa, o Titˇ recuou, aterrado. Mas o JoŃo
Gouveia immediatamente se offereceu, com a sua pericia em decifrar
officios de regedores... NŃo havendo segredos.
--NŃo, nŃo ha segredos, afianšou Gracinha, rindo. ╔ unicamente sobre o
Gonšalo, como n'um jornal.
O administrador folheou a immensa carta, passou os dedos sobre o bigode,
com certa solemnidade:
źMinha querida Graša... A costureira do Silva diz que o vestido...╗
--NŃo! acudiu Gracinha. ╔ na outra pagina, no alto. Volte a pagina.
Mas o Administrador gracejou, ruidosamente. Oh! estß claro, carta de
senhora, logo os trapos... E a Snr.^a D. Graša a assegurar que era toda
sobre Gonšalo. Pois jß veriam se pelo meio se nŃo fallava ainda em
vestidos... Ah! estas senhoras, com os trapos!...--Depois recomešou, na
outra pagina, com lentidŃo e gravidade:
ź...Deves agora estar anciosa por saber da grande chegada do primo
Gonšalo. Foi realmente brilhante, e parecia uma recepšŃo de pessoa real.
Eramos mais de trinta amigos. Estß claro, appareceu toda a roda da nossa
parentella; e se rebentasse de repente n'essa manhŃ uma revolušŃo, os
Republicanos apanhavam alli junta, na estašŃo do Rocio, toda a fl˘r da
nobresa de Portugal, da velha, da boa. De senhoras, era a prima Chellas,
a tia Louredo, as duas Esposendes (com o tio Esposende, que apesar do
rheumatismo e da vindima, veiu expressamente da quinta de Torres), e eu.
Homens, todos. E como estava o Conde de Arega, que Ú secretario d'El-Rei
e o primo Olhalvo, que Ú o seu Mordomo-Mˇr, e o Ministro da Marinha e o
Ministro das Obras Publicas, ambos condiscipulos e intimos de Gonšalo,
as pessoas na estašŃo deviam imaginar que chegava El-Rei. O Sud-Express
trouxe quarenta minutos de demora. De modo que parecia um salŃo, com
toda aquella gente da sociedade, muito alegre, e o primo Arega, sempre
tŃo amavel e engrašado, e fazendo jß convites para um jantar (que depois
deu) ao primo Gonšalo. Lß fui a esse jantar com o meu vestido verde,
novo, que ficou bem...╗
Gouveia gritou triumphando:
--Hein? que disse eu?! cß estß vestido. Vestido verde!
--Lŕ para deante, homem! bramou o Titˇ.
E o Administrador, realmente interessado, recomešou, com entono:
ź...com o meu vestido verde novo, excepto a saia, um pouco pesadota.
Creio que fui eu a primeira que avistou o primo Gonšalo, na plataforma
do Sud-Express. NŃo imaginas como vem... optimo! AtÚ mais bonito, e
sobretudo mais homem. A Africa nem de leve lhe tostou a pelle. Sempre a
mesma brancura. E d'uma elegancia, d'um apuro! Prova de como se adeanta
a civilisašŃo d'Africa! dizia o primo Arega, este Ú estylo novo de
tangas em Macheque!... Como imaginas, muito abrašo, muita beijoca. A tia
Louredo choramigou. Ah, jß esquecia! Estava tambem o Visconde de
Rio-Manso, com a filha, a Rosinha. Muito linda ella, com um vestido do
Redfern, fez sensašŃo. Todos me perguntavam quem era, e o conde d'Arega,
estß claro, logo com appetite de ser apresentado. O Rio-Manso tambem
choramigou ao abrašar o primo Gonšalo. E ali viemos todos, em nobre
sequito, pela estašŃo fˇra, entre o pasmo dos povos. Mas immediatamente
uma scena. De repente, no meio de toda aquella nata de braz§es, o primo
Gonšalo rompe e cahe nos brašos do homemzinho de bonet agaloado que
recebia ß porta os bilhetes. Sempre o mesmo Gonšalo! Parece que o
conheceu ao chegar a Lourenšo Marques, onde o homem tratava de se
estabelecer como photographo. Mas jß esquecia o melhor--o Bento! NŃo
imaginas o Bento... Magnifico! Deixou crescer um bocado de suissa. ╔ um
modelo, vestido em Londres, de grande casaco de viagem de panno claro,
atÚ aos pÚs, luvas amarelladas, gravidade immensa. Gostou de me vŕr na
estašŃo--perguntou logo, com o olho humido, pela Snr.^a D. Graša, e pela
Rosa. ┴ noite, o JosÚ e eu jantamos em familia, com o primo Gonšalo, no
Braganša, para conversar da Torre e dos Cunhaes. Elle contou muitas
cousas interessantes d'Africa. Traz notas para um livro, e parece que o
praso prospera. N'estes poucos annos plantou dois mil coqueiros. Tem
tambem muito cacau, muita borracha. Gallinhas sŃo aos milhares. ╔
verdade que uma gallinha gorda em Macheque vale um pataco. Que inveja!
Aqui em Lisboa custa seis tost§es, sˇ com ossos--por que tendo tambem
alguma carne no peito, salta para cß dez tost§es, e agradece! No praso
jß se construiu uma grande casa, proximo do rio, com vinte janellas e
pintada de azul. E o primo Gonšalo declara que jß nŃo vende o praso nem
por oitenta contos. Para felicidade completa atÚ achou um excellente
administrador. Eu todavia duvido que elle volte para a Africa. Tenho
agora cß a minha linda ideia sobre o futuro do primo Gonšalo. Talvez te
rias. E nŃo adivinhas... com effeito, eu mesma sˇ n'essa noite em que
jantamos no Braganša, recebi de repente a inspirašŃo. O Rio-Manso estß
tambem no Braganša. Quando desciamos para o jantar, para um gabinete,
encontramos no corredor o velho com a pequena. O homem tornou logo a
abrašar Gonšalo, com uma _ternura de pae_. E a Rosinha tŃo vermelha se
fez, que atÚ Gonšalo, apesar de excitado e distrahido, notou e cˇrou de
leve. Parece que jß ha entre elles um conhecimento antigo, por causa
d'um cesto de rosas, e que, desde annos, o Destino os anda
surrateiramente chegando. Ella Ú realmente uma belleza. E tŃo
sympathica, tŃo bem educada!... Differenša d'edade, apenas onze annos; e
o dote tremendo. Fallam em quinhentos contos. Ha apenas a questŃo de
sangue e o d'ella, coitadinha... Emfim, como se diz em heraldica,--ź_o
Rei faz a pastora Rainha_.╗ E os Ramires, nŃo sˇ vem dos Reis, mas os
Reis vem dos Ramires.--E agora passando a assumpto menos
interessante...╗
Discretamente JoŃo Gouveia dobrou a carta, que entregou a Gracinha,
louvando a Snr.^a D. Maria Mendonša como um źreporter╗ precioso. Depois,
com um cumprimento:
--E, minha senhora, se as previs§es d'ella se realisam...
Mas nŃo! Gracinha nŃo acreditava! Ora! imaginaš§es da Maria Mendonša.
--O primo Antonio bem a conhece, sabe como ella Ú casamenteira...
--Pois se atÚ a mim me quiz casar, ribombou o Titˇ saltando do rebordo
da varanda. Imagine a prima... AtÚ a mim! Com a viuva Pinho, da loja de
pannos.
--Credo!
Mas o Gouveia insistia, com superioridade, um sentimento verdadeiro da
vida positiva:
--Olhe, Snr.^a D. Graša, acredite V. Ex.^a, sempre era melhor arranjo
para o Gonšalo que a Africa... Eu nŃo acredito n'esses prazos... Nem na
Africa. Tenho horror ß Africa. Sˇ serve para nos dar desgostos. Boa para
vender, minha senhora! A Africa Ú como essas quintarolas, meio a monte,
que a gente herda d'uma tia velha, n'uma terra muito bruta, muito
distante, onde nŃo se conhece ninguem, onde nŃo se encontra sequer um
estanco; sˇ habitada por cabreiros, e com sez§es todo o anno. Boa para
vender.
Gracinha enrolava lentamente nos dedos a fita do avental:
--O quŕ! vender o que tanto custou a ganhar, com tantos trabalhos no
mar, tanta perda de vida e fazenda?!
O Administrador protestou logo, com calor, jß enristado para a
controversia:
--Quaes trabalhos, minha senhora? Era desembarcar alli na areia, plantar
umas cruzes de pau, atirar uns safan§es aos pretos... Essas glorias
d'Africa sŃo balelas. Estß claro, V. Ex.^a falla como fidalga, neta de
fidalgos. Mas eu como economista. E digo mais...
O seu dedo agudo ameašava argumentos agudos.
Titˇ acudiu, salvou Gracinha:
--Oh Gouveia, nˇs estamos a tirar o tempo ß prima Graša, que anda nos
seus arranjos. Essas quest§es d'Africa sŃo para depois, com o Gonšalo, ß
sobremeza... E entŃo, minha querida prima, atÚ Domingo, em Craquŕde. Lß
comparece o rancho todo. E quem atira os foguetes sou eu!
Mas Gouveia, cofiando o c˘co com a manga, ainda esperava converter a
Snr.^a D. Graša ßs ideias sŃs, sobre Politica Colonial.
--Era vender, minha senhora, era vender! Ella sorria, jß
consentia--tomando a mŃo do Videirinha, que hesitava, com os dedos
espetados:
--E entŃo, Snr. Videira, tem agora algumas quadras novas para o _Fado_?
Cˇrando, Videirinha balbuciou que źarranjßra uma coisita, tambem n'um
fado, para a volta do Snr. Doutor.╗ Gracinha prometteu decorar, para
cantar ao piano.
--Muito agradecido a V. Ex.^a... Creado de V. Ex.^a...
--EntŃo atÚ Domingo, primo Antonio... Estß uma tarde linda.
--AtÚ Domingo, em Craquŕde, prima.
Mas ß porta envidrašada, JoŃo Gouveia parou mais teso, bateu na testa:
--Jß me esquecia, desculpe V. Ex.^a! Recebi uma carta do AndrÚ
Cavalleiro, da Figueira da Foz. Manda muitas saudades ao Barr˘lo. E quer
saber se o Barr˘lo lhe poderia ceder d'aquelle vinho verde de Vidainhos.
╔ tambem para um africanista, para o conde de S. RomŃo... Parece que a
Snr.^a condessa se pÚla por vinho verde!
E os tres amigos, em fila, atravessaram a sala de jantar, onde o
vozeirŃo do Titˇ ainda ribombou, louvando a esteira nova de c˘res. No
corredor, Videirinha espreitou para a Livraria, notou o molho de penas
de pato espetado no velho tinteiro de latŃo, que esperava, rebrilhando
solitariamente sobre a mesa nua sem papeis nem livros. Depois a Rosa
appareceu ß porta do quarto de Gonšalo, ajoujada de roupa, com um riso
em cada ruga da sua face redonda e c˘r de tijolo, que o farto lenšo de
cambraia, muito branco, circumdava como um nimbo. O Titˇ affagou
carinhosamente o hombro da boa cosinheira:
--EntŃo, tia Rosa, agora recomešam essas grandes petisqueiras, hein?
--Louvado seja Deus, Snr. D. Antonio! Que imaginei que nŃo tornava a vŕr
o meu rico senhor. Tambem jß tinha decidido... Se me enterrassem o corpo
aqui em Santa Ireneia, antes de eu vŕr o menino, a alma com certesa ia ß
Africa para lhe fazer uma visita.
Os seus miudos olhos piscaram, lagrimejando de gosto--e seguiu pelo
corredor, tesa e decidida, com a sua trouxa que rescendia a mašŃ
camoeza. O Gouveia murmurßra com uma careta:--źSafa!╗ E os tres amigos
desceram ao pateo onde, por curiosidade do Titˇ, visitaram as obras da
cavallariša.
--Veja vocŕ! exclamou elle para o Gouveia, que accendia o charuto. Vocŕ
a negar!... Mobilias, obras, egoa ingleza... Tudo jß dinheiro d'Africa.
O Administrador encolheu os hombros:
--Veremos depois como elle traz o figado...
Deante do portŃo o Titˇ ainda parou a colher, na roseira costumada, uma
rosinha para florir o jaquetŃo de velludilho. E juntamente entrava o
Padre Sueiro, recolhendo d'uma volta pelos Bravaes, com o seu grande
guarda-sol de panninho e o seu breviario. Todos acolheram com carinho o
santo e douto velho, tŃo raro agora na Torre.
--E entŃo no Domingo, cß temos o nosso homem, Padre Sueiro!
O capellŃo achatou sobre o peito a mŃo gorda, com reverencia, com
gratidŃo...
--Deus ainda me quiz conceder, na minha velhice, mais esse grande
favor... Pois mal o esperava. Terras tŃo asperas, e elle tŃo delicado...
E para conversar de Gonšalo, da espera em Craquŕde, acompanhou aquelles
senhores atÚ ß ponte da Portella. JoŃo Gouveia manquejava, aperreado por
umas infames botas novas que n'essa manhŃ estreßra. E descanšaram um
momento no bello banco de pedra que o pae de Gonšalo mandßra collocar,
quando Governador Civil d'Oliveira. Era esse o doce sitio d'onde se
avista Villa-Clara, tŃo aceada, sempre tŃo branca, ßquella hora toda
rosada, d'esde o vasto convento de Santa Theresa atÚ ao muro novo do
cemiterio no alto, com os seus finos cyprestes.
Para alÚm dos outeiros de Valverde, longe, sobre a Costa, o sol descia,
vermelho como um metal candente que arrefece, entre nuvens vermelhas,
accendendo ainda, em ouro coruscante, as janellas da Villa.
Ao fundo do valle, uma claridade nimbava as altas ruinas de Santa Maria
de Craquŕde, entre o seu denso arvoredo. Sob o arco, o rio cheio corria
sem um rumor, jß dormente na sombra dos choupos finos, onde ainda
passaros cantavam. E na volta da estrada, por cima dos alamos que
escondiam o casarŃo, a velha Torre, mais velha que a Villa e que as
ruinas do Mosteiro, e que todos os casaes espalhados, erguia o seu
esguio miradoiro, envolto no v˘o escuro dos morcegos, espreitando
silenciosamente a planicie e o sol sobre o mar, como em cada tarde
d'esses mil annos, desde o Conde Ordonho Mendes.
Um pequeno com uma alta aguilhada passou, recolhendo duas vaccas lentas.
Do lado da Villa, o padre JosÚ Vicente da Finta trotou na sua egoa
branca, saudou o Snr. Administrador, o amigo Sueiro, abenšoando tambem a
chegada do Fidalgo para quem jß preparßra uma bella cesta da sua uva
moscatel. Trez cašadores, com uma matilha de coelheiras, atravessaram a
estrada, descendo pelo portello ß quelha que contorna o casal do
Miranda.
Um silencio ainda claro, de immenso repouso, tŃo doce como se descesse
do ceu, cobria a largueza povoada dos campos, onde nŃo se movia uma
folha, na macia transparencia do ar de Setembro. Os fumos das lareiras
accesas jß se escapavam, lentos e leves, d'entre a telha rala. Na loja
do JoŃo ferreiro, adeante da Portella, o clarŃo da forja avivou, mais
vermelho. Um _bum-bum_ de tambor bateu festivamente para o lado dos
Bravaes, cresceu apressado, marchando:--n'algum cabešo, depois
lentamente se afastou, esmoreceu, logo sumido, em arvoredos ou no valle
mais fundo.
JoŃo Gouveia, que se recostßra no canto do largo assento de pedra, com o
seu c˘co sobre os joelhos, acenou para o lado dos Bravaes:
--Estou a lembrar aquella passagem do romance do Gonšalo, quando os
Ramires se preparam para soccorrer as Infantas, andam a reunir a
mesnada. ╔ assim, a estas horas da tarde, com tambores: e por sitios...
źNa frescura do valle...╗ NŃo! źPelo valle de Craquŕde...╗ Tambem nŃo!
Esperem vocŕs, que eu tenho boa memoria... Ah! źE por todo o fresco
valle atÚ Santa Maria de Craquŕde, os atambores mouriscos abafados no
arvoredo, tararam! tararam! ou mais vivos nos cerros ralatam! ralatam!
convocavam ß mesnada dos Ramires, na došura da tarde...╗ E lindo!
Por sobre as costas do Titˇ que, debrušado, riscava pensativamente com o
bengalŃo a poeira da estrada, Videirinha adeantou para o seu chefe a
face estendida, com um sorriso de finura:
--Oh Snr. Administrador, olhe que talvez seja ainda mais bonito, quando
os Ramires largam a perseguir o Bastardo! Cß para mim, tem mais poesia.
Quando o velho faz aquella jura com a espada e depois lß na Torre, muito
devagar, comeša a tocar a finados... ╔ d'appetite!
┴ borda do assento, encolhido contra o Titˇ, para que o Snr.
Administrador se alastrasse confortavelmente, Padre Sueiro, com as mŃos
no cabo do seu guarda-sol, concordou:
--Com certesa! sŃo lances interessantes... Com certesa! N'aquella
novella ha imaginašŃo rica, muito rica: e ha saber, ha verdade.
O Titˇ, que depois de _SimŃo de Nantua_, em pequeno, nŃo abrira mais as
folhas d'um livro, e nŃo lŕra a _Torre de D. Ramires_, murmurou, com um
risco mais largo na poeira:
--Extraordinario, aquelle Gonšalo!
O Videirinha nŃo findßra o seu enlevado sorriso:
--Tem muito talento... Ah! o Snr. Doutor tem muito talento.
--Tem muita raša! exclamou o Titˇ, levantando a cabeša. E Ú o que o
salva dos defeitos... Eu sou um amigo de Gonšalo, e dos firmes. Mas nŃo
o escondo, nem a elle... Sobretudo a elle. Muito leviano, muito
incoherente... Mas tem a raša que o salva.
--E a bondade, Snr. Antonio Villalobos! atalhou docemente Padre Sueiro.
A bondade, sobretudo como a do Snr. Gonšalo, tambem salva... Olhe, ßs
vezes ha um homem muito serio, muito puro, muito austero, um CatŃo que
nunca cumpriu senŃo o dever e a lei... E todavia ninguem gosta d'elle,
nem o procura. Por que? Por que nunca deu, nunca perdoou, nunca
acarinhou, nunca serviu. E ao lado outro leviano, descuidado, que tem
defeitos, que tem culpas, que esqueceu mesmo o dever, que offendeu mesmo
a lei... Mas quŕ? ╔ amoravel, generoso, dedicado, servišal, sempre com
uma palavra doce, sempre com um rasgo carinhoso... E por isso todos o
amam, e nŃo sei mesmo, Deus me perd˘e, se Deus tambem o nŃo prefere...
A curta mŃo que acenßra para o ceu, recahiu sobre o cabo d'osso do
guarda-sol. Depois, e cˇrado com a temeridade de pensamento tŃo
espiritual acudiu cautelosamente:
--Que esta nŃo Ú propriamente doutrina da Egreja!... Mas anda nas almas;
anda jß em muitas almas.
EntŃo JoŃo Gouveia abandonou o recosto do banco de pedra e teso na
estrada, com o c˘co ß banda, reabotoando a sobrecasaca, como sempre que
estabelecia um resumo:
--Pois eu tenho estudado muito o nosso amigo Gonšalo Mendes. E sabem
vocŕs, sabe o Snr. Padre Sueiro quem elle me lembra?
--Quem?
--Talvez se riam. Mas eu sustento a semelhanša. Aquelle todo de Gonšalo,
a franqueza, a došura, a bondade, a immensa bondade, que notou o Snr.
Padre Sueiro... Os fogachos e enthusiasmos, que acabam logo em fumo, e
juntamente muita persistencia, muito aferro quando se fila ß sua
ideia... A generosidade, o desleixo, a constante trapalhada nos
negocios, e sentimentos de muita honra, uns escrupulos, quasi pueris,
nŃo Ú verdade?... A imaginašŃo que o leva sempre a exaggerar atÚ ß
mentira, e ao mesmo tempo um espirito pratico, sempre attento ß
realidade util. A viveza, a facilidade em comprehender, em apanhar... A
esperanša constante n'algum milagre, no velho milagre d'Ourique, que
sanarß todas as difficuldades... A vaidade, o gosto de se arrebicar, de
luzir, e uma simplicidade tŃo grande, que dß na rua o brašo a um
mendigo... Um fundo de melancolia, apesar de tŃo palrador, tŃo sociavel.
A desconfianša terrivel de si mesmo, que o acobarda, o encolhe, atÚ que
um dia se decide, e apparece um heroe, que tudo arrasa... AtÚ aquella
antiguidade de raša, aqui pegada ß sua velha Torre, ha mil annos... AtÚ
agora aquelle arranque para a Africa... Assim todo completo, com o bem,
com o mal, sabem vocŕs quem elle me lembra?
--Quem?...
--Portugal.
Os tres amigos retomaram o caminho de Villa-Clara. No ceu branco uma
estrellinha tremeluzia sobre Santa Maria de Craquŕde. E Padre Sueiro,
com o seu guarda-sol sob o brašo, recolheu ß Torre vagarosamente, no
silencio e došura da tarde, resando as suas AvŔ-Marias, e pedindo a paz
de Deus para Gonšalo, para todos os homens, para campos e casaes
adormecidos, e para a terra formosa de Portugal, tŃo cheia de graša
amoravel, que sempre bemdita fosse entre as terras.
FIM
* * * * *
A revisŃo das provas d'este livro, desde paginas 417 atÚ ß conclusŃo,
nŃo foi feita pelo Auctor. Entretanto seguiu-se ß risca o original.
End of Project Gutenberg's A Illustre Casa de Ramires, by Eša de Queiroz
*** END OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK A ILLUSTRE CASA DE RAMIRES ***
***** This file should be named 23145-8.txt or 23145-8.zip *****
This and all associated files of various formats will be found in:
http://www.gutenberg.org/2/3/1/4/23145/
Produced by Rita Farinha and the Online Distributed
Proofreading Team at http://www.pgdp.net (This file was
produced from images generously made available by National
Library of Portugal (Biblioteca Nacional de Portugal).)
Updated editions will replace the previous one--the old editions
will be renamed.
Creating the works from public domain print editions means that no
one owns a United States copyright in these works, so the Foundation
(and you!) can copy and distribute it in the United States without
permission and without paying copyright royalties. Special rules,
set forth in the General Terms of Use part of this license, apply to
copying and distributing Project Gutenberg-tm electronic works to
protect the PROJECT GUTENBERG-tm concept and trademark. Project
Gutenberg is a registered trademark, and may not be used if you
charge for the eBooks, unless you receive specific permission. If you
do not charge anything for copies of this eBook, complying with the
rules is very easy. You may use this eBook for nearly any purpose
such as creation of derivative works, reports, performances and
research. They may be modified and printed and given away--you may do
practically ANYTHING with public domain eBooks. Redistribution is
subject to the trademark license, especially commercial
redistribution.
*** START: FULL LICENSE ***
THE FULL PROJECT GUTENBERG LICENSE
PLEASE READ THIS BEFORE YOU DISTRIBUTE OR USE THIS WORK
To protect the Project Gutenberg-tm mission of promoting the free
distribution of electronic works, by using or distributing this work
(or any other work associated in any way with the phrase "Project
Gutenberg"), you agree to comply with all the terms of the Full Project
Gutenberg-tm License (available with this file or online at
http://gutenberg.org/license).
Section 1. General Terms of Use and Redistributing Project Gutenberg-tm
electronic works
1.A. By reading or using any part of this Project Gutenberg-tm
electronic work, you indicate that you have read, understand, agree to
and accept all the terms of this license and intellectual property
(trademark/copyright) agreement. If you do not agree to abide by all
the terms of this agreement, you must cease using and return or destroy
all copies of Project Gutenberg-tm electronic works in your possession.
If you paid a fee for obtaining a copy of or access to a Project
Gutenberg-tm electronic work and you do not agree to be bound by the
terms of this agreement, you may obtain a refund from the person or
entity to whom you paid the fee as set forth in paragraph 1.E.8.
1.B. "Project Gutenberg" is a registered trademark. It may only be
used on or associated in any way with an electronic work by people who
agree to be bound by the terms of this agreement. There are a few
things that you can do with most Project Gutenberg-tm electronic works
even without complying with the full terms of this agreement. See
paragraph 1.C below. There are a lot of things you can do with Project
Gutenberg-tm electronic works if you follow the terms of this agreement
and help preserve free future access to Project Gutenberg-tm electronic
works. See paragraph 1.E below.
1.C. The Project Gutenberg Literary Archive Foundation ("the Foundation"
or PGLAF), owns a compilation copyright in the collection of Project
Gutenberg-tm electronic works. Nearly all the individual works in the
collection are in the public domain in the United States. If an
individual work is in the public domain in the United States and you are
located in the United States, we do not claim a right to prevent you from
copying, distributing, performing, displaying or creating derivative
works based on the work as long as all references to Project Gutenberg
are removed. Of course, we hope that you will support the Project
Gutenberg-tm mission of promoting free access to electronic works by
freely sharing Project Gutenberg-tm works in compliance with the terms of
this agreement for keeping the Project Gutenberg-tm name associated with
the work. You can easily comply with the terms of this agreement by
keeping this work in the same format with its attached full Project
Gutenberg-tm License when you share it without charge with others.
1.D. The copyright laws of the place where you are located also govern
what you can do with this work. Copyright laws in most countries are in
a constant state of change. If you are outside the United States, check
the laws of your country in addition to the terms of this agreement
before downloading, copying, displaying, performing, distributing or
creating derivative works based on this work or any other Project
Gutenberg-tm work. The Foundation makes no representations concerning
the copyright status of any work in any country outside the United
States.
1.E. Unless you have removed all references to Project Gutenberg:
1.E.1. The following sentence, with active links to, or other immediate
access to, the full Project Gutenberg-tm License must appear prominently
whenever any copy of a Project Gutenberg-tm work (any work on which the
phrase "Project Gutenberg" appears, or with which the phrase "Project
Gutenberg" is associated) is accessed, displayed, performed, viewed,
copied or distributed:
This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org
1.E.2. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is derived
from the public domain (does not contain a notice indicating that it is
posted with permission of the copyright holder), the work can be copied
and distributed to anyone in the United States without paying any fees
or charges. If you are redistributing or providing access to a work
with the phrase "Project Gutenberg" associated with or appearing on the
work, you must comply either with the requirements of paragraphs 1.E.1
through 1.E.7 or obtain permission for the use of the work and the
Project Gutenberg-tm trademark as set forth in paragraphs 1.E.8 or
1.E.9.
1.E.3. If an individual Project Gutenberg-tm electronic work is posted
with the permission of the copyright holder, your use and distribution
must comply with both paragraphs 1.E.1 through 1.E.7 and any additional
terms imposed by the copyright holder. Additional terms will be linked
to the Project Gutenberg-tm License for all works posted with the
permission of the copyright holder found at the beginning of this work.
1.E.4. Do not unlink or detach or remove the full Project Gutenberg-tm
License terms from this work, or any files containing a part of this
work or any other work associated with Project Gutenberg-tm.
1.E.5. Do not copy, display, perform, distribute or redistribute this
electronic work, or any part of this electronic work, without
prominently displaying the sentence set forth in paragraph 1.E.1 with
active links or immediate access to the full terms of the Project
Gutenberg-tm License.
1.E.6. You may convert to and distribute this work in any binary,
compressed, marked up, nonproprietary or proprietary form, including any
word processing or hypertext form. However, if you provide access to or
distribute copies of a Project Gutenberg-tm work in a format other than
"Plain Vanilla ASCII" or other format used in the official version
posted on the official Project Gutenberg-tm web site (www.gutenberg.org),
you must, at no additional cost, fee or expense to the user, provide a
copy, a means of exporting a copy, or a means of obtaining a copy upon
request, of the work in its original "Plain Vanilla ASCII" or other
form. Any alternate format must include the full Project Gutenberg-tm
License as specified in paragraph 1.E.1.
1.E.7. Do not charge a fee for access to, viewing, displaying,
performing, copying or distributing any Project Gutenberg-tm works
unless you comply with paragraph 1.E.8 or 1.E.9.
1.E.8. You may charge a reasonable fee for copies of or providing
access to or distributing Project Gutenberg-tm electronic works provided
that
- You pay a royalty fee of 20% of the gross profits you derive from
the use of Project Gutenberg-tm works calculated using the method
you already use to calculate your applicable taxes. The fee is
owed to the owner of the Project Gutenberg-tm trademark, but he
has agreed to donate royalties under this paragraph to the
Project Gutenberg Literary Archive Foundation. Royalty payments
must be paid within 60 days following each date on which you
prepare (or are legally required to prepare) your periodic tax
returns. Royalty payments should be clearly marked as such and
sent to the Project Gutenberg Literary Archive Foundation at the
address specified in Section 4, "Information about donations to
the Project Gutenberg Literary Archive Foundation."
- You provide a full refund of any money paid by a user who notifies
you in writing (or by e-mail) within 30 days of receipt that s/he
does not agree to the terms of the full Project Gutenberg-tm
License. You must require such a user to return or
destroy all copies of the works possessed in a physical medium
and discontinue all use of and all access to other copies of
Project Gutenberg-tm works.
- You provide, in accordance with paragraph 1.F.3, a full refund of any
money paid for a work or a replacement copy, if a defect in the
electronic work is discovered and reported to you within 90 days
of receipt of the work.
- You comply with all other terms of this agreement for free
distribution of Project Gutenberg-tm works.
1.E.9. If you wish to charge a fee or distribute a Project Gutenberg-tm
electronic work or group of works on different terms than are set
forth in this agreement, you must obtain permission in writing from
both the Project Gutenberg Literary Archive Foundation and Michael
Hart, the owner of the Project Gutenberg-tm trademark. Contact the
Foundation as set forth in Section 3 below.
1.F.
1.F.1. Project Gutenberg volunteers and employees expend considerable
effort to identify, do copyright research on, transcribe and proofread
public domain works in creating the Project Gutenberg-tm
collection. Despite these efforts, Project Gutenberg-tm electronic
works, and the medium on which they may be stored, may contain
"Defects," such as, but not limited to, incomplete, inaccurate or
corrupt data, transcription errors, a copyright or other intellectual
property infringement, a defective or damaged disk or other medium, a
computer virus, or computer codes that damage or cannot be read by
your equipment.
1.F.2. LIMITED WARRANTY, DISCLAIMER OF DAMAGES - Except for the "Right
of Replacement or Refund" described in paragraph 1.F.3, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation, the owner of the Project
Gutenberg-tm trademark, and any other party distributing a Project
Gutenberg-tm electronic work under this agreement, disclaim all
liability to you for damages, costs and expenses, including legal
fees. YOU AGREE THAT YOU HAVE NO REMEDIES FOR NEGLIGENCE, STRICT
LIABILITY, BREACH OF WARRANTY OR BREACH OF CONTRACT EXCEPT THOSE
PROVIDED IN PARAGRAPH F3. YOU AGREE THAT THE FOUNDATION, THE
TRADEMARK OWNER, AND ANY DISTRIBUTOR UNDER THIS AGREEMENT WILL NOT BE
LIABLE TO YOU FOR ACTUAL, DIRECT, INDIRECT, CONSEQUENTIAL, PUNITIVE OR
INCIDENTAL DAMAGES EVEN IF YOU GIVE NOTICE OF THE POSSIBILITY OF SUCH
DAMAGE.
1.F.3. LIMITED RIGHT OF REPLACEMENT OR REFUND - If you discover a
defect in this electronic work within 90 days of receiving it, you can
receive a refund of the money (if any) you paid for it by sending a
written explanation to the person you received the work from. If you
received the work on a physical medium, you must return the medium with
your written explanation. The person or entity that provided you with
the defective work may elect to provide a replacement copy in lieu of a
refund. If you received the work electronically, the person or entity
providing it to you may choose to give you a second opportunity to
receive the work electronically in lieu of a refund. If the second copy
is also defective, you may demand a refund in writing without further
opportunities to fix the problem.
1.F.4. Except for the limited right of replacement or refund set forth
in paragraph 1.F.3, this work is provided to you 'AS-IS' WITH NO OTHER
WARRANTIES OF ANY KIND, EXPRESS OR IMPLIED, INCLUDING BUT NOT LIMITED TO
WARRANTIES OF MERCHANTIBILITY OR FITNESS FOR ANY PURPOSE.
1.F.5. Some states do not allow disclaimers of certain implied
warranties or the exclusion or limitation of certain types of damages.
If any disclaimer or limitation set forth in this agreement violates the
law of the state applicable to this agreement, the agreement shall be
interpreted to make the maximum disclaimer or limitation permitted by
the applicable state law. The invalidity or unenforceability of any
provision of this agreement shall not void the remaining provisions.
1.F.6. INDEMNITY - You agree to indemnify and hold the Foundation, the
trademark owner, any agent or employee of the Foundation, anyone
providing copies of Project Gutenberg-tm electronic works in accordance
with this agreement, and any volunteers associated with the production,
promotion and distribution of Project Gutenberg-tm electronic works,
harmless from all liability, costs and expenses, including legal fees,
that arise directly or indirectly from any of the following which you do
or cause to occur: (a) distribution of this or any Project Gutenberg-tm
work, (b) alteration, modification, or additions or deletions to any
Project Gutenberg-tm work, and (c) any Defect you cause.
Section 2. Information about the Mission of Project Gutenberg-tm
Project Gutenberg-tm is synonymous with the free distribution of
electronic works in formats readable by the widest variety of computers
including obsolete, old, middle-aged and new computers. It exists
because of the efforts of hundreds of volunteers and donations from
people in all walks of life.
Volunteers and financial support to provide volunteers with the
assistance they need, is critical to reaching Project Gutenberg-tm's
goals and ensuring that the Project Gutenberg-tm collection will
remain freely available for generations to come. In 2001, the Project
Gutenberg Literary Archive Foundation was created to provide a secure
and permanent future for Project Gutenberg-tm and future generations.
To learn more about the Project Gutenberg Literary Archive Foundation
and how your efforts and donations can help, see Sections 3 and 4
and the Foundation web page at http://www.pglaf.org.
Section 3. Information about the Project Gutenberg Literary Archive
Foundation
The Project Gutenberg Literary Archive Foundation is a non profit
501(c)(3) educational corporation organized under the laws of the
state of Mississippi and granted tax exempt status by the Internal
Revenue Service. The Foundation's EIN or federal tax identification
number is 64-6221541. Its 501(c)(3) letter is posted at
http://pglaf.org/fundraising. Contributions to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation are tax deductible to the full extent
permitted by U.S. federal laws and your state's laws.
The Foundation's principal office is located at 4557 Melan Dr. S.
Fairbanks, AK, 99712., but its volunteers and employees are scattered
throughout numerous locations. Its business office is located at
809 North 1500 West, Salt Lake City, UT 84116, (801) 596-1887, email
[email protected]. Email contact links and up to date contact
information can be found at the Foundation's web site and official
page at http://pglaf.org
For additional contact information:
Dr. Gregory B. Newby
Chief Executive and Director
[email protected]
Section 4. Information about Donations to the Project Gutenberg
Literary Archive Foundation
Project Gutenberg-tm depends upon and cannot survive without wide
spread public support and donations to carry out its mission of
increasing the number of public domain and licensed works that can be
freely distributed in machine readable form accessible by the widest
array of equipment including outdated equipment. Many small donations
($1 to $5,000) are particularly important to maintaining tax exempt
status with the IRS.
The Foundation is committed to complying with the laws regulating
charities and charitable donations in all 50 states of the United
States. Compliance requirements are not uniform and it takes a
considerable effort, much paperwork and many fees to meet and keep up
with these requirements. We do not solicit donations in locations
where we have not received written confirmation of compliance. To
SEND DONATIONS or determine the status of compliance for any
particular state visit http://pglaf.org
While we cannot and do not solicit contributions from states where we
have not met the solicitation requirements, we know of no prohibition
against accepting unsolicited donations from donors in such states who
approach us with offers to donate.
International donations are gratefully accepted, but we cannot make
any statements concerning tax treatment of donations received from
outside the United States. U.S. laws alone swamp our small staff.
Please check the Project Gutenberg Web pages for current donation
methods and addresses. Donations are accepted in a number of other
ways including checks, online payments and credit card donations.
To donate, please visit: http://pglaf.org/donate
Section 5. General Information About Project Gutenberg-tm electronic
works.
Professor Michael S. Hart is the originator of the Project Gutenberg-tm
concept of a library of electronic works that could be freely shared
with anyone. For thirty years, he produced and distributed Project
Gutenberg-tm eBooks with only a loose network of volunteer support.
Project Gutenberg-tm eBooks are often created from several printed
editions, all of which are confirmed as Public Domain in the U.S.
unless a copyright notice is included. Thus, we do not necessarily
keep eBooks in compliance with any particular paper edition.
Most people start at our Web site which has the main PG search facility:
http://www.gutenberg.org
This Web site includes information about Project Gutenberg-tm,
including how to make donations to the Project Gutenberg Literary
Archive Foundation, how to help produce our new eBooks, and how to
subscribe to our email newsletter to hear about new eBooks.
Excerpt
The Project Gutenberg EBook of A Illustre Casa de Ramires, by Eša de Queiroz
This eBook is for the use of anyone anywhere at no cost and with
almost no restrictions whatsoever. You may copy it, give it away or
re-use it under the terms of the Project Gutenberg License included
with this eBook or online at www.gutenberg.org
Read the Full Text
— End of A Illustre Casa de Ramires —
Book Information
- Title
- A Illustre Casa de Ramires
- Author(s)
- Queirós, Eça de
- Language
- Portuguese
- Type
- Text
- Release Date
- October 22, 2007
- Word Count
- 114,774 words
- Library of Congress Classification
- PQ
- Bookshelves
- PT Romance, Browsing: Literature, Browsing: Fiction
- Rights
- Public domain in the USA.
Related Books
The sweet miracle
by Queirós, Eça de
English
60h 33m read
Dragon's teeth
by Queirós, Eça de
English
2122h 3m read
Prosas barbaras - com uma introducção por Jayme Batalha Reis.
by Queirós, Eça de
Portuguese
1055h 22m read
Adán y Eva en el paraíso
by Queirós, Eça de
Spanish
1308h 6m read
Echos de Pariz
by Queirós, Eça de
Portuguese
890h 24m read
Our Lady of the Pillar
by Queirós, Eça de
English
259h 34m read